Acerca da criação de um "Incidente de Uniformização de Jurisprudência" no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis

Evandro Pires de Lemos Júnior, Bacharel em Direito, Assessor do Juiz Coordenador dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.

Fonte: Evandro Pires de Lemos Júnior

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1. Linhas gerais sobre o tema

Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei, n.º 4.723-A, que pretende instituir um incidente de uniformização, no âmbito dos Juizados Especiais, a ser apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ.

Em apertada síntese, tal incidente seria possível sempre que Turmas Recursais, de diferentes Estados, apreciassem uma matéria de forma distinta. Ou seja, caso Juízes integrantes de Turmas Recursais dessem, à uma mesma Lei, interpretações diversas. Nessa situação, seria possível que se instaurasse tal incidente, para que o STJ definisse qual a interpretação que deveria ser dada àqueles casos.

Não há qualquer dúvida de que a aprovação desse projeto de lei causará profunda modificação no procedimento dos Juizados Especiais, chegando a afetar a efetividade dos princípios que norteiam a sua atividade.

É fato notório que o processamento de recursos no STJ é, inclusive por razões de ordem prática, demorado. Essa demora pode por em cheque a célere prestação jurisdicional, característica mor dos Juizados.

Ademias, como se verá a seguir, tal como consta no projeto, esse incidente teria profundas conseqüências para a própria interdependência do Poder Judiciário dos diversos Estados da Federação, estando, desse modo, eivado de manifesta inconstitucionalidade.

2. Breves considerações sobre o incidente de uniformização de jurisprudência

De plano, duas considerações são necessárias, primeiramente, abstraindo-se, ainda que temporariamente, à discussão de se esse incidente de uniformização de jurisprudência constitui ou não recurso, é do conhecimento de todos que de o nosso sistema jurídico-processual admite a existência de tal modalidade de incidente, expressamente prevista nos arts. 476 a 479 do CPC.

Fredie Diddier Jr. assinala que esse incidente faz parte de um "sistema de mecanismos processuais para a composição das divergências jurisprudenciais". Afirmando, ainda, que se trata de instituto que tende a comprovar o relevo dado à jurisprudência.

Ainda convém esclarecer que essa modalidade de "recurso" é conhecida no âmbito dos Juizados Especiais Federais, ex vi do art. 14 da lei 10.259, de 12.07.2001, que previu o pedido de uniformização de interpretação de lei federal, caso haja divergência entre decisões sobre questão de direito material e desde que essa divergência se apresente em julgados de Turmas Recursais sejam de uma mesma Região, ou seja, vinculadas a um mesmo Tribunal.

Logo, não há que se encenar qualquer assombro, com a pretensão de criação desse incidente, mesmo porque, a sua serventia, do mesmo modo, não é duvidosa, tendo em vista haver sólida base doutrinária esmiuçando a questão, todos apontando a importância desse instituto, bem como a sua melhor utilização para uma maior efetividade dos princípios norteadores do direito adjetivo.

De fato, é corolário da própria segurança jurídica da possibilidade da jurisprudência ser uniforme. A isso se prestam os recursos, dirigidos a Tribunais, sejam locais, sejam os Superiores.

É de extrema importância que a parte, ao ingressar com a demanda, tenha ao menos uma idéia da solução que costuma ser dada, com uma certa uniformidade, àquele tipo de causa. Essa ciência prévia, inclusive, teria o condão de, ao menos em parte, servir de freio para certas demandas, que se saberia não encontrar guarida no Poder Judiciário.

Assim, não se pode negar a importância e relevância do incidente de uniformização de jurisprudência. O que não se pode concordar é com a sua instituição descuidada, a sua criação deve ser realizada de modo a se harmonizar com os princípios que norteiam a atividade dos Juizados Especiais, o que não ocorre na proposta que consta no projeto de lei n.º 4.723-A.

3. Incidente de uniformização de jurisprudência e sua viabilidade nos procedimento dos Juizados Especiais

Em face da tramitação do referido projeto de lei n.º 4.723-A o ilustríssimo Dês. Rêmolo Letteriello, Desembargador do Matro Grosso do Sul, Presidente da Comissão de Juizados Especiais, encaminhou para os demais Tribunais um documento, em que propunha que se envidassem esforços para a sua não aprovação, ao tempo em que sugeriu que fosse criado, no âmbito de cada Estado, o referido incidente, por lei local.

Afirma que isso já foi feito no Estado do Mato Grosso do Sul, e aponta argumentos no sentido de que poderia o Estado-membro instituir, com fundamento no art. 24, X, da CF, recurso a ser utilizado apenas nos Juizados. Diz, ainda, que não haveria qualquer distinção ontológica entre os Juizados de Pequenas Causas e os atuais Juizados Especiais.

Todavia, a correspondência encaminhada pelo Des. Rêmolo Letteriello, em que pese o brilhantismo dos argumentos expostos, merece, a nosso sentir, algumas considerações complementares.

