Valoração da prova e o livre convencimento motivado no sistema processual brasileiro

O problema da valoração da prova e sua relação com a verdade dos fatos é uma tormenta mesmo nos dias de hoje para a Teoria Geral do Processo e, mesmo para a Teoria Geral do Direito. Mas, a existência da fundamentação da sentença e do livre convencimento motivado traçam os limites da apreciação das provas no processo civil contemporâneo.

Fonte: Gisele Leite

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Precisamos pontuar que a valoração da prova[1] é atividade objetiva e, a metodologia reflete as características do constitucionalismo e o modelo de justiça civil que elaborou uma ressignificação de conceitos e funções de direito probatório, especialmente, na justificação do raciocínio do julgador. De fato, a hermenêutica contemporânea redimensionou o livre convencimento motivado.

A questão hermenêutica contemporânea passa de mero problema de correta subsunção do fato à norma, para transformar-se em ideal de conformação política dos fatos, isto é, a transformação da norma segundo o primado ideológico.

Portanto, a hermenêutica não se refere somente à lei, mas ao direito, e seu objetivo é compreender o conteúdo das formas de expressão do Direito. De sorte que a ampliação dos métodos interpretativos e sua flexibilização são baseados na transformação histórico-cultural da sociedade.

Exemplificando os métodos adotados pela hermenêutica contemporânea são, a saber: método tópico-problemático criado por Viehweg que era um pensador alemão da segunda metade do século XX e, se inicia com a análise do caso concreto para depois buscar a melhor norma jurídica. É um método contrário ao positivismo jurídico; método hermenêutico-concretizador criado por Konrad Hesse, autor da obra intitulada "A força normativa da Constituição"[2], onde há a pré-compreensão do conjunto de valores, visões de mundo, crenças que o intérprete incorpora na sua própria consciência dentro de seu espaço interpretador, e mergulhado em uma cultura, em dado contexto histórico-cultural.

Portanto, além dos elementos objetivos, devem-se somar aos elementos subjetivos para aplicação da norma jurídica; método normativo-estruturante criado por Müller[3] que defende que o conceito da norma inclui dúplice perspectiva, a de norma constitucional como texto normativo e, a de norma constitucional com âmbito normativo.

A Teoria Estruturante do Direito propõe à ciência do direito: analisar a particularidade das normas jurídicas dentro dos distintos passos de concretização do direito; não se poderá formular o postulado da objetividade jurídica no sentido de um conceito ideal absoluto, mas sim, com reivindicação de uma racionalidade verificável e discutível na aplicação do direito e a exigência de que aquela responda aos fatos, fazendo com que as disposições legais levem o selo de sua própria matéria.

Portanto, a norma jurídica deve ser, igualmente, um instrumento do cidadão para que este evite abusos do Poder Público. 

Enfim, a hermenêutica[4] jurídica contemporânea preocupa-se com o perfeito ajuste de normas jurídicas às complexas e dinâmicas necessidades sociais.

Lembremos que a atividade essencial de todo jurista é tomar decisões. Seja para julgar, seja para acusar ou defender. Apesar de que tanto o magistrado como legislador ou pesquisador desenvolvem tarefas no sentido de identificar problemas e dar soluções.

Assim. o Direito se define como um natural campo das decisões institucionais e o processo judiciário é parte dessa rotina. É o que materializa o direito substantivo e traduz a justiça perante o caso concreto.

A valoração da prova e a justificação de tomada de decisões são temas arraigados tanto na teoria do Direito como no direito processual, particularmente, no processo civil.

O juiz deve observar ciosamente sobre as provas do processo, considerando a racionalidade e sem intuicionismo tendenciosos ou subjetivo. O magistrado não é neutro, porém, deve ser imparcial e desinteressado quanto ao objeto do processo. A análise do contexto probatório deve ser a busca da verdade dos fatos dentro do que seja possível.

É a integridade científica e a instrumentalidade que intensifica a busca pela verdade e, endossa a epistemologia jurídica contemporânea. É na busca do conhecimento que se busca os fatos, de forma que se permita a avaliação da prova sem a interferência dominante de regras não epistêmicas.

A verdade dos enunciados seja doutrinários ou jurisprudenciais que tornam a condição para uma decisão justa. Nesse sentido, a verdade processual é a verdade por correspondência, sendo a bússola para identificar os acontecimentos no plano da vida, aproximando o direito da realidade fática.

Em termos raciocínio probatório, engana-se quem crê que seja apenas cartesiano, pois abriga dois momentos distintos, a saber: a valoração da prova e, ainda, a decisão que leva em conta o standard de prova.

Nesse derradeiro momento, há fatores jurídicos que compõem a carga deôntica e, que também têm séria influência.  A valoração da prova judiciária envolve os problemas presentes no sistema do livre convencimento motivado.

De fato, há doutrinadores que defendem a superação do livre convencimento motivado, porém, inexiste nova proposta para novo sistema de valoração de provas e que seja mais adequado ou, ao menos, melhor aperfeiçoado do que o presente.

No artigo 371 do CPC de 2015 a expressão "livremente", mas que não admite nenhuma carga de irracionalidade na motivação da decisão judicial, em relação as provas.

Esse comprometimento político do julgador no sentido de acomodar-se na substância e, não apenas formalmente, à exigência de que as decisões judiciais sejam racionalmente fundamentadas.

