Empoderamento Judicial contemporâneo. Entre o pêndulo e a balança[1]

A juristocracia traduz um sistema de governo que em geral, não é democrático, baseado em decisões do Judiciário. A virtuosa expansão do Judiciário ao lado da constitucionalização de direitos e a efetividade do Estado vem talhando um novo modelo de Estado. E, a expansão do papel de guardião-intérprete[2] e da discricionariedade judicial, resulta na construção de Ran Hirschl sobre a juristocracia, o que é incompatível com o constitucionalismo liberal, sendo incapaz de assegurar o salutar equilíbrio entre os poderes, a defesa de direitos e, ainda, conter o abuso do poder estatal.

Fonte: Gisele Leite

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É curial lembrar que a visão clássica de separação de poderes[3], onde o Judiciário, inicialmente ocupava posição mais frágil resta mesmo superado. Pois, deu-se deslocamento de poder das instituições representativas para as esferas judiciais, surgindo novo tipo de regime chamado de juristocracia assim denominado pelo cientista político canadense Ran Hirschl. Destaque-se a sua frase, in litteris: "O poder judicial não cai do céu; é construído politicamente".

Somos testemunhas e plateia dos sucessivos embates existentes entre os poderes Legislativo e Judiciário[4] em face de constantes interferências do Supremo Tribunal Federal no processo legislativo. Boa parte dessa intervenção judicial dá-se por meio de mandado de segurança manejado por congressistas, cuja finalidade maior seria a garantia de direito subjetivo ao devido processo constitucional.

Com esse modesto artigo pretende-se expor e debater o referido deslocamento de forças com fulcro na noção de preservação hegemônica, apresentada por Hirschl, em sua obra intitulada Towards Juristocracy, que aponta a hipótese de que é que as elites políticas, econômicas e sociais que transferem ao Judiciário, voluntariamente,  quando ameaçadas de perder a hegemonia e representatividade na esfera política.

De fato, a Constituição Federal brasileira de 1988 transformou o STF em uma das mais poderosas cortes judiciais seja em termos institucionais, posto que funcione simultaneamente tanto como Corte Constitucional, revisional e penal, como a quem incumbe decidir a respeito das mais fundamentais questões para a sociedade brasileira.

Hirschl para ilustrar o empoderamento judicial por meio da constitucionalização, promove ciosa análise sobre as transformações políticas e econômicas na história de Israel, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul, depois, analisa o fenômeno[5] no Brasil.

O cientista político canadense veio com sua resposta desafiar a tradicional visão a respeito da judicialização da política.

Observa-se pelo mundo todo que as reformas constitucionais reiteram a transferência de poder de instituições representativas para o Judiciário. Eis que a constitucionalização de direitos e, ainda, a implementação de revisão judicial ou controle constitucional (judicial review) são vistos como instrumentos progressistas e, teriam como efeito positivo, a redistribuição de poder na sociedade, erigindo-se autêntico compromisso com a democracia.

Recorde-se que numa autêntica democracia, as minorias devem obter a tutela legal de seus direitos, seja em constituição escrita, que não pode alterar as famosas cláusulas pétreas. Por outro viés, a progressiva expansão do poder do Judiciário traduz um Estado com um disfuncional sistema político e, a constitucionalização se revela ser a melhor forma de superar a ingovernabilidade política, ou ainda, o total caos institucional.

Aduz, literalmente, Hirschl que: "a constitucionalização de direitos e o fortalecimento do controle de constitucionalidade das leis resultam de um pacto estratégico liderado por elites políticas hegemônicas continuadamente ameaçadas, que buscar isolar suas preferências políticas contra mudanças em razão da política democrática em associação com elites econômicas e jurídicas que possuem interesses compatíveis".

Hamilton já afirmava que ao avaliar os diferentes poderes deve-se reconhecer que, nos governos em que estes estão separados, o Judiciária, pela mesma natureza das suas funções, é o menos temível para a Constituição, porque é também o que menos meios possui para atacá-la.

Já o poder Executivo é o dispensador das dignidades e o depositário da força pública, ao passo que o Legislativo dispõe da bolsa de todos e, ainda decide dos direitos e dos deveres dos cidadãos: mas o Judiciário não dispõe da bolsa nem tampouco da espada e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Assim, sem força e sem vontade, apenas lhe compete juízo, e esse só deve a sua eficácia ao socorro do Poder Executivo. (HAMILTON; MADISON, 2003).

Até reconheciam como desgraça que nos governos republicanos o Poder Legislativo predomine necessariamente. Por essa razão foram propostos os mecanismos para equilibrar e deferir maiores poderes ao Executivo, tais forças, serviriam para balancear o peso dos poderes, como os que já existiam, por exemplo, na Inglaterra, entre a Câmara dos  Lordes e dos Comuns.

Há a grande responsabilidade dos EUA em situar o Poder Judiciário no mesmo nível político dos outros ramos do governo, configurando sua moderna função no mundo. Através da célebre decisão de John Marshall, Chief-Justice da Suprema Corte norte-americana no caso Marbury versus Madison (1803) que inaugurou o poder da judicial review (revisão judicial), segundo o qual compete ao Poder Judiciário dizer o que é a lei, considerada aquele ato legislativo em conformidade com a Constituição, ato legislativo contrário à  Constituição não é lei.

Hirschl desenvolve nova explicação para tamanho empoderamento judicial por meio da constitucionalização, considerando-a como forma egoísta de preservação hegemônica e, assim, com a progressiva transferência de poderes decisórios das instituições representativas para o Judiciário, isto é, à substituição da negociação política pelo julgamento, do voto pela sentença, o que o doutrinador canadense chamou de juristocracia.

Nessas derradeiras décadas têm aparecido casos extremos de judicialização da política. E, tal fenômeno ocorreu também na África do Sul, onde coube à sua Suprema Corte decidir se o pacto político pós-apartheid era ou não aceitável.

E, ainda, na Alemanha, o Tribunal Constitucional que definiu qual seria o locus do país dentro do âmbito da União Europeia. Ou em Israel, os magistrados decidiram o que deve ser definido como sendo "estado judeu e democrático". A rigor, nenhum desses temas, é, essencialmente, por natureza, uma questão jurídica ou legal. Sendo, realmente, temas políticos e que vem a definir a identidade da nação.

O cientista político canadense adverte que os políticos buscam muitas vezes os resultados imediatos para suas políticas e nem sempre dão a atenção aos posteriores desdobramentos, potencialmente, prejudiciais e quiçá negativos.

