Perplexidades do Estado Democrático de Direito

Há três dilemas vivenciados no Estado Democrático de Direito, a eleição entre o modelo procedimentalista ou substancialista, identificação de fontes da legitimidade da jurisdição constitucional e, por derradeiro, a defesa ou repúdio do ativismo judicial, principalmente, atinente aos direitos fundamentais.

Fonte: Gisele Leite

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Existem três dilemas do Estado Democrático de Direito segundo o constitucionalismo contemporâneo, a saber: a opção entre os modelos procedimentalista e substancialista de Constituição Federal e de jurisdição constitucional, a questão da legitimidade democrática da jurisdição[1] e a escolha entre a postura ativista ou contida do Poder Judiciário na apreciação das questões submetidas ao seu julgamento, tendo por base para respostas o texto constitucional vigente. A utilização de métodos dedutivo e dialético para analisar os marcos teóricos principais e de inspiração constitucional.

O segundo dilema começa pelas fontes das quais a jurisdição constitucional extrai sua legitimidade democrática. E, o terceiro dilema é a defesa de ativismo judicial criteriosamente guiado e tendo como parâmetro a Constituição Federal brasileira de 1988.

A ótica do constitucionalismo contemporâneo se depara com a emblemática opção entre os paradigmas procedimentalista ou substancialista de Constituição Federal e jurisdição constitucional, a legitimidade democrática da jurisdição constitucional e a postura ativista ou restrita do Judiciário diante de questões políticas submetidas à sua apreciação. Tem-se a preocupação constante com a efetividade de direitos fundamentais sociais[2], o que têm requerido a atenção da doutrina nacional e internacional, sob diversas óticas teóricas e fomentando ardentes debates.

As finalidades do presente artigo é trazer à baila os mais destacados argumentos acerca dos dilemas em apreço, firmando as posições, e procurando respostas no texto constitucional vigente e, como parâmetro a realidade sociopolítica brasileira.

Com a evolução dos estudos acera das relações existentes entre o Direito e a Política e a democracia sob mais diversos enfoques teoréticos, o que culminou nas posições ou teses que podem ser agrupadas em dois básicos eixos: o procedimentalismo e o substancialismo. E, a questão mais controvertida se sintetiza no debate sobre os papéis da Constituição Federal bem como da jurisdição constitucional do Estado Democrático de Direito.

Pela corrente procedimentalista se atribui à Constituição Federal a tarefa de garantir o adequado funcionamento do sistema de participação democrática ficando a cargo da maioria, em cada momento histórico a definição de valores e de opções políticas da sociedade.

Enfim, a corrente procedimentalista atribui à Constituição Federal a missão de garantia o adequado funcionamento da participação democrático, a cargo da maioria, em cada momentum histórico, cunhando a definição de valores[3] e opções políticas da sociedade.

Já a corrente substancialista sustenta competi ao texto constitucional vigente impor ao contexto político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais e, ipso facto da adoção de uma ou outra corrente ocorre a variação da extensão da admissibilidade de censura judicial das leis e dos atos normativos e governamentais.

Assim, os procedimentalistas reconhecem à jurisdição constitucional a legitimidade para exercer tal controle diante da correta verificação e observância dos procedimentos públicos de deliberação e a formação de vontade coletiva. Mas, os substancialista vão adiante, autorizando-se a averiguação conteudística de atos dos Poderes Legislativo e Executivo, tendo como bases as escolhas ético-políticas fundamentais e cristalizadas na Lei Magna.

Portanto, a versão substancialista tende a justificar maior controle de constitucionalidade de viés rigoroso feito dos atos e normas produzidos no âmbito do Estado, enquanto a percepção procedimentalista conduz à atitude mais diferenciada sobre o núcleo de decisões dos Poderes Públicos.

No Brasil, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é reconhecido como célebre defensor do procedimentalismo e, afirma que, por um lado, não é mais possível compreender o Estado como a corporificação e a única instância de estabilização de uma ética identidade, de certa forma de vida e de determinados padrões de vida boa e digna.

Não existem mais, portanto, como limitar a esfera pública ao ente estatal, conforme atestam os conhecidos direitos fundamentais de terceira geração.

