Remodelagem da Coisa Julgada

Por Gisele Leite.

Fonte: Gisele Leite

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Realmente a natureza jurídica da coisa julgada é um dos temas mais preocupantes de todo processo civil. E, as modernas teses a esse respeito podem ser divididas em substanciais e processuais, conforme se afirme que a coisa julgada influencia direta e imediatamente sobre a situação substancial preexistente, criando novas relações jurídicas materiais, ou, então, ao contrário, que ela apenas crie um vínculo para o juiz de todo processo futuro.

De acordo com Allorio, essa antítese é reflexo de outra, mais profunda, na qual se confrontam as maneiras opostas de explicar o telos processual, a saber: a) se ele é entendido como meio de atuação do Direito, e então é levado a propugnar uma doutrina processual da coisa julgada; ou b) se se reporta a destinação do processo à composição da lide ou qualquer outra realidade extraprocessual, haver-se-á de defender posição alinhada com a doutrina processual. (In: ALLORIO, Enrico. La cosa giudicata rispetto ai terzi. Milano: Giuffrè, 1935).

Tanto as teorias processuais como as substanciais sobre a coisa julgada são igualmente compatíveis, posto que cada qual apontaria para aspectos distintos do fenômeno, que teria uma dimensão de direito processual, configurada na coisa julgada formal e, também outra, de direito substancial, a coisa julgada material[1].

Foi Liebman o doutrinador de uma das preciosas lições sobre a coisa julgada que mais adquiriram aceitação por parte de vasto setor da doutrina italiana e brasileira. E, de acordo com doutrinador italiano, a coisa julgada é uma qualidade, a qualidade de imutabilidade[2] que se agrega ao comando da sentença e a seus efeitos.

Foi assim que Liebman refutou a concepção dominante na doutrina germânica, que identifica coisa julgada com os efeitos da sentença, quando esta não está mais sujeita às impugnações, efeito que seria o declaratório.

O Código Buzaid, na pessoa de seu autor, Alfredo Buzaid, o CPC de 1973 adotou o conceito de coisa julgado proposto por Liebman, embora o artigo 467 do diploma legal estabelecera que a coisa julgada é um efeito, ou, a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita ao recurso ordinário ou extraordinário.

Já advertia Giuseppe Chiovenda que a coisa julgada não tem nada em si de necessária e absoluta, visto que se pode encontrar sistemas jurídicos onde ela simplesmente não existe.

A coisa julgada no que se refere a família jurídica anglo-saxônica regida pela common law[3], se desconhece o instituto tal como aparece em sistemas jurídicos do civil law, já que o julgado tanto pode ser atacado em um mesmo processo, após seu pronunciamento, mediante moções (motion for a rehearing, motion to set aside a veridict, etc.)

Como também em outro processo, pelo colateral attack. Porém, isso não acarreta nenhum prejuízo ou mesmo inferiorização para a justiça norte-americana ou inglesa, que, em verdade, sob certos ângulos, até é mais eficiente que a nossa, a dos países da família romano-germânica.

Presenciamos amplamente que a coisa julgada vem sendo questionada, e até alguns doutrinadores afirmam que, nas demandas que versarem sobre direitos indisponíveis, como é o caso da ação de investigação de paternidade, o instituto da coisa julgada deverá ser revisto. E, especial, na investigatória de paternidade, quando muitos casos foram encerrados numa época quando sequer existia do DNA e, o exame que chega num resultado bem aproximada da paternidade, ou mesmo, quando as partes não dispunham de recursos financeiros para custeá-lo.

Foi José Augusto Delgado um dos doutrinadores que questionaram a coisa julgada, in litteris: "O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o Estado e como o seu  semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das instituições e a necessidade de se fazer cumprir  o império de um Estado de Direito centrado no cumprimento da Constituição Federal vigente que o rege e das leis com  ela compatíveis, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas, jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí  decorrentes, são fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o  fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo da moralidade e os limites  da legalidade, que afrontam os princípios da Carta Magna vigente e que teimam em desconhecer o estado natural  das coisas e das relações entre os homens[4].

A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos fenômenos instáveis supra citados, não pode espelhar a força absoluta que lhe tem sido dada, sob o único argumento que há de se fazer valer o império da segurança jurídica. Há de se ter como certo que a segurança jurídica deve ser imposta.

Contudo, tal segurança jurídica cede quando princípios de maior hierarquia postos no ordenamento jurídico são violados pela sentença, por, acima de todo esse aparato de estabilidade jurídica, ser necessário prevalecer o sentimento do justo e da confiabilidade nas instituições[5].

A sentença não pode expressar comando acima das regras postas na Constituição, nem violentar os caminhos da natureza, quando, por exemplo, determinando que alguém seja filho de outrem, quando a ciência demonstra que não o é. Será que a sentença, mesmo transitada em julgado, tem valor maior que a regra científica? É dado ao juiz esse ‘poder’ absoluto de contrariar a própria ciência? A resposta, com certeza é de cunho negativo.

