O Estado de Coisas Inconstitucional na visão do constitucionalista Leonardo Sarmento em proposta inovadora

O Estado de Coisas Inconstitucional em perspectiva adaptada: o fundamental papel do STF

Fonte: Leonardo Sarmento

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Trataremos do grande tema do Direito Constitucional atual, temática de imperiosa compreensão ainda de contornos embrionários em terra brasilis. Ousamos entrementes, propor um novo papel ao Supremo Tribunal Federal no trato do instituto, que se faria mais ousado e determinante de um novo modelo de Brasil, um Supremo de uma agenda positiva em busca da reconquista da credibilidade perdida pelo país.


O STF no julgamento da Medida Cautelar na ADPF 347, de relatoria do ministro Marco Aurélio, como requerente o PSOL, requereu que fosse o sistema penitenciário brasileiro declarado um Estado de Coisas Inconstitucional, seguindo o modelo da Corte Constitucional colombiana.


A própria Corte Constitucional colombiana, na decisão T 025/2004, sistematizou 6 condições que apresentar-se-iam como requisitos para uma declaração da existência de um Estado de Coisas Inconstitucional: (A) violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais, capaz de afetar um número significativo de pessoas; (B) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir os direitos; (C) a adoção de práticas inconstitucionais a gerar, por exemplo, a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela judicial para a obtenção do direito; (D) a não adoção de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos; (E) a existência de um problema social cuja solução depende da intervenção de várias entidades, da adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e da disponibilização de recursos adicionais consideráveis; (F) a possibilidade de um congestionamento do sistema judicial, caso ocorra uma procura massiva pela proteção jurídica.


O item (D) nos interessa para este trabalho, para nossa proposta.


Importante, que com a declaração da Corte Constitucional do Estado de Coisas Inconstitucional a questão ganha dimensões erga omnes, sai da esfera individual do pleiteante A e B para a busca da resolução do problema em relação à todos os afetados.


Duas ponderações contrárias foram aduzidas 1. O STF não possuiria legitimidade democrática e institucional para adotar as medidas pleiteadas; 2. O sistema carcerário colombiano (de onde se importou o Estado de Coisas Inconstitucional) não obteve a melhora esperada, e por isso a incorporação do instituto ao Brasil não seria considerada boa medida.


Em momento algum a posição defendida pelo ministro Marco Aurélio foi pela necessidade de uma interferência brusca quando se busca a implementação de políticas públicas, mas o diálogo e o controle da execução das medidas, a criação de obrigações de resultado e seu monitoramento, nada que se afaste de um modelo de "check's in balances", quando o Judiciário fiscalizaria o funcionamento e a execução de algo que possui inexorável interesse público, que é o restabelecimento dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, mas violados pelo sistema carcomido da política.


O grau de intervenção do Judiciário irá variar à depender do estágio de abandono da questão que se declarou o Estado de inconstitucionalidade, da mensuração do estado de vulnerabilidade dos que foram sonegados direitos, do grau de essencialidade do direito, mas sempre em uma perspectiva de cooperação, de diálogos institucionais para que os órgão competentes, com atribuições específicas originárias cumpram as suas funções, que possam agir nos termos planejados para a reconstrução do modelo constitucional.


O judiciário é legítimo interessado na resolução da questão inconstitucional que se tornou uma massiva violação, pois cada um dos violados passa a possuir um direito subjetivo de ação que irá desembocar no Judiciário, que se verá obrigado atuar de forma fragmentada, emitindo soluções para cada caso individual de violação. É por isso que quando a violação sistematizou-se a atuação do Judiciário deve ser mais interventiva, mais imperativa, com o fulcro de resolver a questão para todos e com a colaboração de todos que com a situação guardem responsabilidade, para isso da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional.


O Estado de Coisas Inconstitucional não poderia e nem poderá ser declarado em hipótese alguma de uma forma vulgar ou leviana (irresponsável sem mensuração de consequências), revela-se sim, medida de caráter absolutamente excepcional. Há que estar necessariamente comprovado desvios de finalidades capazes de alterar de forma insustentável o gozo de direitos fundamentais protegidos como cláusulas pétreas pela nossa ordem constitucional, por ação ou omissão contrária ao que os direitos fundamentais buscam tutelar, necessária a existência de uma violação massiva dos direitos fundamentais que se perceba já sistematizada. Desta forma, o Judiciário funcionaria de forma extraordinária dialogando para ajustar ao modelo de proteção constitucional os desvios de finalidade que comprometem o melhor funcionamento do Estado nos temos constitucionais. O Judiciário neste pepel cumpre um mister de viés objetivo para a garantia da implementação da vontade constitucional e o restabelecimento dos direitos constitucionais fundamentais claramente vilipendiados em caráter sistêmico.


O Judiciário perceberá o estado de omissão ou comissão inconstitucional e a partir de um diálogo institucional procurará coordenar as politicas para que o Estado constitucional reste restabelecido. É em verdade um trabalho conjunto e não uma interferência impositiva do Judiciário capaz de retirar uma atribuição originária constitucional, como assentamos. Não vemos, à princípio, qualquer ativismo judicial odioso, mas sim o que denominamos de ativismo judicial constitucionalizado, pois como asseveramos, fundamenta-se na busca pela efetividade dos direitos fundamentais através de um dialogo institucional necessário, e não por abruptas interferências na execução da política pública, quando de fato usurparia competência constitucional e podere-se-ia cogitar de um ativismo judicial odioso.