 Depois de internalizada a prova nos autos do processo, será valorada pelo julgador. Na história do direito, aponta a dogmática jurídica que há três sistemas de valoração probatória.

O sistema da íntima convicção[5] que não estipula controles à decisão judicial, podendo o julgador apreciar a prova sem a respectiva motivação e considerando ainda fatores não presentes nos autos do processo.

É um sistema ainda encontrado no Tribunal do Júri, tendo em vista que o jurado decide e não precisa justificar as razões de sua escolha e decisão, apenas respondendo “sim ou não”, em resposta aos quesitos para a condenação.

Já o sistema da prova legal[6] é uma resposta do legislador ao da íntima convicção, considerado o marco da resposta cognitivista. O texto da legislação aponta qual prova deve prevalecer. Em priscas eras, o testemunho de nobre era mais valoroso que um testemunho de plebeu, ou um preso que não pôde prestar depoimento. Infelizmente, ainda existem normas que aparentemente enfatizam tal rigidez.

Por derradeiro, o sistema do livre convencimento motivado possui evidente primazia sobre os demais, sendo previsto no artigo 371 do CPC vigente[7]. Porém, isso não evita percalços e contratempos que refletem espécie de tradição decorrente da praxe brasileira.

O primeiro problema relaciona-se a maneira de pensar positivista, tendo em vista a dificuldade de aprisionar o juízo de fato a estrutura das regras legais. De fato, o pensamento positivista cogita a partir das regras legais para o fato, revelando-se um paradigma formalista.

O vício conhecido na Teoria do Direito como formalismo ou conceptualismo consiste em atitude perante as normas formuladas verbalmente que busca, após a edição da norma geral, simultaneamente disfarçar e minimizar a necessidade da escolha.

O que justifica o fenômeno de os positivistas da tradição civil law elaborarem uma dicotomia para explicar a relação entre verdade e prova.

Cogita-se em movimento pendular e repetitivo entre o modelo demonstrativo e o modelo persuasivo da prova, não havendo um umbral de tendência. O modelo demonstrativo da prova se notabiliza pela separação entre a questão de fato e a questão de direito. Há uma dificuldade em identificar a falibilidade em julgar. Há um mecanismo artificioso de motivar legitimava a técnica para a construção da decisão, o que afastava o controle substancial da decisão, o controle era apenas para observar o procedimento legislado na formação da prova.

Por outro viés, o modelo persuasivo da prova labora com a polaridade horizontal entre as partes. Subentende um processo simétrico, com ênfase do contraditório e que tem por premissa as afirmações tendenciosas das partes para alcançar uma conclusão que solucione o problema exposto em juízo.  O ponto de chegada da investigação não seria uma verdade real[8] e infalível, mas que reflete uma reconstrução judiciária dos fatos com pretensão de relação teleológica da prova para com a verdade.

Se o modelo demonstrativo tomava de empréstimo uma relação conceitual entre prova e verdade, o esquema persuasivo elabora uma relação teleológica entre estas. Robert Alexy assinala que a estrutura demonstrativa era meramente dedutivista, em contrapartida, a estrutura persuasiva labora com a ponderação do peso dos argumentos. Porém, ambos os modelos estão marcados pelo modus de pensar da norma para o fato ou rule centred, característica do direito continental e que retirou, por bastante tempo, a importância da visão mais centrada em uma racionalidade criteriosa do raciocínio probatório.

O segundo problema é a jurisdição no centro da teoria do processo e, na obra de Oskar Büllow (1868) elaborou os fundamentos e conferiu autonomia ao direito processual de maneira sistemática, separando-o definitivamente do direito material. Para o doutrinador, a relação processual não se confunde com o direito material afirmado em juízo, tendo em vista que pode existir processo válido ainda que inexistente o direito postulado.

Tal concepção correspondeu de contraponto à escola anterior que avistava um sincretismo entre Direito e processo.  A autonomia do direito inicia-se outra fase metodológica chamada o conceitualismo ou processualismo, em que predomina a técnica e a construção dogmática das bases científicas dos institutos processuais.

A processualística ergue-se ao patamar de nova ciência (Adolph Wach, na Alemanha, Chiovenda e Carnelutti na Itália[9]). Essa nova metodologia volta-se por acentuar a separação entre direito material e processo e, ainda, para construção e aperfeiçoamento conceitual do processo.

O Código Buzaid desenvolveu seus termos influenciado pelo conceitualismo e, apesar do exagero na conceituação do dualismo composto de Direito e Processo, com a noção do primado da técnica sobre o fundo do Direito. Merece exemplificação a previsão do item I, alínea 5 da Exposição de Motivos do CPC de 1973 que ressaltou que o processo civil deve ser dotado exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação do Direito.

O que foi agravado com independência funcional do juiz, posto que sejam absolutamente independentes e não harmônicos, como se as partes fossem antípodas ao Estado-Juiz, não havendo o dever de cooperação com o Judiciário.

De fato, a jurisdição fora colocada no centro da teoria processual, tanto que passou a ser direito jurisdicional permitindo que regesse de forma acrítica.

No direito probatório deu-se o solipsismo ou exagero de discrição judiciária, na medida em que o juiz sequer observava as fases do procedimento probatório, antepondo a valoração ao momento da admissão da prova, o caracteriza uma valoração prima facie, afastando o direito fundamental à prova.