A sentença trânsita em julgado, em época alguma, pode, por exemplo, ser considerada definitiva e produtora de efeitos concretos, quando determinar, com base exclusivamente em provas testemunhais e documentais, que alguém é filho de determinada pessoa e, posteriormente, exame de DNA comprove o contrário."

Certamente que a proteção aos direitos fundamentais é de crucial importância no ámbito de todo sistema jurídico. Em contrapartida, o valor segurança é igualmente relevantes. E, muitos adeptos da tese da flexibilização da coisa julgada utilizam a proteção dos direitos fundamentais como "bandeira", mas terminam flexibilizando o instituto em outras circunstâncias onde não estão em jogo tais categorias de direito. Não é demasiado salientar que a tese da flexibilização fora deduzida pela primeira vez em prol da Fazenda Pública. E, não fora, naturalmente, para a tutela dos direitos fundamentais.

Entre nós, foi Ovídio Araújo Baptista da Silva um dos principais críticos à ideia abrangente de relativização da coisa julgada, In verbis: "Neste quadro cultural, não deve se surpreender que a instituição da coisa julgada, tida como sagrada na "primeira modernidade", entre em declínio. O fenômeno obedece à lei que tem presidido o mundo moderno.

Não deixa, porém, de ser curioso que o ataque à coisa julgada provenha da própria modernidade, levando em conta que a instituição fora concebida para atender à exigência primordial de segurança jurídica, condição básica para o desenvolvimento econômico, aspiração também moderna.

A coisa julgada, exageradamente abrangente, foi a âncora jurídica que possibilitou a construção do mundo industrial. Afinal, cabe perguntar, estaremos ainda vivendo a fase terminal da modernidade; ou, tendo-a ultrapassado, estaremos no pico de uma crise paradigmática, sem saber para onde vamos."

A lucidez do doutrinador foi árdua e firme ao sustentar que a injustiça por sentença, nunca foi nem poderá ser o fundamento hábil a afastar o império da coisa julgado. Realmente, há necessidade que os litígios não se eternizem, parecendo que o mais consistente entendimento é que, justamente, na eventualidade de que a própria sentença que houver reformado a anterior sob os pressupostos de conter injustiça, venha a ser mais uma vez questionada como injusta; e assim ad aeternum, sabido, como é que a justiça, não sendo valor absoluto, também possa variar, não apenas no tempo, mas entre as pessoas ligadas as diferentes crenças políticas, morais, religiosas, numa sociedade democrática que se vangloria de ser tolerante e pluralista quando aos valores.

Em síntese, a assertiva do Ministro Delgado de que os efeitos da coisa julgada devem render homenagem absoluta aos princípios da moralidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e do justo, o que exerce, inevitavelmente, um efeito exterminador da coisa julgado. O seria tido como grave injustiça capaz de autorizar a coisa julgada não fosse observada. Embora o magistrado, preconize a eliminação da coisa julgada em casos excepcionais, a verdade [e que, aceitando suas premissas, parece-me que nada mais restará do instituto. Como seria possível atribuir a uma sentença qualificadora de absurdamente lesiva ao Estado, conforme sugere Cândido Rangel Dinamarco?

A coisa julgada resistiria então às sentenças lesivas, mas não às que fossem absurdamente lesivas? Como mensurar a lesividade, para afirmá-la como norma, provocada pela sentença, para diferenciá-la da absurdamente lesiva?

O tema reclama reforma legislativa urgente, de forma a coibir o abuso ou teses jurídicas que comprometam toda a segurança jurídica do sistema.  É certo que o instituto da coisa julgada deva se adequar ao nosso tempo. Mesmo assim, o valor da segurança jurídica deva ser preservado.

Esse redimensionamento da coisa julgada deve ser feito nas demandas que protegem os direitos fundamentais. A adoção do critério de julgamento secundum eventum litis, no caso de julgamento de improcedência por insuficiência de provas, parece trazer maior efetividade à concretização de direitos. E, tal critério, é bom recordar, já vem sendo usado nas demandas de natureza coletiva, que protegem, em grande parte, os direitos fundamentais de terceira dimensão. (Vide o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública e artigo 103 do CDC).

E, podem ser adotados igualmente nas ações individuais que tutelam os direitos fundamentais.

Para se obter adequada proteção jurisdicional aos interesses transindividuais: os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas, desatrelados da competência territorial do órgão prolator da decisão, deve-se observar que os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas são outro problema que o processo[6] civil contemporâneo enfrenta.

Afinal, os interesses transindividuais resultantes das modificações ocorridas no modelo liberal e individualista do Estado necessitam de um tratamento adequado à sua natureza. E, com a superação desse modelo, através do Estado Social e Democrático de Direito conheceu autêntica revolução em termos de categorias e de meios de tutela aos mesmos.