Primeiramente, e aqui trilhando o mesmo caminho por ele traçado, não parece adequado, tampouco constitucional, que se crie qualquer instituto jurídico que, sob o pálio de uniformizar a jurisprudência, crie a obrigação de vincular à interpretação dada pelo Poder Judiciário de um ente da federação, aquela dada por outro. Tal constitui patente inconstitucionalidade.

Ora, se a legislação local de um Estado-membro não se vincula pela legislação de outro, à exceção das normas gerais editadas pela União, as chamadas leis nacionais, tampouco os atos do Poder Executivo dependem de qualquer concordância com os de um outro ente, qualquer norma legal que viesse a criar a necessidade de vinculação de órgãos de diferentes entes federados feriria frontalmente o pacto federativo.

Nenhum dos Poderes, de qualquer dos entes da federação, pode ter sua atuação vinculada a outra coisa se não as normas constitucionais.

Não há como se pretender vincular a aplicação das normas jurídicas, feitas por um Magistrado em determinado Estado, a uma aplicação, realizada por um Magistrado em um outro Estado, que sequer encontra-se vinculado até a outro Tribunal. Essa vinculação feriria a autonomia dos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros.

Não se pode discutir essa autonomia, uma vez que é característica do Estado-membro, essa autonomia se dirige diretamente aos órgãos que o compõem e tem suas competências hauridas diretamente da Constituição.

De fato, e nisso não se pode afastar sequer um milímetro do que consta na justificativa que acompanha o já referenciado documento, uniformizar a jurisprudência é algo profundamente salutar para a melhoria da prestação jurisdicional. Contudo, para atender a esse desiderato, não se pode aceitar que se atropele os ditames constitucionais.

A melhor racionalização do processo não envolve apenas uma prestação jurisdicional mais célere, mas também uma boa qualidade nessa prestação, naquilo que a doutrina moderna tem chamado de "devido processo legal substantivo".

Conforme aponta a citada justificativa, o projeto de lei que intenta a criação de um incidente de uniformização de jurisprudência, no âmbito dos Juizados Especiais, para ser apreciado pelo STJ, não consegue passar por um juízo mais acurado de constitucionalidade, uma vez que fere princípios da constituição.

Nada obstante isso, do mesmo modo, atenta contra o instituto jurídico já consagrado, que prevê, primeiramente, que esse dissídio deve ser apurado dentro de um único órgão, além de que é o próprio órgão onde a divergência ocorreu que deve julgá-lo.

Alie-se a esses fatos a simples constatação de que, em face do elevadíssimo número de processos tramitando em todas as Turmas Recursais de Juizados Especiais do Brasil, tal incidente não conseguiria, sob hipótese alguma, uniformizar a jurisprudência nacional. Serviria tão somente para, como dito naquela justificativa e reiterado acima, protelar a prestação jurisdicional, impedindo que muitos processos fossem julgados e emperrando a máquina judiciária.

Em que pese tudo o que foi aqui exposto, não cremos que seja possível, a fim de sanar os problemas de divergências jurisprudenciais no âmbito das Turmas Recursais, criar-se um instituto de uniformização de jurisprudência, por meio de lei local, como propõe o Des. Rêmolo Letteriello, e parece que já o fez o Estado do Mato Grosso do Sul. Senão vejamos:

O incidente de uniformização de jurisprudência já possui, como dito, previsão expressa na legislação. Trata-se de instituto sui generis, uma vez que permite ao prolator de uma decisão, quando tenha sido prolatada outra, por órgão diverso vinculado ao mesmo Tribunal, em sentido diverso, consultar o plenário deste Tribunal, para saber qual dessas decisões é a mais correta.

Noutro sentido permite à parte de um processo, na existência de decisões conflitantes, tenha sido ela prolatada no processo em que em parte, tenha sido em processos anteriores, consultar o plenário do Tribunal a que seu processo encontra-se vinculado, do mesmo modo, qual das decisões conflitantes deve ser aplicada ao seu caso.

Da simples leitura do dispositivo legal tratado aqui, art. 476 do CPC, das duas uma, ou se constata que esse incidente, em que pese não estar sendo usado na prática, é de possível aplicação no âmbito dos Juizados Especiais, uma vez que as Turmas Recursais são integradas por Juizes, vinculadas a um Tribunal, ou então, uma vez que não se constitui simples procedimento, mas verdadeira matéria processual, em face do disposto no art. 22, I, da CF, apenas se poderia aguardar uma regulação por Lei federal, uma vez que é da competência privativa da União legislar sobre direito processual.

Com relação à primeira possibilidade, da aplicação do art. 476 do CPC às Turmas Recursais, não parece haver qualquer óbice legislativo para tanto. Ora, poderia muito bem um Juiz, num julgamento em Turma Recursal, uma vez constatando a existência de julgados conflitantes, solicitar que o Tribunal de Justiça solucionasse o conflito.

