Pandemia como excludente de responsabilidade civil

A pandemia de Covid-19 com suas consequentes medidas restritivas impostas pelo poder Público na tentativa de controlar a disseminação virótica, impôs a necessidade de se refletir quanto à possibilidade de esta ser considerada ou não como excludente de indenizar. Recomenda-se, sempre que possível a revisão contratual e, o reestabelecimento do equilíbrio contratual.

Fonte: Gisele Leite

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Depois do advento da responsabilidade civil objetiva, somente a interrupção do nexo de causalidade poderá afastar a condenação do réu ao ressarcimento.

Analisando se a pandemia de Covid-19 pode ser considerada como força maior, rompendo o nexo de causalidade, erigindo-se como excludente de responsabilidade. Mas, a caracterização da força maior dependerá da análise do caso concreto, não sendo mesmo possível uma adoção constante e linear.

É sabido que o sistema da responsabilidade civil estava baseado em três alicerces, a saber: culpa, dano e nexo de causalidade. E, para que surgisse o dever de indenizar era indispensável que a vítima comprovasse a culpa do agente causador, que compreendia a negligência, imperícia ou imprudência[1].

Diante da dificuldade em se comprovar a ocorrência da culpa, por vezes, erigindo-se em prova diabólica, foi aos poucos aumentando o desenvolvimento do capitalismo industrial e moderno dotado de inovadoras tecnologias, resultando em injustiças o acesso concreto da vítima ao ressarcimento dos danos por esta suportados.

Nesse contexto, a doutrina procurou investigar critérios objetivos de imputação de responsabilidade civil para que pudesse substituir ou ao menos atenuar o papel central da culpa.

E, com surgimento da responsabilidade objetiva[2], a ênfase voltou-se para o nexo de causalidade, portanto, somente sua ruptura seria hábil para afastar a condenação do réu. E, dentre as situações que podem acarretar tal ruptura, se figuram o caso fortuito e da foça maior.

Em verdade, desde março de 2020, o mundo encara a pandemia causada pelo coronavírus e seus impactos são diversos e repercutem, sobre as relações contratuais, empresariais, com a impossibilidade de cumprimento de obrigações pendentes e gerando responsabilidade civil.

Primeiramente, cumpre investigar os elementos da responsabilidade civil partindo-se da culpa e até o desenvolvimento da responsabilidade objetiva. O conceito etiológico de responsabilidade civil está atrelado a noção de ressarcimento, de forma que seja possível a reestabelecer o equilíbrio entre a vítima e o causador do dano, sendo este um dos elementos necessários para configurar o dever de indenizar.

Questiona-se se a pandemia seria considerada como caso fortuito ou força maior e, por conseguinte, capaz de romper o nexo de causalidade, afastando-se a responsabilização civil.

As grandes codificações consagraram o sistema de responsabilidade civil fundado em três alicerces, representados pela culpa, nexo de causalidade e dano, cabendo à vítima demonstrar o caráter culposo da conduta do ofensor, o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.

Devido à dificuldade para imputar eventual responsabilização civil, havia barreiras que são denominadas como filtros da responsabilidade civil, conforme bem alude Anderson Schreiber, já que cumpria a vítima comprovar um dano e, além de sua ocorrência existencial, a culpa do ofensor e, ainda, o nexo de causalidade entre esta e o dano.

Com frêmito da evolução do capitalismo industrial e de novas tecnologias, a dificuldade em se comprovar a ocorrência da culpa foi se intensificando e resultado em injustiças por dificultar o acesso concreto da vítima à reparação de danos por esta suportados[3].

Repare-se que com o advento da responsabilidade civil objetivo, houve considerável transformação da jurisprudência[4], exigindo-se maior atenção para a análise e constatação do nexo de causalidade. E, tais transformações trouxeram inovações sensíveis para as soluções, especialmente, em face da pandemia de Covid-19, forçando-nos a revisitar os institutos como a força maior como excludente de responsabilidade.

Se faz necessário entender a culpa como primaz fundamento da responsabilidade civil, e com o advento da responsabilidade civil objetivo, o conceito de dano ressarcível e, no que consiste o nexo de causalidade.

Lembremos que o sistema de responsabilidade civil previsto no Código Beviláqua, ou seja, de 1916, restava fulcrado na prática do ato ilícito, cujo elemento nuclear era a culpa. E, a culpa foi inegavelmente, a categoria nuclear do sistema de responsabilidade civil, sendo concebida pelos juristas da modernidade e abrigada pela ideologia liberal e individualista na época dominante.

O que nos forçou a construir um sistema de responsabilidade que se fundasse no mau uso da liberdade individual, justificando, assim, a concessão de amplo espaço à atuação de particulares. Portanto, a responsabilidade e liberdade passam, assim, a ser noções intimamente vinculadas, onde uma serve de fundamento à outra.

Ab initio, a culpa era conceituada como erro de conduta, cometido pelo agente que, procedendo contra o direito, causa danos a outrem, sem intenção de prejudicar e, sem a consciência de que seu comportamento poderia causá-lo.

Contudo, a noção de culpa foi se alterando profundamente, saindo do foco principal, da noção de culpa psicológica, que fora a base da responsabilidade civil do século XIX, dando azo à culpa normativa que traduz, o desrespeito aos padrões objetivos de comportamentos exigíveis no caos concreto.

Os elementares da culpa também são definidos como a negligência, imperícia ou imprudência, sendo elementos de conduta voluntária e, obtendo resultado involuntário, previsão ou previsibilidade e falta de cuidado, cautela, diligência ou atenção.

E, assim, há atribuição maior ou menor de um caráter moral a culpa, com ênfase em se verificar a existência de comportamento reprovável por parte do causador do dano. E, ipso facto, a associação da conotação psicológica da culpa com rigorosa exigência de sua demonstração conduziu gradativamente, à modelagem jurisprudencial e doutrinária de um obstáculo sólido para a reparação de danos.