E, o público deverá ser visto como dimensão mais complexa do mero locus estatal, isto é, como mera dimensão discursiva de mobilização e a expressão de diversos fluxos comunicativos.

Sob outro viés, se até num passado recente a homogeneidade artificialmente levada a efeito pelo processo formativo do chamado Estado-Nação que propiciou a construção de uma identidade política encarada como indispensável para a garantia e manutenção de uma república composta de cidadãos livres e iguais perante o direito, mas que requer, de plano, o reconhecimento do pluralismo social e cultural.

Segundo Dierle Nunes, no paradigma procedimental de Estado Democrático de Direito se impõe simultaneamente prevalência da soberania do povo e dos direitos fundamentais em todos os campos, especialmente, na esfera estatal, em que existe a constante emissão de provimentos que geram efeitos para pluralidade de cidadãos.

Exara, ainda, André Cordeiro Leal que para se tornar possível a legitimidade do ordenamento jurídico se dará mediante a institucionalização de condições para a ação comunicativa ou condições do discurso, isto é, pela garantia de constante participação dos destinatários das normas em sua produção afastando a contingência de decisões arbitrárias ou que determinem o retorno continuado à autopoiese.

O verbete apresenta conceito que enfoca, de um lado, sua aplicação na sociedade mundial e, de outro lado, suas deficiências em lidar com os problemas desta mesma sociedade. Tal conceito part da teoria dos sistemas desenvolvida pelo sociólogo Niklas Luhmann e, segue dialogando com as variáveis do pensamento sistêmico como, por exemplo, a desenvolvida por Gunther Teubner. Autopoiese deriva do grego (autopoiesis).

A origem etimológica do vocábulo é autós (por si próprio) e poiesis (criação, produção). Seu significado literal é autoprodução. Os subsistemas produzem, e reproduzem, a sua própria organização circular por meio de seus próprios componentes.

O modelo de direito autopoiético ainda deixa sem resposta os maiores problemas da sociologia jurídica, em especial os relativos à gênese, à eficácia e à mudança do direito. Tais problemas, na verdade, são conexos a outros tantos conceitos de direito (respectivamente direito como norma, como fato e como valor).

O problema da eficácia do direito teve no passado uma resposta articulada proveniente da teoria geral do direito, de inspiração normativista, distinguindo um dúplice nível normativo. A norma de previsão de comportamento de seus destinatários era fundamentada em uma norma posterior, dirigida aos operadores que tendiam a intervir em caso de violação de norma de comportamento.

Nessa perspectiva, o desvio dos comportamentos quanto ao efetivo respeito à norma era reconduzido a uma patologia social geralmente controlada pelo mesmo direito que, mediante a efetiva aplicação de uma sanção, possibilitava a revitalização da norma violada.

Lembremos que Habermas foi um dos maiores expoentes da corrente procedimentalista e, no contexto do Estado Democrático de Direito e da noção de auto-organização da comunidade jurídica, a Constituição Federal não tem que ser compreendida como ordem que regula primariamente a relação existente entre o Estado e os cidadãos deixando de fora os poderes social, econômico e administrativo, nem como ordem jurídica global e concreta, destinada a impor a priori certa forma de vida sobre a sociedade humana.

Ao revés, esta determina procedimentos políticos mediante os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida.

Apenas e somente as condições processuais de origem democrática das leis serão capazes de assegurar a legitimidade do direito. Nesse enfoque, caberá à jurisdição constitucional proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos, examinando as leis e os atos normativos controvertidos, especialmente, sob a ótica dos pressupostos comunicativos e das condições procedimentais do process[4]o democrático de legislação.

Resumindo-se, compete-lhe tutelar a integridade dos ritos políticos-constitucionalmente exigidos para a adequada formação da vontade da maioria.

Lenio Streck que é adepto das teses substancialistas, que em oposição enfatizam justamente a regra contramajoritária, que representa os freios às vontades de maiorias eventuais, o que para estas, reforça a relação existente entre a Constituição e democracia.

De fato, a regra contramajoritária traduz a materialidade do núcleo político-essencial da Constituição Federal, significando o compromisso do resgate de promessas da modernidade e que

simultaneamente aponta para as vinculações concretas dos direitos prestacionais e as promessas negativas (proibição de retrocesso social), até porque cada norma constitucional possui diversos âmbitos eficaciais. As posturas substanciais, por isso, intensificam a força normativa da Constituição, ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais sociais a serem concretizados.