E, a jurisprudência massiva endossa esse modelo. Assim, o relevante que sendo a jurisdição o centro do processo, era o convencimento do juiz o fiel da balança, não havendo contrabalanço em relação ao compromisso com a verdade como correspondência, nem tampouco com o princípio da comunhão das provas[10] trazidas ao processo.

O terceiro problema cinge-se ao contraditório formal pois o princípio do contraditório efetua autêntico arremate aos problemas já enfrentados, porque a concepção outrora dominante exigia apenas a ciências dos jurisdicionados e a possibilidade formal de atacarem os atos processuais. Frise-se que havia uma garantia, e não um dever proativo do Estado-Juiz responder as questões suscitadas.

A ratificação da jurisdição como centro do processo chancela o solipsismo[11] judiciário sem um compromisso reforçado pela accountability para fundamentar as decisões judiciais[12].

Assim o contraditório formal relegava ao juiz a primazia e a assimetria continuada em relação aos jurisdicionados, permitindo assim, desvios colaterais na valoração da prova. Assim, a supervaloração de uma prova em detrimento de outras, a subvaloração de uma prova em proveito de outras, bem como a utilização desenfreadas de provas atípicas que dão azo a uma visão unitária do dever judiciário, afastando-se da responsividade do juiz.

A superveniência do formalismo jurídico implica o reducionismo dos institutos do direito probatório a regras legais, deixando fixado um procedimento em fases estanques, sem desenvolver as premissas do raciocínio probatório. Torna-se necessário avistar que a Constituição Federal vigente e o projeto de justiça civil deixaram de ser legiscentrado e estatal e, finalmente, propõe um diálogo transdisciplinar com a epistemologia, a hermenêutica e promove a apertura do sistema em direção ao processo justo.

O positivismo em França surgiu no período pós-revolução francesa[13], com o fito de afastar o intuito de afastar o Direito Natural que vinha sendo aplicado de forma arbitrária pelos monarcas até aquele momento histórico. E, trouxe critério mais objetivos e racionais às decisões judiciais, com o objetivo de afastar os privilégios em razão da pessoa beneficiária daquela decisão.

Tudo o que envolvia subjetividade, para os teóricos da época, remetia ao período de desigualdade anterior à Revolução Francesa e, por isso, era veemente rechaçado pela comunidade jurídica.

A técnica denominada subsunção que consistia na adequação do caso concreto ao texto da lei. Ao juiz caberia apenas aplicar a lei.

Essa construção doutrinária retirou do juiz toda capacidade interpretativa, uma vez que o aplicador o direito somente adequava o fato à norma. Por isso mesmo é que à corrente inaugurada nessa época, deu-se o nome de positivismo formalista, já que ao magistrado caberia tão-somente analisar, formalmente, se o fato se encaixa aos preceitos legais.

O fato de todo e qualquer fato social ter que ser previsto em norma fez que houvesse uma exagerada expansão do número de leis, gerando problemas com relação à efetividade do ordenamento jurídico. Outra crítica da época, a esse papel do juiz era a busca impossível pela neutralidade judicial.

Desta forma, precisou-se reformular o paradigma interpretativo e, outras concepções surgiram, que não necessariamente abandoaram plenamente o positivismo, mas buscaram superar os problemas e críticas apontadas pelos doutrinadores da época.

A jurisprudência dos interesses[14] que foi criada por Philipp Heck, no século XIX, essa tendência interpretativa partiu do pressuposto que a atividade interpretativa deveria objetivar à proteção de interesses materiais subjacentes às normas jurídicas. No horizonte do intérprete inseriu-se a busca pelo contexto social da norma e, a satisfação de interesses e de objetivos. E, a lei não poderá subverter tais interesses, sob pena de total ineficácia.

Desta forma, na atividade de subsumir o fato à norma, o julgador deverá se indagará qual será a aplicação de melhor facilita a vida em sociedade, qual é a mais adequada aos interesses em jogo. Essa decisão que deve prevalecer. Assim, nessa doutrina, ao juiz não caberia realizar juízos morais, ou ainda, desenvolver uma interpretação extensa e valorativa.

A Escola da Livre Pesquisa do Direito[15] de Fraçois Gény também surgiu na França, no fim do século XIX, entendia que o intérprete deveria ter plena liberdade para decidir conforme sua livre convicção, tendo por única base e exclusivamente a sua consciência e o seu ponto de vista sobre questão posta.

Depois do trauma do absolutismo, Gény questionou-se se ainda seria necessária manter no horizonte do julgador somente a lei como parâmetro de julgamento. Isso porque partiam do pressuposto de que a lei, por si só, é insuficiente para prever todos os fatos sociais.

E, a subsunção do fato à norma, portanto, gera a necessidade de infinitas normas, com baixa efetividade. E, para abranger os fatos sociais seria necessário criar esquema em que o juiz fosse capaz de, com base em outros critérios, decidir sem necessidade de multiplicar o número de leis.

Já o realismo jurídico surgiu nos EUA no século XX e, tinha como premissa de que o juiz sempre estará contaminado por suas convicções. Portanto, não seria possível galgar um juízo livre de qualquer preconcepção. E, o foco de toda coerência na interpretação judicial seria justamente a motivação. É na motivação que o juiz deverá traçar o caminho que o fez chegar à resposta daquele caso concreto.

O direito é produto de decisões judiciais. E, portanto, a ciência do Direito deve ser concretizada a partir da análise de decisões judiciais tanto as passadas como as futuras, já que deveria prever como certas questões serão decididas.

