Empoderamento Judicial contemporâneo. Entre o pêndulo e a balança[1]
A juristocracia traduz um sistema de governo que em geral, não é democrático, baseado em decisões do Judiciário. A virtuosa expansão do Judiciário ao lado da constitucionalização de direitos e a efetividade do Estado vem talhando um novo modelo de Estado. E, a expansão do papel de guardião-intérprete[2] e da discricionariedade judicial, resulta na construção de Ran Hirschl sobre a juristocracia, o que é incompatível com o constitucionalismo liberal, sendo incapaz de assegurar o salutar equilíbrio entre os poderes, a defesa de direitos e, ainda, conter o abuso do poder estatal.
É curial lembrar que a visão
clássica de separação de poderes[3], onde o Judiciário,
inicialmente ocupava posição mais frágil resta mesmo superado. Pois, deu-se
deslocamento de poder das instituições representativas para as esferas
judiciais, surgindo novo tipo de regime chamado de juristocracia assim denominado
pelo cientista político canadense Ran Hirschl. Destaque-se a sua frase, in
litteris: "O poder judicial não cai do céu; é construído
politicamente".
Somos testemunhas e plateia
dos sucessivos embates existentes entre os poderes Legislativo e Judiciário[4] em face de constantes
interferências do Supremo Tribunal Federal no processo legislativo. Boa parte
dessa intervenção judicial dá-se por meio de mandado de segurança manejado por
congressistas, cuja finalidade maior seria a garantia de direito subjetivo ao devido
processo constitucional.
Com esse modesto artigo
pretende-se expor e debater o referido deslocamento de forças com fulcro na
noção de preservação hegemônica, apresentada por Hirschl, em sua obra
intitulada Towards Juristocracy, que aponta a hipótese de que é que as
elites políticas, econômicas e sociais que transferem ao Judiciário,
voluntariamente, quando ameaçadas de
perder a hegemonia e representatividade na esfera política.
De fato, a Constituição
Federal brasileira de 1988 transformou o STF em uma das mais poderosas cortes judiciais
seja em termos institucionais, posto que funcione simultaneamente tanto como
Corte Constitucional, revisional e penal, como a quem incumbe decidir a
respeito das mais fundamentais questões para a sociedade brasileira.
Hirschl para ilustrar o
empoderamento judicial por meio da constitucionalização, promove ciosa análise
sobre as transformações políticas e econômicas na história de Israel, Canadá,
Nova Zelândia e África do Sul, depois, analisa o fenômeno[5] no Brasil.
O cientista político canadense
veio com sua resposta desafiar a tradicional visão a respeito da judicialização
da política.
Observa-se pelo mundo todo que
as reformas constitucionais reiteram a transferência de poder de instituições
representativas para o Judiciário. Eis que a constitucionalização de direitos
e, ainda, a implementação de revisão judicial ou controle constitucional
(judicial review) são vistos como instrumentos progressistas e, teriam como
efeito positivo, a redistribuição de poder na sociedade, erigindo-se autêntico
compromisso com a democracia.
Recorde-se que numa autêntica
democracia, as minorias devem obter a tutela legal de seus direitos, seja em
constituição escrita, que não pode alterar as famosas cláusulas pétreas. Por
outro viés, a progressiva expansão do poder do Judiciário traduz um Estado com
um disfuncional sistema político e, a constitucionalização se revela ser a
melhor forma de superar a ingovernabilidade política, ou ainda, o total caos
institucional.
Aduz, literalmente, Hirschl
que: "a constitucionalização de direitos e o fortalecimento do controle de
constitucionalidade das leis resultam de um pacto estratégico liderado por
elites políticas hegemônicas continuadamente ameaçadas, que buscar isolar suas
preferências políticas contra mudanças em razão da política democrática em
associação com elites econômicas e jurídicas que possuem interesses
compatíveis".
Hamilton já afirmava que ao
avaliar os diferentes poderes deve-se reconhecer que, nos governos em que estes
estão separados, o Judiciária, pela mesma natureza das suas funções, é o menos
temível para a Constituição, porque é também o que menos meios possui para
atacá-la.
Já o poder Executivo é o
dispensador das dignidades e o depositário da força pública, ao passo que o Legislativo
dispõe da bolsa de todos e, ainda decide dos direitos e dos deveres dos
cidadãos: mas o Judiciário não dispõe da bolsa nem tampouco da espada e não
pode tomar nenhuma resolução ativa. Assim, sem força e sem vontade, apenas lhe compete
juízo, e esse só deve a sua eficácia ao socorro do Poder Executivo. (HAMILTON;
MADISON, 2003).
Até reconheciam como desgraça
que nos governos republicanos o Poder Legislativo predomine necessariamente.
Por essa razão foram propostos os mecanismos para equilibrar e deferir maiores poderes
ao Executivo, tais forças, serviriam para balancear o peso dos poderes, como os
que já existiam, por exemplo, na Inglaterra, entre a Câmara dos Lordes e dos Comuns.
Há a grande responsabilidade
dos EUA em situar o Poder Judiciário no mesmo nível político dos outros ramos
do governo, configurando sua moderna função no mundo. Através da célebre
decisão de John Marshall, Chief-Justice da Suprema Corte norte-americana
no caso Marbury versus Madison (1803) que inaugurou o poder da judicial
review (revisão judicial), segundo o qual compete ao Poder Judiciário dizer o
que é a lei, considerada aquele ato legislativo em conformidade com a
Constituição, ato legislativo contrário à Constituição não é lei.
Hirschl desenvolve nova
explicação para tamanho empoderamento judicial por meio da
constitucionalização, considerando-a como forma egoísta de preservação
hegemônica e, assim, com a progressiva transferência de poderes decisórios das
instituições representativas para o Judiciário, isto é, à substituição da
negociação política pelo julgamento, do voto pela sentença, o que o doutrinador
canadense chamou de juristocracia.
Nessas derradeiras décadas têm
aparecido casos extremos de judicialização da política. E, tal fenômeno ocorreu
também na África do Sul, onde coube à sua Suprema Corte decidir se o pacto
político pós-apartheid era ou não aceitável.
E, ainda, na Alemanha, o
Tribunal Constitucional que definiu qual seria o locus do país dentro do âmbito
da União Europeia. Ou em Israel, os magistrados decidiram o que deve ser
definido como sendo "estado judeu e democrático". A rigor, nenhum
desses temas, é, essencialmente, por natureza, uma questão jurídica ou legal.
Sendo, realmente, temas políticos e que vem a definir a identidade da nação.