Ademais, é de difícil compreensão e defesa as teses processuais-procedimentais em países como o nosso, onde há grande déficit de cumprimento de direitos fundamentais sociais, parecendo ser irrisório ainda se considerada a pretensão de se construir as bases essenciais de Estado Social, destinar o Judiciário o encargo de zelar apenas pelo respeito às normas procedimentais da política deliberativa.

De acordo com o Ministro Luís Roberto Barroso que também pode ser relacionado ao substancialismo, a Constituição federal de um Estado Democrático de Direito reúne duas funções principais. Em primeiro lugar, incumbe-lhe veicular consensos mínimos, basilares para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem estar sujeitos à disposição de maiorias políticas ocasionais.

Tais consensos, conquanto variem em razão das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa.

Em segundo lugar, compete à Constituição Federal garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos, posto que há um conjunto de decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo povo em cada momento histórico.

Destarte, inexiste antagonismo entre o constitucionalismo, que significa em essência limitação do poder e supremacia da lei, e a democracia, que se traduz como soberania popular e governo da maioria, sendo antes fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo[5].

Ambos se destinam, em derradeira análise, a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social.  Por meio do equilíbrio entre os preceitos materiais contemplados na Constituição e a deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das necessidades cotidianas, a cargo das autoridades políticas eleitas pelo povo.

Outro substancialista de escol é Robert Alexy que crê num modelo puramente procedimental de Constituição que seja incompatível com a vinculação jurídica do legislador aos direitos fundamentais, pois é definido pela negação de toda e qualquer obrigação legiferante seja positiva ou negativa em caráter material.

Oportuna é a advertência de Arthur Kaufmann[6], para quem os conteúdos do Direito e da Justiça são demasiado importantes para serem deixados unicamente aos sempre parciais políticos. Ana Paula de Barcellos, a seu turno, não enxerga como incontornável a contradição entre o procedimentalismo e o substancialismo, argumentando que mesmo o primeiro, em suas diferentes linhagens, admite o funcionamento de sistema de deliberação democrática e demanda a satisfação de certas exigências, que podem ser descritas como opções materiais e se reconduzem às escolhas valorativas ou políticas.

Não é viável, nem possível haver deliberação majoritária minimamente consciente e consistente sem o devido respeito aos direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a garantia de liberdades individuais e de um mínimo de condições materiais indispensáveis ao exercício da cidadania.

O embate entre procedimentalismo e substancialismo não será útil tendo em vista a realidade brasileira, considerando nossa vigente Constituição da República brasileira e o contexto histórico-geográfico e socioeconômico em que esta está inserida.

E, José Joaquim Gomes Canotilho lecciona que a compreensão de uma lei constitucional só galga sentido útil, teorético e prático, quando referida a uma situação constitucional concreta, historicamente existente em um determinado país. Há de ser construída com base em específico diploma constitucional e, não derivada ou desenvolvida a partir da teoria da Constituição.

Eis o motivo pelo qual o conceito de Constituição deve ser constitucionalmente adequado.

É forçoso concordar com Daniel Sarmento que sustenta ser nossa atual Lei Magna nitidamente substancial, porque: “(…) pródiga na consagração de valores substantivos. Ela não se contenta em traçar as regras do jogo democrático, nem se limita a estabelecer as condições materiais necessárias para tornar a democracia possível – embora também o faça. Ela não é, definitivamente, uma Constituição do tipo procedimental, já que acolhe valores materiais como dignidade da pessoa humana e solidariedade social, tornando-os de observância compulsória no âmbito do Estado e da sociedade. Ao dar forma jurídica a estes valores, convertendo-os em princípios expressos em linguagem vaga e abstrata, não obstante dotados de plena normatividade, a Constituição Federal prepara o terreno para a filtragem constitucional de todo o ordenamento jurídico.”