Dessa forma, quem cria o direito, é o juiz e, não legislador, pois é somente no processo de interpretação que as normas jurídicas realmente são criadas. E, não se esgota em si mesmas. O juiz terá que adequar aquela norma direcional às especificidades do caso concreto.

O cenário contemporâneo situa-se no chamado pós-positivismo[16] onde não se admite mais a adoção do positivismo puro e estático, no qual o juiz apenas adequa o conteúdo normativo ao caso concreto. Tampouco admite decisões discricionárias, voláteis e mutantes, pois apesar de o juiz não conseguir se livrar de suas preocupações, precisa atender a alguns limites materiais.

Tal concepção se formou após o fim da segunda grande guerra mundial diante da grave crise humanitária que assolou a Europa. E, essa nova realidade que é mais complexa não comportava a objetividade simplista do método positivista e seu mito da completude das leis.

Na valoração da prova no contexto de incerteza, o juiz não é destinatário final da prova. E, ao mencionar que não admitir uma prova, seria o mesmo que alegar que não estaria convencido do fato que pretende elucidar, resultando na evidente mistura entre os planos de produção e o da admissão da prova e, ainda, o da valoração da prova.

Em verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo. O juiz é o destinatário direto da prova, mas as partes e outros interessados são os destinatários indiretos. Conforme bem ressaltou Alexandre Câmara, a avaliação que as partes fazem das provas é evidentemente levada em consideração quando se verifica se vale ou não pena recorrer contra alguma decisão, o que demonstra que a prova é de extrema importância para a determinação do modo como as partes se comportam no processo.

Pontifica o artigo 77, I do CPC vigente que há o dever de as partes exporem os fatos ao juízo conforme a verdade, o dispositivo é controverso, tendo em vista que cada jurisdicionado pretende vencer a demanda, comportando-se além da descoberta da verdade. Mas, o referido dispositivo legal deve se conformar com o dever de cooperação das partes com o juiz, conforme preleciona o artigo 6º do mesmo diploma legal. Portanto, a produção da prova deve obedecer a integridade, a ética e a indivisibilidade.

Ao crer que o convencimento judicial pode reduzir a instrução probatória[17] reflete apenas uma concepção formal e mitiga a valoração probatória que viola o direito fundamental à prova e deve ser combatido, seja pelos imperativos do constitucionalismo e pelo modelo de justiça civil contemporâneo.

A crucial questão do direito probatória é de se direcionar a uma verdade possível que dogmaticamente por ser aperfeiçoada por meio das causas ora apresentadas ao juízo.

Em verdade que um dever absoluto de dizer a verdade poderia produzir efeitos danosos, já que parece necessária a configuração de derrogações, exceções e limitações na aplicação concreta desse dever. E, mesmo com atenuações práticas de tal dever não são outra coisa senão a confirmação de sua existência, isto é, a afirmação de que qualquer sistema ético inclua o dever de verdade entre os valores fundamentais.

Segundo Michele Taruffo, seria inconcebível, além de inaceitável um sistema moral que não distinguisse entre a verdade e a mentira, ou mesmo que legitimasse expressamente a falsidade, fazendo da mentira e do engano as regras fundamentais de comportamento. In: TARUFFO, Michele. Uma simples verdade (O juiz e a reconstrução dos fatos). Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p.116).

Observa-se que o modelo demonstrativo e o modelo persuasivo de prova no fundo mantinham a atenção enfocada na simetria ou assimetria dos sujeitos processuais ao invés de enfocar na questão da ratificação dos enunciados em juízo. Pois resta assentado no positivismo que ainda subsiste no direito continental e na metodologia que parte da norma para o fato.

Já o pós-positivismo[18] aduz ao racionalismo aplicado por meio de uma metódica regrada para se chegar a uma solução conclusiva intersubjetivamente controlável.

Assim, os elementos do raciocínio probatório, ora consistem na hipótese, na prova e na interferência e, por isso, diversos estudos não cogitam mais em fases do procedimento probatório, mas refletem no contexto da instrução até a decisão final.

Tal maneira de ser convive com a incerteza, na medida em que a verdade absoluta é impossível de ser captada, porém, há um probabilismo lógico que ilustra a tomada de decisão sobre as provas por aproximação à verdade.

Repise-se que o artigo 369 do Código de Processo Civil estabelece, in litteris: “As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar[19] a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.

Afinal, pelo motivo subjetivo de corroboração de hipóteses, basta que o juiz se repute convencido para que algo seja tido como provado.

E, assim, é impossível cogitar em erro no juízo de fato, porque ocorre retrocesso no funcionamento da jurisdição que se põe no epicentro do processo sobreposta às partes. A noção de convicção fica atrelada à crença ou estado psicológico do julgador, o que afasta possível controle das partes na valoração das provas.

Já o modelo objetivo de corroboração de hipóteses reputa algo como provado quando existem elementos de juízo suficientes nesse sentido. Não importa a crença ou opinião pessoal do juiz, mas o que interessa é a existência de uma justificação válida que cognitivamente descreva o estado de coisas em discussão. Ou seja, permite-se avistar o erro judiciário, quando não é razoável a opção eleita pela justificação.

Observa-se o deslocamento do foco do convencimento judicial para a relação entre as provas e as hipóteses que se pretendem provar. Assim, pode-se afirmar que o direito fundamental à prova consiste na linha que costura o direito material, a tutela do direito se dá por meio dos elementos técnicos, como os meios de prova que servem para a valoração da prova, completando o périplo composto de: hipótese-meio de prova- interferência.