O cientista político canadense
adverte que os políticos buscam muitas vezes os resultados imediatos para suas políticas
e nem sempre dão a atenção aos posteriores desdobramentos, potencialmente,
prejudiciais e quiçá negativos.
A longo prazo a judicialização
da política através da constitucionalização de direitos e do estabelecimento do
judicial review podem ser justamente ameaçar a imagem pública do Judiciário
como politicamente imparcial, já que as decisões das Cortes Judiciais,
identificadas com camadas sociais específicas e, que geram, naturalmente,
ressentimento em outros círculos e, ainda, podem ser identificadas pela opinião
pública como tendenciosas, acarretando a perda de credibilidade no Judiciário.
Em muitos sistemas políticos
ocorre a delegação voluntária de poder ao Judiciário por elites políticas ameaçadas,
mas ainda, dominantes foi fortemente apoiada por forças econômicas influentes e
que viram na constitucionalização um meio para promover a desregulamentação
econômica e por Cortes Supremas com vistas a uma majoração de sua influência política
e visibilidade internacional. Portanto, não são meros processos acidentais ou
fortuitos.
Aqui, o STF tem funcionado
como autêntico árbitro de disputas políticas já que os partidos de oposição
passaram, cada vez mais, a buscar as Cortes Judiciais os resultados que não
logram ou não lograriam por meio da via eleitoral ou parlamentar.
O que Hirschl denomina de
juristocracia, nada mais é do que o reconhecimento por parte das elites de que
seus interesses não são mais compatíveis com os da maioria.
E, explica esse novo constitucionalismo
que assume a forma de uma juristocracia, sob a ótica de elites políticas e
econômicas desacreditadas que, para a consecução de suas políticas, para as
quais não conseguem mais mobilizar maiorias, se aliam às elites jurídicas e
judiciárias.
O empoderamento judicial vem a
demonstrar as origens e consequências das revoluções constitucionais ocorridas
em Israel, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul.
E, para o doutrinador
canadense, estas trouxeram a defesa de liberdades e garantias fundamentais,
desrespeitadas por regimes depostos, conforme já ocorreu no nosso país, mas,
igualmente, consagraram, os princípios do neoliberalismo, tais como o
individualismo, desregulação e a precarização dos serviços públicos, trazendo
efeitos sociais e econômicas nefastas.
Abandonou-se o keynesianismo,
que foi a base do Welfare State, para privilegiar as políticas de orientação mercadológica
tão típicas do neoliberalismo[6].
Analisemos a situação de
Israel que sofreu a revolução constitucional de 1992 que traz ideal exemplo de
empoderamento do Judiciário. E, foi a consolidação constitucional de direitos e
introdução do judicial review que foram apoiadas por políticos representes da
burguesa laica (Ashkenazi) que são judeus de origem europeia e, geralmente, mais
bem situados seja economicamente e socialmente e, cuja hegemonia histórica na
política está presente nos órgãos majoritários, tal como o Parlamento, que
vinha sendo crescentemente ameaçada.
Surgiram diversas forças
políticas dessa heterogeneidade social israelense, representada além dos Ashkenazi,
pelo Mizrahi e Sephardi (na maioria judeus de origem
norte-africana e mediterrânea), imigrantes da ex- URSS, uma minoria de
imigrantes judeus vindos da Europa e, também, uma crescente comunidade
residente de trabalhadores estrangeiros, não judeus, em grande parte, ilegais e
começaram a ter representatividade.
Antes de 1992 existia uma
carta de direitos em Israel baseada na herança colonial britânica de supremacia
parlamentar, o que é mais plausível, que os detentores do poder político até
1990 não estivessem tentados a delegar os poderes ao Judiciário já que sua
hegemonia política e controle do Parlamento permaneciam praticamente
inatacados.
Nessas primeiras décadas após
a independência, o partido dominante dentro da política de Israel, o Mapai de
Ben-Gurion, opôs firmemente à adoção de uma carta de direitos e, também,
proclamou o caráter democrático da soberania parlamentar e da regra da maioria.
Assim, enquanto a burguesia Ashkenazi,
por meio de seus representantes políticos, manteve o controle sobre o Parlamento,
não tinha razões para minar ou diminuir sua posição, delegando ao Judiciário
através da consolidação de direitos e, estabelecimento do judicial review, o
que somente ocorreu quando procuraram controlar a gradual perda de
representatividade política e apoio
popular no início dos anos oitenta, formando coalização de diversos partidos
políticos que iniciou o empoderamento institucional do Judiciário israelense.
Já o representante da oposição
Rubinstein, do partido Meretz, de esquerda, propôs em 1991, com o assentimento
do então Ministro da Justiça, Dan Meridor (do Likuk, partido de
direita), o esboço que culminou na edição de duas leis básicas de direitos
civis e liberdades bem como promoveu emenda à lei constitucional: The
Government, o que pavimentou o caminho para efetivo controle judicial
ativo, conferindo à Suprema Corte a autoridade para monitorar ciosamente a
arena política, bem como rescindir qualquer legislação infraconstitucional que
seja inconstitucional promulgada pelo Knesset.
Diante do insustentável nível
de desigualdade social que reinou em Israel o que acarretou o surgimento de
grupos marginalizados a se oporem à burguesia então dominante, crescendo sua
participação política a partir dos anos oitenta e, ipso facto, provou a
transferência do locus de debate político do Parlamento para o Judiciário, por
sua vez, formado por elite originária da mesma classe social e com profundas
ligações com a burguesa Ashkenazi.
Em verdade, o empoderamento
judicial foi apoiado francamente pela elite econômica e, como meio de obter a
liberalização da política israelense, para torná-la orientada para o mercado e,
assim, desmantelar o Estado do Bem-Estar Social[7], o que restou evidenciado
por série de privatizações de áreas como telecomunicações, bancos,
conglomerados industriais e, o surgimento de serviços médicos, de educação
particulares, a desregulação do mercado de capitais e do câmbio e, etc. bem
como a liberalização do mercado de trabalho e a não inclusão de cláusulas de
obrigação constitucional formal para o governo israelense nas áreas de saúde,
moradia e educação básica.
De acordo com Hirschl há três
fatores que facilitam a delegação de poder às Cortes e diminuem os riscos de
curto prazo para as elites políticas que, de forma voluntária e consciente, o
fazem: fazem:
1)nível de certeza suficiente entre
aqueles que iniciam a transição ao que ele chama de juristocracia
de que o judiciário, de forma geral, e a Suprema
Corte em particular, estão propensos a
produzir decisões que servirão aos seus interesses e refletem suas preferências ideológicas(isso
vem sendo observado em Israel, conforme
indicam estudos interpretativos recentes das decisões tomadas pela Suprema Corte – critério frequentemente utilizado pela Corte é o conceito de
"público esclarecido", cujas características se assemelham muito às
da burguesia secular Ashkenazi).