Novamente, Lenio Streck destaca que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aponta as linhas de atuação para a política, estabelecendo as condições para a mudança da sociedade pelo direito. É, em síntese, uma pauta para a alteração de estruturas sociais, uma vez que reconhece as desigualdades e coloca à disposição os instrumentos para alcançar aquele desiderato. Trata-se de cláusula transformadora permanente, quer-se afirmar, a Lei Magna veio a albergar os conflitos que antes eram ignorados pelos juristas.

A Constituição, assim, não trata apenas dos meios, cuidando também dos fins, elencados no seu art. 3.º, que exatamente caracterizam o seu aspecto compromissório e dirigente, voltado à construção de um Estado Social.

A sua efetividade, por conseguinte, é agenda obrigatória de todos que se preocupam com a transformação de uma sociedade que, em cinco séculos de existência, produziu pouca democracia e muita miséria, fatores geradores de violências institucionais e sociais.

Ainda reconhecendo o caráter notadamente substancialista da Constituição brasileira e, tal qual já alertava Gustavo Zagrebelsky, esta não deve ser concebida como sistema fechado de princípios, mas como um contexto aberto de elementos, cuja determinação histórica-concreta dentro dos limites de elasticidade que tal contexto permite, é deixada ao legislador, porquanto somente assim se torna possível a coexistência de uma lei constitucional que contenha princípios substantivos com o pluralismo, a liberdade da dinâmica política e a competição entre as propostas alternativas.

Segundo constitucionalista italiano, pensar o contrário não só representa uma manifestação de soberba dos juristas, como também um risco “holístico” de asfixia política por saturação jurídica, situando a Constituição contra a democracia.

Em linha similar, o Ministro Luís Roberto Barroso leciona que a importância da Constituição, e do Judiciário como seu intérprete maior, não pode suprimir a política, o governo da maioria e o papel do Legislativo.

A Constituição Federal não pode ser ubíqua[7]. Respeitados os valores e fins constitucionais, cumpre à lei fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas.

A aludida filiação de nossa Lei Magna ao paradigma substancial, conclui-se que incumbe à jurisdição constitucional brasileira não somente o zelo pelas estruturas procedimentais democráticas político-deliberativas nela sedimentadas, como também a tutela das imposições constitucionais sejam positivas ou negativas de cunho material, especialmente, as referentes aos direitos fundamentais.

O controle da compatibilidade vertical dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, a cargo do Poder Judiciário, assume dessa maneira feição bastante ampla, o que desperta inevitavelmente a atenção para as questões de sua legitimidade democrática, da virtual tensão entre os âmbitos das funções estatais e dos riscos do chamado ativismo judicial[8].

Quanto ao segundo dilema se refere a legitimidade ou ilegitimidade democrática da jurisdição constitucional. da compatibilidade vertical dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, a cargo do Poder Judiciário, assume dessa forma a feição bastante ampla, o que desperta inevitavelmente a atenção para as questões de sua legitimidade democrática, da virtual tensão entre os âmbitos das funções estatais e dos riscos do chamado ativismo judicial.

O modelo albergado pela Constituição da República do Brasil, frise-se, de teor nitidamente substancialista, é possível identificar e sistematizar as três fontes primordiais que conferem à jurisdição constitucional sua legitimidade democrática.

A primeira delas diz respeito ao núcleo essencial da atividade típica que se reconhece à função jurisdicional no Estado Democrático de Direito, razão por que parece conveniente denominá-la funcional-material.

De acordo com Luigi Ferrajoli[9], as concepções da validade das normas no Estado constitucional[10] e da relação entre a democracia política (ou formal) e a democracia substancial se refletem em um reforço do papel da jurisdição e em uma nova e mais robusta legitimação democrática do Poder Judiciário e de sua independência. Isto é, os desníveis entre normas, que estão na base da existência de normas inválidas, e, por outro lado, a incorporação dos direitos fundamentais no estrato constitucional, transformaram a relação entre o juiz e a lei e vieram a assinalar à jurisdição uma função de garantia do cidadão frente às violações de suas prerrogativas essenciais por parte dos Poderes Públicos.

Nesta sujeição do juiz à Constituição e, em consequência, em seu papel de garante dos direitos constitucionalmente estabelecidos estão o principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Judiciário em face do Legislativo e do Executivo, ainda que sejam, ou precisamente porque são, Poderes de maiorias.