Apesar da previsão do artigo 369 CPC não retira em absoluto o toque pessoal de uma decisão judicial, apesar da convicção do juiz, a decisão se dá por meio de elementos de juízo que sejam racionais e razoáveis para reputar algo como provado. A verdade[20] por correspondência estabelece um contexto de mérito baseado nos fatos provados nos autos.

De fato, concretamente existe um mundo real que nem sempre aparece provado no processo. De toda sorte, que o juiz deve ter a prudência deferente para se valer da probabilidade como a ressignificação do raciocínio que lida com as provas e com a verdade. Assim, ousa-se aproximar-se ao máximo da verdade, com base na probabilidade, contando-se com a atitude proposicional de aceitação do juiz, mas não se cogita em crença nem convicção do julgador.

Ainda, contemporaneamente se confirma que a função primordial da prova é procurar determinar a verdade, ou ao menos certa suficiência probatória para reputar como provada a hipótese.

Daí se cogitar a prova como argumento concreto que repercute nas operações dedutivas, indutivas, ponderativas ou analógicas, sobretudo, porque esta empresta validade justificatória às narrativas processuais, na perspectiva de conduzir o processo em determinada solução otimamente aproximada da verdade (sopesada[21] a perspectiva da verdade) e a aceitação do juiz, ambas encartadas no bojo do artigo 369 do CPC.

A aceitação da prova é atitude proposicional voluntária e contextualizada, que corrige os padrões pré-compreensivos e dogmáticos da crença ou convicção, esse estado de coisas implicado pela tutela jurisdicional, portanto, dispensa a opinião ou mesmo intuição particular do julgador.

A crença não se modifica conforme o contexto, e por outro lado, a aceitação é atitude voluntária e diretamente ligada ao contexto e refere-se às provas concretas, não considerando todos os elementos que podem formar uma crença.

O modelo constitucional brasileiro vigente aproxima a teoria da prova à razão prática pois atingem a narrativa processual harmonizando o direito fundamental à prova ao modelo objetivo de prova enquanto ancoragem do discurso jurídico.

Assim, ao invés de cogitar em modelo demonstrativo ou persuasivo, procura-se uma metodologia sincrética do diálogo que assume força normativa com pretensão de da correção material ou de justiça substancial, de forma que as provas sejam verticalizadas corroborando uma decisão justa.

Enfim, o contexto probatório torna-se premissa objetiva que não deve ser subordinado aos vacilos psicológicos ou intuitivos de qualquer operador de Direito. Pelo contrário, pois cria uma pauta de controle intersubjetivo que aparelha a decisão judiciária e pode ser escrutinada pelas partes[22].

Consequentemente, a completude na produção de prova é matéria que repercute a dinâmica do direito fundamental à prova que varia conforme o contexto, sendo aberto, pois varia em tempo e lugar, devendo estar atento à corroboração objetiva e tendo em vista o substrato do direito material.

A causa metodológica que implica no contraditório material assim a valoração da prova. o terceiro imparcial se garante pelo esforço argumentativo das partes, que será a base para se construir a decisão expressa pela fundamentação.

A fundamentação das decisões, por sua vez, é indissociável, do contraditório, é a fiscalização das partes para se galgar uma decisão racional, não permitindo que seja ato isolado do julgador, fruto de sua subjetividade. Pela ampla argumentação, tem-se o direito à prova e assistência de advogado. Trata-se de garantia das partes para que se possa ter o tempo processual apto para reconstruir e caso concreto e discutir quais normas jurídicas serão adequadas.

Frise-se que a participação efetiva dos atos processuais substancializa e materializa a previsibilidade na tomada de escolhas, ressaltando-se o direito de influência e o direito de não supressa às partes.

Afinal, o risco da falibilidade humana ao se proferir o juízo de fato, considerando o caráter constitutivo do contraditório e a hierarquia constitucional da tutela jurisdicional, reflete uma maior força indicativa de que, ainda que se considere a prova também se presta a chegar uma conclusão, apesar do convencimento do juiz, o referencial da verdade admite identificar a prática de erros de julgamento.

Assim, o Estado Constitucional[23] subentende todo aparato de forças conviventes em que ninguém apreende a totalidade do mundo real, nem mesmo o juiz.

Reafirma-se que as partes devem colaborar com o juízo, superando a estática do ônus de provar, para propulsionar o dever de comprovar, atingindo a justiça e a segurança jurídica.

A racionalidade da apreciação do contexto probatório implica num quase-dever de provar com vistas aos critérios de compreensividade e completude pelo qual as provas que aparelham a narratividade devam ser íntegras, plenas e indivisíveis, na medida em que o ordenamento jurídico ratifica seu compromisso com boa-fé.

O julgador tem a seu turno, a evidence responsive, na qual deve responder a todos os argumentos suscitados pelas partes. É notório que o juiz não é o único destinatário

da prova e o núcleo da teoria do processo, os movimentos dos atores processuais servem ao debate do caso concreto e também para extrair sentido do ordenamento jurídico.

Não pode haver uma individualização demasiada do modelo probatório. Assim, consagra-se a evolução da teoria cética que prevê a moderada interpretação das causas do processo, obrando a ponte entre a hermenêutica e o raciocínio lógico-argumentativo, que assinala a clara distinção entre o texto da lei e a norma, e mostra o quão aparente é o isolamento entre o contexto de admissão da prova e o da valoração da prova.