A longo prazo a judicialização da política através da constitucionalização de direitos e do estabelecimento do judicial review podem ser justamente ameaçar a imagem pública do Judiciário como politicamente imparcial, já que as decisões das Cortes Judiciais, identificadas com camadas sociais específicas e, que geram, naturalmente, ressentimento em outros círculos e, ainda, podem ser identificadas pela opinião pública como tendenciosas, acarretando a perda de credibilidade no Judiciário.

Em muitos sistemas políticos ocorre a delegação voluntária de poder ao Judiciário por elites políticas ameaçadas, mas ainda, dominantes foi fortemente apoiada por forças econômicas influentes e que viram na constitucionalização um meio para promover a desregulamentação econômica e por Cortes Supremas com vistas a uma majoração de sua influência política e visibilidade internacional. Portanto, não são meros processos acidentais ou fortuitos.

Aqui, o STF tem funcionado como autêntico árbitro de disputas políticas já que os partidos de oposição passaram, cada vez mais, a buscar as Cortes Judiciais os resultados que não logram ou não lograriam por meio da via eleitoral ou parlamentar.

O que Hirschl denomina de juristocracia, nada mais é do que o reconhecimento por parte das elites de que seus interesses não são mais compatíveis com os da maioria.

E, explica esse novo constitucionalismo que assume a forma de uma juristocracia, sob a ótica de elites políticas e econômicas desacreditadas que, para a consecução de suas políticas, para as quais não conseguem mais mobilizar maiorias, se aliam às elites jurídicas e judiciárias.

O empoderamento judicial vem a demonstrar as origens e consequências das revoluções constitucionais ocorridas em Israel, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul.

E, para o doutrinador canadense, estas trouxeram a defesa de liberdades e garantias fundamentais, desrespeitadas por regimes depostos, conforme já ocorreu no nosso país, mas, igualmente, consagraram, os princípios do neoliberalismo, tais como o individualismo, desregulação e a precarização dos serviços públicos, trazendo efeitos sociais e econômicas nefastas.

Abandonou-se o keynesianismo, que foi a base do Welfare State, para privilegiar as políticas de orientação mercadológica tão típicas do neoliberalismo[6].

Analisemos a situação de Israel que sofreu a revolução constitucional de 1992 que traz ideal exemplo de empoderamento do Judiciário. E, foi a consolidação constitucional de direitos e introdução do judicial review que foram apoiadas por políticos representes da burguesa laica (Ashkenazi) que são judeus de origem europeia e, geralmente, mais bem situados seja economicamente e socialmente e, cuja hegemonia histórica na política está presente nos órgãos majoritários, tal como o Parlamento, que vinha sendo crescentemente ameaçada.

Surgiram diversas forças políticas dessa heterogeneidade social israelense, representada além dos Ashkenazi, pelo Mizrahi e Sephardi (na maioria judeus de origem norte-africana e mediterrânea), imigrantes da ex- URSS, uma minoria de imigrantes judeus vindos da Europa e, também, uma crescente comunidade residente de trabalhadores estrangeiros, não judeus, em grande parte, ilegais e começaram a ter representatividade.

Antes de 1992 existia uma carta de direitos em Israel baseada na herança colonial britânica de supremacia parlamentar, o que é mais plausível, que os detentores do poder político até 1990 não estivessem tentados a delegar os poderes ao Judiciário já que sua hegemonia política e controle do Parlamento permaneciam praticamente inatacados.

Nessas primeiras décadas após a independência, o partido dominante dentro da política de Israel, o Mapai de Ben-Gurion, opôs firmemente à adoção de uma carta de direitos e, também, proclamou o caráter democrático da soberania parlamentar e da regra da maioria.

Assim, enquanto a burguesia Ashkenazi, por meio de seus representantes políticos, manteve o controle sobre o Parlamento, não tinha razões para minar ou diminuir sua posição, delegando ao Judiciário através da consolidação de direitos e, estabelecimento do judicial review, o que somente ocorreu quando procuraram controlar a gradual perda de representatividade política e  apoio popular no início dos anos oitenta, formando coalização de diversos partidos políticos que iniciou o empoderamento institucional do Judiciário israelense.

Já o representante da oposição Rubinstein, do partido Meretz, de esquerda, propôs em 1991, com o assentimento do então Ministro da Justiça, Dan Meridor (do Likuk, partido de direita), o esboço que culminou na edição de duas leis básicas de direitos civis e liberdades bem como promoveu emenda à lei constitucional: The Government, o que pavimentou o caminho para efetivo controle judicial ativo, conferindo à Suprema Corte a autoridade para monitorar ciosamente a arena política, bem como rescindir qualquer legislação infraconstitucional que seja inconstitucional promulgada pelo Knesset.

Diante do insustentável nível de desigualdade social que reinou em Israel o que acarretou o surgimento de grupos marginalizados a se oporem à burguesia então dominante, crescendo sua participação política a partir dos anos oitenta e, ipso facto, provou a transferência do locus de debate político do Parlamento para o Judiciário, por sua vez, formado por elite originária da mesma classe social e com profundas ligações com a burguesa Ashkenazi.

Em verdade, o empoderamento judicial foi apoiado francamente pela elite econômica e, como meio de obter a liberalização da política israelense, para torná-la orientada para o mercado e, assim, desmantelar o Estado do Bem-Estar Social[7], o que restou evidenciado por série de privatizações de áreas como telecomunicações, bancos, conglomerados industriais e, o surgimento de serviços médicos, de educação particulares, a desregulação do mercado de capitais e do câmbio e, etc. bem como a liberalização do mercado de trabalho e a não inclusão de cláusulas de obrigação constitucional formal para o governo israelense nas áreas de saúde, moradia e educação básica.

De acordo com Hirschl há três fatores que facilitam a delegação de poder às Cortes e diminuem os riscos de curto prazo para as elites políticas que, de forma voluntária e consciente, o fazem: fazem:

1)nível de certeza suficiente entre aqueles que iniciam a transição ao que ele chama de  juristocracia  de  que  o judiciário, de forma geral, e  a Suprema  Corte em particular, estão propensos a  produzir  decisões que  servirão aos seus interesses e  refletem suas preferências ideológicas(isso vem sendo observado em Israel, conforme  indicam estudos interpretativos recentes  das decisões tomadas pela Suprema  Corte – critério frequentemente  utilizado pela Corte é o conceito de "público esclarecido", cujas características se assemelham muito às da burguesia secular Ashkenazi).

