Quinto país ou quinto dos infernos?
Por Gisele Leite
Brasil
é o quinto país do mundo em extensão territorial (área de 8.515.767 km2), equivalendo aproximadamente a 96 (noventa e
seis) vezes a extensão territorial de Portugal. Com mais de 202 (duzentos e dois) milhões de habitantes e,
ocupa também a posição de quinto país mais populoso do planeta.
O
multiculturalismo e a diversidade étnica também são características do país,
bem como as desigualdades regionais.
Todos esses fatores influenciam e acarretam desafios para a administração de questões relevantes
para os cidadãos, especialmente relacionadas à gestão, abrangendo aqui a viabilização do
acesso efetivamente universal ao direito à saúde.
O
Brasil delineou um projeto minucioso para dar efetividade ao direito à saúde,
sem precedentes até então, retrato da consolidação de diversas experiências
históricas, da eficaz atuação social e do movimento sanitarista, reunidas em
deliberações das Conferências de Saúde, que tiveram início na Era Vargas,
quando foi realizada a 1ª Conferências Nacionais de Saúde (CNS), em 1941, tendo
como ponto auge a 8ª CNS, em 1986, quando foi moldada uma proposta de forma
legítima que veio a ser incorporada pela Assembleia Nacional Constituinte ao
elaborar a Constituição federal de 1988
Apregoa-se
que uma maior efetividade e eficiência na
prestação de serviços na área de saúde podem ser obtidas por intermédio da
regulação, que deve ser vista como uma ação estratégica do Estado sobre prestadores e provedores dos
serviços de saúde.
Nesse
aspecto, um dos mecanismos de regulação internacionalmente utilizados é a “contenção da liberdade de prática dos
profissionais, com o fim de estabelecer
um padrão de contratualização e racionalidade no uso dos meios de diagnóstico e tratamento”.
O
direito à saúde caracteriza-se como sendo direito de segunda geração ou
dimensão por excelência comumente associado à necessidade de prestação ou de
garantia do Estado para sua realização.
O art.196 da CF/1988 define que: “a saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação”.
Os
direitos sociais diferem das liberdades e dos direitos de participação democrática,
chamados de direitos de primeira geração ou dimensão, porque implicam na
exigência de comportamentos estaduais positivos, configurando os direitos
através do Estado, e não propriamente contra o Estado.
O
direito à saúde é um direito fundamental social, que, por depender de prestação
estatal e acarretar custos, em geral, bem elevados, é muito afetado em tempos
de crise econômico-financeira.
É
inegável a importância da previsão constitucional dos direitos econômicos e
sociais, também denominados de “direitos do bem-estar”, ainda que não faltem
críticas quanto à viabilidade da realização de tais direitos, especialmente em
períodos de crises econômicas.
Por um
lado, consoante ressalta Amartya Sen (2010a), “o significado ético destes direitos oferece um
bom fundamento para se vir apostar nas
realizações por eles provocadas, nomeadamente, na medida em que criam pressão, ou contribuem, para o
surgimento de alterações, não só nas
atitudes sociais, mas também nas próprias instituições.”
“A
ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai
muito além da relação constitutiva – por
mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar
é influenciado por oportunidades
econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde,
educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas” (SEN, 2010b).
O
grande desafio, pois, é buscar os meios e
instrumentos para a implementação efetiva desses direitos , ainda que tal intento implique
a reformulação dos modelos tradicionais de
prestação de serviços de cunho social.
As políticas
sociais instituídas no Brasil abrangem diferentes áreas e segmentos como a: transferência de renda, saúde,
previdência/assistência social, habitação/urbanismo,
saneamento básico, trabalho e renda, educação, desenvolvimento rural), bem como políticas sociais focalizadas
conforme idade, gênero, etnia, grupos identitários,
considerando o contexto brasileiro e internacional.
As
políticas sociais no Brasil estão relacionadas diretamente às condições vivenciadas pelo país nos níveis econômico,
político e social. São vistas como mecanismos
de manutenção da força de trabalho, em alguns momentos, em outros como conquistas dos trabalhadores, ou como doação
das elites dominantes, e ainda como instrumento
de garantia do aumento da riqueza ou dos direitos do cidadão.
A cidadania social concretiza, assim, uma
ampliação do espaço público, deslocando
para fora do mercado setores importantes da reprodução social e despolitizando os conflitos relacionados à
desigualdade.
Com a
Constituição brasileira vigente passou a ficar evidente o dever do Estado em
prover de maneira universal os serviços
sociais básicos, saúde, educação de qualidade e previdência social.
O
crescimento econômico brasileiro nos anos 2000, proporcionado pela estabilidade econômica e social conquistada
nos anos 1990 fez com que esse papel do Estado
fosse confirmado.
Entre
os avanços da Constituição Federal brasileira de 1988 na determinação da responsabilidade estatal em função da
necessidade de proteção social dos cidadãos, pode-se destacar: i) a instituição da
Seguridade Social como sistema básico de proteção social, articulando e integrando as políticas de
seguro social, assistência social e saúde; ii) o reconhecimento da obrigação do Estado em
prestar de forma universal, pública e gratuita, atendimento na área de saúde em todos os
níveis de complexidade.