Não há como se admitir a valoração antecipada da prova, e o juízo de admissibilidade e o juízo de valoração da prova não se confundem.

O Enunciado 50 do FPPC, Fórum Permanente de Processualistas Civis, afirma: “Os destinatários da prova são aqueles que dela poderão que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes. ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz”. Assim, teremos um processo justo e do direito fundamental à prova que são adensados pelo artigo 378 CPC.

Finalmente, o efetivo contraditório[24] elevou epistemologicamente a prova e a legitima plenamente, preenchendo tal espaço de valoração da prova por meio do grau de inclusão, ou seja, a prova de suficiência que visa conferir adicional vigor às provas elencadas.

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VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicos científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

Notas:


[1]Consiste em examinar o valor jurídica atribuído à prova, e não em se reexaminar a prova produzida para verificar se esta, fora corretamente interpretada, hipótese essa que é de reexame de prova, o que não é cabível em recurso extraordinário, conforme ratifica a Súmula 279 STF. Ademais, no vigente sistema constitucional, em que o recurso extraordinário se adstringe ao exame de violação direta à Constituição, a análise de questão relativa à valorização de prova não cabe no âmbito deste, por se tratar de matéria infraconstitucional. Vide STF 1ª T. AGRAG 152.836/MA, Relator Ministro Moreira Alves, DJU de 16.12.1994.

[2] A força normativa da Constituição refere-se à efetividade plena das normas contidas na Carta Magna de um Estado. Tal princípio foi vislumbrado por Konrad Hesse, que afirmava que toda norma Constitucional deve ser revestida de um mínimo de eficácia, sob pena de figurar “letra morta em papel”. Hesse afirma que a Constituição não configura apenas o “ser” (os princípios basilares que determinam a formação do Estado), mas um dever ser, ou seja, a Constituição deve incorporar em seu bojo a realidade jurídica do Estado, estando conexa com a realidade social. Neste sentido, afirma Gerivaldo Alves Neiva que “esta compreensão de Hesse importa que a Constituição deverá imprimir ordem e conformação à realidade política e social, determinando e ao mesmo tempo sendo determinada, condicionadas mas independentes”. A prática da força normativa da Constituição traduz a essência da ideia neoconstitucionalista.

[3] Identificada por Friedrich Müller como uma teoria pós-positivista, a metodologia estruturante propõe uma compreensão estruturada do direito e da norma jurídica, em que o trabalho jurídico se revela num processo de construção ou concretização, a ser realizado no tempo. A justiça considerada como estrela polar comum ao direito em todos os tempos, não obteve da ciência do direito uma definição sobre seu fundamento, a qual pudesse ser confiável e amplamente aceita entre os juristas. A posição da ciência jurídica perante o direito natural também não é capaz de definir as transformações históricas do direito.

[4] Para a doutrina que estuda esse método de interpretação, podemos elencar os seguintes elementos:

a) Elemento gramatical: leva em consideração o texto e a análise deve ser textual e literal, observando exatamente o texto de uma determinada norma; b) Elemento lógico: busca na análise interpretativa a lógica de todas as normas constitucionais; c) Elemento histórico: leva em consideração o momento e os aspectos sociológicos e culturais de um determinado povo em um determinado momento; d) Elemento sistemático: analisa o todo; e) Elemento doutrinário: leva em consideração a interpretação feita pela doutrina na análise das normas constitucionais. Acima, podemos conhecer os principais elementos levados em consideração na análise do texto constitucional quando se utiliza o método de interpretação jurídica ou hermenêutico clássico, método esse que, como dissemos, se adéqua a todos os ramos do Direito e, portanto, não considera as nuances e peculiaridades do texto constitucional.

[5] Sistema da íntima convicção, também conhecido como sistema da certeza moral do juiz ou da livre convicção, é aquele que há a valoração livre da prova e, nesse sistema não há qualquer exigência de motivação da decisão judicial. Apesar de o sistema da íntima convicção ter sido adotado no âmbito do Tribunal do Júri, os jurados devem livremente apreciar o fato, sem precisar motivar suas decisões, de acordo com as provas constantes do processo, vide, o artigo 593, inciso III CPP.

[6]Segundo esse sistema, os elementos probatórios são atribuídos valor prefixado, que o juiz aplica mecanicamente, por isso, também designado de sistema da prova tarifada ou da certeza moral do legislador. A lei predetermina o valor de cada prova e estabelece hierarquia entre estas. A confissão era considerada uma prova absoluta, uma só testemunha não tinha valor etc. Saltam aos olhos os graves inconvenientes de tal sistema, na medida em que não permitia uma valoração da prova por parte do juiz, que se via limitado a aferir segundo os critérios previamente definidos na lei, sem espaço para sua sensibilidade ou eleições de significados a partir da especificidade do caso.

[7] O sistema de valoração de provas brasileiro é intermediário segundo alguns doutrinadores posto que admita a livre apreciação da prova, porém, vincula tal apreciação aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, mesmo que não alegados pela parte e, ademais, exige a indicação na sentença dos motivos racionais que formaram o convencimento do juiz. Eis a origem do nome sistema da persuasão racional.