Após profundas mudanças sociais provocadas pela Revolução Industrial, os acidentes causados pelo uso de técnicas de produção e, ainda, em desenvolvimento multiplicaram-se, fazendo com que as insuficiências da responsabilidade civil individual e subjetiva viesse à tona.

Tal fenômeno não se trata de exclusividade do direito pátrio, sendo igualmente indicado por Geneviève Viney, quando relata o progresso da responsabilidade civil objetiva[5], ou de pleno direito, tendências consideradas como gêmeas.

O declínio da responsabilidade individual, progresso do objetivo ou como de direito: estas são de fato as duas tendências gêmeas cujo progresso atingiu todos os observadores.

Mas, ao alargar o seu âmbito de investigação a todas as instituições que contribuem para a reparação de danos, ele também perceberia que a responsabilidade é agora muito em grande parte comprometida por outros processos que permite a gestão direta de certos riscos por parte da comunidade, o que talvez a levasse a questionar a lugar que hoje pertence a esta instituição neste todo complexo. (Viney, 2008).

Então, a partir desse momento, a responsabilidade civil começou a ocupar lugar central dentre as preocupações dos civilistas, principalmente, no sentido de se flexibilizar ou mesmo afastar a culpa, com o fito de resolver os problemas decorrentes da reparação de danos, diante de inúmeras injustiças impostas pela dificuldade de sua demonstração.

E, segundo Schreiber como fruto profícuo desse debate, a responsabilidade objetiva veio a ser adotada em quase todos os ordenamentos jurídicos, por meio de leis especiais, aplicáveis aos setores específicos e, relacionados aos anseios sociais mais sensíveis no âmbito da responsabilidade civil.

No ordenamento jurídico pátrio, a responsabilidade objetiva ingressou efetivamente por meio de leis especiais, tendo a Constituição Federal brasileira de 1988 aberto novos caminhos para prever novas hipóteses específicas de responsabilidade objetiva, vide o artigo 7, XXVIII, artigo 21, XXIII, combinado com o artigo 37, §6º CFRB/1988, inaugurando-se nova tábua axiológica mais sensível à adoção do risco como fundamento de responsabilidade.

No esteio dessa tendência, veio o Código Civil brasileiro de 2002 que converteu em objetiva a responsabilidade aplicável a uma série de hipótese antes dominadas pela culpa presumida, como a responsabilidade por fato de terceiro e por fato de animais.

Schreiber aponta que a responsabilidade objetiva seria o fruto profícuo da dificuldade e das injustiças impostas pela dificuldade da demonstração da culpa, e essa tendência veio a ser seguida pelo CC de 2002 que seguiu a orientação constitucional e, instituiu ainda, no parágrafo único do artigo 927, que significa uma verdadeira cláusula geral de responsabilidade civil para atividade de risco[6].

Com a disseminação da responsabilidade objetiva se comprovou a decadência das concepções elaboradas no individualismo jurídico para regular os problemas mais agudas da sociedade moderna. E, dentre as tendências principais da responsabilidade civil pode-se apontar a chamada erosão dos filtros tradicionais da responsabilidade civil[7], consistente na perda da importância da prova da culpa e do nexo de causalidade.

De toda sorte, o que se atesta é a transferência ou eliminação do ônus da prova da culpa e a relativização da importância da prova do nexo de causalidade.

Em todo caso, se verifica é a transferência ou eliminação do ônus da prova da culpa e a relativização da relevância da prova do nexo de causalidade, decorrente da sua flexibilização, com fito de assegurar à vítima alguma reparação.

Essa mudança de paradigma calcado doravante na solidariedade e cooperação que funcionam como princípios hermenêuticos, influindo diretamente na aplicação do Direito e, sob essa ótica, não se pode deixar a vítima ao desamparo, mas a verdade é que nem sempre esta poderá ser amparada. E, assim, temos a relevante e necessária relação entre solidariedade e a cooperação, de um lado e, a responsabilidade de outro.

Foi a erosão dos filtros da responsabilidade civil que demonstrou a tendência jurisprudencial em deslocar o foco em direção ao dano, no sentido de assegurar, por qualquer meio disponível, a reparação integral dos prejuízos suportados pela vítima.

Quanto ao conceito de dano que é um dos elementos necessários à configuração de responsabilidade civil. Para exata compreensão da responsabilidade civil é indispensável que se estabeleça a noção de dano e, em especial, de dano ressarcível e suas subdivisões. Portanto, o conceito de responsabilidade civil resta atrelado à noção de ressarcimento, de forma a reestabelecer o equilíbrio entre a vítima e o causador do dano, sendo este, um dos elementos necessários para a configuração do dever de indenizar.

Uma parte da doutrina tem optado, também, por substituir a expressão responsabilidade civil por direitos de danos, em razão do fenômeno da objetivação da imputação de danos, paulatinamente, construída pela eliminação de tradicionais muros de contenção à obrigação de indenizar", fazendo com que a atividade preponderante do julgador nas pretensões compensatórias consista em avaliar se há um dano injustificado.

Sublinha-se o deslocamento do eixo da responsabilidade civil para o fato jurídico lesivo, num fenômeno chamado por Nelson Rosenvald de “big bang” de interesses merecedores de tutela” (ROSENVALD, 2021).

Diante disso, a fim de apresentar um conceito de dano, destaca-se as lições de José Dias de Aguiar, para quem o dano pode ser conceituado como resultado da lesão a um direito (DIAS, 2012).

A partir desse conceito, verifica-se a necessidade de diferenciar lesão, dano e prejuízo: enquanto a lesão está relacionada ao ato causador do dano, este “se apresenta como consequência daquela e deve ser reparado pelo lesante, em razão de sua responsabilidade, apurando-se os prejuízos suportados no patrimônio da vítima, seja material ou ideal” (AMARAL; PONA, 2014).