Importante ter em mente, conforme assentamos, que revela-se imperioso encontrar-se uma situação que se aproxime do caos, quando um incontável número de indivíduos tem os seus direitos fundamentais violados e se percebe claramente a falência (por ação ou omissão) da política pública que se pratica ou se deixa de praticar. Não são violações pontuais que legitimam a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional, mas sim desvios já enraizados e difundidos dentro do sistema, quando os diálogos institucionais não acontecem e se diagnostica que a ausência deste dialogo compromete a finalidade constitucional fundamental.


O Judiciário cumprirá este papel de aproximação das instituições necessárias para a coordenação da execução dos direitos fundamentais lesionados, não lhe cabendo o papel de executor, mas de mediador e controlador do plano de metas traçado.


O Brasil tem elevadíssimo número de Estados de Coisas Inconstitucional. Possui quadros de violação massiva e contínua de direitos fundamentais decorrentes e agravadas por omissões e bloqueios políticos e institucionais que parecem insuperáveis: saneamento básico, saúde pública em diferentes estados e municípios, violência urbana em diversas regiões metropolitanas, educação, sistema carcerário (já reconhecido no STF), consumo de crack, mobilidade urbana em grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, e não se esgota nestas.


Embora ainda não cogitado por articulistas e doutrinadores, até onde temos conhecimento, o mais agravado Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) que percebemos no Brasil está na política, em sua putrefata prática sistêmica (em um entendimento mais ampliado que nos permitimos diagnosticar) de disseminação de um produto inconstitucional que se busca manter na clandestinidade. A política tornou-se a raiz das mais hostis e vulneradoras violações aos direitos fundamentais de forma sistematizada. São de suas más práticas que, por exemplo, são propiciados os grandes desvios de finalidade de verbas orçamentárias que garantiriam prestações positivas de direitos fundamentais capazes de ofertar dignidades. A omissão das autoridades não apenas na repressão deste sistema corrompido, mas principalmente na prevenção, fiscalização e controle, sistematizou-se como um grande pacto de impunidade no melhor estilo “bundalelê”.


A necessidade pela busca de soluções, como por exemplo, agregando valor às instituições de controle, conferindo-lhes independência para atuarem sem interferências políticas destrutivas seria uma forma de se iniciar a promoção de um profundo processo de moralização do sistema. As funções de Poder estão em absoluto colapso institucional, que tem sua raiz em uma profunda crise moral, quando não concebemos mais a existência de qualquer harmonia e temos dificuldades em perceber independência (ou nos termos de uma leitura contemporânea – interdependência), nos termos do art. 2º caput da CRFB.


O Supremo Tribunal Federal poderia de fato dar o start deste processo declarando as funções Executiva e Legislativa de Poder em Estado de Coisas Inconstitucional, e exigir à partir do diálogo institucional (em sentido cooperativo) mudanças nas práticas à muito deterioradas pela mais absoluta imoralidade. O fundamento encontraria substância no item (D) que destacamos ao início. De fato iríamos muito além da declaração pautada meramente na ceara dos direitos fundamentais como se denota da origem do instituto, iríamos na direção da pedra de toque que nos promove a putrefação de uma democracia ainda púbere, que nos faz menor, no ponto fulcral da nossa realidade entorpecida de uma promessa decadente e envelhecida, de onde boa parcela das inconstitucionalidades que adoecem o sistema e que refletem diretamente na prestação de direitos fundamentais se enraízam.


Não custa estabelecer que, embora uma declaração dirigida em face das funções políticas de Poder possa parecer ininteligível para alguns, tendo em vista não se tratarem de direitos fundamentais nos termos significativos primários do instituto, importante refletir que são estas funções políticas de poder que através de legislação regulamenta um direito fundamental para sua execução ou propriamente executa uma política de direito fundamental necessária garantidora de uma existência digna e protetora do mínimo existencial. Então, diretamente, são as funções Legislativa e Executiva de Poder as responsáveis pela consecução das políticas públicas garantidoras do Estado Constitucional Social, são elas em exato que implementam os direitos fundamentais constitucionalizados e que originalmente dão azo ao uso do instituto.


Cabe esclarecer que o intuito perpassa ao longe da burla ao princípio da Separação dos Poderes, pois não se trata de uma intervenção coercitiva, impositiva, ab initio, mas como temos colocado de um diálogo institucional coordenado pelo Supremo Tribunal Federal. Aqui é o que chamamos de ativismo judicial benéfico, nos termos do interesse público, no sentido de atividade judicial.