[8] O alcance da verdade real resvala em grande utopia, sendo a substância da verdade inatingível. E, Cândido Rangel Dinamarco afirmou que a verdade e a certeza são dois conceitos absolutos e, por isso, jamais se tem a segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo. A segurança jurídica como resultado do processo, não se confunde com a suposta certeza, ou segurança com base na qual o juiz proferiria os seus veredictos. O máximo que se pode obter é elevado grau de probabilidade, quanto ao conteúdo das normas, ou dos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. Portanto, no processo de conhecimento, ao julgar o magistrado terá que se contentar com a probabilidade, renunciando à certeza, porque o contrário inviabilizaria os julgamentos. E, a obsessão pela certeza constitui um fator de injustiça.

[9] A fundamentação das decisões é um dever e garantia fundamental. Neste sentido, Piero Calamandrei: “A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois, se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado desorientou “.

[10]O tradicional conceito do princípio da comunhão das provas parece não suscitar grandes questões, apesar da aridez frequente com a qual é tratado pela doutrina brasileira. Tal princípio determina que uma prova produzida passa a ser do processo, pouco importando se o responsável pelo requerimento ou determinação de sua produção fora o autor, o réu ou mesmo, o juiz. Em verdade, até mesmo outros sujeitos processuais, como interessados poderão ter requerido a produção de tal prova, tais como terceiros intervenientes ou Ministério público como fiscal da lei. Significa que não se admite que a prova tenha identidade subjetiva.

[11] Há uma impossibilidade de se adotar solipsismo judicial no Estado Democrático de Direito, afinal, o modelo constitucional de processo proposto pelas Constituições democráticas não admite, segundo interpretação constitucional, a atuação solitária do magistrado. Isto é, ao juiz é vedado tratar como acessória ou eventual a colaboração das partes na construção do provimento jurisdicional. E a dita colaboração não se limite à oportunidade de manifestação das partes e dos advogados, mas de efetiva e séria, levar em consideração o argumento das partes. O solipsismo é forma de sacralização da atividade judicante e há um obscurecimento da atividade de julgar, tornando-a sagrada e intocável e, portanto, inacessível à crítica. Assim, uma crença de que o julgador, por características que lhes são subjetivas e imanentes, seja capaz de dizer o que é bom, justo, certo e verdadeiro para o restante da sociedade, especialmente, para aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões, notadamente, as partes.

[12] Didier Junior destaca que a liberdade na apreciação das provas resta sujeita à certas regras quanto à convicção, que fica condicionada: a) aos fatos nos quais se funda a relação jurídica; b) às provas destes fatos colhidas no processo; c) às regras legais de prova e às máximas de experiência; d) e aos critérios da racionalidade, o que impede que decida com base em questões de fé, por exemplo.

[13]Historicamente o princípio do livre convencimento motivado do juiz surgira depois da Revolução Francesa de 1789. Destaque-se que antes, os julgadores decidiam conforme seus interesses, mesmo que fossem contra legem. Daí, a necessidade de oferecer maior segurança e transparência das decisões judiciais, estabelecendo-se as regras e critérios das provas.

[14] LARENZ enfatiza que, embora HECK tenha querido tomar em conta os interesses “ideais” como se fossem os interesses materiais, o conceito de “interesse” que acaba por exsurgir e evidenciar-se na construção e sua teoria é o de interesse econômico: “E é justamente aí, no fato de os bens ‘ideais’, como liberdade, segurança, Justiça e responsabilidade, serem postos ao mesmo nível dos bens materiais – devendo reduzir-se como estes a mera ‘tendências apetitivas” – é justamente aí que a base naturalista de HECK vem claramente a denunciar-se”.

[15]A referida escola para François Gény aponta que o único objetivo da lei é aquele que motivou sua criação e com as mudanças no meio social, é função do intérprete adaptara a lei aos novos fatos sociais. O Direito, para essa escola, divide-se em duas categorias: o dado e o construído. O primeiro trata do meio analisado pelo legislador, a observação de elementos econômicos, morais, científicos, culturais, políticos, históricos e, etc., e o segundo são os fins desses fatores. A máxima "além do Código Civil, mas através do Código Civil" sintetizou bem a margem de pensamento seguida por Gény na elaboração da doutrina da escola livre Investigação Científica do Direito.

[16]Padece o pós-positivismo de muitas posições acerca da teoria do direito, onde observou-se reviravoltas teóricas que poucas vezes apontaram para soluções. O problema do encontro da moral e do direito e da possível aplicação dos sistemas extrajurídicos no direito não demonstraram de forma definitiva uma resposta. Há poucas certezas a respeito das teorias do direito, principalmente, em sociedades ocidentais, desde do problema da fonte, como era divina, no passado, sem ser uma fonte social. Bem como é ultrapassado o debate do clássico jusnaturalismo de crenças em que o direito adivinha de origem sobrenatural), constando como nossa realidade o direito como sendo produto de situações fáticas, constatáveis na dinâmica social (teoria da fonte social). A decadência teórica do positivismo jurídica fora apresentada por Herbert Hart e Joseph Raz.

[17] Os poderes instrutórios do juiz podem ser verificados no artigo 370 CPC quando foi conferido ao juiz um dever-poder durante a instrução, porém, a própria lei não impôs ao julgador limitação ao exercício do seu poder instrutório. E, assim pode-se cogitar em imparcialidade do juiz, quando ele determinar provas ex officio, pois, ao contrário disto, se o juiz exercer de forma adequada seu poder instrutório, sempre buscando a verdade dos fatos e assegurando o contraditório, estará também garantindo a igualdade de tratamento às partes.