A consagração dos direitos sociais não é uma descoberta do século XX, na exata medida em que as Declarações de Direitos da Revolução Francesa já estabeleciam obrigações positivas do Estado nos domínios do ensino e da assistência social, o que viria a ser aprofundado nas constituições do século XIX.

Os referidos direitos, além de evidentemente escaparem à tradição liberal e individualista, colocaram-se como indispensáveis à sobrevivência contemporânea.

Referem-se de direitos que atingem toda a coletividade, quanto a categorias inteiras de indivíduos e exigem uma intervenção ativa, não apenas uma negação, um impedimento de violação e exigem efetiva atividade. Contrariamente a um direito excludente, negativo e repressivo, com caráter liberal, tem-se um direito comunitário, positivo, promocional, e de cunho transformador.

O ponto fundamental da questão deixa de ser o individual, passando a ser predominantemente coletivo (em lato sensu). A socialização e a comunitarização dos interesses têm papel fundamental. E, assim, observa-se que os interesses transindividuais (coletivos em sentido estrito acrescidos dos direitos difusos) que escapam a dimensão privada do modelo jurídico liberal e se caracterizam por uma amplitude não somente jurídica, em sentido estrito, mas também socioeconômica, tendo em vista que importam em desapego, afastamento ou negação dos postulados liberais tradicionalmente aceitos como meio de sanabilidade de controvérsias e impasses.

Desta forma, a variabilidade e complexidade dessas questões coletivas fazem com que caminhos distintos para sua resolução devam ser adotados. E, a resolução dos conflitos coletivos reclama a negação dos postulados do modelo liberal, individualista e racionalista.

Por outro viés, a fase moderna caracterizou-se pela ascensão do individualismo radical e a diminuição da importância dos grupos na estrutura social e no sistema jurídico. A concepção de autonomia do indivíduo frente à comunidade a que pertence a ideia de direito subjetivo passam a exigir título e uma teoria que fundamente a possibilidade de que o autor represente os demais indivíduos ausentes da relação processual.

Nesse contexto, a legitimação, para ser parte, foi circunscrevendo-se as pessoas físicas e pessoas jurídicas, consideradas as únicas unidades reconhecidas para litigar judicialmente.

Assim, as entidades que não se enquadrassem nesse conceito de pessoa possuíam existência problemática. E, na sociedade contemporânea, surge outra entidade, também sem personalidade jurídica, o que dificilmente

poderá se configurar em uma pessoa para efeito de representação processual e extraprocessual. E, tal entidade coletiva é formada por pessoas inseridas em grupos, classes e categorias, identificados em razão da pertinência de uma raça, origem, gênero, sexual, nível cultural, de emprego, do consumo de certo produto, de pertencer a determinada faixa etária, entre outras formas contingenciais, e às vezes, efêmeras de agrupamento humano.

Tais grupos circunstanciais, frequentemente estão na sociedade contemporânea em desvantagem, ou, então lhes atribuídos direitos que necessitam de implementação e concretização, sem que haja um representante naturalmente designado para isso. Nesse sentido, é imperativo que a sociedade contemporânea crie instrumento jurídicos de representação desses grupos circunstanciais em juízo e que a decisão judicial final vincule todo o segundo representado.

Assim, os novos direitos materiais aludidos são os chamados direitos difusos, que não são postuláveis, na maioria das vezes, a título individual. E, dessa circunstância, advém a necessidade de formulação de uma estrutura representativa da ação coletiva de forma a possibilitar ao Estado apreciar e julgar os direitos de indivíduos enquanto integrantes de um segmento social sistematicamente lesado por estruturas opressores e injustas e de difícil combate com os instrumentos do processo civil tradicional.

É fato que já dispomos de instrumentos processuais de proteção dos interesses transindividuais, conforme o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública que estabeleceu os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas é um desses instrumentos.

O jurista Antônio Gidi, referiu-se in litteris: "Desde a promulgação da LACP, em 1985, não faltou quem quisesse ver no erga omnes a que se refere o texto da lei uma limitação intransponível em face dos limites territoriais em que cada tribunal exerce a sua jurisdição. Assim como a jurisdição das Justiças Estaduais ou dos Juízes Federais é limitada no âmbito territorial de apenas um Estado, a sentença coletiva acaso proferida teria sua eficácia circunscrita os limites territoriais do respectivo Estado.

A compatibilização da coisa julgada erga omnes com o princípio federativo foi Galeno Lacerda, afirmando que uma decisão em ação civil pública[7] proferida em um determinado Estado da Federação brasileira não poderia ser imposta a outros Estados. Propõe, assim, mas não exclusivamente por esse motivo, a criação de uma Corte Constitucional que poderia imprimir à coisa julgada[8], se necessário, a eficácia sobre todo o território nacional, ou parte dele, mediante o reexame necessário.