Por que não exigir uma ampla discussão com a sociedade e com as instituições políticas de poder à respeito da formulação de PECs para transformar nuclearmente as instituições com funções de fiscalizar, conferindo-lhes independência, sem interferências políticas? Por que não propor PECs que acabem com as indicações políticas para os tribunais e para as instituições de fiscalização, propondo nomeações através de um processo de meritocracia desinteressado da política, de comprovados bons serviços prestados, a partir de uma ficha comprovadamente limpa? Por que não propor o endurecimento das sanções contra mandatários que se desviarem da legalidade com o fito de burlar a lei para se autolocupletarem ou beneficiar terceiros companheiros, não apenas os sancionando ao final da apuração com máximo rigor, mas afastando-os (para que possam se defender sem interferências odiosas) de suas funções tão logo detectados consistentes indícios de desvios de suas finalidades públicas? Por que não mante-los afastados, e se condenados ao final sejam também automaticamente condenados à restituir os valores desviados e a remuneração percebida neste período de afastamento aos cofres públicos? Lembramos que, mandatários contam com a fidúcia da sociedade que lhes confere procuração para gerir o dinheiro que à todos pertence, e quando a confiança é quebrada termina com ela a legitimidade primária. Defendemos que o voto seja apenas uma parcial da legitimidade e não um cheque em branco da sociedade sem qualquer compromisso com a legalidade (lato sensu), que poderá ser perdida com o tempo caso o mandatário se desvie de suas funções constitucionais ou legais estabelecidas. Serviria o instituto para cooperar por uma reforma fiscal e previdenciária que o país necessita, para que projetos e propostas sejam enfrentados como prioridade nas Casas Políticas.


Entendemos serem inúmeras as intervenções cooperativas possíveis ao Supremo Tribunal Federal se de fato resolvessem implementar no direito pátrio o Estado de Coisais Inconstitucional (ECI), restando saber se haverá vontade política para talmister e até onde irá a ambição do Judiciário como curador dos valores constitucionais, se apenas um ativista nas questões de interesse do Governo Federal ou ativista nas questões de interesse da Constituição de 1988, nas questões do Brasil. Nosso pensar segue a trilha de um STF que deveria despir-se de sua porção político-partidária para atuar também livre das ardis interferências que as políticas de legendas promovem já quando da indicação de seus nomes ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal, o que deveria findar-se em absoluto, e desta forma vestir-se como protagonista e não mais somar-se como um dos antagonistas desta República, quando inviável nossa proposta.


Não custa infirmar a nossa realidade com um Executivo direta e indiretamente envolvido nos maiores escândalos de corrupção do mundo contemporâneo, que vergonhosamente trafica influências não pelo projeto de um país moderno e desenvolvido, mas por um país refém de um populismo eleitoreiro e corrupto que vem destruindo e desmoralizando a política, a economia e o bem-estar social. Temos um Legislativo venal, que corrompe e é corrompido na mesma proporção de seu interesse, que em absoluto se desgarra dos interesses constitucionais que tem a missão de representar, com poderes de perpetrar manobras de autobeneficiamento indelevelmente desvinculadas dos interesses de quem os elegeu para representar, o povo e os estados-membros.


É verdade também, que hoje temos um Judiciário, em especial um STF, contaminado pela política de partido, menos imbuído da defesa dos valores constitucionais e mais compromissado na blindagem dos antagonistas que os indicaram aos seus cargos. Estas conclusões lastimáveis são retiradas das reiteradas práticas que o Supremo em sua nova composição vem se prestando a defender, induzindo hermenêuticas oportunistas e de exceção claramente desvirtuadas do melhor direito, com “pedaladas constitucionais” denotando um STF com um ativismo ideológico indesejado.


É um momento de propostas por um novo Brasil, a nossa talvez flertando com a utopia por estarmos essencialmente aparelhados pelo que há de pior na política e pela falta de interesse em de fato alterar-se este quadro caótico de poder, mas sentimos que é hora de pensarmos em uma ruptura com este Estado de Coisas Inconstitucional que se tornou o Brasil, uma “revolução do bem”, e para isso, medida efetiva é o "ataque" a raiz fomentadora deste estado institucionalizado de crise, que como sabemos está umbilicalmente ligada à política. Uma República de dimensões continentais gerida como se uma republiqueta fosse, onde os interesses partidários e privatistas prevalecem, apequenando o Estado Democrático de Direito e o interesse público primário que em regra deveria prevalecer.


A grande dúvida seria a existência ou não de um STF apto para o enfrentamento das questões que propusemos, sendo certo que um STF mais comprometido com legendas de partidos, com planos de governos e menos com a sua missão de tutela da Constituição, um STF sem independência, certamente não contaria com a legitimidade necessária para o atendimento das finalidade que pensamos para uma declaração do estado de coisas inconstitucional da política. Teríamos o sujo limpando o mal lavado, quando a faxina teria por missão o atingimento de todos os antagonistas do Estado aí incluído nossa “Corte Constitucional” e inviabilizada estaria nossa proposta para este momento histórico fruto de uma debilidade moral sistematizada de poder.

Palavras-chave: CF Estado de Coisas STF Direito Constitucional Brasil

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1 Comentários

Moacyr Simioni Filho Consultor em Direito Público06/01/2016 18:28 Responder

Cirúrgico,contundente,oportuno e magnífico artigo! Parabéns,Professor!

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