2)Controle sobre a composição
das cortes superiores do país. Em Israel,apesardeumsistemadeescolhaaparentementemaisindependentedoquenos
EUA, por exemplo–seleção através de um comitê de nove membros formado pelo
presidente e mais dois juízes da Suprema Corte, dois advogados praticantes, dois
membros do Knesset e dois Ministros, um deles
da Justiça – quase todos os
membros do comitê eram, desde a formação do Estado israelense, membros da
elite secular para
a qual, em suma, a Suprema Corte ofereceu um porto seguro em meio à
crescente influência de grupos tradicionalmente
periféricos nas arenas políticas majoritárias.
3)Existência de
uma confiança pública
generalizada na imparcialidade
política do judiciário. Pesquisas
realizadas em Israel indicam um alto índice de confiança dos israelenses
(70%)no seu sistema legal.
Confiando, de um lado, na
reputação de imparcialidade da Suprema Corte e, de outro, na sua tendência de
julgar segundo os valores do chamado "público esclarecido", as elites
dirigentes por trás da revolução
constitucional israelense transferiram temas sensíveis para a arena legal,
reduzindo, assim, os custos de seguir as regras do jogo da política
representativa proporcional, mas ao mesmo tempo, através dessa judicialização
sem precedentes, plantaram, não intencionalmente, as sementes da erosão, tanto da
legitimidade do judiciário quanto do seu próprio espaço de manobra
institucional no futuro.
Os sinais de erosão já se
fazem sentir e, já em 1999, uma revolta sem precedentes contra decisão da
Suprema Corte acerca da demora na convocação de conselhos multirreligiosos, levou
milhares de pessoas, na sua maioria judeus ortodoxos, às ruas de Jerusalém, em
protesto contra a Suprema Corte.
A teoria de Hirschl é aplicável
ao desenvolvimento político e constitucional do Canadá. A promulgação da Constitution
Act, em 1982, foi o fim de longa batalhada, cujas origens estão no crescimento
do sentimento nacionalista e ideias separatistas na província do Quebec,
iniciado nos anos de 1960.
A referida promulgação da
Carta de Direito Constitucional fora defendida por Pierre Eliot Trudeau,
Ministro da Justiça e, depois, pelo Primeiro-Ministro do Canadá, comprometido
com a causa de tutela dos direitos individuais.
Segundo Hirschl, sua luta não
fora apenas efeito deste comprometimento com as liberdades civis, senão foi uma
resposta estratégica maior e mais ampla contra a crescente ameaça do
separatismo de Quebec, e outras mudanças demográficas, tal como as demandas
pela autonomia provincial, linguística e cultural que poderia diluir o poder do
governo federal canadense.
E, assim, procurou-se a
encorajar e fortalecer a unidade
nacional, afastando o debate político de questões regionais e subordinar a
legislação das províncias ao padrão de políticas fundamentais interpretado pela
Suprema Corte canadense.
Em verdade, desde o fim de
1930, a pressão para haver a consolidação de direitos individuais na
Constituição canadense vem sendo sentida, porém, todas as tentativas anteriores
ao 1982, que esbarraram na recusa dos detentores do poder de substituir os
princípios tradicionais de supremacia parlamentar por princípios de supremacia
constitucional, enquanto a hegemonia política e controle sobre os mecanismos de
decisão política permaneceram praticamente inatacados.
Só mudou com o crescimento de
pretensões separatistas de Quebec, especialmente com a eleição do líder René
Lévesque, em 1975, que culminou com o referendo de 1980, no qual venceu o não à
separação, mas cuja extensa campanha reacendeu a pauta de renovação constitucional.
Além do comprometimento de
líderes políticos com a proteção de liberdades civis por meio do judicial
review, críticos do processo constitucional canadense atribuem a
promulgação da nova carta de direitos, também, ao menos em parte, a uma manobra
lastreada em interesses próprios iniciada por elites que perceberam que a
política majoritária não lhes era vantajosa naquele momento.
Como em Israel e, na Nova
Zelândia e também na África do Sul, os reclamos pela adoção de um catálogo de
liberdades civis protegidas segundo o modelo norte-americano foram muito
apoiados por influente coalização de forças econômicas neoliberais, sobretudo,
entre os poderosos da indústria local e conglomerados econômicos norte-americanos
que enxergaram na constitucionalização de direitos uma forma de promover a
desregulação econômica.
Diante de generosa imagem do
Estado Bem-Estar Social, a tendência neoliberal global não deixou incólume a
economia canadense e, se observou que o neoliberalismo passou a ser nas
derradeiras décadas também o modelo de pensamento econômico e social no Canadá,
onde se evidenciou cortes firmes no direcionamento de recurso para o Bem-Estar
Social, os benefícios para os desempregados, seguridade social, saúde e
educação e, etc., e, ao invés de ter
servido como empecilho para este
desenvolvimento, a constitucionalização de direitos provocou então o efeito
contrário.
Hirschl cita também alguns
exemplos e inicia pela mudança de opinião do próprio Trudeau que começou sendo
o defensor da Constituição pré-reforma e do sistema político canadense, mas
acabou por ser um dos principais responsáveis pela adoção da Carta de Direitos
e do fortalecimento do controle judicial.
Além disso, seu governo se
opôs à inclusão da notwithstanding clause (cláusula não obstante ou
derrogatória) na Carta do Canadá, a provisão
que acabou por ser incluída na
Carta e que permite a limitação formal às liberdades fundamentais, devido
processo legal e direitos de igualdade protegidos pela Carta canadense, que
podem ser suspensos pelas assembleias provinciais ou parlamento federal através
de uma lei anulatória por um período renovável de até cinco anos.
Em franco contraste com a
oposição à cláusula derrogatória, o governo de Trudeau insistiu na aprovação da
Seção 23, que impõe obrigações aos governos provinciais de facilitar e custear o
ensino de línguas para as minorias, evitando assim, a intenção de Quebec de
obrigar os imigrantes da província a entrarem no sistema educacional francês.
E, todos os outros direitos à
língua foram formalmente excluídos da cláusula derrogatória tornando evidente a
guerra constitucional do governo federal contra o movimento separatista de
Quebec e a célebre Lei 101.
A Carta da Língua Francesa, ou
seja, a Lei 101 é uma lei-quadro da província do Quebec, Canadá que definiu os
direitos linguísticos dos cidadãos do Quebec e faz do francês, a língua da
maioria dos habitantes, a única língua oficial na província.