2)Controle sobre a composição das cortes superiores do país.  Em Israel,apesardeumsistemadeescolhaaparentementemaisindependentedoquenos EUA, por exemplo–seleção através de um comitê de nove membros formado pelo presidente e mais dois juízes da Suprema Corte, dois advogados praticantes, dois membros do Knesset e dois Ministros, um deles  da  Justiça – quase todos os membros do comitê eram, desde a formação do Estado israelense, membros da elite  secular  para  a  qual, em suma, a Suprema Corte  ofereceu um porto seguro em meio à crescente   influência de grupos tradicionalmente periféricos nas arenas políticas majoritárias.

3)Existência   de   uma confiança   pública generalizada na   imparcialidade  política  do judiciário. Pesquisas realizadas em Israel indicam um alto índice de confiança dos israelenses (70%)no seu sistema legal.

Confiando, de um lado, na reputação de imparcialidade da Suprema Corte e, de outro, na sua tendência de julgar segundo os valores do chamado "público esclarecido", as elites dirigentes por  trás da revolução constitucional israelense transferiram temas sensíveis para a arena legal, reduzindo, assim,   os custos de seguir as regras do jogo da política representativa   proporcional,   mas ao mesmo tempo, através dessa judicialização sem precedentes, plantaram, não intencionalmente, as sementes da erosão, tanto da legitimidade do judiciário quanto do seu próprio espaço de manobra institucional no futuro.

Os sinais de erosão já se fazem sentir e, já em 1999, uma revolta sem precedentes contra decisão da Suprema Corte acerca da demora na convocação de conselhos multirreligiosos, levou milhares de pessoas, na sua maioria judeus ortodoxos, às ruas de Jerusalém, em protesto contra a Suprema Corte.

A teoria de Hirschl é aplicável ao desenvolvimento político e constitucional do Canadá. A promulgação da Constitution Act, em 1982, foi o fim de longa batalhada, cujas origens estão no crescimento do sentimento nacionalista e ideias separatistas na província do Quebec, iniciado nos anos de 1960.

A referida promulgação da Carta de Direito Constitucional fora defendida por Pierre Eliot Trudeau, Ministro da Justiça e, depois, pelo Primeiro-Ministro do Canadá, comprometido com a causa de tutela dos direitos individuais.

Segundo Hirschl, sua luta não fora apenas efeito deste comprometimento com as liberdades civis, senão foi uma resposta estratégica maior e mais ampla contra a crescente ameaça do separatismo de Quebec, e outras mudanças demográficas, tal como as demandas pela autonomia provincial, linguística e cultural que poderia diluir o poder do governo federal canadense.

E, assim, procurou-se a encorajar e  fortalecer a unidade nacional, afastando o debate político de questões regionais e subordinar a legislação das províncias ao padrão de políticas fundamentais interpretado pela Suprema Corte canadense.

Em verdade, desde o fim de 1930, a pressão para haver a consolidação de direitos individuais na Constituição canadense vem sendo sentida, porém, todas as tentativas anteriores ao 1982, que esbarraram na recusa dos detentores do poder de substituir os princípios tradicionais de supremacia parlamentar por princípios de supremacia constitucional, enquanto a hegemonia política e controle sobre os mecanismos de decisão política permaneceram praticamente inatacados.

Só mudou com o crescimento de pretensões separatistas de Quebec, especialmente com a eleição do líder René Lévesque, em 1975, que culminou com o referendo de 1980, no qual venceu o não à separação, mas cuja extensa campanha reacendeu a pauta de renovação constitucional.

Além do comprometimento de líderes políticos com a proteção de liberdades civis por meio do judicial review, críticos do processo constitucional canadense atribuem a promulgação da nova carta de direitos, também, ao menos em parte, a uma manobra lastreada em interesses próprios iniciada por elites que perceberam que a política majoritária não lhes era vantajosa naquele momento.

Como em Israel e, na Nova Zelândia e também na África do Sul, os reclamos pela adoção de um catálogo de liberdades civis protegidas segundo o modelo norte-americano foram muito apoiados por influente coalização de forças econômicas neoliberais, sobretudo, entre os poderosos da indústria local e conglomerados econômicos norte-americanos que enxergaram na constitucionalização de direitos uma forma de promover a desregulação econômica.

Diante de generosa imagem do Estado Bem-Estar Social, a tendência neoliberal global não deixou incólume a economia canadense e, se observou que o neoliberalismo passou a ser nas derradeiras décadas também o modelo de pensamento econômico e social no Canadá, onde se evidenciou cortes firmes no direcionamento de recurso para o Bem-Estar Social, os benefícios para os desempregados, seguridade social, saúde e educação  e, etc., e, ao invés de ter servido  como empecilho para este desenvolvimento, a constitucionalização de direitos provocou então o efeito contrário.

Hirschl cita também alguns exemplos e inicia pela mudança de opinião do próprio Trudeau que começou sendo o defensor da Constituição pré-reforma e do sistema político canadense, mas acabou por ser um dos principais responsáveis pela adoção da Carta de Direitos e do fortalecimento do controle judicial.

Além disso, seu governo se opôs à inclusão da notwithstanding clause (cláusula não obstante ou derrogatória) na Carta do Canadá, a provisão

que acabou por ser incluída na Carta e que permite a limitação formal às liberdades fundamentais, devido processo legal e direitos de igualdade protegidos pela Carta canadense, que podem ser suspensos pelas assembleias provinciais ou parlamento federal através de uma lei anulatória por um período renovável de até cinco anos.

Em franco contraste com a oposição à cláusula derrogatória, o governo de Trudeau insistiu na aprovação da Seção 23, que impõe obrigações aos governos provinciais de facilitar e custear o ensino de línguas para as minorias, evitando assim, a intenção de Quebec de obrigar os imigrantes da província a entrarem no sistema educacional francês.

E, todos os outros direitos à língua foram formalmente excluídos da cláusula derrogatória tornando evidente a guerra constitucional do governo federal contra o movimento separatista de Quebec e a célebre Lei 101.

A Carta da Língua Francesa, ou seja, a Lei 101 é uma lei-quadro da província do Quebec, Canadá que definiu os direitos linguísticos dos cidadãos do Quebec e faz do francês, a língua da maioria dos habitantes, a única língua oficial na província.