Desta forma, tem-se que o dano ressarcível pode ser subdivido em danos patrimoniais e extrapatrimoniais, que comportam, igualmente, subcategorias, conforme se verá adiante. Antes, porém, importa ressaltar que o dano, para ser considerado ressarcível, deve resultar em um prejuízo certo, ainda que seus efeitos se produzam em relação ao futuro, impedindo ou diminuindo o benefício patrimonial da vítima (dano emergente e lucros cessantes), não se justificando, porém, a reparação do dano hipotético.

Este requisito também está presente no direito comparado, como se pode observar das lições de Carlos A. Gherst: “La doctrina tradicional imponía e impone al daño los siguientes requisitos: a) certidumbre; b) que sea personal del accionante, y c) que de él resulte una lesión a un derecho subjetivo o interés legítimo” (GHERST, 1997, p. 47).

Em livre tradução: “A doutrina tradicional impôs e impõe aos danos os seguintes requisitos: a) certeza; b) que seja pessoal do autor; e c) que resulta em dano a um direito subjetivo ou interesse legítimo”.

Em referência aos danos patrimoniais, estes, podem ser conceituados como os danos cuja origem seja a lesão que recaia sobre um interesse afeto ao patrimônio da vítima, estando nestes incluídas as categorias de danos emergentes e lucros cessantes.

Convém ressaltar que a superação doutrinária, que no passado, procurou identificar o conceito de dano com o dano patrimonial, pois, depois da Constituição brasileira de 1988, restou expresso e assegurado o direito à indenização por dano material ou patrimonial ou extrapatrimonial (moral), restando evidente a possibilidade de reparação desses danos.

Os danos extrapatrimoniais, portanto, são os que atingem o lesado em seus valores não econômicos, em seu patrimônio psicológico, tranquilidade psíquica, os chamados direitos da personalidade, tal como a honra, nome, imagem e, etc.

E, através, desse conceito é possível conceber que o dano extrapatrimonial e o dano moral não se equivalem. Em verdade, o dano extrapatrimonial pode de ser considerado como gênero do qual se subdividem quatro espécies de danos, a saber: danos à imagem, dano estético, dano existencial e, enfim, o dano moral.

Em resumo, pode-se dizer que o dano à imagem ocorre quando há indevida captação, independentemente de qualquer lesão à honra ou à vida privada da vítima. Por sua vez, o dano estético tem adquirido especial relevo funcional, indo além do mero enfeamento da vítima, sendo percebido como significativo desequilíbrio corporal infligido à pessoa.

Por sua vez, o dano existencial, pode ser considerado como modificação prejudicial relevante na vida de uma pessoa decorrente de um fato danoso.

Nelson Rosenvald defende que o dano moral deve operar por exclusão, impondo-se sempre que a lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela não ocorra nos territórios da indevida captação da imagem ou da funcionalidade orgânica. Assim, as ofensas à reputação, privacidade, integridade psíquica, liberdade e solidariedade ainda se inserem nas lindes do dano moral.

O referido doutrinador ainda afirma que essa taxonomia se faz necessária a fim de viabilizar, namedida[8] do possível, uma reparação integral, evitando-se a transformação da amplitude da expressão "dano moral" em uma "guerra de etiquetas", a ponto de o dano extrapatrimonial ser qualquer coisa e qualquer coisa ser nada.

Pode-se concluir que os conceitos referentes ao dano moral e dano extrapatrimonial, não mais se confunde, sendo o primeiro, espécie do gênero, do qual também fazem partes os danos à imagem, estético e existencial.

Atualmente, se constata a expansão desmedida dos danos ressarcíveis que desafiam a doutrina e a jurisprudência e demanda uma transformação na forma de abordá-los, a fim de que sejam elaborados critérios para a seleção dos interesses merecedores de tutela, em conformidade com os valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro evitando-se, dessa forma, a proliferação de demandas ressarcitórias de caráter fantasioso.

O nexo de causalidade é, precisamente, o mais delicado dos elementos da responsabilidade civil e o mais difícil de ser determinado. É a primeira questão a ser encarada quando do julgamento das demandas indenizatória, pois, para que haja o dever de indenizar, é imprescindível a demonstração do nexo de causalidade entre o ato culposo ou a atividade objetivamente considerada e o resultado danoso.

Aliás, a relevância do estudo do conceito de nexo de causalidade decorre da proliferação de novas hipóteses de responsabilidade e do desprestígio da culpa, inapta a atender como critério seguro ao julgador na determinação do dever de indenizar.

É fundamental, conforme apontou Savatier, que coincidência não implica em causalidade. A causalidade é o liame entre dois eventos, sendo um, a consequência do outro. A simplicidade dessa definição, no entanto, oculta suas reais dificuldades práticas desta decorrentes, ante a necessidade de delimitar o conceito de causa de modo a evitar uma responsabilização demasiadamente ampla.

Tanto a doutrina pátria quanto a estrangeira não são uníssonas em relação às teorias doutrinárias existentes, sendo até algumas tratadas como sinônimos por uns e, de forma diferenciada por outros. E, nesse contexto, dentre as diversas teorias existentes acerca da causalidade jurídica, podem ser destacadas as seguintes: a) a teoria da equivalência das condições; b) a teoria da causalidade adequada; c) teoria da causalidade eficiente; d) a teoria da causa direta e imediata.

Lembremos que a chamada teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non, é a mais antiga e considera que todas as condições de um dano se equivalem, consistindo em causas do prejuízo todos os antecedentes que concorreram de algum modo para a sua realização.

Tal teoria é criticada por atribuir ao dano um infinito número de causas. E, Philippe Malaurie e Aynés afirmaram que essa infinidade de causas tenderia a tornar cada homem responsável por todos os males que atingem a humanidade. As dificuldades decorrentes da teoria da equivalência das condições levaram a doutrina a desenvolver a teoria chamada de causalidade adequada, concebida por Von Bar e aprimorada, anos depois, pelo filósofo Von Kries[9], no fim do século XIX.

