PEC 8/2021: Harmonia entre o Legislativo e o Judiciário em risco?
Por Leonardo Sarmento
A tripartição de poderes proclaramada pelo Texto constitucional nos diz que os poderes devem ser exercidos de forma harmônica e independente. Em verdade entendemos mais preciso interpretarmos independentes, no sentido de interdependentes, pois nenhum dos "poderes" funciona sozinho, mas sim há uma cooperação entre os "poderes", por isso a harmonia como direito fundamental, "poderes" que em verdade são uno, para que se realizem as funções e atividades de uma República nos termos da organização constitucional estabelecida. Há sim, em cada um dos "poderes", uma atividade básico-essencial que não deve se comunicar em regra (há exceções expressas onde, por exemplo, o Legislativo julga e o Judiciário legisla atipicamente) mas a regra tipificada no texto constitucional é a das funções precípuas, em que o Judiciário precipuamente julgará, o Legistativo legislará e o executivo executará, suas atividades típicas, autoexplicativo.
Voltando ao termo interdependência, em algumas situações percebemos que atividades de uma das Casas de Poder interferem no funcionamento da outra ou mesmo que uma das Casas de poder é chamada a se manifestar em alguma necessidade de interesse público com repercussão na outra, ou ainda, em uma atividade de ordinária acaba por interferir em questões algumas vezes interpretadas como sendo de questão "interna corporis", o que pode gerar conflitos e desarmonias, pontuais, mas nem sempre. O princípio da Separação de Poderes ganha o protagonismo que lhe é inerente e acaba por ser o fiel da balança no deslinde do embate em muitas questões de hermenêuticas mais complexas.
A CCJ do Senado Federal aprovou proposta de emenda à Constituição que limita decisões monocráticas e pedidos de vista nos tribunais superiores. A PEC 8/2O21.
Referida PEC veda a concessão de decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei ou ato normativo com efeito geral ou que suspenda ato dos presidentes da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional. No caso de pedido formulado durante o recesso do Judiciário que implique a suspensão de eficácia de lei ou ato normativo, será permitido conceder decisão monocrática em casos de grave urgência ou risco de dano irreparável, porém o tribunal julgará esse caso em até 30 dias após a retomada dos trabalhos, sob pena de perda da eficácia da decisão. Processos no STF que peçam a suspensão da tramitação de proposições legislativas ou que possam afetar políticas públicas ou criar despesas para qualquer poder também ficarão submetidos à essas mesmas regras.
A PEC ainda traz, que quando forem deferidas decisões cautelares para assegurar determinados efeitos de uma decisão final ou para impedir atos que a prejudiquem em ações que peçam declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato, ou questionem descumprimento de preceito fundamental, o mérito da ação deve ser julgado em até 6 meses. Após esse prazo, ele passará a ter prioridade na pauta sobre os demais processos.
A PEC estabelece que as decisões monocráticas do STF que suspendam leis, atos do presidente da República e dos presidentes da Câmara e do Senado deixem de ser válidas. O texto impõe que essas ações devem ser votadas por pelo menos 6 dos 11 ministros.
Em alteração ao Regimento Interno em 2022, posterior ao texto original da PEC de 2021, a Corte definiu que as decisões liminares dos ministros precisam ser confirmadas pelos demais ministros da Corte em plenário virtual.
Nesse contexto, sem por ora nos apegamos às questões de constitucionalidade ou não da PEC, considerando ainda a alteração do RISTF a posteriori acima como uma melhoria, a proposta traz mudanças importantes que impedem alguns tipos de manobras monocráticas, que não raro atendem mais à interesses políticos, muitas vezes de raízes ideológico-partidárias, que propriamente ao interesse público constitucional de se oferecer a melhor prestação de justiça. Os Tribunais são por vocação essencialmente colegiados, e apenas por exceção deveriam pronunciar-se monocraticamente, deveriam abster-se de juízos monocráticos, em especial em situações de repercussão social relevante. Não é isso que se vê porém, quando inúmeras decisões relevantes são tomadas monocraticamente ferindo o princípio do Colegiado.
Outra alteração que busca a PEC toca ao tema "pedido de vistas". Sobre os pedidos de vistas feitos pelos ministros, que acontecem quando um magistrado suspende uma votação para apreciar os autos dos processos, a PEC propõe que eles devem ser feitos sempre de forma coletiva e tenham um prazo máximo de 6 meses para retorno ao plenário. Assim, se um ministro solicitar tempo extra para analisar um processo em julgamento, todos os ministros terão direito à vista.