Também em Israel, deu-se a delegação de autoridade à Suprema Corte que esteve muito ligada à inclinação geral da Corte de julgar de acordo com as propensões ideológicas e culturais hegemônicas. E, apesar da composição da Corte ser formada por Juízes representantes das Províncias (três de Ontário, três de Quebec, dois das províncias ocidentais e outro das províncias marítimas), o processo de seleção e nomeação é controlado somente pelo governo federal e pelo Primeiro-Ministro.

Por convenção, o Presidente da Corte Judicial é o mais velho entre os juízes, mas no período de cristalização do empoderamento do judiciário canadense, o Primeiro-Ministro Trudeau ignorou tal regra e nomeou o juiz Bora Laskin para a presidência, obtendo assim enormes dividendos políticos, já que seu mandado entre 1973 a 1984, um dos mais tumultuados  períodos da história política do Canadá, e foi verdadeiro divisor de águas em termos de ativismo judicial transformando a Corte canadense num dos maiores órgãos de decisão política no Canadá atual e, que vem favorecendo os valore e políticas adotados pelo governo nacional canadense, em detrimento da autonomia política provincial.

Igualmente, as decisões da Corte nas derradeiras décadas refletem e promovem um conjunto de tendências culturais, padrões morais e preferências políticas hegemônicas, impostas sobre uma sociedade na sua essência excepcionalmente diversa, multiétnica, multicultural e multilinguística, com treze províncias e territórios que se estendem do Atlântico ao Pacífico ao Oceano Ártico. E, afora isso, o doutrinador nota uma prevalência das ideias hegemônicas de liberdade "negativa" sobre as noções progressivas de justiça distributiva.

Quanto à Quebec, por exemplo, a Corte já decidiu, em 1998, pela inconstitucionalidade, tanto sob a ótica nacional quanto internacional, de uma separação unilateral da província. Ao mesmo tempo, a Corte assegura a política federal de  garantia dos direitos das minorias linguísticas em relação à educação e língua.

Conforme ocorreu em Israel, a transferência de poder para Corte Suprema pode ser creditada, parcialmente, à sua reputação de competente, íntegra, imparcial politicamente. O que difere da experiência de Israel, contudo, pesquisas indicam que houve apenas um pequeno declínio da percepção de legitimidade da Corte, ao menos entre os canadenses anglófilos, apesar de sua emergência como órgão de decisão política.

Já no caso da Nova Zelândia a respeito das origens da revolução de direitos de 1990, Hirschl identifica que a promulgação da declaração de direitos neozelandesa em 1990 marcou uma mudança abrupta no equilíbrio entre os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo no país e simbolizou a falência do que foi chamado de último sistema de Westminster (sistema britânico de democracia majoritária). Juntamente com outras novas leis de liberdades civis, a declaração de direitos, pretendeu dar uma blindagem a uma série de liberdades fundamentais contra as vicissitudes de um sistema político cada vez mais volátil.

O potente sistema de constitucionalização dos direitos da Nova Zelândia foi resultante de coalização de atores econômicos pressionando por reformas neoliberais em conjunto com outros setores das elites, buscando preservar e ainda, reforçar seu poder diante da crescente presença de interesses periféricos no âmbito de decisão política majoritária.

Ao fim dos anos de 1990, a Constituição da Neozelandesa reprisou o sistema parlamentar britânico e sua tradição de common law (direito consuetudinário) em quase todos os aspectos, mas, no início dos anos de 1970, o estável sistema política neozelandês e mudanças econômicas internacionais.

E, assim, fatos como o enfraquecimento dos tradicionais liames comerciais com a Grã-Bretanha, destino da minoria das exportações do país nos anos de 1950 e 1960, quando aquela estreitou os vínculos comerciais com a Europa, obrigando a elite econômica neozelandesa a procurar novos mercados tais como a Austrália, Singapura e Hong Kong e, a significativa mudança na produção de bens no país, que deixou de produzir basicamente lã, carne e laticínios para enfatizar os setores da pesca, frutas tropicais e turismo.

E, para financiar toda essa mudança estrutural na produção do país, o governo teve que emprestar enormes quantidades de recursos financeiros de fontes internacionais e o gasto público teve que ser drasticamente reduzido, tornando inevitável a transição da versão local do Estado Bem-Estar Social para uma ordem econômica neoliberal.

O modelo de Estado do Bem-estar que emergiu na segunda metade do século XX na Europa Ocidental e se estendeu para outras regiões e países chegou  ao auge na década de 1960. No transcurso dos anos 70, porém, esse modelo de Estado entrou em crise.

Assinale-se que entre 1984 a 1994, a Nova Zelândia passou por reforma econômica radical e mudou do seu antes extremamente protegido e regulado sistema econômico para a total abertura de mercado tão preconizada pelo neoliberalismo. Tão extrema a transição que é usada como exemplo na literatura político-econômica internacional.

 Essa mudança histórica foi marcada pela promulgação de uma série de leis restringindo o poder governamental de intervenção na economia e na esfera privada, o que trouxe uma extensa desregulamentação e privatização das indústrias de telecomunicações, transportes, silvicultura e turismo, remoção de barreiras para importação e exportação de bens e serviços e fim dos subsídios aos setores manufatureiro, de processamento de alimentos e agricultura, despedidas em larga escala no setor público, a mercantilização de numerosos serviços sociais, incluindo serviços bancários, de assistência social, educação, saúde, moradia, operando uma severa erosão nos sindicatos trabalhistas e negociações coletivas e um encorajamento ativo de investimentos e propriedade a estrangeiros.

Durante o mesmo período, a Nova Zelândia testemunhou crescimento dramático na desigualdade econômica e social e o crescimento grande de propriedade estrangeira, de ativos corporativos, mídia e serviços públicos, bem como acentuada queda nas filiações sindicais.

No âmbito político, todas essas mudanças foram influenciadas e refletiram no surgimento de novos partidos políticos representando posição explicitamente neoliberal, como por exemplo, o New Zeland Party, que logo se tornou a terceira força política do país, na adoção de posições econômicas favoráveis aos mercados por parte do conservador National Party, e uma célere conversão do neoliberalismo do consagrado Labour Party.

A ascensão do neoliberalismo durante os anos oitenta fora acompanhada pela progressiva presença de outros interesses na pauta pública neozelandesa, tal como o crescimento das populações de outros grupos étnicos que não os de descendentes de europeus, assim como os Maoris, pessoas originadas das Ilhas do Pacífico e os descendentes de asiáticos.