Há
sinais de progressiva superação de várias
outras dicotomias que vêm permeando o debate (e o embate) em torno das
políticas sociais, tais como público versus
privado, Estado versus mercado, centralização versus descentralização, universalização versus
focalização, Estado versus sociedade.
Realmente,
a diversidade dos rumos que vêm tomando
as distintas políticas sociais neste período mais recente sinaliza que, em um país com tamanho
grau de desigualdade social, não se coloca a questão Estado versus mercado, uma
vez que aquele assume papel central na garantia de acesso a serviços e benefícios sociais
básicos, fator fundamental para a superação da pobreza, como já assinalado; que público não
se restringe ao estatal, mas que se trata do controle público e da obediência à res
publica na prestação daqueles serviços e benefícios.
Em
consequência, cabe salientar que não se trata de substituir progressivamente o
Estado pela sociedade, mas, ao
contrário, tornar o Estado mais permeável à sociedade; que a focalização dos programas sociais não exclui, ao contrário,
deve partir da concepção universalista dos direitos sociais como direitos de
cidadania.
E,
finalmente, que a descentralização das políticas
sociais favorece, porém, não garante de modo automático, a democratização, a maior eficiência e a maior eficácia dessas
políticas, tal como estão a demonstrar experiências
recentes de descentralização na área de saúde, por exemplo, setor que mais vem avançando nesse processo.
Considera-se,
infelizmente, que o Brasil inclui a educação como despesa social, sendo este um ponto polêmico pois ao considerar suas
despesas como gastos ou, como
investimentos, o que muda totalmente a forma de inserção política da política
social nos programas de governo.
É
preciso integrar as ações sociais, ao contrário da visão setorialista; é preciso definir bem quem são os necessitados
de atenção social (focalizar as ações); é preciso que sejam políticas assistencialistas
e inclusivas e não assistencialistas populistas; é preciso que tenham um caráter mais
permanente e com fontes de financiamento independentes do ciclo econômico; e é preciso
um crescimento da economia que crie oportunidades
de trabalho e de sustentação para a população carente.
Os
quatro eixos propostos, a saber: do Emprego e do Trabalho, da Assistência
Social e Combate à Pobreza, da Cidadania
Social e da Infraestrutura Social e, não devem, assim, ser lidos de forma isolada, mas sim, como um
conjunto de situações que vão se formando ao longo do processo histórico de
desenvolvimento dos sistemas nacionais de proteção social, cujo cenário em dado momento não é, sublinhe-se,
o resultado final, mas simplesmente
parte de um complexo processo dinâmico e contraditório de construção.
Verifica-se
que no caso brasileiro, a política
social se iniciou em períodos que havia opressão dos direitos políticos. E, a justificativa
da existência de direitos sociais sem direitos políticos é o fato de que os últimos apresentam um conteúdo e um alcance
arbitrário, sem o envolvimento da sociedade
sobre a execução dessas políticas.
Considerando-se
as inovadoras atuações do Estado regulador no âmbito do direito à saúde,
verifica-se que também não há um padrão
absoluto, exclusivo e universal de socialidade. Uma nova onda de recessão econômica assola o
país, principalmente, como consequência da Pandemia da Covid-19, onde há falta
de empregos e inobservância do mínimo existencial para muitos brasileiros.
Diversamente, a realidade, a escassez e o próprio contexto histórico têm-se encarregado, como sempre, de despertar o ser humano para a contínua necessidade de reflexão e de mudanças.
Referências
CORDERO,
Elvira Alicia Aparício; DUARTE, Erica Rosalba Mallmann; LAZZARIN, Helena. Pesquisa:
quando ética e a humanização se encontram. Porto Alegre, RS: Editora Rede
Unida, 2021.
INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Conjuntura e Política Social. In.:
Políticas Sociais − Acompanhamento e Análise. nº7. 2003.. Disponível em:
SEN,
Amartya. A ideia de justiça. Coimbra: Almedina, 2010a. Disponível em:
______.
Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.
SILVA,
Suzana Tavares da. Sustentabilidade e solidariedade em tempos de crise. SUSTENTABILIDADE fiscal em tempos de crise.
Coimbra: Almedina, 2011. p. 61-87.
______.
Regulação económica e Estado fiscal: o estranho caso de uma relação difícil
entre “felicidade” e garantia do
bem-estar. Scientia Giuridica, n. 328, p. 113-140, jan./abr. 2012.
______.
Direitos fundamentais na arena global. 2ª. ed. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2014.
VENTURA,
Catarina Sampaio. O direito à saúde internacionalmente conformado: uma perspectiva de direitos humanos. Lex
Medicinae, Coimbra, v. 2, n. 4, p. 49-68, 2005.
VIEIRA
DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 5ª. ed. Coimbra: Almedina, 2012.
______.
O papel do Estado na sociedade e na socialidade. In: A ECONOMIA
social e civil: estudos. Coimbra:
Instituto jurídico, 2015. v. 1, p. 23-42
VIEIRA, E. As políticas sociais e os direitos sociais no Brasil: avanços e retrocessos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, ano 18, n. 53, p. 67-79, mar/1997.