Na mesa linha doutrinária segue Rodolfo de Camargo Mancuso que sustentou de forma inusitada que, conquanto o artigo 16 da Lei 7.347/85 preveja a extensão erga omnes do julgado, sabe-se que essa extensão deve conformar-se aos lindes existentes em nossos sistemas processuais, em matéria de limites subjetivos da coisa julgada.

Não é demais referir-se ao direito brasileiro como que não adotou o modelo seguido pelo o direito norte-americano de controle da adequada representatividade no âmbito das ações coletivas, razão pela qual, viu-se o legislador pátrio obrigado a adotar outra alternativa de forma a evitar a vinculação de toda população brasileira, na hipótese de uma demanda ser mal conduzida por um dos legitimados, que foi a restrição dos limites subjetivos  da coisa julgada à competência territorial do julgador a quo.

Segundo Antônio Gidi, de fato com a posição dominante no Brasil, não há controle judicial da adequação do representante nas ações coletivas. Eis que era o pensamento de Ada Pellegrini Grinover e a de Pedro Dinamarco, Nelson Nery Jr. e Arruda Alvim que vão além e afirmam que o juiz está proibido de avaliar a adequação do representante. Portanto, segundo doutrina majoritária brasileira, basta que o representante do grupo, seja um dos entes legitimados pelo artigo 82 do CDC ou o artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública, para que possa livremente representar os interesses do grupo em juízo.

Por mais evidente que seja a incompetência ou a negligência do representante do grupo durante o desenrolar do processo coletivo, o juiz está obrigado a aceitar a situação passivamente e a proferir sentença  contrária aos legítimos interesses do grupo. Imaginemos que uma pequena e desaparelhada associação proponha uma ação contra poderosa multinacional em um litígio complexo e de profundo impacto social.

Durante o processo, o juiz percebe que o advogado da associação é incompetente ou não está demonstrando interesse pelo processo ou pelo grupo, ou que a associação não tem dinheiro suficiente nem para financiar as perícias necessárias, nem para contratar um bom advogado. Imaginemos, também, uma associação que conduza o processo em seu interesse próprio, seja esse interesse de natureza econômica.

Não há nada de errado em que pequenas associações proponham ações coletivas importantes. Todavia, não se pode permitir que uma ação coletiva seja proposta por associação manifestamente incapaz de tutelar adequadamente os interesses do grupo no processo, seja por incompetência, por falta de interesse real no litígio, por inexistência de interesses conflitantes, parcialidade ou mesmo má-fé. Na prática, o representante pode conduzir o processo de maneira inadequada para a tutela dos interesses do grupo (ou parcela do grupo), ou simplesmente perder a causa propositadamente.

Imperiosa seria a adoção da coisa julgada nas ações coletivas de forma ampla e não restrita e, como foi prevista no artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, por uma simples razão, a relevância de interesses tutelados pelo referido texto legislativo. Trata-se de direitos fundamentais de terceira dimensão ou geração.

Porém, enquanto não for alterado o diploma legal, cumpre ao intérprete estabelecer o diálogo entre o Direito Processual Civil e o mundo de vida. E, no que se refere a tal aspecto, parece-nos que a nova redação do parágrafo único do artigo 2º da Lei da Ação Civil Pública, que foi introduzida pela Medida Provisória 2.180-35/2001, e que nos possibilita uma interpretação abrangente dos limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas.

Neste sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EFICÁCIA. LIMITES. JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO PROLATOR. 1 – Consoante entendimento consignado nesta Corte, a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator da decisão, nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado pela Lei n. 9.494/97. Precedentes[9]. 2 – Embargos de divergência acolhidos”. (EREsp. 411529, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 2ª Seção, 10.03.10) “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATOS BANCÁRIOS. SENTENÇA CIVIL. EFEITOS ERGA OMNES. LIMITES. COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO JULGADOR. PRECEDENTES DO STJ. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. 1. De acordo com a jurisprudência firmada na Corte Especial do STJ, a sentença na ação civil pública  faz coisa julgada erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator, segundo  dicção do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado pela Lei n. 9.494/97. 2. Decisão mantida por seus próprios fundamentos. 3. Agravo regimental desprovido”. (AgRg no RESp 573868, Rel. Min.  João Otávio Noronha, 4ª Turma, 26.10.09) “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EFICÁCIA.  LIMITES. JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO PROLATOR. 1 – Consoante entendimento consignado nesta Corte, a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator da decisão, nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado pela Lei n. 9.494/97.  Precedentes. 2 – Embargos de divergência acolhidos”. (EREsp 399357, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 2ª Seção, 14.12.09)”.