Também em Israel, deu-se a
delegação de autoridade à Suprema Corte que esteve muito ligada à inclinação
geral da Corte de julgar de acordo com as propensões ideológicas e culturais hegemônicas.
E, apesar da composição da Corte ser formada por Juízes representantes das Províncias
(três de Ontário, três de Quebec, dois das províncias ocidentais e outro das
províncias marítimas), o processo de seleção e nomeação é controlado somente
pelo governo federal e pelo Primeiro-Ministro.
Por convenção, o Presidente da
Corte Judicial é o mais velho entre os juízes, mas no período de cristalização
do empoderamento do judiciário
canadense, o Primeiro-Ministro Trudeau ignorou tal regra e nomeou o juiz Bora
Laskin para a presidência, obtendo assim enormes dividendos políticos, já que
seu mandado entre 1973 a 1984, um dos mais tumultuados períodos da história política do Canadá, e foi
verdadeiro divisor de águas em termos de ativismo judicial transformando a
Corte canadense num dos maiores órgãos de decisão política no Canadá atual e,
que vem favorecendo os valore e políticas adotados pelo governo nacional
canadense, em detrimento da autonomia política provincial.
Igualmente, as decisões da
Corte nas derradeiras décadas refletem e promovem um conjunto de tendências
culturais, padrões morais e preferências políticas hegemônicas, impostas sobre
uma sociedade na sua essência excepcionalmente diversa, multiétnica,
multicultural e multilinguística, com treze províncias e territórios que se
estendem do Atlântico ao Pacífico ao Oceano Ártico. E, afora isso, o
doutrinador nota uma prevalência das ideias hegemônicas de liberdade
"negativa" sobre as noções progressivas de justiça distributiva.
Quanto à Quebec, por exemplo,
a Corte já decidiu, em 1998, pela inconstitucionalidade, tanto sob a ótica
nacional quanto internacional, de uma separação unilateral da província. Ao
mesmo tempo, a Corte assegura a política federal de garantia dos direitos das minorias
linguísticas em relação à educação e língua.
Conforme ocorreu em Israel, a
transferência de poder para Corte Suprema pode ser creditada, parcialmente, à sua
reputação de competente, íntegra, imparcial politicamente. O que difere da
experiência de Israel, contudo, pesquisas indicam que houve apenas um pequeno
declínio da percepção de legitimidade da Corte, ao menos entre os canadenses
anglófilos, apesar de sua emergência como órgão de decisão política.
Já no caso da Nova Zelândia a
respeito das origens da revolução de direitos de 1990, Hirschl identifica que a
promulgação da declaração de direitos neozelandesa em 1990 marcou uma mudança
abrupta no equilíbrio entre os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo no
país e simbolizou a falência do que foi chamado de último sistema de
Westminster (sistema britânico de democracia majoritária). Juntamente com
outras novas leis de liberdades civis, a declaração de direitos, pretendeu dar
uma blindagem a uma série de liberdades fundamentais contra as vicissitudes de
um sistema político cada vez mais volátil.
O potente sistema de
constitucionalização dos direitos da Nova Zelândia foi resultante de coalização
de atores econômicos pressionando por reformas neoliberais em conjunto com
outros setores das elites, buscando preservar e ainda, reforçar seu poder
diante da crescente presença de interesses periféricos no âmbito de decisão
política majoritária.
Ao fim dos anos de 1990, a
Constituição da Neozelandesa reprisou o sistema parlamentar britânico e sua
tradição de common law (direito consuetudinário) em quase todos os aspectos, mas,
no início dos anos de 1970, o estável sistema política neozelandês e mudanças
econômicas internacionais.
E, assim, fatos como o
enfraquecimento dos tradicionais liames comerciais com a Grã-Bretanha, destino
da minoria das exportações do país nos anos de 1950 e 1960, quando aquela estreitou
os vínculos comerciais com a Europa, obrigando a elite econômica neozelandesa a
procurar novos mercados tais como a Austrália, Singapura e Hong Kong e, a
significativa mudança na produção de bens no país, que deixou de produzir
basicamente lã, carne e laticínios para enfatizar os setores da pesca, frutas
tropicais e turismo.
E, para financiar toda essa
mudança estrutural na produção do país, o governo teve que emprestar enormes
quantidades de recursos financeiros de fontes internacionais e o gasto público
teve que ser drasticamente reduzido, tornando inevitável a transição da versão local
do Estado Bem-Estar Social para uma ordem econômica neoliberal.
O modelo de Estado do
Bem-estar que emergiu na segunda metade do século XX na Europa Ocidental e se
estendeu para outras regiões e países chegou ao auge na década de 1960. No transcurso dos
anos 70, porém, esse modelo de Estado entrou em crise.
Assinale-se que entre 1984 a
1994, a Nova Zelândia passou por reforma econômica radical e mudou do seu antes
extremamente protegido e regulado sistema econômico para a total abertura de
mercado tão preconizada pelo neoliberalismo. Tão extrema a transição que é
usada como exemplo na literatura político-econômica internacional.
Essa mudança histórica foi marcada pela
promulgação de uma série de leis restringindo o poder governamental de
intervenção na economia e na esfera privada, o que trouxe uma extensa
desregulamentação e privatização das indústrias de telecomunicações,
transportes, silvicultura e turismo, remoção de barreiras para importação e
exportação de bens e serviços e fim dos subsídios aos setores manufatureiro, de
processamento de alimentos e agricultura, despedidas em larga escala no setor
público, a mercantilização de numerosos serviços sociais, incluindo serviços
bancários, de assistência social, educação, saúde, moradia, operando uma severa
erosão nos sindicatos trabalhistas e negociações coletivas e um encorajamento
ativo de investimentos e propriedade a estrangeiros.
Durante o mesmo período, a
Nova Zelândia testemunhou crescimento dramático na desigualdade econômica e
social e o crescimento grande de propriedade estrangeira, de ativos
corporativos, mídia e serviços públicos, bem como acentuada queda nas filiações
sindicais.
No âmbito político, todas
essas mudanças foram influenciadas e refletiram no surgimento de novos partidos
políticos representando posição explicitamente neoliberal, como por exemplo, o New
Zeland Party, que logo se tornou a terceira força política do país,
na adoção de posições econômicas favoráveis aos mercados por parte do
conservador National Party, e uma célere conversão do neoliberalismo do
consagrado Labour Party.
A ascensão do neoliberalismo
durante os anos oitenta fora acompanhada pela progressiva presença de outros
interesses na pauta pública neozelandesa, tal como o crescimento das populações
de outros grupos étnicos que não os de descendentes de europeus, assim como os
Maoris, pessoas originadas das Ilhas do Pacífico e os descendentes de
asiáticos.