Não se estaria assim retirando a sua autonomia, tampouco diminuindo a definitividade de sua decisão de mérito, dado que somente seria possível ao Tribunal apontar, das soluções trazidas nos julgados das Turmas Recursais, qual a que deve ser mantida doravante. O que prevaleceria, ao final, seria uma decisão de alguma Turma Recursal, apenas ratificada pelo pleno do Tribunal de Justiça.

Do mesmo modo, qualquer parte no processo, em face da existência de divergências de Turmas, solicitaria que o Tribunal dirimisse a controvérsia, apontando qual das interpretações, dadas por diferentes Turmas, deveria prevalecer.

Não se nega que tal medida acarretaria demora na prestação jurisdicional, o que é ínsito a cada novo instituto criado, mas esse fato poderia ser atenuado pelo Regimento do Tribunal, que poderia prever alguma forma de preferência para os processos desse incidente nos julgamentos. Teria-se uma solução legal e já existente, sem se esperar pela "boa vontade" dos legisladores.

Doutra ponta, caso não se admitisse como válida a aplicação do art. 476 do CPC à sistemática dos Juizados. Nesse caso, estar-se-ia diante de um problema. Data maxima vênia, a solução pretendida pelo Des. Rêmolo Letteriello não nos parece viável. Em que pese o brilhantismo peculiar dos argumentos expostos, sem adentrar na questão da natureza jurídica do instituto do incidente de uniformização, se se trata de recurso ou não, mas de uma forma ou de outra, não é mero procedimento.

A sua criação claramente depende de norma que verse sobre matéria processual, e não procedimental como pretende o Excelentíssimo Desembargador. Considera-lhe simples procedimento é esvaziar-lhe a importância, principalmente que nosso processo tende a uma "desprocedimentalização", tal como facilmente se constata com atuais princípios, como o da instrumentalidade das formas.

A criação de tal incidente, uma vez que se trata de matéria processual, não pode ser realizada por norma local. Somente a União pode legislar sobre direito processual ex vi do art. 22, I da CF. Somente poderia o Estado, verbi gratia, após a criação desse incidente, determinar o modo como ele tramitaria internamente no Tribunal. Qualquer ato de criação manifestamente exorbita a competência legislativa estadual, invadindo a competência privativa federal.

Numa análise acurada dos dispositivos legais e constitucionais, percebe-se que não se vislumbra possível a aplicação do art. 24, X, da CF, que se refere aos Juizados de pequenas causas, sendo certo que, como leciona Uadi Lammêgo, há uma "diferença conceitual entre os juizados especiais e os juizados de pequenas causas", apontando em seguida que aos juizados especiais não se aplica a referida norma.

Além dessa posição doutrinária, há jurisprudência remansosa do STF no sentido de que aos juizados especiais não se deve aplicar as normas constitucionais que se referem aos juizados de pequenas causas.

Assim, resta claro que não haveria como o Estado-membro, sob o pálio de estar atuando de conformidade com a sua competência concorrente, regular matéria relativa a juizados especiais.

4. Conclusões

Tudo o que foi aqui exposto resulta claro que o projeto de lei n.º 4.723-A é não só prejudicial à atuação dos Juizados, atrasando na prestação jurisdicional, que é a principal característica desse modelo de Justiça, mas também padece de vícios de inconstitucionalidade, uma vez que fere o pacto federativo, cláusula pétrea, com a obrigatoriedade de vinculação entre decisões proferidas por diferentes órgãos judiciários.

Como sugestão para solucionar a celeuma, pose-se admitir como viável a aplicação do art. 476 no procedimento dos Juizados Especiais, em especial das Turmas Recursais, essa sim, podendo ser realizada por simples modificação nos Regimentos Internos dos Tribunais.

Registre-se que essa possibilidade, como referido anteriormente, não teria o condão de afastar das decisões dos Juízes o caráter definitivo, uma vez que o plenário do Tribunal apenas se restringiria a determinar qual decisão, dentre as prolatadas pelos diferentes Juízes de Juizados, deve ser tido como aplicável para os demais casos.

De toda sorte, resta claro que não se pode aceitar a proposta de que o Estado-membro crie, por lei local, um incidente, uma vez que se trata de matéria processual, da competência exclusiva da União, conforme dispõe o art. 22, I, da CF.

Referências Bibliogáficas:

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo; Editora Saraiva. p. 775

CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

 DIDIER JR, Fredie. e CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. Salvador: JusPODIVM, 2006. p. 369.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 24 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.


Notas:

* Evandro Pires de Lemos Júnior, Bacharel em Direito, Assessor do Juiz Coordenador dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. [ Voltar ]

1 - DIDIER JR, Fredie. e CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. Salvador: JusPODIVM, 2006. p. 369. Voltar

2 - Conf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 24 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. Ainda: CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.Voltar

3 - BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo; Editora Saraiva. p. 775Voltar

4 - Conf. ADI 1.127-MC, Rel. Min. Paulo Brossardo; HC 75.308, Rel. Min. Sydney Sanches.Voltar

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