Se o próprio legislador pátrio previu a prevenção para o julgamento de demandas conexas, abriu-se a possibilidade de que os limites subjetivos da coisa julgada extravasem à competência do magistrado que tiver proferido a decisão judicial. E, assim o referido parágrafo único do artigo 2 fez por excepcionar o critério restritivo do artigo 16 da LACP.

A Corte Especial do STJ, recentemente, entendeu que a interpretação literal do artigo 16 da LACP esvazia a utilidade prática da ação coletiva, porque cuidando-se de dano de escala nacional ou regional, a ação somente pode ser proposta na capital dos Estados ou no Distrito Federal (artigo 93, II). Assim, prosperando a tese do recorrente, o efeito erga omnes próprio da sentença estaria restrito às capitais, excluindo todos os demais potencialmente beneficiários da decisão judicial.

E, de acordo com o Relator o Ministro Luís Felipe Salomão “o art. 16 da LACP baralha  conceitos heterogêneos – como coisa julgada e competência territorial – e  induz a interpretação, para os mais apressados, no sentido de que os “efeitos”  ou a “eficácia” da sentença podem ser limitados territorialmente, quando se  sabe, a mais não poder, que a coisa julgada – a despeito da técnica do art. 467  do CPC – não é um “efeito” ou “eficácia da sentença, mas qualidade que a ela  se agrega de modo a torná-la ‘imutável e indiscutível’”.

Prossegue o relator do acórdão:

É certo também que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos ou a eficácia da sentença, os quais, como é do conhecimento comum, correlacionam-se com os “limites da lide e das questões decididas” (art. 468, CPC) e com as que o poderiam ter sido (art. 474, CPC) – tantum judicatum,  quantum disputatum vel disputari debebat.

A apontada limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo singular, e também, com mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides.

A prosperar tese contrária, um contrato declarado nulo pela justiça estadual de São Paulo, por exemplo,  poderia ser considerado válido no Paraná; a sentença que determina a reintegração de posse de um imóvel  que se estende a território de mais de uma unidade federativa (art. 107, CPC) não teria eficácia em relação à parte dele; ou uma sentença de divórcio proferida em Brasília poderia não valer para o judiciário mineiro,  de modo que ali as partes pudessem ser consideradas ainda casadas, soluções todas elas teratológicas.

A questão principal, portanto, é de alcance objetivo (“o que” se decidiu) e subjetivo (em relação “a quem” se decidiu), mas não de competência territorial.

Pode-se afirmar, com propriedade, que determinada sentença atinge ou não esses ou aqueles sujeitos (alcance subjetivo), ou que atinge ou não essa ou aquela questão fático-jurídica (alcance objetivo), mas é  errôneo cogitar-se de sentença cujos efeitos não são verificados, a depender do território analisado

A antiga jurisprudência do STJ, segundo a qual a “eficácia erga omnes circunscreve-se aos limites da  jurisdição do tribunal competente para julgar o recurso ordinário” (REsp 293.407/SP, Quarta Turma,  confirmado nos ERESp n. 293.407/SP, Corte Especial), em hora mais que ansiada pela sociedade e pela comunidade jurídica, deve ser revista para atender ao real e legítimo propósito das ações coletivas, que é  viabilizar um comando judicial célere – em atenção à extensão do interesse metaindividual na lide.

Caso contrário, “esse diferenciado regime processual não se justificaria, nem seria eficaz, e o citado interesse acabaria privado de tutela judicial em sua dimensão coletiva, reconvertido em multifárias demandas individuais” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo, p. 325) “atomizando” as lides na contramão do moderno processo de “molecularização” das demandas.

Com efeito, como se disse anteriormente, por força do art. 21 da Lei n. 7.347/05, o Capítulo II do Título III do CDC e a Lei das Ações Civis Públicas formam, em conjunto, um microssistema próprio do processo coletivo, seja qual for a sua natureza, consumerista, ambiental ou administrativa.

Assim, com o propósito também de contornar a impropriedade técnico-processual cometida pelo art. 16 da LACP, a questão relativa ao alcance da sentença proferida em ações coletivas deve ser equacionada de modo a harmonizar os vários dispositivos aplicáveis ao tema.

Nessa linha, o alcance da sentença proferida em ação civil pública deve levar em consideração o que dispõe o Código de Defesa do Consumidor acerca da extensão do dano e da qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo. O norte, portanto, deve ser o que dispõem os arts. 93 e 103 do CDC.

Finalmente, embora haja doutrina e precedentes que, para contornar o art. 16 da LACP, aduzam que o  dispositivo somente possui operância quando se tratar de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito,  sendo inaplicável a direitos individuais homogêneos, o fato é que – para os direitos difusos e coletivos em  sentido estrito – é que está a maior dificuldade de aplicação da norma, porquanto supõem, por definição,  titulares indeterminados ou indetermináveis, ligados por circunstâncias de fato, sendo imprópria a cisão  dos efeitos da sentença, em razão de alegada limitação territorial.