No caso específico das
maiorias, a população original da Nova Zelândia, observou-se no final dos anos
oitenta, uma crescente consciência sobre o significado do Tratado Waitangi
(Pacto entre os Chefes Maori e os britânicos) que abriu espaço para a
colonização europeia) e das suas queixas não resolvidas, especialmente, no que
se refere à injusta expropriação de suas terras. O que acarretou a expansão da
jurisdição do Tribunal de Waitangi, em 1985, permitindo a inclusão de
reclamações posteriores a 1840, apenas o período depós de 1975 era permitido
pela legislação anterior.
Enfim, as demandas do povo
Maori por redistribuição justa de terras, territórios de pesca e de recursos naturais,
bem como digno tratamento de sua linguagem e herança cultural coincidiu com
crescentes demandas dos imigrantes da Ilha do Pacífico, Ásia e Mediterrâneo
pela adoção de políticas públicas multiculturais para educação, língua e,
também, dos ambientalistas, feministas e militantes de movimentos antinucleares.
Em Israel, as forças
minoritárias igualmente aumentaram rapidamente sua representação parlamentar,
operando o colapso do apoio aos dois maiores partidos políticos do país, que
foi acompanhado por crescente volatilidade eleitoral, e pelo declínio nas
filiações partidárias dos maiores partidos políticos.
A burguesia branca se viu
ameaçada em seu controle sobre as mais importantes áreas de decisão, a
política, e seguiu-se, a pressão pelo empoderamento do Judiciário.
Geoffrey Palmer, o Ministro da
Justiça entre 1984-1989, e Primeiro-Ministro entre 1989 a 1990 apesar de ter
advertido sobre os perigos da adoção da Carta de Direitos enquanto ainda era
jovem acadêmico, iniciou e liderou duas décadas depois a transferência de poder
ao Judiciário na Nova Zelândia através da promulgação da Declaração de Direitos
da Nova Zelândia de 1990.
Os mesmos políticos que
introduziram ampla reforma econômica neoliberal na Nova Zelândia em 1984, bem
como outros políticos representando as preferências políticas de eleitores
brancos, urbanos e de alta renda, reagiram às mudanças das condições
demográficas e econômicas e à crescente pressão política popular sobre os
representantes majoritários, iniciando e executando o que chamaram de revolução
dos direitos da Nova Zelândia, cujo símbolo mor foi a promulgação da declaração
de direitos de 1990.
Destacamos que Corte Constitucional tem
interpretado generosamente seus poderes sob a égide da declaração de direitos,
tornando-a quase tão efetiva quanto seria se caso fosse aprovada a proposta
original que defendia uma lei suprema totalmente consolidada e controladora de
toda legislação parlamentar através de revisão judicial.
Em conclusão, Hirschl afirma
que em conjunto com outras leis posteriores, como Human Rights Act e Privacy
Act, de 1993, a declaração de direitos neozelandesa serviu não somente para
elevar o número de direitos e liberdades civis clássicas ao nível
constitucional, mas também para delegar o poder de decisão político do
Parlamento para o Judiciário, o que se deu com amplo apoio da elite judicial e
das oligarquias políticas, com o fito de preservar sua hegemonia e ampliar sua
influência no resultado das decisões políticas.
Quanto a África do Sul, Hirschl
apresenta o cenário de luta da elite branca sul-africana do fim dos anos
oitenta e início dos anos noventa para assegurar a inclusão de uma declaração de
direitos consolidados e uma Corte Constitucional ativa no pacto pós-apartheid,
como mais uma confirmação da sua tese da preservação hegemônica.
A situação dos direitos
humanos na África do Sul, do século passado, só pode ser chamada de terrível e
o regime de apartheid que simbolizou o derradeiro legado do colonialismo
europeu e da supremacia branca na era do pós-segunda grande guerra mundial.
É sabido que o sistema político controlado
pelo Partido Nacional, serviu até o início dos anos de 1990, não apenas para
reforçar os direitos da população branca, mas também, para privar a população
negra de seus direitos humanos mais básicos.
As políticas discriminatórias
incluíram, entre outas medidas, a categorização racial da população (Population
Registration Act, 1950), proibição de relações sexuais e casamento
interracial, criação de guetos raciais e a alocação quase exclusiva de recursos
para as comunidades brancas que representavam na ocasião apenas 1/7 da
população.
A África do Sul teve três
Constituições apenas, a de 1910, 1961 e 1983 até a promulgação da Constituição
provisória de 1993, substituída pela versão final em 1996 e todas estas eram
direcionadas quase totalmente à minoria branca, cristã, africâner, sem tomar
conhecimento da natureza multicultural e multilinguística da sociedade sul-africana.
Foi durante todo o século XX
deu-se a consistente e sistemática oposição das elites dominantes a uma
Declaração de Direitos e, ainda, o estabelecimento de controle judicial ativo, defendendo-se a soberania do
Parlamento, ao argumento, advogado pelo Partido nacional de que a ênfase em
interesses individuais seria incompatíveis com a tradição política e religiosa
da sociedade africâner, cujo mote estaria no Estado e, em outros interesses
supostamente comunitários.
No princípio dos anos oitenta,
contudo, houve uma crise do apartheid, o que tornou insustentável mantê-lo
através do labirinto de controles sociais em meio a massiva violência
continuada e a recessão econômica.
E quando os profissionais
brancos começaram a emigrar nos anos setenta e oitenta, o país se viu privado de
mão de obra qualificada para operar sua sofisticada economia. E, não obstante a
forte presença de corporações multinacionais, que sempre enxergaram na África
do Sul como espécie de mina de ouro, as pressões internacionais em forma de
sanções diplomáticas e econômicas sinalizaram ao Partido Nacional a grande
necessidade de se abolir ao menos algumas das políticas do apartheid.
A Constituição africana de
1983 serviu de marco inicial deste processo de inclusão dos negros e mestiços bem
como os indianos num sistema parlamentar tricameral. E, dois mecanismos
garantiam, contudo, que o poder permanecesse ainda em mãos do partido branco
dominante, a saber: a governança centralizada na figura do Presidente da
República, que detinha enorme poder decisório tanto na seara executiva como na
legislativa.
E, em segundo lugar, a
contagem de votos para as decisões significativas na proporção de 4:1:1,
determinando sempre a prevalência da Casa Legislativa branca. E, as reações
adversas das duas comunidades minoritárias representadas, bem como a escalada
de rebelião na comunidade negra que selaram o destino da Constituição africana
de 1983 e da ideia de manter a hegemonia branca por meio da supremacia parlamentar.
