Município de Foz do Iguaçu é condenado a indenizar avó de menino que foi discriminado por médico
Segundo a autora, o médico disse que só iria fornecer declaração se a mãe (no caso, a avó) prometesse que naquele mesmo dia cortaria o cabelo da criança
O Município de Foz do Iguaçu foi condenado a pagar a importância de R$ 4.000,00, a título de indenização por danos morais, à avó de uma criança que foi vítima de comentários vexatórios e discriminatórios verbalizados por um médico do Posto de Saúde Municipal Morumbi II. Além da correção monetária, a esse valor serão aplicados juros de mora.
Essa decisão da 1.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná reformou a sentença do Juízo da 1.ª Vara Cível da Comarca de Foz do Iguaçu que julgou improcedente o pedido formulado por C.V.W.N., avó do menino, na ação de indenização por danos morais ajuizada contra o Município de Foz do Iguaçu. O juiz de 1.º grau entendeu que não havia provas suficientes para a condenação.
O caso
Na petição inicial, narra a autora da ação (C.V.W.N.) que se dirigiu ao Posto de Saúde Municipal Morumbi II para obter declarações de saúde a fim de que os seus quatro netos pudessem frequentar uma determinada creche.
Ao atender um de seus netos, o menino L.I.S., o médico G.C.M. passou a tecer comentários inapropriados sobre a sexualidade do menor. Na presença da avó e de outras pessoas que estavam no local, o médico começou a fazer comentários discriminatórios sobre o menino, “tendo dito para a avó que a criança, da forma como estava (referindo-se aos cabelos longos) era um homossexual e que a mãe (referindo-se à avó) estava criando um gay”. Disse ainda o médico que só iria fornecer declaração se a mãe (no caso, a avó) prometesse que naquele mesmo dia cortaria o cabelo da criança.
Em seguida, o médico apanhou um formulário e passou a exemplificar fazendo algumas anotações, tendo nestas informado à requerente (avó do menino) que “o seu filho, da forma que se apresentava, era hermafrodita e apresentava dois sexos” e que “menina tem que usar vestido, ter o cabelo comprido e brinco na orelha, e homem tem que usar sapato, calça, camisa e cabelo curto repartido do lado, senão ele era gay”.
Acrescentou a autora que “a responsável pela creche, ao examinar as anotações feitas pelo médico, recusou-se a acolher seu neto e pediu que fosse fornecida outra declaração por outro especialista”. Com isso não concordou a autora que, para confirmar a sua versão, tirou a roupa da criança e mostrou para a funcionária que a criança não apresentava nenhuma anormalidade.
Por fim, consignou a autora que “a atitude preconceituosa e discriminatória imposta pelo médico proporcionou-lhe momentos de sofrimento”, sendo que “desde a consulta médica até a conquista da matrícula na creche, a Requerente sofreu humilhações de toda ordem, desde a conduta reprovável do médico, a indignação dos profissionais daquela entidade educacional, até os comentários que passaram a circular acerca daquela declaração vexatória”.
O recurso de apelação
Inconformada com a decisão de 1.º grau, a autora (C.V.W.N.) interpôs recurso de apelação alegando, em síntese, que: a) as testemunhas ouvidas em audiência confirmaram os fatos narrados na inicial; b) a veracidade de suas afirmações ficou evidenciada pelo depoimento do próprio médico responsável pelo atendimento; c) a prova pericial também revelou que seu neto foi tratado como homossexual; d) ao reprovar o comprimento do cabelo de seu neto, o médico deu início a atos discriminatórios; e) a homossexualidade não se revela pelo comprimento do cabelo.
O voto da relatora
A relatora do recurso, desembargadora Dulce Maria Cecconi, assim iniciou o seu voto: “Convém, inicialmente, confirmar a legitimidade da apelante para figurar no pólo ativo da ação, haja vista que uma leitura pouco atenta da exordial pode levar à conclusão de que a honra atingida, no presente caso, foi a de seu neto, e não sua, própria”.
“A causa de pedir, contudo, demonstra que a recorrente sentiu-se pessoalmente abalada pelo modo como o atendimento de seu neto foi conduzido. Com efeito, referiu ela que a atitude preconceituosa e discriminatória do médico proporcionou-lhe momentos de sofrimento e humilhação.”
“Esses sentimentos são naturais e até esperados, posto que, conforme se extrai do termo de guarda de fl. 13, a apelante é a responsável pela criação e educação do referido neto, pontos estes que foram justamente o objeto dos comentários tecidos pelo médico.”
“Sem embargo disso, o Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo a figura do dano moral reflexo, que consiste no sofrimento imposto a pessoas próximas da vítima direta que experimentaram os efeitos lesivos da ofensa.”
No que diz respeito ao mérito, a desembargadora relatora consignou que “o conjunto probatório formado nos autos revela que o médico responsável pelo atendimento do neto da apelante agiu de forma discriminatória e vexatória em relação à apelante e seu neto”.
Asseverou a relatora que as provas dos autos demonstram que “o médico efetivamente teceu comentários sobre a sexualidade [do menino], haja vista que a apelante fez juntar, com a inicial, os receituários onde aquele apôs anotações referentes à existência de dois sexos, e sua classificação entre ‘sexo genético’ e ‘sexo físico’”.
Para a relatora, a prova testemunhal se mostrou elucidativa. “Apesar de tentar dar um ar técnico para as palavras que dirigiu à apelante naquela ocasião, o próprio médico [...] confirmou que disse à apelante que ‘a criança deveria cortar o cabelo para que houvesse a identificação com o sexo social’”, ponderou.
“Ora, nada há de científico que comprove que o comprimento do cabelo interfira diretamente na opção sexual do indivíduo, ou que o torne hermafrodita. Com efeito, nos dias atuais é absolutamente comum o uso de cabelos compridos por pessoas do sexo masculino sem que isso reflita de forma negativa em sua sexualidade.”
“A inadequação social referida pelo médico em questão, aliás, sequer existe, senão em círculos mais fechados e tradicionais, aos quais não compete a criação de regras de conduta àqueles que não os integrem.”
“Depois, no Estado Democrático de Direito a liberdade individual encontra limites na Lei, apenas, como preconiza o artigo 5º, inc. II, da Constituição Federal.”
“Enfim, nada justifica os comentários preconceituosos e vexatórios feitos pelo médico à apelante, sendo inafastável o dever de indenizar”, concluiu a relatora.
Participaram do julgamento o desembargador Ruy Cunha Sobrinho e o juiz substituto em 2.º grau Fernando Cesar Zeni, que acompanharam o voto da relatora.
Apelação Cível n.º 716104-4