Esse é, por exemplo, o magistério de Teori Albino Zavascki[10], citado por Mancuso, para quem, no caso de direitos difusos e coletivos stricto sensu: [...] não há como cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada.

Observe-se que, tratando-se de direitos transindividuais, a relação jurídica litigiosa, embora com pluralidade indeterminada de sujeitos no polo ativo, é única e indivisível).

Como tal, a limitação territorial da coisa julgada é, na prática, ineficaz em relação a ela. Não se pode circunscrever territorialmente (circunstância do mundo físico) o juízo de certeza sobre a existência ou a inexistência ou o mundo de ser de relação jurídica (que é fenômeno do mundo dos pensamentos). (Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo, p.  320).

A conclusão da Corte Especial do STJ vai ao encontro com os argumentos sustentados pela presente pesquisa de forma a serem ampliados os limites subjetivos da coisa julgada no âmbito da ação civil pública.

Referências

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Notas:


[1]  A chamada coisa julgada material ocorre no momento em que da decisão de uma lide, não mais cabem recursos. É este o rendimento que se pode emprestar ao art. 6º, § 3º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil), um dos textos existentes a respeito, em nosso direito positivo.2 Parece-nos que, esse artigo, ao lado de disciplinar aspecto temporal da ocorrência do fenômeno da coisa julgada, compreende também, ao menos nominalmente e em decorrência dos elementos descritos do texto, o fenômeno da preclusão. Mais especificamente, aí está abrangida, tanto a coisa julgada material, quanto a coisa julgada formal, como, ainda, há espaço para ver-se no texto como aí albergada a preclusão. Tratar-se-á, primordialmente do instituto da coisa julgada material, que é efetivamente o que envolve a maioria das dificuldades, de que aqui cogitaremos. A coisa julgada material ocorre quando proferida sentença de mérito da qual não cabe mais recurso (O CPC/39 dispunha: “Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas”, e decidir a lide é sinônimo de decidir o mérito” tal como no CPC/73, art. 485, caput; e no CPC/2015, art. 966, caput”

[2]  Ademais disto a coisa julgada (a imutabilidade do comando) “destina-se a realizar a segurança extrínseca das relações jurídicas, e subordina-se ao princípio da congruência entre a pretensão e a jurisdição exercidas”.  Quando se fala em segurança intrínseca deve-se identificar essa no conteúdo da sentença, ou seja, o juiz, ao decidir a controvérsia pratica um ato final, no processo, em que se cristaliza a segurança jurídica das partes, tendo em vista o que consta da parte dispositiva, do resultado do processo, que as vincula através da coisa julgada (art.502). Mas, como esse resultado, que é o conteúdo da parte dispositiva impede e inibe qualquer outra decisão a respeito da mesma lide, que haja sido decidida, disto se diz ser a segurança extrínseca das relações jurídicas, proporcionada pela coisa julgada. A temática da coisa julgada, desta forma, situa-se  como uma das muitas formas de proteção da segurança extrínseca de atos jurídicos, no caso, de ato jurisdicional, consistente em decisão de mérito, quando desta não mais caiba recurso.  Assegurar a ‘segurança extrínseca das relações jurídicas’ quer dizer que, se submetida novamente a mesma controvérsia ao Poder Judiciário, o que a este incumbe fazer, única e  exclusivamente, é verificar se aquilo que está sendo submetido, agora, à sua apreciação já foi objeto de julgamento definitivo de mérito; se o tiver sido, deverá precisamente  em nome e por causa dessa segurança das relações jurídicas - no caso consistente numa determinada sentença revestida pela autoridade de coisa julgada - abster-se de decidir  novamente a mesma lide, com vistas a que o resultado do processo precedente seja o respeitado (CPC 39, art. 181, II, ainda que, então, era denominada de exceção o meio processual para fazer prevalecer a coisa julgada anterior CPC/73, art. 301, V, CPC/2015, art. 485, V).

[3] No universo de common law, é sensível o descompasso entre Inglaterra e Estados Unidos: o direito inglês distancia-se a passos largos das posições clássicas do adversary system, desloca a tônica - em matéria de prova como noutras - do controle do processo pelas partes para o comando do juiz; o norte-americano, apesar de recentes reformas legislativas, permanece mais apegado à tradição adversarial. No mundo de civil law, França e Alemanha reforçam os poderes instrutórios do órgão judicial, enquanto Espanha e Itália caminham no sentido oposto.