A segregação racial legalizada
e sustentada repressivamente estava com dias contados e, assim ficou impossível
manter o apartheid através da força, pois os detentores do poder econômico,
entre a elite branca passaram a defender as virtudes de uma Declaração de Direitos
e de um judicial review. O governo do apartheid esperava, dessa forma,
manter alguns privilégios desfrutáveis por tantas décadas pelos brancos.
Em 1986, apenas dois anos depois de ter proclamado a incompatibilidade de uma carta de direitos com o sistema africâner de governo, o Ministro da Justiça, H. J. Coetsee determinou que a Comissão de Direito sul-africana (Law Commission) fizesse um estudo sobre direitos humanos e direitos de grupos. Em 1989, foram divulgados os resultados da pesquisa e opinou-se pela adoção de uma declaração de direitos, opinião que foi reiterada em 1991.
Já, em 1990, o Presidente de
Klerk anunciava no Parlamento que a nova Constituição deveria conter uma Carta
de Direitos.
O fim da proibição ao partido
do Congresso Nacional Africano (ANC) e a libertação de Nelson Mandela reuniram
pela primeira vez num engajamento conjunto das elites brancas e a maioria
negra.
Procurava-se negociar uma
transição democrática através da Convenção para uma África do Sul democrática
em 1991, mas, as negociações falharam e forma interrompidas em meados de 1992
e, seguiu-se uma escalada da violência e um maciço levante social.
Em 1993, os partidos firmaram
um acordo bilateral que previa uma transição democrática através da reforma
constitucional, em duas fases, a saber: Constituição interina em 1993 e
Constituição definitiva redigida pela Assembleia Constituinte em 1996.
Ambas trouxeram alterações sem
precedentes na história constitucional do país: consolidação da supremacia
constitucional e de uma Carta de Direitos soberana trazendo a possibilidade de
serem declarados inválidos atos de governo legislativos e executivos que
violarem direitos humanos fundamentais.
O estabelecimento de uma Corte
Constitucional para proferir a derradeira palavra em matéria constitucional
travou uma autêntica batalha em prol da constitucionalização de direitos na
então nova África do Sul e orbitou em torno de divergências básicas, a saber:
1. escopo e alcance dos
direitos de propriedade, o Partido Nacional defendia a garantia de forte
proteção de direitos individuais de propriedade e do Congresso nacional
africano ao revés requeria a garantia constitucional de ampla reforma agrária
através de expropriações, acabou vencendo a garantia de propriedade;
2. direitos dos trabalhadores
enquanto o Novo Partido defendia restrições aos direitos de greve que deveria
ser constitucionalmente tutelado, mas o direito dos empregadores de lockout
não, este acabou não sendo inserido, mas continuou a ser permitido por
legislação infraconstitucional;
3. direitos educacionais de minorais
linguísticas e foram excluídas as previsões de financiamento estatal de escolas
unilinguísticas, principalmente, as instituições da língua africâner.
Enfim, a luta contra apartheid não se
restringiu apenas à segregação legalizada e ao direito de voto, mas também, à abismal desigualdade econômica e social, que
estava entre as piores e mais cruéis do mundo, a minoria branca que
correspondia a quinze por cento da população e que possuía cerca de oitenta e
sete por cento de todas as terras e ganhava em média oito vezes mais que a
maioria negra, aproximadamente setenta e cinco por cento da população.
O país com cinco por cento da
população consumindo mais do que os outros oitenta e cinco por cento, o índice GINI
medido era de 0,61, próximo ao que temos aqui no Brasil e na Nigéria, que são
campeões em desigualdade social e econômica.
Em 1990, apenas pouco tempo
depois antes da formal abolição do apartheid, noventa e cinco por cento do
capital produtivo se encontrava sob o domínio de conglomerados brancos.
Mas, afinal, por que o ANC de
Nelson Mandela, mesmo antes de Klerk em 1990, defendia as limitações constitucionais
à soberania por meio de adoção de Declaração Constitucional de Direitos?
Para o citado cientista
político canadense, deve-se à transformação do ANC de movimento revolucionário
de oposição em partido político governante quando se deu a definitiva promulgação
da Constituição em 1996, já contavam com mais de dois anos no poder, e também pelas
pressões econômicas internacionais que
atuaram juntamente com a necessidade do ANC de evitar a grande fuga de capitais
e atrair novos investimentos estrangeiros, impossível sem haver garantia constitucional de direito de
propriedade.
Há o apoio incondicional ao
ANC na África do Sul que pode explicar ter renegado seu compromisso histórico
em adotar regime constitucional progressista, orientado para a redistribuição de renda. Não se pode cogitar,
contudo, que o ANC tenha propriamente traído a revolução, o que de fato, não
ocorreu. Mas, sim, deu-se amplo pacto, até em certa medida para evitar a
revolução entre a nova elite política e o poder econômico.
Verificou-se que o governo do
ANC não propôs até o momento, desapropriações em larga escala nem sequer
promoveu alguma redistribuição econômica ou territorial significativa e
mantendo ou ampliando a reforma econômica neoliberal, o que acarretou taxa de
desemprego na ordem de trinta por cento, e crescente desilusão da população
negra e pobre. The dream is over.(O sonho acabou).
Em 1996, lançou-se programa
contendo medidas econômicas de espectro neoliberal o chamado GEAR - Growth,
Employment and Redistribuction que reforçou a ênfase governamental
no aperto fiscal, contenção, da inflação e promoção de exportações como forma
de estimular a competitividade. E, a liberalização cambial, a privatização de
empresas estatais e, etc., que foram metas econômicas cruciais e, ainda, a
flexibilização do mercado de trabalho recomendada pelo GEAR, envolveu a
desregulação do trabalho de mão de obra semi ou não especializada e a não
sujeição de pequenas empresas à legislação trabalhista africana.
Tais medidas foram favoráveis
ao mercado e foram acompanhadas pela erosão significativa da política do
COSATU, Congress of South African Trade Unions, maior sindicato
do país que era alinhado com o ANC e o partido comunista sul-africano.
Assim, como em diversos outros
países, o ocorrido na África do Sul, ou em países prestes a seres descolonizados, também para
manter ou aumentar o poder de elites dominantes.
A Inglaterra, por exemplo, não
desejou incorporar a Convenção Europeia de Direitos Humanos ao seu próprio
sistema legal, e apoiou entusiasticamente a mesma incorporação dessas
disposições às Constituições surgidas da independência de diversos países.