Enfim, de acordo com essa teoria, a causa de um evento seria aquela mais apta, em abstrato, à produção de certo resultado.

De acordo com Schreiber, o que se busca é identificar, na presença de mais de uma possível causa, qual destas, inerentemente das demais, é potencialmente apta a produzi os efeitos danosos: "Esta condição seria a causa adequada do dano (e daí, o nome da teoria); as demais condições seriam circunstâncias não causais.

Com o passar do tempo, tal teoria caiu em desprestígio, sendo inclusive associada à teoria da equivalência das condições, em razão da indefinição do que seria adequado, conceito atrelado ao grau de probabilidade do dano. E, segundo Caio Mário da Silva Pereira, a probabilidade não é certeza.

Adiante, formulou-se a teoria da causalidade eficiente, quando as condições que concorrem para certo resultado não são equivalentes,

existindo sempre um antecedente que, em face de um intrínseco poder qualitativo ou quantitativo, elege-se como autêntica causa do evento.

Portanto, a causalidade seria determinada conforme cada caso concreto, devendo ser ciosamente observada pelo julgador, dentre as diversas causas possíveis, qual teria sido a mais eficiente para a produção do evento danoso.

Em sentido oposto à teoria da causalidade adequada, surge a teoria da causalidade eficiente que peca por ausência de rigor científico, em face do empirismo que permeia toda sua aplicação.

Mais tarde, veio ter destaque a teoria da causalidade direta e imediata, também denominada de teoria da interrupção do nexo causal que considera como causa apenas o evento diretamente vinculado ao dano, restringindo-se aos acontecimentos mais próximos ao dano.

Eis que tal teoria acabou sendo positivada em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive pelo Código Civil brasileiro de 1916, no artigo 1.060 e, fora mantida pelo Código Civil de 2002, em seu artigo 403, in litteris:

 "Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual."

Porém, gradativamente, se percebeu que a tese da causalidade direta e imediata poderia ser muito restritiva, impossibilitando, assim, a reparação da vítima, pois excluiria a ressarcibilidade dos danos indiretos e remotos. E, para combater a injustiça de tamanha limitação, desenvolveu-se no âmbito da própria teoria da causalidade direta e imediata a chamada subteoria da necessariedade causal.

Assim, as expressões "dano direto e dano imediato" são compreendidas de forma substancial, sendo um liame de necessariedade, e não de mera proximidade, entre a causa e o efeito. Haverá, portanto, o dever de reparar, quando o evento danoso for efeito necessário de determinada causa.

Não obstante as incertezas das teorias sobre o nexo de causalidade, sob o ponto de vista teórico, a análise jurisprudencial nos revela o surgimento de outras inúmeras teorias, muitas vezes, apenas para justificar a escolha subjetiva do julgador e, assim, fundamental a reparação de um dano. Esta conduta, é objeto de fortes críticas por parte de Anderson Schreiber.

Os tribunais se valem da miríade de teorias exatamente para justificar a escolha subjetiva do julgador, trazendo apenas uma construção teórica para a ampla discricionariedade, sendo que a causa, no entendimento do juiz, é a que melhor assegurar proteção à vítima

Tais dificuldades em determinar conceitualmente o nexo de causalidade restam presentes também no direito italiano e direito francês. Tanto que Suzanne Carval reconhece que o busilis da causalidade não pode ser resolvido como uma única redação ortodoxa e rígida.

Já, no direito francês se verifica a dificuldade hercúlea em determinar em quais caos é possível afirmar que um evento causou o dano, não havendo, assim como em nosso país, uma exata correspondência entre as teorias desenvolvidas pela doutrina e a utilizada pelos tribunais. E, conhecemos as lições de Muriel Fabre-Magnan, da Universidade de Paris (Pantheón- Sorbonne).

Com o advento da responsabilidade objetiva, que alterou substancialmente a atuação dos tribunais, ao desvincular o dever de repara da culpa do sujeito, somente a interrupção do nexo de causalidade é que pode credenciar o afastamento do réu de sua condenação. E, o juízo de responsabilidade, acaba por traduzir-se em juízo sobre a existência do nexo de causalidade existente entre o fato e o dano.

Uma vez rompido o nexo de causalidade, excluído está o dever de indenizar em três situações, a saber: i) culpa exclusiva da vítima; ii) fato de terceiro; e iii) caso fortuito ou força maior. Estes fatores rompem o liame de causalidade entre a atividade do agente e o dano por serem estranhos à cadeia causal.

O caso fortuito e a força maior são por vezes considerados como sinônimos por parte da doutrina, correspondendo ambos aos eventos externos, alheios à vontade do agente e de seu controle, podendo ser ainda diferenciados pela imprevisibilidade ou irresistibilidade do evento.

Portanto, estaremos diante do caso fortuito quando se tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável; se o evento for inevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forças do agente, como normalmente são os fatos da Natureza, como as tempestades, enchentes e, etc., estaremos em face da força maior, como o próprio nome diz.

É o famoso act of God, ato de deus, na versão dos ingleses, em relação ao qual o agente nada poderia fazer para evitá-lo, ainda que fosse previsível.

José Aguiar Dias, mencionando a lição de Arnoldo Medeiros tratou os termos como sinônimos, e apontou que a noção de caso fortuito ou de força maior decorre de dois elementos: um interno, de caráter objetivo, ou seja, a inevitabilidade do evento e, outro, externo ou subjetivo, a ausência de culpa.

Adotou, portanto, conceito misto e não há senão aceitar-lhe a lição no sentido de que não há acontecimentos que possam, a priori, ser sempre considerados casos fortuitos; tudo dependerá das condições de fato em que se verifique o evento. O que é hoje caso fortuito, amanhã poderá deixar de sê-lo, em face do progresso da ciência ou da maior providência humana.