[4] A coisa julgada material é a qualidade de imutabilidade, ou de imperatividade, ou, ainda, mais precisamente, a autoridade com a qual resta revestida a parte dispositiva de uma sentença; por outras palavras, essa autoridade significa o resguardo duradouro do comando da sentença, que é, sabidamente, de onde resulta a eficácia, residente na sua parte dispositiva. A parte dispositiva (nos sistemas de 39, 73 e   no atual) é a parte do conteúdo da sentença sobre a qual gira e sobre o qual incide o regime da coisa julgada material. A chamada coisa julgada formal, a seu turno, significa que houve no processo uma última decisão, através da qual se colocou termo final a um determinado processo.  O termo preclusão (preclusão máxima) deve ficar reservado - ainda que muitos o confundam ou o usam como sinônimo da coisa julgada formal - para hipótese diferente. Significa que, devendo os atos processuais ser praticados dentro de certo tempo e, isto não ocorrendo, operar-se-á preclusão temporal; ou, então, se um dado ato processual já foi praticado, não podendo ser repetido ou praticado novamente, O termo preclusão (preclusão máxima) deve ficar reservado - ainda que muitos o confundam ou o usam como sinônimo da coisa julgada formal -- para hipótese diferente. Significa que, devendo os atos processuais ser praticados dentro de certo tempo e, isto não ocorrendo, operar-se-á preclusão temporal; ou, então, se um dado ato processual já foi praticado, não podendo ser repetido ou praticado novamente, ainda que com alguma mudança, dado que já terá ocorrido preclusão consumativa,3 configuradora da inviabilidade de ser praticado, mais de uma vez, o ato. Ainda, opera se a preclusão lógica - que é uma espécie de preclusão consumativa - a qual se configura quando já se praticou um determinado ato, que poderia não ter sido praticado, pois outro poderia ter sido praticado no seu lugar, mas, tendo sido praticado é logicamente incompatível com o que poderia vir a ser praticado e que não mais poderá vir a sê-lo, denominando-se a isto de preclusão lógica. Como defluiu nitidamente do exposto a coisa julgada formal, por sua vez, se constitui a partir da irrecorribilidade de ato jurisdicional final que confere indiscutibilidade à decisão que põe fim ao processo. Essa indiscutibilidade diz respeito, porém, tão só e exclusivamente em relação ao processo no qual foi exarada.

[5] Para que a decisão que resolva expressa e incidentalmente uma questão prejudicial seja acobertada pela autoridade da coisa julgada material, é imprescindível que estejam integralmente presentes os requisitos do art. 503, § 1º do CPC/2015. O primeiro requisito expressado no art. 503, § 1º, I do CPC/2015 é o de que o julgamento do mérito da ação dependa da resolução da questão prejudicial (art. 503, § 1º, I do CPC/2015).  O segundo requisito é o de que, a respeito da questão prejudicial, tenha havido contraditório prévio e efetivo (art. 503, § 1º, II do CPC/2015). Em regra se considera observada a garantia constitucional do contraditório (CF/1988, art. 5º LV) com a oportunidade de manifestação da parte. Entretanto, nesta hipótese específica é exigido que a questão prejudicial tenha sido objeto de efetivo debate entre as partes, o que pode ser aferido por meio da análise do comportamento das partes, “quer argumentando, quer provando seu posicionamento, não perdendo oportunidades para tanto”4. Diante disso, não haverá coisa julgada sobre questão prejudicial em caso de revelia, quando houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial (art. 503, § 1º, II, segunda parte, e § 2º, do CPC/2015), bem como quando se averigue o contraditório não pode ser qualificado como efetivo.  Por fim, o juízo competente para julgar a causa principal também deve ser competente, em razão da matéria e da pessoa, para resolver a questão prejudicial como principal, ou seja, não pode ser o juízo absolutamente incompetente para resolver a questão prejudicial, caso esta tivesse sido veiculada em ação autônoma.

[6] A antiga definição de Bulgaro apud Satta: processus est actus trium personarum, actoris, rei, judicis. Esta definição, como é notório, se reconduz à doutrina da relação jurídica processual, coloca em evidência o caráter de luta, o caráter verdadeiramente dramático que é intrínseco ao processo. São três pessoas  que  lutam  uma  contra  a  outra.  O autor  contra  o  demandado,  o  acusador contra  o  acusado,  todos,  posteriormente,  contra  o  juiz,  porque  cada  um  pretende  convencê-lo da  sua  razão,  ou,  se  desejamos  ser  mais  otimistas,  cada  um  deseja  que  ele  seja  aquele juiz  sapiente,  incorrupto  e  incorruptível  que  Anatole  France  dizia  ter  conhecido,  mas  somente  pintado.  Sobre a luta desses ternos  personagens,  para  regulamentá-la,  surgem  as  leis  processuais,  o  código  de processo. Nada, digamos a verdade, é mais tedioso que esses códigos para quem os leia sem o olho do historiador ou do filósofo: um alinhavo de normas regulamentares que  mais  criam  obstáculos  do  que  auxiliam  o  desenvolvimento  da  ação.