Assim, assistimos a constitucionalização de Direitos em Gana, em 1957, na
Nigéria em 1959 e no Quênia em 1960.
Enfim, para Hirschl, as
revoluções constitucionais nos quatro países aludidos, enquanto diferentes entre
si, seja em alcance e contexto, podem ser analisadas sob a perspectiva da
preservação hegemônica, ou seja, do empoderamento judicial através da
constitucionalização de direitos e estabelecimento de revisão judicial, que é,
na maioria das vezes, estratégia consciente usada pelas elites políticas
ameaçadas buscando sofregamente manter ou reforçar a sua hegemonia insulando as
decisões políticas das pressões políticas populares apoiada por elite
econômicas e judiciais com interesses compatíveis.
E, no Brasil observando a
constitucionalização de direitos no pós-segunda Guerra Mundial, é exemplo do
estabelecimento do judicial review como consequência de transição de um cenário
quase-democrático ou ditatorial para o regime recém-democrático, uma fase
chamada de single trasition ou transição singular.
Para o doutrinador canadense,
a autolimitação consistente na transferência de poder do âmbito de decisão
majoritária para as Cortes que, se por um lado, poderá parecer contra os interesses
dos detentores do poder, tanto ao Executivo como no Legislativo, por outro
lado, poderá significar reformas constitucionais aparentemente humanitárias,
mas que mascaram a agenda neoliberal, numa eterna expectativa de manutenção do
poder.
As vantagens para os
detentores do poder político aponta para razões para que as elites políticas
defendam a delegação de poder ao Judiciário, reduzindo o risco para si mesmas,
através da transferência de responsabilidade decisória para as Cortes, evitando
embates difíceis ou prolongados, ou até o colapso de um governo de coalização,
a obstrução da implementação da própria agenda política, e o temor de perder o
controle de sua própria pauta de políticas públicas, ou, no caso de oposição,
para obstruir as ações governamentais.
Quanto maior for a hegemonia e
controle de grupos políticos e econômicos sobre as searas de tomada de decisões
políticas cruciais vão sendo ameaçadas por grupos periféricos e suas
preferências políticas, será maior a possibilidade de transferência de poder ao
Judiciário, principalmente, tendo em vista a sua boa reputação, sua retidão e
imparcialidade política.
O Judiciário parece, ao menos
em tese, capaz de decidir menos inclinado com tendências ideológicas e
culturais hegemônicas. E, nesse raciocínio, as Cortes Judiciais somente
protegeriam os interesses dos que não detém o poder, quando fossem convergentes
com os valores e interesses das elites
detentoras do poder.
Afinal, o crescente
protagonismo do Judiciário brasileiro no contemporâneo contexto político
brasileiro, já alcançou a político, sendo fenômeno notório que não pode ser
explicado apenas por avidez de poder dos julgadores e, dentro da intrincada
relação interinstitucional entre os Poderes, pode-se identificar voluntária
transferência por parte do Legislativo e do Executivo ao Judiciário.
A primeira onda de
judicialização da política se marcou logo após a promulgação da Constituição
brasileira de 1988, quando se deu crescente mobilização do Judiciário em todo
os eu conjunto. E, o nascimento de
sentimento constitucional, ainda que incipiente, e fez florescer entre os órgãos
que compõem suas várias instâncias uma postura mais ativa ou ativista na
concretização dos preceitos contidos na Carta Magna.
E, diante do nítido caráter
analítico da Constituição brasileira, surge o movimento que visa conferir maior
efetividade às normas constitucionais e, ainda, proporcionar maior segurança jurídica
e previsibilidade às decisões, seja no STF ou STJ, que possuem a tarefa
determinada de proferir a adequada interpretação do sentido e da intenção do
texto constitucional vigente. Eis que o STF se define como guardião da
Constituição Federal brasileira vigente.
Desde a redemocratização, o
país, vivencia-se na derradeira década
um crescente e acentuado protagonismo político do Judiciário que tanto se
revela na judicialização da política, como dos debates que devem ocorrer na
esfera pública e que são transferidos ao Judiciário.
E, assim, por meio do controle
de constitucionalidade, profere as decisões as quais, em teoria, encerram os
debates políticos, que, por vezes, não se deram, ou ocorrem de forma frágil e
débil.
A explicação mais plausível do
empoderamento do Judiciário é que seja voluntário, e que os próprios detentores
do poder, econômico, político e social, que iniciam ou se abstém de bloquear
tais reformas e que estimam que serve aos seus interesses sujeitar-se aos
limites impostos pela intervenção judicial na esfera política. Estão dispostos
a pagar o preço e o custo do empoderamento judicial para que seja aperfeiçoada
a juristocracia.
Inúmeras vezes, o STF manifestou
em nítida judicialização da política, quando STF decidiu sobre o aborto dos
anencéfalos, de quotas raciais no ensino pública, na pesquisa com
células-tronco embrionárias e do reconhecimento das uniões homoafetivas como
uniões estáveis, no casamento de homoafetivos e, até, na restrição de uso de
armas[8] antes autorizadas por
decretos presidenciais durante as eleições de 2022. A restrição de uso de
imagens do Presidente da República que é candidato à reeleição para fins
eleitoreiros de campanha.
Vide o Dossiê STF na Pandemia
de Covid-19[9].
Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/codi/anexo/Dossie_Covid_Eletronico.pdf Acesso em 21.09.2022.
Infelizmente, boa parcela mais
rica da população brasileira é muito resistente à redução de desigualdades
sociais, econômicas e culturais, sendo neste sentido mais uma forma de
preservação hegemônica das elites econômicas sendo capitaneadas pelo STF, possivelmente,
não em casos concretos isolados, mas quando confrontado em demandas
macroeconômicas, isto é, que possuem peso significativo na essência financeira
e que tanto afetam, simultaneamente, tanto grandes parcelas da população,
estabelecendo, assim, limites às conquistas desses grupos sociais em direção à
inclusão social.
Enfim, a judicialização da política se refere a tendência mundial, associada a noção de protagonismo do Judiciário como natural efeito da constitucionalização de direitos e do próprio constitucionalismo. E, nas hipóteses analisadas por Hirschl para fundamentar a tese de preservação hegemônica fornecem nova perspectiva sobre a judicialização e podem ajudar a melhor entender o comportamento das Supremas Cortes no Mundo e no Brasil.
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Notas:
[1]
O pêndulo não para e seu movimento continuará para sempre, porém, o dispositivo
não está isolado, sofrendo perda de energia. O pêndulo de Newton que é
constituído de no mínimo, de cinco pêndulos de mesmo tamanho e massa
subjacentes uns aos outros e estão presos na mesma estrutura. E, ficam a uma
distância em que as esferas, mesmo quando em repouso encostam umas nas outas.