No caso específico das maiorias, a população original da Nova Zelândia, observou-se no final dos anos oitenta, uma crescente consciência sobre o significado do Tratado Waitangi (Pacto entre os Chefes Maori e os britânicos) que abriu espaço para a colonização europeia) e das suas queixas não resolvidas, especialmente, no que se refere à injusta expropriação de suas terras. O que acarretou a expansão da jurisdição do Tribunal de Waitangi, em 1985, permitindo a inclusão de reclamações posteriores a 1840, apenas o período depós de 1975 era permitido pela legislação anterior.

Enfim, as demandas do povo Maori por redistribuição justa de terras, territórios de pesca e de recursos naturais, bem como digno tratamento de sua linguagem e herança cultural coincidiu com crescentes demandas dos imigrantes da Ilha do Pacífico, Ásia e Mediterrâneo pela adoção de políticas públicas multiculturais para educação, língua e, também, dos ambientalistas, feministas e militantes de movimentos antinucleares.

Em Israel, as forças minoritárias igualmente aumentaram rapidamente sua representação parlamentar, operando o colapso do apoio aos dois maiores partidos políticos do país, que foi acompanhado por crescente volatilidade eleitoral, e pelo declínio nas filiações partidárias dos maiores partidos políticos.

A burguesia branca se viu ameaçada em seu controle sobre as mais importantes áreas de decisão, a política, e seguiu-se, a pressão pelo empoderamento do Judiciário.

Geoffrey Palmer, o Ministro da Justiça entre 1984-1989, e Primeiro-Ministro entre 1989 a 1990 apesar de ter advertido sobre os perigos da adoção da Carta de Direitos enquanto ainda era jovem acadêmico, iniciou e liderou duas décadas depois a transferência de poder ao Judiciário na Nova Zelândia através da promulgação da Declaração de Direitos da Nova Zelândia de 1990.

Os mesmos políticos que introduziram ampla reforma econômica neoliberal na Nova Zelândia em 1984, bem como outros políticos representando as preferências políticas de eleitores brancos, urbanos e de alta renda, reagiram às mudanças das condições demográficas e econômicas e à crescente pressão política popular sobre os representantes majoritários, iniciando e executando o que chamaram de revolução dos direitos da Nova Zelândia, cujo símbolo mor foi a promulgação da declaração de direitos de 1990.

Destacamos que Corte Constitucional tem interpretado generosamente seus poderes sob a égide da declaração de direitos, tornando-a quase tão efetiva quanto seria se caso fosse aprovada a proposta original que defendia uma lei suprema totalmente consolidada e controladora de toda legislação parlamentar através de revisão judicial.

Em conclusão, Hirschl afirma que em conjunto com outras leis posteriores, como Human Rights Act e Privacy Act, de 1993, a declaração de direitos neozelandesa serviu não somente para elevar o número de direitos e liberdades civis clássicas ao nível constitucional, mas também para delegar o poder de decisão político do Parlamento para o Judiciário, o que se deu com amplo apoio da elite judicial e das oligarquias políticas, com o fito de preservar sua hegemonia e ampliar sua influência no resultado das decisões políticas.

Quanto a África do Sul, Hirschl apresenta o cenário de luta da elite branca sul-africana do fim dos anos oitenta e início dos anos noventa para assegurar a inclusão de uma declaração de direitos consolidados e uma Corte Constitucional ativa no pacto pós-apartheid, como mais uma confirmação da sua tese da preservação hegemônica.

A situação dos direitos humanos na África do Sul, do século passado, só pode ser chamada de terrível e o regime de apartheid que simbolizou o derradeiro legado do colonialismo europeu e da supremacia branca na era do pós-segunda grande guerra mundial.

É sabido que o sistema político controlado pelo Partido Nacional, serviu até o início dos anos de 1990, não apenas para reforçar os direitos da população branca, mas também, para privar a população negra de seus direitos humanos mais básicos.

As políticas discriminatórias incluíram, entre outas medidas, a categorização racial da população (Population Registration Act, 1950), proibição de relações sexuais e casamento interracial, criação de guetos raciais e a alocação quase exclusiva de recursos para as comunidades brancas que representavam na ocasião apenas 1/7 da população.

A África do Sul teve três Constituições apenas, a de 1910, 1961 e 1983 até a promulgação da Constituição provisória de 1993, substituída pela versão final em 1996 e todas estas eram direcionadas quase totalmente à minoria branca, cristã, africâner, sem tomar conhecimento da natureza multicultural e multilinguística da sociedade sul-africana.

Foi durante todo o século XX deu-se a consistente e sistemática oposição das elites dominantes a uma Declaração de Direitos e, ainda, o estabelecimento de controle judicial  ativo, defendendo-se a soberania do Parlamento, ao argumento, advogado pelo Partido nacional de que a ênfase em interesses individuais seria incompatíveis com a tradição política e religiosa da sociedade africâner, cujo mote estaria no Estado e, em outros interesses supostamente comunitários.

No princípio dos anos oitenta, contudo, houve uma crise do apartheid, o que tornou insustentável mantê-lo através do labirinto de controles sociais em meio a massiva violência continuada e a recessão econômica.

E quando os profissionais brancos começaram a emigrar nos anos setenta e oitenta, o país se viu privado de mão de obra qualificada para operar sua sofisticada economia. E, não obstante a forte presença de corporações multinacionais, que sempre enxergaram na África do Sul como espécie de mina de ouro, as pressões internacionais em forma de sanções diplomáticas e econômicas sinalizaram ao Partido Nacional a grande necessidade de se abolir ao menos algumas das políticas do apartheid.

A Constituição africana de 1983 serviu de marco inicial deste processo de inclusão dos negros e mestiços bem como os indianos num sistema parlamentar tricameral. E, dois mecanismos garantiam, contudo, que o poder permanecesse ainda em mãos do partido branco dominante, a saber: a governança centralizada na figura do Presidente da República, que detinha enorme poder decisório tanto na seara executiva como na legislativa.

E, em segundo lugar, a contagem de votos para as decisões significativas na proporção de 4:1:1, determinando sempre a prevalência da Casa Legislativa branca. E, as reações adversas das duas comunidades minoritárias representadas, bem como a escalada de rebelião na comunidade negra que selaram o destino da Constituição africana de 1983 e da ideia de manter a hegemonia branca por meio da supremacia parlamentar.