[7] A ação civil pública (ACP) é um instrumento processual instituído pela Lei nº 7.347/85 e é utilizado para responsabilizar os réus por danos morais e materiais ocasionados  a bens e direitos coletivos, estejam eles previstos na lei ou não. A lei que a criou delimita seu cabimento, as partes legítimas e os principais aspectos do seu procedimento. Vale destacar que, para muitos doutrinadores jurídicos, a ACP é considerada um remédio constitucional, uma vez que a Constituição Federal prevê a possibilidade de  o Ministério Público promover a ação civil pública para proteger direitos difusos e coletivos (art. 129, inciso III). Isso porque a Lei Federal 7.347/1985 não criou um novo tipo de processo, uma ação distinta e autossuficiente: em verdade, ação civil pública significa um conjunto de princípios processuais que faz as adaptações necessárias no processo civil comum para que os interesses metaindividuais possam ser eficazmente tutelados. Assim, temos que a ação civil pública não é um processo absolutamente autônomo e distante da sistemática procedimental comum; ela se aproveita dos ritos previstos no Código de  Processo Civil ou em leis extravagantes e os adapta com os princípios específicos da Lei 7.347/1985 (e do CDC), para que os interesses difusos e coletivos possam ser defendidos em juízo. A ação civil pública não possui, pois, um rito processual específico. Ela poderá assumir a forma de ações ordinárias, sumárias, de execução, de cautelares e de procedimentos  especiais previstas no Código de Processo Civil ou em legislação extravagante, com a peculiaridade de acrescentar aos ritos comuns os princípios específicos do sistema formado pela  Lei Federal 7.347/1985 e pela parte processual do Código de Defesa do Consumidor.

[8] Em julgamento concluído em 8/2/2023, o Supremo Tribunal Federal deliberou que as decisões por ele proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado quanto a relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. Nas relações jurídicas de trato sucessivo (ou de trato continuado, expressão contida no artigo 505, inciso I do Código de Processo Civil de 2015),  havendo alteração do estado de fato ou de direito, a coisa julgada torna-se ineficaz. Note-se que a sentença transitada em julgado não se torna nula,  nesse caso. Ela permanece válida, regendo pedido e causa de pedir formulados em atenção ao estado de fato e de direito que a informaram. In: MEDINA, José Miguel Garcia. Supremo deve modular efeitos de decisão sobre coisa julgada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-fev-15/processo-novo-supremo-modular efeitosaocoisajulgada#:~:text=Em%20julgamento%20conclu%C3%ADdo%20em%208,jur%C3%ADdicas%20tribut%C3 A1rias%20de%20trato%20sucessivo  . Acesso em 18.02.2023.

[9]  Precedentes são decisões judiciais que, baseadas em casos concretos, servem de parâmetro para julgamentos posteriores de casos semelhantes. São, por exemplo,  casos envolvendo planos de saúde, cobrança ou recolhimento de tributos, pedidos de indenizações por desastres ambientais envolvendo comunidades, pedidos de  indenização em massa por perda decorrente de plano econômico, entre outras demandas levadas à justiça. O CPC de 2015, por sua vez, da mesma forma como já fazia o anterior, diferencia de forma clara precedente e jurisprudência. Todavia, o sentido que lhes dá  é muito mais rico e essa virada advém não da forma como esses termos são utilizados ao longo do código, especialmente nos artigos 521, IV, 978, 1.029, parágrafo 1º, 1.034, parágrafo 3º, I, e 1.043, parágrafo 4º, mas da maneira como eles aparecem nos artigos 489, 926 e 927, justamente aqueles que trazem o grande diferencial do atual CPC na matéria, uma vez que veiculam os dois grandes cometimentos em relação aos quais a magistratura brasileira é chamada a aderir: a) o compromisso com  o emprego de criteriosa atividade hermenêutica e argumentativa quando da construção da decisão judicial; b) o compromisso com a estabilidade, integridade e coerência do caminho utilizado para dar cabo do cometimento anterior.

[10] Teori Alvino Zavascki (1948-2017) foi jurista, professor e magistrado brasileiro. Foi Ministro do STJ e do STF. Ganhou expressiva notoriedade após se tornar ministro relator da Operação lava Jato no STF, analisando os casos de pessoas com foro privilegiado homologando delações premiadas e acordos de leniência. Bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito da Universidade  Federal do Rio Grande do Sul (1972), era mestre (2000) e doutor (2005) em direito processual civil pela mesma instituição. Na academia, lecionou a disciplina Introdução ao Estudo de Direito na Universidade  do Vale do Rio dos Sinos desde 1980 até 1987, e direito processual civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul de 1987 a 2005 e de 2013 até a sua morte, e na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília de 2005 a 2013.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Remodelagem Coisa Julgada CPC/15 CPC/73 CDC

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