Foi através desse pêndulo que Newton explicou conceitos como conceitos como a
gravidade, a relação das forças que atuam num objeto, as Leis de Newton, além
explicar sobre as colisões e conservação de energia. A origem da balança como
símbolo do Direito e da justiça nos remete ao deus egípcio Osíris, que eram
responsável de julgar o destino dos mortais já falecidos, pesando seus corações
com o uso de uma balança diante da deusa Maat, a deusa da justiça.
[2] O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro dentro da organização do Estado e, suas funções englobam tanto o controle de constitucionalidade, assumindo o papel de guardião da Constituição Federal de 1988 até os crimes cometidos pelo Presidência da República. E na CPI da Covid-18 pode-se observar o envolvimento do STF em diversas etapas desse processo. Desde 1891 até os presentes dias, o STF perpassou seis constituições federais e testemunhou o crescimento e amadurecimento cívico do país. O Ministro Gilmar Mendes, em sua obra “Curso de Direito Constitucional”, ainda complementa: A nossa Carta da República atribui a função de uniformizar o entendimento da legislação infraconstitucional federal ao STJ, deixando a última palavra sobre temas constitucionais ao STF. O STF também faz o papel de tribunal da Federação quando aprecia representações para fins interventivos. Na ação direta de inconstitucionalidade (ADI), o STF é acionado com intuito de decidir se a norma é inconstitucional; ação declaratória de constitucionalidade (ADC) onde se busca declarar a constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo. Vale ressaltar que a ADC trata apenas de norma federal. Tem o dever de julgar e processar crimes comuns cometidos por alguns representantes políticos e administrativos, tais como: o Presidente da República; Vice-Presidente; Membro do Congresso nacional; Ministros do próprio STF; Procurador-Geral da República. E, em casos de conflito de competência entre tribunais superiores, tribunal superior e outros tribunais a este não vinculados, tribunal superior e juízos a este não vinculado. Julgamento de Recurso Ordinário, habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores se denegatória a decisão. O STF ainda julga os recursos relacionados aos remédios constitucionais. É entendimento do STF que o caso concreto que precise ter repercussão geral pode tramitar neste juízo. O STF é composto por onze ministros, sendo representado pelo Presidente do Tribunal, atualmente a Ministra Rosa Weber; Turmas que são constituídas por cinco integrantes, seu representante é o membro mais antigo. O mandato do Presidente do STF é por dois anos, sendo a reeleição vedada. Existe o costume de se eleger os mais antigos ministros que ainda não ocuparam o cargo.
[3]
A Teoria da Separação dos Poderes conhecida, também, como Sistema de Freios e
Contrapesos, foi consagrada pelo pensador francês Charles-Louis de
Secondat, Baron de La Brède et de
Montesquieu, na sua obra “O Espírito das leis”, com base nas obras de
Aristóteles (Política) e de John Locke
(Segundo Tratado do Governo Civil), no período da Revolução Francesa.
Montesquieu permeando as ideias desses pensadores e, com isso, explica, amplia
e sistematiza, com grande percuciência, a divisão dos poderes. A Teoria da
Separação dos Poderes moderna surgiu na época da formação do Estado
Liberal, a partir da ideia da iniciativa
livre e da menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Hoje, essa
tripartição clássica dos poderes está consolidada pelo artigo 16 da Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. A ideia da divisão de
poderes seria para evitar a concentração absoluta do poder nas mãos do
soberano, comum no Estado absoluto, que precede as revoluções burguesas,
buscando evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos indivíduos.
[4]
O Poder Judiciário, por sua vez, não tem faculdade atribuída, pois para
Montesquieu, sua função era considerada restrita. (MONTESQUIEU, 1998). Até
Montesquieu, não havia consenso quanto à forma mais adequada para a Separação
dos Poderes. Ocorre que, após “O Espírito das Leis”, os Estados adotaram sua corrente tripartite como
garantia das liberdades individuais, de forma a fazerem a separação tripartida
constar, até os dias de hoje, nos textos
constitucionais de países democráticos.
[5]
A primeira experiência neoliberal que se iniciou antes da inglesa, situa-se na
América Latina, no Chile quando do golpe militar que destituiu e matou o então
Presidente Salvador Allende e levou a implementação do receituário econômico
dos Chicago Boys.
[6] Neoliberalismo é modelo político e econômico de nosso tempo. Apesar de que o uso do termo adquiriu múltiplos significados, entre os quais o monetarismo, neoconservadorismo, Consenso de Washington e a reforma de mercado. As pesquisas indicam que entre 1980 a 2005, o termo era pouco usado, mas passou a ser mencionado em mais de mil artigos por ano. Há pelo menos três frentes principais para se obter conceito de neoliberalismo: a) teoria e prática econômica (é entendido como projeto político de restabelecimento de condições de acumulação do capital e restauração do poder das elites econômicas); b) teoria política que congrega políticas governamentais e modelos de Estado; c) ética neoliberal que é individualista e se pauta em visão de vida em cada um é responsável por sua própria vida e situação socioeconômica. Ultimamente, o termo tem absorvido conotações negativas e fora cunhado em 1938 pelos participantes do Colóquio Walter Lippmann, em Paris, que se lançavam como neoliberais. O Congresso se deu por ocasião do lançamento do livro de Lippmann em francês: La cité libre. Era crítica ao estatismo e ao coletivismo, associando-os ao totalitarismo. Lançou também crítica aos liberais clássicos como John Stuart MIll e ao laissez-faire, que estariam superados.
[7]
O Estado do Bem-Estar foi definido após a Segunda Guerra Mundial e, teve sua
evolução intimamente relacionada ao processo de industrialização e os problemas
sociais gerados a partir dele. A Grã-Bretanha foi o país que se destacou na
construção do Estado do Bem- Estar com a aprovação em 1942, de uma série de
providências nas áreas da saúde e escolarização. Deu-se vertiginosa ampliação
dos serviços assistenciais públicos, abarcando as áreas de renda, habitação,
saúde, educação e previdência social, entre outas. E, além da prestação de
serviços sociais, o Estado do Bem-Estar Social passou a intervir firmemente na
área econômica, de forma regulamentar praticamente todas as atividades
produtivas a fim de assegurar a geração de riquezas materiais junto com a
diminuição de desigualdades sociais.
[8]
Vide: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/20/stf-tem-maioria-para-manter-limitacao-a-decretos-de-bolsonaro-sobre-compra-de-armas-e
municao.ghtml?utm_source=meio&utm_medium=email