A segregação racial legalizada e sustentada repressivamente estava com dias contados e, assim ficou impossível manter o apartheid através da força, pois os detentores do poder econômico, entre a elite branca passaram a defender as virtudes de uma Declaração de Direitos e de um judicial review. O governo do apartheid esperava, dessa forma, manter alguns privilégios desfrutáveis por tantas décadas pelos brancos.

Em 1986, apenas dois anos depois de ter proclamado a incompatibilidade de uma carta de direitos com o sistema africâner de governo, o Ministro da Justiça, H. J. Coetsee determinou que a Comissão de Direito sul-africana (Law Commission) fizesse um estudo sobre direitos humanos e direitos de grupos. Em 1989, foram divulgados os resultados da pesquisa e opinou-se pela adoção de uma declaração de direitos, opinião que foi reiterada em 1991.

Já, em 1990, o Presidente de Klerk anunciava no Parlamento que a nova Constituição deveria conter uma Carta de Direitos.

O fim da proibição ao partido do Congresso Nacional Africano (ANC) e a libertação de Nelson Mandela reuniram pela primeira vez num engajamento conjunto das elites brancas e a maioria negra.

Procurava-se negociar uma transição democrática através da Convenção para uma África do Sul democrática em 1991, mas, as negociações falharam e forma interrompidas em meados de 1992 e, seguiu-se uma escalada da violência e um maciço levante social.

Em 1993, os partidos firmaram um acordo bilateral que previa uma transição democrática através da reforma constitucional, em duas fases, a saber: Constituição interina em 1993 e Constituição definitiva redigida pela Assembleia Constituinte em 1996.

Ambas trouxeram alterações sem precedentes na história constitucional do país: consolidação da supremacia constitucional e de uma Carta de Direitos soberana trazendo a possibilidade de serem declarados inválidos atos de governo legislativos e executivos que violarem direitos humanos fundamentais.

O estabelecimento de uma Corte Constitucional para proferir a derradeira palavra em matéria constitucional travou uma autêntica batalha em prol da constitucionalização de direitos na então nova África do Sul e orbitou em torno de divergências básicas, a saber:

1. escopo e alcance dos direitos de propriedade, o Partido Nacional defendia a garantia de forte proteção de direitos individuais de propriedade e do Congresso nacional africano ao revés requeria a garantia constitucional de ampla reforma agrária através de expropriações, acabou vencendo a garantia de propriedade;

2. direitos dos trabalhadores enquanto o Novo Partido defendia restrições aos direitos de greve que deveria ser constitucionalmente tutelado, mas o direito dos empregadores de lockout não, este acabou não sendo inserido, mas continuou a ser permitido por legislação infraconstitucional;

3. direitos educacionais de minorais linguísticas e foram excluídas as previsões de financiamento estatal de escolas unilinguísticas, principalmente, as instituições da língua africâner.

Enfim, a luta contra apartheid não se restringiu apenas à segregação legalizada e ao direito de voto, mas também,  à abismal desigualdade econômica e social, que estava entre as piores e mais cruéis do mundo, a minoria branca que correspondia a quinze por cento da população e que possuía cerca de oitenta e sete por cento de todas as terras e ganhava em média oito vezes mais que a maioria negra, aproximadamente setenta e cinco por cento da população.

O país com cinco por cento da população consumindo mais do que os outros oitenta e cinco por cento, o índice GINI medido era de 0,61, próximo ao que temos aqui no Brasil e na Nigéria, que são campeões em desigualdade social e econômica.

Em 1990, apenas pouco tempo depois antes da formal abolição do apartheid, noventa e cinco por cento do capital produtivo se encontrava sob o domínio de conglomerados brancos.

Mas, afinal, por que o ANC de Nelson Mandela, mesmo antes de Klerk em 1990, defendia as limitações constitucionais à soberania por meio de adoção de Declaração Constitucional de Direitos?

Para o citado cientista político canadense, deve-se à transformação do ANC de movimento revolucionário de oposição em partido político governante quando se deu a definitiva promulgação da Constituição em 1996, já contavam com mais de dois anos no poder, e também pelas pressões econômicas  internacionais que atuaram juntamente com a necessidade do ANC de evitar a grande fuga de capitais e atrair novos investimentos estrangeiros, impossível sem haver  garantia constitucional de direito de propriedade.

Há o apoio incondicional ao ANC na África do Sul que pode explicar ter renegado seu compromisso histórico em adotar regime constitucional progressista, orientado para a  redistribuição de renda. Não se pode cogitar, contudo, que o ANC tenha propriamente traído a revolução, o que de fato, não ocorreu. Mas, sim, deu-se amplo pacto, até em certa medida para evitar a revolução entre a nova elite política e o poder econômico.

Verificou-se que o governo do ANC não propôs até o momento, desapropriações em larga escala nem sequer promoveu alguma redistribuição econômica ou territorial significativa e mantendo ou ampliando a reforma econômica neoliberal, o que acarretou taxa de desemprego na ordem de trinta por cento, e crescente desilusão da população negra e pobre. The dream is over.(O sonho acabou).

Em 1996, lançou-se programa contendo medidas econômicas de espectro neoliberal o chamado GEAR - Growth, Employment and Redistribuction que reforçou a ênfase governamental no aperto fiscal, contenção, da inflação e promoção de exportações como forma de estimular a competitividade. E, a liberalização cambial, a privatização de empresas estatais e, etc., que foram metas econômicas cruciais e, ainda, a flexibilização do mercado de trabalho recomendada pelo GEAR, envolveu a desregulação do trabalho de mão de obra semi ou não especializada e a não sujeição de pequenas empresas à legislação trabalhista africana.

Tais medidas foram favoráveis ao mercado e foram acompanhadas pela erosão significativa da política do COSATU, Congress of South African Trade Unions, maior sindicato do país que era alinhado com o ANC e o partido comunista sul-africano.

Assim, como em diversos outros países, o ocorrido na África do Sul, ou em países  prestes a seres descolonizados, também para manter ou aumentar o poder de elites dominantes.

A Inglaterra, por exemplo, não desejou incorporar a Convenção Europeia de Direitos Humanos ao seu próprio sistema legal, e apoiou entusiasticamente a mesma incorporação dessas disposições às Constituições surgidas da independência de diversos países. Assim, assistimos a constitucionalização de Direitos em Gana, em 1957, na Nigéria em 1959 e no Quênia em 1960.