Eis que recentemente, em fevereiro de 2022, deu-se fortes tempestades na cidade de Petrópolis, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, quando diversas ciências como a meteorologia, a geologia, e demais ciências naturais relacionadas com o solo e o clima informavam sobre a iminência de desmoronamento das encostas petropolitanos, causando alto número de óbitos, feridos e desabrigados.

Há, nitidamente, a responsabilidade do Estado que segue a responsabilidade civil objetiva, principalmente, em razão de tragédias anteriores, e por não ter sido tomadas as medidas preventivas e mitigadoras dos danos materiais e morais.

E, nesse mesmo entendimento Geneviève Viney considerou o caso fortuito e a força maior como sinônimos, uma vez que o Código Civil Francês faz referência às duas expressões, muitas vezes, de forma simultânea, in litteris e em livre tradução:

 “A expressão” força maior ‟, que expressa a ideia de constrangimento irresistível, é tradicional na linguagem jurídica francesa. Também é conhecida por outros sistemas jurídicos e aparece em muitas convenções internacionais e, em particular, na convenção de Viena sobre a venda internacional de mercadorias (art. 49).

Embora seja sinônimo de “caso fortuito ‟- expressão a que o Código Civil se refere frequentemente e por vezes simultaneamente, em especial no artigo 1148 -, ela evoca mais diretamente a força superior àquela do homem - o vis major - que o impede de agir do modo como gostaria ou o obriga a fazer o que não quer.

 [...] Assim, em matéria de responsabilidade civil, a força maior designa o evento que, por um lado, teve na realização do dano uma influência tão decisiva que tornou praticamente desprezível o papel das demais condições e que por outro lado, impossibilitou o cumprimento das obrigações do devedor ou o cumprimento dos deveres normalmente impostos ao mandatário. É por isso que, de acordo com o ditado, “Ao impossível ninguém está obrigado ‟, admite-se que a força maior permite ao defensor escapar de qualquer responsabilidade”.

Apesar da ausência de tratamento uniforme ao conceito de caso fortuito e força maior, a sua diferenciação tem pouco efeito prático, pois, afinal, ambos recebem o mesmo tratamento jurídico previsto no artigo 393 do Código Civil, isto é, são considerados mitigadores de responsabilidade civil, sendo relevante compreender que estão fora dos limites da culpa.

Portanto, uma vez estabelecida a identidade entre o caso fortuito e a força maior, é necessário distinguir seus efeitos quando se trata de responsabilidade civil contratual e extracontratual. E, tal diferenciação é curial à medida em que, em âmbito contratual, a análise dos requisitos da força maior é realizada a partir das circunstâncias existentes no momento da formação do vínculo.

Considere-se, ainda, as previsões pelas partes e ainda a eventual distribuição dos riscos, a lembrar que: "a própria lei permite que as partes convencionem o deslocamento do risco do fortuito em favor do credor, fazendo com que persista a responsabilidade do devedor, mesmo se a inexecução se der em decorrência de evento inevitável para o qual este não tenha concorrido. Homenageia-se a autonomia privada [...].

Mesmo assim, só se considerarão assumidos pelo devedor os riscos previsíveis na época da celebração do contrato. Se a inexecução se der por causa imprevisível àquele tempo, a transferência dos riscos não se implementará (TEPEDINO; BARBOSA; MORAES, 2004)."

Na relação de responsabilidade extracontratual, a presença de caso fortuito ou de força maior é enfocada no momento da ocorrência do dano, e uma vez caracterizado o caso fortuito, o nexo de causalidade é plenamente rompido, elidindo a responsabilidade, sendo irrelevante o fato de ser externo o fato, para caracterizar o caso fortuito ou de força maior, pois nestes casos, a caracterização da responsabilidade resta vinculada à imputação culposa.

A jurisprudência brasileira contemporânea, em todo mundo, tem relativizado progressivamente, o poder excludente destes fatores, ganhando acolhida a chamada teoria do fortuito interno, desenvolvida dentro da seara de relações de consumo, com o fito de evitar a exclusão sumária da responsabilidade do fornecedor por eventos que, apesar de imprevisíveis e irresistíveis, se verificam anteriormente à colocação do produto no mercado.

Portanto, além dos requisitos de imprevisibilidade e irresistibilidade do caso fortuito ou força maior, é preciso demonstrar que este fator é externo àquela relação, sob pena de ser mantida a responsabilidade do agente. Enfim, aos tradicionais requisitos da imprevisibilidade e irresistibilidade do caso fortuito, acrescenta-se esta terceira exigência que é a externalidade ou externidade do caso fortuito, sem a qual se conserva a responsabilidade.

Questiona-se, ainda, se a pandemia de Covid-19 poderá ser considerada como caso fortuito sendo capaz de romper o nexo de causalidade e afastar definitivamente o dever de indenizar.

Conveniente é recordar que no fatídico dia 11 de março de 2020, a OMS, Organização Mundial de Saúde classificou a pandemia por conta da disseminação do novo coronavírus em nível global.

Então, medidas restritivas[10] foram adotadas por todo o mundo, pesando sobremaneira na economia de países, entre esses, o Brasil e, repercutindo nas relações contratuais, empresariais e, ante mesmo a impossibilidade, em alguns casos, de cumprimento de obrigações pendentes conforme os termos avençados originalmente.

A situação pandêmica iniciada em março de 2020 e as medidas excepcionais de enfrentamento adotadas pelos governantes poderiam ser consideradas como força maior, porquanto se trate de evento inevitável, irresistível e impossível de controle e, assim, levar à isenção de responsabilidade.

Porém, a solução não é simples, nem se dá de modo uniforme. A lição preciosa deixada por Maria Candida do Amaral Kroetz, in litteris:

"As circunstâncias decorrentes da pandemia de Covid-19, bem como as medidas, por sua causa, impostas pelo Estado de restrição de circulação ou de vedação de atividades que gerem aglomeração de pessoas podem configurar, mas nem sempre, o caso fortuito ou de força maior. Para que isso opere, o dano observado deve ser justificado por circunstâncias excepcionais e insuperáveis (KROETZ, 2020)".