[18] Diferentemente da jurisprudência de valores que representa o que existe de mais contemporâneo em termos de lei, Direito e justiça. Trata-se, segundo alguns doutrinadores, do amadurecimento tardio do positivismo jurídico, incorporando aperfeiçoamentos.  O que não se confunde com a escola do direito livre que nega tudo que é vigente, sem estabelecer nenhuma fundamentação coerente, sendo uma rebeldia adolescente da hermenêutica jurídica. A jurisprudência de valores busca interpretação da lei segundo os valores. Por esta tutelados e, a vigência do direito positivo não é negada, ao revés, é confirmada, mas suas palavras ganham peso, e esclarecem sobre os valores.

[19]Provar deriva do verbo probare (examinar, verificar, demonstrar). Já na linguagem jurídica é demonstrar a certeza de um fato ou a verdade acerca do que se alega.  Por isso, se afirma que provar é convencer o espírito da verdade a respeito de alguma coisa. Corresponde à cogitação do convencimento de outrem acerca da verdade referente a determinado fato. A palavra vem do latim probus, com o significado de bom, correto, honrado. Em termos genéricos, a prova é qualquer coisa, mesmo imaterial, idônea a suscitar um liame lógico-demonstrativo de outra coisa ou entidade; ou seja, a prova é algo que se utiliza nas mais variadas contingências da vida. No processo, a prova resume-se a todo meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato.

[20] Entretanto, grande celeuma se forma em saber se a verdade a ser alcançada na pretensão resistida conduzida no processo civil é a verdade real ou a verdade for­mal.  Vale à pena ressaltar que, neste caso, entende-se como verdade formal a que resulta do processo, ou seja, de acordo com a forma apresentada pelas partes, obedecendo aos parâmetros da lei processual civil em vigor; e verdade material aquela a que obedeça ao julgador, reveladora dos fatos tal como ocorreram historicamente e não como querem as partes que apareçam realizados. Sabemos que a distinção entre verdade real e verdade formal surgiu na confrontação entre processo penal e processo civil, pois neste último os interesses e bens em jogo seriam menos relevantes que naquele, tendo em vista os bens tutelados, a liberdade e jus puniendi do Estado.

[21]Segundo Müller, o sopesamento é um método irracional, uma mistura de sugestionamento linguístico, pré-compreensões mal esclarecidas e envolvimento afetivo em problemas jurídicos concretos, cujo resultado não passa de mera suposição, a teoria desenvolvida por Müller não é conciliável com a ideia de sopesamento. Não obstante Alexy tenha respondido a essas críticas de Müller, designando inclusive, a teoria que propõe o sopesamento não logrou indicar como os direitos a serem ponderados podem racionalmente ser delimitados e avaliados em seu peso, a despeito de terem sido criadas fórmulas matemáticas. Assim, a ponderação, finalisticamente, apenas contorna as diferenças de estrutura no âmbito normativo, não as resolvendo ou atualizando, conforme faz a Teoria Estruturante do Direito, por meio da concretização da norma, entendida como construção da norma jurídica no caso concreto.

[22] Com razão, Marinoni e Arenhart afirmam que jamais o juiz poderá chegar ao ideal da verdade real. E, o máximo que permite a sua atividade é chegar a um resultado que se assemelhe à verdade, um conceito aproximativo, baseado muito mais na convicção do mesmo de que ali é o ponto mais próximo da verdade que este pode atingir, do que, propriamente, em algum critério objetivo. Em análise ao tema, verifica-se que assimilar a verdade real à certeza absoluta e a verdade formal à certeza relativa seriam um erro sob o prisma da gnosiologia judicial, da técnica da pesquisa da verdade, que é extremamente influenciada por regras éticas. Independentemente da dicotomia existente entre a verdade real e a verdade formal, a participação do juiz é indispensável para que se alcance uma justa decisão, devendo-se permitir posição ativa do julgador na instrução.

[23]O dever de fundamentar as decisões, ao mesmo tempo em que é um consectário de um Estado Democrático de direito, é também uma garantia. Quando o jurisdicionado suspeitar que o magistrado decidiu contra a lei, desrespeitando direitos fundamentais ou extrapolando suas funções institucionais, deverá buscar na fundamentação desta decisão subsídios para aferir a qualidade da atividade jurisdicional prestada”. Essas duas funções englobam todos os princípios que norteiam o devido processo legal, trazendo segurança jurídica àqueles que buscam o poder judiciário, uma vez que saberão, pelas razões apresentados na decisão, se sua situação foi analisada individualmente, e se necessária for, levá-la a uma reanálise por meio de recursos.

[24] O princípio do contraditório, previsto expressamente na Constituição de 1988, art. 5º, LV, segundo o que nos ensina Didier Jr (2022) deve ser entendido e aplicado em duas dimensões: formal e substancial. A dimensão formal corresponde à garantia da parte de ser ouvida, de participar do processo (conteúdo mínimo desse princípio), ou seja, de ter a oportunidade de se manifestar sobre os fatos e provas apresentadas por todos aqueles que participam do processo. Já a dimensão substancial do contraditório diz respeito ao “poder de influência” da participação da parte na decisão do magistrado. Significa não apenas a participação (formal), mas a capacidade de inferir de alguma forma na decisão do magistrado.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito Processual Civil Provas Teoria Geral do Processo Livre Convencimento Motivado Fundamentação

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