Enfim, para Hirschl, as revoluções constitucionais nos quatro países aludidos, enquanto diferentes entre si, seja em alcance e contexto, podem ser analisadas sob a perspectiva da preservação hegemônica, ou seja, do empoderamento judicial através da constitucionalização de direitos e estabelecimento de revisão judicial, que é, na maioria das vezes, estratégia consciente usada pelas elites políticas ameaçadas buscando sofregamente manter ou reforçar a sua hegemonia insulando as decisões políticas das pressões políticas populares apoiada por elite econômicas e judiciais com interesses compatíveis.

E, no Brasil observando a constitucionalização de direitos no pós-segunda Guerra Mundial, é exemplo do estabelecimento do judicial review como consequência de transição de um cenário quase-democrático ou ditatorial para o regime recém-democrático, uma fase chamada de single trasition ou transição singular.

Para o doutrinador canadense, a autolimitação consistente na transferência de poder do âmbito de decisão majoritária para as Cortes que, se por um lado, poderá parecer contra os interesses dos detentores do poder, tanto ao Executivo como no Legislativo, por outro lado, poderá significar reformas constitucionais aparentemente humanitárias, mas que mascaram a agenda neoliberal, numa eterna expectativa de manutenção do poder.

As vantagens para os detentores do poder político aponta para razões para que as elites políticas defendam a delegação de poder ao Judiciário, reduzindo o risco para si mesmas, através da transferência de responsabilidade decisória para as Cortes, evitando embates difíceis ou prolongados, ou até o colapso de um governo de coalização, a obstrução da implementação da própria agenda política, e o temor de perder o controle de sua própria pauta de políticas públicas, ou, no caso de oposição, para obstruir as ações governamentais.

Quanto maior for a hegemonia e controle de grupos políticos e econômicos sobre as searas de tomada de decisões políticas cruciais vão sendo ameaçadas por grupos periféricos e suas preferências políticas, será maior a possibilidade de transferência de poder ao Judiciário, principalmente, tendo em vista a sua boa reputação, sua retidão e imparcialidade política.

O Judiciário parece, ao menos em tese, capaz de decidir menos inclinado com tendências ideológicas e culturais hegemônicas. E, nesse raciocínio, as Cortes Judiciais somente protegeriam os interesses dos que não detém o poder, quando fossem convergentes com os valores e  interesses das elites detentoras do poder.

Afinal, o crescente protagonismo do Judiciário brasileiro no contemporâneo contexto político brasileiro, já alcançou a político, sendo fenômeno notório que não pode ser explicado apenas por avidez de poder dos julgadores e, dentro da intrincada relação interinstitucional entre os Poderes, pode-se identificar voluntária transferência por parte do Legislativo e do Executivo ao Judiciário.

A primeira onda de judicialização da política se marcou logo após a promulgação da Constituição brasileira de 1988, quando se deu crescente mobilização do Judiciário em todo os eu conjunto. E, o  nascimento de sentimento constitucional, ainda que incipiente, e fez florescer entre os órgãos que compõem suas várias instâncias uma postura mais ativa ou ativista na concretização dos preceitos contidos na Carta Magna.

E, diante do nítido caráter analítico da Constituição brasileira, surge o movimento que visa conferir maior efetividade às normas constitucionais e, ainda, proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade às decisões, seja no STF ou STJ, que possuem a tarefa determinada de proferir a adequada interpretação do sentido e da intenção do texto constitucional vigente. Eis que o STF se define como guardião da Constituição Federal brasileira vigente.

Desde a redemocratização, o país, vivencia-se  na derradeira década um crescente e acentuado protagonismo político do Judiciário que tanto se revela na judicialização da política, como dos debates que devem ocorrer na esfera pública e que são transferidos ao Judiciário.

E, assim, por meio do controle de constitucionalidade, profere as decisões as quais, em teoria, encerram os debates políticos, que, por vezes, não se deram, ou ocorrem de forma frágil e débil.

A explicação mais plausível do empoderamento do Judiciário é que seja voluntário, e que os próprios detentores do poder, econômico, político e social, que iniciam ou se abstém de bloquear tais reformas e que estimam que serve aos seus interesses sujeitar-se aos limites impostos pela intervenção judicial na esfera política. Estão dispostos a pagar o preço e o custo do empoderamento judicial para que seja aperfeiçoada a juristocracia.

Inúmeras vezes, o STF manifestou em nítida judicialização da política, quando STF decidiu sobre o aborto dos anencéfalos, de quotas raciais no ensino pública, na pesquisa com células-tronco embrionárias e do reconhecimento das uniões homoafetivas como uniões estáveis, no casamento de homoafetivos e, até, na restrição de uso de armas[8] antes autorizadas por decretos presidenciais durante as eleições de 2022. A restrição de uso de imagens do Presidente da República que é candidato à reeleição para fins eleitoreiros de campanha.

Vide o Dossiê STF na Pandemia de Covid-19[9]. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/codi/anexo/Dossie_Covid_Eletronico.pdf  Acesso em 21.09.2022.

Infelizmente, boa parcela mais rica da população brasileira é muito resistente à redução de desigualdades sociais, econômicas e culturais, sendo neste sentido mais uma forma de preservação hegemônica das elites econômicas sendo capitaneadas pelo STF, possivelmente, não em casos concretos isolados, mas quando confrontado em demandas macroeconômicas, isto é, que possuem peso significativo na essência financeira e que tanto afetam, simultaneamente, tanto grandes parcelas da população, estabelecendo, assim, limites às conquistas desses grupos sociais em direção à inclusão social.

Enfim, a judicialização da política se refere a tendência mundial, associada a noção de protagonismo do Judiciário como natural efeito da constitucionalização de direitos e do próprio constitucionalismo. E, nas hipóteses analisadas por Hirschl para fundamentar a tese de preservação hegemônica fornecem nova perspectiva sobre a judicialização e podem ajudar a melhor entender o comportamento das Supremas Cortes no Mundo e no Brasil.

Referências

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WARAT, Luís Alberto. Introdução Geral ao Direito. 1ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

Notas:


[1] O pêndulo não para e seu movimento continuará para sempre, porém, o dispositivo não está isolado, sofrendo perda de energia. O pêndulo de Newton que é constituído de no mínimo, de cinco pêndulos de mesmo tamanho e massa subjacentes uns aos outros e estão presos na mesma estrutura. E, ficam a uma distância em que as esferas, mesmo quando em repouso encostam umas nas outas. Foi através desse pêndulo que Newton explicou conceitos como conceitos como a gravidade, a relação das forças que atuam num objeto, as Leis de Newton, além explicar sobre as colisões e conservação de energia. A origem da balança como símbolo do Direito e da justiça nos remete ao deus egípcio Osíris, que eram responsável de julgar o destino dos mortais já falecidos, pesando seus corações com o uso de uma balança diante da deusa Maat, a deusa da justiça.