Quando se disciplina de responsabilidade civil contratual ou extracontratual objetiva, é necessário que se analise os fatos e circunstâncias que permeiam o caso concreto, bem como a atitude e o comportamento adotados pelo sujeito para justificar suas ações e omissões.

É conveniente o exemplo trazido por Gustavo Tepedino, Milena Donato e Antonio Pedro Dias, que apontam o caso do pianista contratado para se apresentar na Sala São Paulo, porém, as atividades no local foram suspensas pelo Poder Público[11] em decorrência da pandemia. E, nesta situação, houve a inexecução involuntária do cumprimento da prestação, caracterizando o evento de força maior.

 Porém, diversamente, é o caso de transporte aéreo contratado no período em que já havia o contexto pandêmico. E, nesse caso, a reestruturação da malha aérea em razão da pandemia de Covid-19, não constitui motivo hábil e capaz de elidir o dever de indenizar, tratando-se, apenas de fortuito interno.

Assim, tem-se que a qualificação de determinada situação como caso fortuito ou força maior, portanto, depende da verificação da objetiva possibilidade de adimplemento da prestação, seja por impossibilidade do seu objeto (a prestação não pode ser cumprida por evento externo inevitável), seja do sujeito (acometido por doença que o incapacita de efetuar a prestação)” (TEPEDINO et. al, 2020).

Lembremos ainda que no caso de responsabilidade extracontratual subjetiva, porém, é necessário que seja realizada a análise no momento da ocorrência do dano, bastando a ausência de culpa do causador do dano para isentá-lo, pois ninguém é obrigado a fazer o impossível.

Portanto, a caracterização do caso fortuito ou força maior dependerá da análise de cada caso concreto, não sendo possível haver uma solução linear e única, até mesmo porque as características que distingue a responsabilidade civil quando contratual, extracontratual objetiva e extracontratual subjetiva[12].

Destaca-se a valoração do papel do intérprete e a inclusão de aspectos sociais, culturais, econômicos e éticos no debate jurídico sobre a responsabilidade civil que sofreu transformações, com a relativa perda de importância da prova da culpa e do nexo de causalidade.

Tal fenômeno não apenas decorre do advento da responsabilidade objetiva, mas também, das transformações ocorridas dentro da própria responsabilidade por ato ilícito. E, ipso facto, com a facilitação da prova da culpa, tem-se o considerável aumento das demandas indenizatórias.

E, verifica-se a prova do nexo de causalidade também tem sido flexibilizada pelos tribunais, antes a premente necessidade de se assegurar de alguma forma a reparação às vítimas do dano. E, mesmo as excludentes do nexo de causalidade, como o caso fortuito ou força maior igualmente têm sido relativizadas, a fim de manter a responsabilidade do agente quando se está diante do fortuito interno.

 A pandemia de Covid-19 com suas consequentes medidas restritivas impostas pelo poder Público na tentativa de controlar a disseminação virótica, impôs a necessidade de se refletir quanto à possibilidade de esta ser considerada ou não como excludente de indenizar. Recomenda-se, sempre que possível a revisão contratual e, o reestabelecimento do equilíbrio contratual.

 Ainda que os tribunais tenham voltado o foco na direção ao dano, não se pode esquecer que nem sempre haverá a exata recomposição patrimonial, porquanto à vida social impõe a todos a assunção de certos prejuízos e a exposição a certos riscos, além de ser necessária elaboração de critérios de seleção dos interesses merecedores de tutela, em conformidade com os valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.

Referências

AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral; PONA, Everton Willian.  Delimitando conceitos: do jurídico ao econômico e a adequada compreensão do patrimônio como meio indireto de tutela da pessoa humana. In: Girolamo Domenico Treccani; Joyceane Bezerra de Menezes; Lucas Abreu Barroso. (Org.). Direito Civil II. João Pessoa: Conpedi, 2014.

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Notas:

[1] Negligência, imprudência e imperícia apesar de amplamente citados, não são raras as vezes em que geram eles confusão entre si, motivo pelo qual um rápido estudo acerca das diferenças de cada um merece ser visto tanto pelos operadores do Direito quanto por aqueles que não são da área. Os três são tipos de modalidade de culpa, comumente utilizados, por exemplo, em caso de erro médico, acidentes de trânsito ou acidentes com arma de fogo.

A imprudência pressupõe uma ação que foi feita de forma precipitada e sem cautela. O agente toma sua atitude sem a cautela e zelo necessário que se esperava. Significa que sabe fazer a ação da forma correta, mas não toma o devido cuidado para que isso aconteça. Exemplo disso é o motorista devidamente habilitado que ultrapassa um sinal vermelho e, como consequência disso, provoca um acidente de trânsito.

Negligência, por outro lado, implica em o agente deixar de fazer algo que sabidamente deveria ter feito, dando causa ao resultado danoso. Como agir com descuido, desatenção ou indiferença, sem tomar as devidas precauções. Um exemplo é o caso de uma babá que, vendo a criança brincar próximo a uma panela quente, não a afasta, vindo a criança a sofrer um acidente.

Já a imperícia consiste em o agente não saber praticar o ato. Ser imperito para uma determinada tarefa é realizá-la sem ter o conhecimento técnico, teórico ou prático necessário para isso. Um exemplo é o médico clínico geral que pratica cirurgia plástica sem ter o conhecimento necessário, fazendo com que o paciente fique com algum tipo de deformação. Assim, na imperícia e na imprudência o agente tem uma atitude comissiva, ou seja, de ação. Ele faz alguma coisa. Na imperícia, faz sem ter a habilidade necessária, enquanto que na imprudência faz sem o cuidado devido. Já na negligência a atitude é omissiva, posto que o agente deixa de fazer algo que seguramente deveria fazer. As diferenças entre os três institutos resultam em graus diferentes de responsabilizações, sejam na esfera cível ou penal. Apesar de pequenas, que facilmente geram confusões, é essencial ao aplicador do Direito saber quando cada uma ocorre, para que a devida responsabilidade, após ser averiguada ao caso concreto, possa ser aplicada.