No final do ano passado, os pedidos passaram a ter o prazo máximo de 3 meses, metade do que é proposto pela PEC. Passado esse tempo, o processo volta automaticamente ao plenário da Corte.
Nos termos da PEC, assim:
“Formulado pedido de vista, esta deve ser concedida coletivamente a todos os membros do colegiado, pelo prazo estabelecido na lei processual, não superior a seis meses, assegurada uma única nova concessão de vista pelo prazo de até três meses no curso dos julgamentos em que houver divergência entre os votos já proferidos”, expressa a PEC.
Novamente sem adentramos à questão da constitucionalidade ou não da PEC, a ideia de alteração é importante. Novamente ajuda na prevenção de privilégios quando os pedidos de vistas na prática revelavam-se sem prazo de retorno, assim retardando absurdamente as decisões finais em casos que se arrastam no tempo. Delimitar tempo razoável para vistas, e mais ainda, propiciar que o pedido de vista se estenda aos demais ministros que compõem o colegiado é medida de eficiência jurisdicional e de prevenção aos desvios de finalidade que os pedidos de vistas algumas vezes carregam, que é a apuração mais detalhada de questão que se revela com maior grau de complexidade e merecedora de uma análise mais acurada.
Ao fazermos uma análise crítica à PEC conforme introduzimos em nosso texto, a proposta promove indubitavelmente interferências de um dos poderes em outro, relativizado aqui o que já afirmamos ser o poder uno. Pela PEC o Legislativo interfere diretamente em procedimentos do Supremo Tribunal Federal açambarcados pelo Regimento Interno da Casa, que através deste perfaz também o "modus operandi" de seus processos e julgamentos.
Desta feita, interferências deste viés pretendido pela PEC podem ser sim percebidas como indevidas, atinentes a termos compreendidos como de "interna corporis", quando um poder não deveria imiscuir no outro. Tratam-se de temáticas em que o STF através do seu Regimento Interno dispõe de forma diversa para o seu próprio exercício constitucional. Entendido dessa forma, haveria uma agressão ao princípio fundamental da Separação do Poderes, enraizado no art. 2° da CRFB, e sim, uma de nossas Cláusulas Pétreas, nos lindes do art. 60, parágrafo 4° da Lei Maior, que não podem ser alteradas em sua parte essencial desnaturando-a. Seguindo essa interpretação, a PEC já nasceria sob a pecha da inconstitucionalidade.
Aqui vale lembrar das funções atípicas que os "Poderes" da República também praticam conforme mencionado de início. O Supremo também legisla nos termos constitucionais quando edita o seu Regimento Interno (RISTF). O Regimento Interno do Supremo estabelece a composição e a competência dos órgãos do STF, regula o processo e o julgamento dos feitos que lhe são atribuídos pela Constituição da República (aqui a PEC adentra) e a disciplina dos seus serviços. O RISTF trata da própria gestão da Casa.
Por outra perspectiva, em não se entendendo as alterações propostas pela PEC como vedadas pelo princípio da Separação de Poderes, em se entendendo pela legitimidade do Poder Legislativo em legislar sobre temas tratados expressamente pelo RISTF de forma diversa, não existiria falar em inconstitucionalidade da PEC em comento, tendo em vista ter o Regimento força de lei, portanto com base na Supremacia da Constituição, pela via de uma PEC, uma proposta de emenda constitucional poder-se-ia alterar o Regimento, de hierarquia infraconstitucional.
Em última análise, referida PEC será ou não constitucional à depender do entendimento que prevalecerá. Caso prevaleça a corrente que sustenta atingir o princípio da Separação dos Poderes, na forma que abordamos, a PEC será percebida inconstitucional no próprio Congresso ou terá declarada sua inconstitucionalidade pelo STF, se prevalecer que o Legislativo estaria legislando através de PEC de forma legitimada pela Constituição sobre lei infraconstitucional sem ferir a cláusula pétrea, a proposta terá chance de prosperar em boa parcela dos suas proposições.
Apostaria pela prevalência do entendimento de que a PEC fere sim o princípio da Separação dos Poderes por tratar de assunto regimental do Supremo Tribunal Federal pelas razões que aduzimos, senão reconhecida sua inconstitucionalidade no próprio Congresso, declarada pelo Supremo Tribunal Federal.