[2] O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro dentro da organização do Estado e, suas funções englobam tanto o controle de constitucionalidade, assumindo o papel de guardião da Constituição Federal de 1988 até os crimes cometidos pelo Presidência da República. E na CPI da Covid-18 pode-se observar o envolvimento do STF em diversas etapas desse processo. Desde 1891 até os presentes dias, o STF perpassou seis constituições federais e testemunhou o crescimento e amadurecimento cívico do país. O Ministro Gilmar Mendes, em sua obra “Curso de Direito Constitucional”, ainda complementa: A nossa Carta da República atribui a função de uniformizar o entendimento da legislação infraconstitucional federal ao STJ, deixando a última palavra sobre temas constitucionais ao STF. O STF também faz o papel de tribunal da Federação quando aprecia representações para fins interventivos. Na ação direta de inconstitucionalidade (ADI), o STF é acionado com intuito de decidir se a norma é inconstitucional; ação declaratória de constitucionalidade (ADC) onde se busca declarar a constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo. Vale ressaltar que a ADC trata apenas de norma federal. Tem o dever de julgar e processar crimes comuns cometidos por alguns representantes políticos e administrativos, tais como: o Presidente da República; Vice-Presidente; Membro do Congresso nacional; Ministros do próprio STF; Procurador-Geral da República. E, em casos de conflito de competência entre tribunais superiores, tribunal superior e outros tribunais a este não vinculados, tribunal superior e juízos a este não vinculado. Julgamento de Recurso Ordinário, habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores se denegatória a decisão. O STF ainda julga os recursos relacionados aos remédios constitucionais. É entendimento do STF que o caso concreto que precise ter repercussão geral pode tramitar neste juízo. O STF é composto por onze ministros, sendo representado pelo Presidente do Tribunal, atualmente a Ministra Rosa Weber; Turmas que são constituídas por cinco integrantes, seu representante é o membro mais antigo. O mandato do Presidente do STF é por dois anos, sendo a reeleição vedada. Existe o costume de se eleger os mais antigos ministros que ainda não ocuparam o cargo.

[3] A Teoria da Separação dos Poderes conhecida, também, como Sistema de Freios e Contrapesos, foi consagrada pelo pensador francês Charles-Louis de Secondat,  Baron de La Brède et de Montesquieu, na sua obra “O Espírito das leis”, com base nas obras de Aristóteles (Política) e de John Locke  (Segundo Tratado do Governo Civil), no período da Revolução Francesa. Montesquieu permeando as ideias desses pensadores e, com isso, explica, amplia e sistematiza, com grande percuciência, a divisão dos poderes. A Teoria da Separação dos Poderes moderna surgiu na época da formação do Estado Liberal,  a partir da ideia da iniciativa livre e da menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Hoje, essa tripartição clássica dos poderes está consolidada pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. A ideia da divisão de poderes seria para evitar a concentração absoluta do poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto, que precede as revoluções burguesas, buscando evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos indivíduos.

[4] O Poder Judiciário, por sua vez, não tem faculdade atribuída, pois para Montesquieu, sua função era considerada restrita. (MONTESQUIEU, 1998). Até Montesquieu, não havia consenso quanto à forma mais adequada para a Separação dos Poderes. Ocorre que, após “O Espírito das Leis”, os Estados  adotaram sua corrente tripartite como garantia das liberdades individuais, de forma a fazerem a separação tripartida constar, até os dias de hoje,  nos textos constitucionais de países democráticos.

[5] A primeira experiência neoliberal que se iniciou antes da inglesa, situa-se na América Latina, no Chile quando do golpe militar que destituiu e matou o então Presidente Salvador Allende e levou a implementação do receituário econômico dos Chicago Boys.

[6] Neoliberalismo é modelo político e econômico de nosso tempo. Apesar de que o uso do termo adquiriu múltiplos significados, entre os quais o monetarismo, neoconservadorismo, Consenso de Washington e a reforma de mercado. As pesquisas indicam que entre 1980 a 2005, o termo era pouco usado, mas passou a ser mencionado em mais de mil artigos por ano. Há pelo menos três frentes principais para se obter conceito de neoliberalismo: a) teoria e prática econômica (é entendido como projeto político de restabelecimento de condições de acumulação do capital e restauração do poder das elites econômicas); b) teoria política que congrega políticas governamentais e modelos de Estado; c) ética neoliberal que é individualista e se pauta em visão de vida em cada um é responsável por sua própria vida e situação socioeconômica. Ultimamente, o termo tem absorvido conotações negativas e fora cunhado em 1938 pelos participantes do Colóquio Walter Lippmann, em Paris, que se lançavam como neoliberais. O Congresso se deu por ocasião do lançamento do livro de Lippmann em francês: La cité libre. Era crítica ao estatismo e ao coletivismo, associando-os ao totalitarismo. Lançou também crítica aos liberais clássicos como John Stuart MIll e ao laissez-faire, que estariam superados.

[7] O Estado do Bem-Estar foi definido após a Segunda Guerra Mundial e, teve sua evolução intimamente relacionada ao processo de industrialização e os problemas sociais gerados a partir dele. A Grã-Bretanha foi o país que se destacou na construção do Estado do Bem- Estar com a aprovação em 1942, de uma série de providências nas áreas da saúde e escolarização. Deu-se vertiginosa ampliação dos serviços assistenciais públicos, abarcando as áreas de renda, habitação, saúde, educação e previdência social, entre outas. E, além da prestação de serviços sociais, o Estado do Bem-Estar Social passou a intervir firmemente na área econômica, de forma regulamentar praticamente todas as atividades produtivas a fim de assegurar a geração de riquezas materiais junto com a diminuição de desigualdades sociais.

[8] Vide: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/20/stf-tem-maioria-para-manter-limitacao-a-decretos-de-bolsonaro-sobre-compra-de-armas-e municao.ghtml?utm_source=meio&utm_medium=email


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Juristocracia Estado Democrático de Direito Estado de Bem-Estar Social Constitucionalização CF

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