[2] Por derradeiro, destacamos a lição de Orlando Gomes, em sua obra atualizada por Humberto Theodoro Júnior, no sentido de que “Realmente, apesar da multiplicação dos casos submetidos ao princípio da responsabilidade objetiva, permanece, como regra geral, o preceito que condiciona a obrigação de reparar o dano à culpa do agente. Não foi arredado sem embargo da adoção de processos técnicos que elastecem consideravelmente sua aplicação. Nem é possível a substituição pelo risco, porque esta ideia não comporta a mesma generalização. Ainda que se multipliquem asa situações nas quais a obrigação de indenizar seja imposta independentemente da culpa, a solução continuará com o caráter de exceção que possui atualmente. É que a ideia de culpa não pode ser dissociadado conceito de delito. Afora, pois, os casos especificados em lei, nos quais o dever de reparar está previsto e determinado com abstração da conduta do obrigado, a responsabilidade há de resultar de investigação dessa conduta para a verificação de sua anormalidade. Sempre que se quiser atribuir esse dever sem esse pressuposto, há necessidade de especificá-lo na lei. Assim, a questão teria solução extremamente casuística, se porventura se viesse a suprimir a fonte genérica e abstrata da responsabilidade, que é a culpa".

[3] Assim como o Código Civil, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor (assim como outros institutos, a exemplo da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei dos Agrotóxicos, Lei da Energia Nuclear, entre outras mais) também tratam da responsabilidade civil, entretanto, diante dos bens envolvidos e do campo do direito falam da responsabilidade civil objetiva.

[4] Indenização por dano moral – fornecimento de água – corte irregular durante a pandemia “1-O fornecimento de água é um serviço essencial, ainda mais dentro de um cenário pandêmico, onde a água potável assume também a função profilática, de preservação direta da saúde e da vida. 2. Tem-se um quadro de dano moral que extrapola o ordinário quando a CAESB corta equivocadamente o fornecimento de água por duas vezes, dentro de um curto intervalo de tempo, de moradora em fase final de gestação, sobrevindo neste período o parto, de modo que a falta de água representou risco tanto à puérpera quanto ao recém-nascido.” Acórdão 1370986, 07334952420208070001, Relator: CRUZ MACEDO, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 8/9/2021, publicado no DJE: 28/9/2021.

[5] A teoria desenvolvida em 1884 pelo francês SAUZET e pelo belga SAINCTELETTE baseava-se na responsabilidade contratual, ou seja, o vínculo contratual acarreta garantia de segurança na prestação de serviço. Se o empregado não deu causa ao acidente, e não tendo este resultado de força maior, faz jus à correspondente reparação. A grande crítica feita a esta teoria por SALLEILES foi a de que, sendo contratual a responsabilidade, esta poderia, então, ser suprimida por uma cláusula expressa de exoneração. Desenvolveu-se, dessa forma, outra teoria, a do risco proveito ou da responsabilidade sem culpa, que foi consagrada pela lei francesa de 9 de abril de 1898. Com fundamento no risco, a partir da teoria de SALEILLES, surgem os adágios ainda hoje conhecidos: “onde está a utilidade deve estar a carga” (FUSINATO) e “é a empresa que cria o risco específico; logo, é o empregador que deve fazer frente aos efeitos prejudiciais que se produzem” (CABANELLAS).

[6] Assim, no final do século XIX, destacam-se os trabalhos dos juristas RAYMOND SALEILLES e LOUIS JOSERAND, que, buscando um fundamento para a responsabilidade objetiva, desenvolveram a teoria do risco. A teoria do risco teve diversas vertentes, destacando-se: Risco-proveito: responsável é aquele que tira proveito, onde está o ganho, aí reside o encargo – ub emolumentum ibi onus; Risco profissional: o dever de indenizar está presente quando o fato prejudicial é uma decorrência da atividade ou da profissão do lesado; Risco excepcional: a responsabilidade está presente quando o dano decorre de situação anormal, escapando do padrão comum da atividade da vítima; Risco integral: admitida no âmbito do Direito Administrativo, a responsabilidade decorre da própria atividade, sendo uma forma de repartir por todos os membros da coletividade os danos atribuídos ao Estado, ainda que o dano seja decorrente de atividade da vítima; Risco criado: fixando-se na ideia de que se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos eventos danosos que essa atividade gera para os indivíduos, independentemente de determinar se em cada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, a um erro de conduta. Para CAIO MÁRIO, a teoria do risco criado é a que melhor se adapta às condições de vida social. Sintetiza o autor: “aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo, (…) A teoria do risco criado importa em ampliação do conceito do risco proveito. Aumenta os encargos do agente, é, porém, mais equitativa para a vítima, que não tem de provar que o dano resultou de uma vantagem ou de um benefício obtido pelo causador do dano”.

[7] A erosão dos filtros tradicionais da responsabilidade civil: o ocaso da culpa e a flexibilização do nexo causal.  A coletivização das ações de responsabilidade civil. 4. A expansão do dano ressarcível e a necessidade de seleção dos interesses merecedores de tutela: os novos danos e seus “limites”. Anderson Schreiber talentosamente desconstrói alguns mitos e estereótipos que serviram de base a uma série de análises equivocadas acerca dos problemas da responsabilidade civil e indica caminhos que podem ser trilhados de modo a conferir a devida proteção aos valores primordiais do ordenamento sem, contudo, prescindir da necessária segurança jurídica. A original análise do autor parte do reconhecimento da "erosão dos filtros tradicionais", isto é, daqueles parâmetros pelos quais, no passado, se selecionavam os danos que eram passíveis de ressarcimento e que, em virtude da modificação de seu significado, perderam ou vêm perdendo seu papel.   Após a cuidadosa análise acerca dos fundamentos tradicionais, Anderson Schreiber começa a desvelar para o leitor o caminho que percorrerá para apontar soluções para o problema da expansão desmedida dos danos ressarcíveis. 

[8] Nesse contexto de crise epidemiológica, o Poder Judiciário tem um papel duplo: como instituição administrativa, com seus prédios e servidores, precisa adotar medidas que contribuam para a prevenção do contágio; como encarregado da função jurisdicional do Estado, tem a missão de observar o respeito ao direito à saúde de toda a população, fiscalizar a legalidade e a efetividade das ações públicas emergenciais e zelar para que a atuação dos agentes responsáveis pelo enfrentamento da crise se paute pelos princípios do ordenamento jurídico. Assim que a Covid-19 começou a circular no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendeu rapidamente às recomendações sobre isolamento social e adotou o trabalho remoto para servidores e magistrados, mantendo julgamentos exclusivamente por meio virtual. Mesmo com a nova rotina, a corte vem conseguindo preservar a produtividade dos trabalhos.

[9] Segundo Von Kries, o autor de uma ação culposa somente pode ser responsabilizado pelas consequências adequadas desta, não pelas causais, sendo insatisfatória a concepção pela qual não existe outra espécie de vínculo causal além daquele de condição necessária à produção do resultado. Para demonstrar a esterilidade dessa perspectiva, o autor comparava duas hipóteses, ambas envolvendo um cocheiro embriagado ou que cochila:41 na primeira, este toma o trajeto errado e a charrete é atingida por um raio, causando a morte do passageiro; na segunda, a charrete tomba, matando ou lesando gravemente o passageiro. Von Kries soluciona o problema com base no conceito de “possibilidade objetiva” (objektive Möglichkeit), propondo uma abordagem generalizante do caso concreto: o decisivo é identificar se a condição é genericamente apropriada para produzir um resultado da mesma espécie do ocorrido (há responsabilidade) ou se o nexo existente entre ambos os eventos repousa exclusivamente na individualidade do caso concreto (não há responsabilidade). Nos exemplos citados, a relação entre o ato de embriagar-se ou cochilar e a queda do raio é meramente individual, não havendo responsabilidade; enquanto a estabelecida entre aquele fato e o tombamento da charrete é generalizante, responsabilizando-se.

[10] O fechamento de shoppings, cinemas e comércio em geral por atos de autoridades públicas em razão da pandemia tem suscitado acirrada discussão jurídica a respeito de eventual responsabilização estatal por fato do príncipe, espécie de força maior. Na órbita trabalhista, o fenômeno está regido no 486 do Texto Celetista, onde, de fato, vê-se atribuída alguma responsabilidade estatal pelo prejuízo advindo ao empregador. Confira-se: “Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. Igualmente, como falar de ato administrativo discricionário se, no caso, embora agindo por conveniência (razoabilidade da medida restritiva) e oportunidade (urgência da medida restritiva), a administração pública o fez sem o clássico requisito teórico lógico e palmar para atos desse jaez – liberdade –? Ora, a autoridade pública foi tão impactada quanto empregados e empregadores. TODOS fomos impactados. O episódio lesivo inevitável – pandemia – revelou-se inexorável também para a própria administração pública. A inevitabilidade foi sistêmica e massiva. Não estamos diante da clássica hipótese de fato do príncipe, onde a administração pondera interesses e decide tecnicamente, mediante fria e atenta aferição prévia de conveniência e oportunidade. No caso da pandemia do covid-19, a administração precisou tomar decisões seríssimas e urgentes em um lapso temporal mínimo mediante balizas científicas ainda em construção. Como todos e cada um de nós, foi arrastada pela dureza das circunstâncias e por uma avalanche de informações sinalizadoras de que uma tragédia humana se aproximava qual tsunami. O “príncipe” não foi aquele príncipe dos livros: altivo, seguro e poderoso. Em essência, o príncipe foi mesmo príncipe? Importante registrar, desde logo, que a implantação da técnica de confinamento social não precisa da certeza científica quanto à sua real eficácia como pressuposto de ação estatal. Basta a orientação técnica das autoridades competentes, especialmente do campo da saúde, acerca do uso dessa medida como instrumento razoável e urgente de mínimo controle sanitário, segundo o conhecimento científico do momento. Afinal, quanto ao coronavírus, há mais incertezas que certezas científicas. Não percamos de vista que estamos em uma sociedade do risco (Ulrich Beck). Há, por ora, medidas essencialmente precaucionais.

[11] O fato do príncipe se caracteriza como ato estatal, característico de uma decisão de autoridade, que repercute em uma relação jurídica existente dando causa a um dano ou prejudicando o curso normal de seus efeitos. É discutível se o ato estatal deve ou não ser dotado de legitimidade, ou se mesmo o ato ilegítimo pode revestir-se desta qualidade. Isso porque, presumida a legitimidade dos atos da Administração, desde logo produzem efeitos na realidade da vida. Tais efeitos serão rescindidos na hipótese de posterior invalidação do ato, como ocorre, por exemplo, naqueles praticados em abuso ou desvio de poder. O mesmo se diga em relação a atos normativos cuja inconstitucionalidade seja posteriormente declarada. Imagine-se, por exemplo, a violação à garantia fundamental de irretroatividade da lei (art. 5º, XXXVI, da Constituição: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"). Desde quando editados os atos, produzem efeitos até que sejam impugnados, e serão justamente tais efeitos que caracterizam a intervenção na relação jurídica preexistente, havida entre particulares ou com o próprio Estado. A impossibilidade de cumprir pode se dar, na realidade da vida, em decorrência de um ato ilegal, ou de uma lei inconstitucional, o que, sem prejuízo de eventual responsabilização posterior da autoridade do qual emana, poderá justificar desde logo o inadimplemento sem culpa do devedor.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Responsabilidade Civil Excludente de Responsabilidade Caso Fortuito Força Maior Pandemia Covid-19

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