Os direitos fundamentais, sobre os quais se assenta a democracia substancial, exatamente porque estão assegurados a todos e inclusive contra as maiorias eventuais, servem para embasar, melhor que o velho dogma positivista da sujeição à lei, a independência do Poder Judiciário, que está especificamente concebido para a garantia dos mesmos.

Por conseguinte, o fundamento da legitimação da jurisdição constitucional não é outro senão o valor da igualdade como igualdade em direitos: a garantia dos direitos fundamentais exige um juiz  imparcial e independente, subtraído de qualquer vínculo com os Poderes de maiorias e em condições de censurar, como inválidos ou ilícitos, os atos mediante os quais aqueles se exercem.

Esta legitimação não tem nada a ver com a da democracia política, ligada à representação, e nem deriva da vontade da maioria, mas unicamente da intangibilidade dos direitos fundamentais, sendo, portanto, uma legitimação de natureza substancial.

Incumbe ao juiz constitucional fiscalizar tanto o legislador ordinário quanto o administrador público, quando violem a Constituição, independentemente do mérito dos atos legislativos, executivos ou administrativos.

Essa fonte funcional-material de legitimidade democrática, além de significar corolário lógico da estrutura escalonada do ordenamento jurídico e da posição de superioridade e prevalência da Lei Maior e dos direitos fundamentais nela insculpidos relativamente aos atos produzidos pelos Poderes Legislativo e Executivo, exsurge de forma positiva dos seguintes dispositivos da Constituição Federal brasileira  de 1988: art. 5.º, caput (isonomia e inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade) e inc. XXXV (inafastabilidade do controle jurisdicional); art. 36, III, combinado com o art. 34, VII (representação interventiva do Procurador-Geral da República perante o STF para assegurar a observância, pelos Estados, dos princípios constitucionais sensíveis); art. 97 (previsão da declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público pelos tribunais, exigindo para tanto o quórum de maioria absoluta dos seus membros ou dos membros dos respectivos órgãos especiais); art. 102, caput e seus incs. I e III e § 1.º (missão do STF de guardião da Constituição e competências originárias e recursal relacionadas com o controle de constitucionalidade); art. 103 (mecanismos processuais para o controle concentrado de constitucionalidade); e art. 125, § 2.º (previsão do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais e municipais em contraste com as Constituições Estaduais).

Ainda em prol de legitimidade democrática da jurisdição constitucional pode ser chamada de processual, visto que concerne ao modo pelo qual aquela se desenvolve, isto é, o processo. E, tal pensamento encontra em Elio Fazzalari[11] seu precursor, tem refutado ao processo a natureza de relação jurídica e reabilitado no seu conceito a noção de procedimento, compreendido como sucessão de atos normativamente disciplinados, vinculados reciprocamente e ordenados à preparação de um provimento imperativo, somado ao contraditório, percebido como garantia de participação nessa preparação, em situação de simétrica paridade, dos interessados, isto, daqueles que serão atingidos em suas esferas jurídicas pelo aludido provimento.

Processo[12], portanto, é uma espécie de procedimento, justamente aquela realizada em contraditório.[13]

Por sua vez, para Flaviane de Magalhães Barros, pode-se pretender a apropriação da teoria do processo como procedimento em contraditório como adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

Cabe frisar que o contraditório, nessa tendência doutrinária, além de passar a integrar a própria concepção de processo, deixou de ser visto nas limitadas expressões de ciência bilateral dos termos e atos do processo e possibilidade de contrariá-los, como deixou legado Joaquim Canuto Mendes de Almeida, ou de informação necessária e reação possível, na síntese de Sergio La China, para ser contemplado como garantia de participação em simétrica paridade no procedimento.

O contraditório ganha um significado, sobretudo político, pois confere ao processo judicial uma face democrática, legitimando-o como instrumento para o exercício do poder estatal sub specie jurisdictionis.

E, o processo jurisdicional é assumido, a partir dessa ótica, como um microcosmo da democracia participativa.

Trata-se da construção participada da decisão, reflexo da chamada visão cooperativa do processo. Outrossim, a decisão judicial necessita ser a mais correta, a mais justa, à luz dos elementos do caso concreto, pois o julgador, mesmo nas hipóteses que comportem mais de uma solução plausível, não ostenta poder de livre escolha ou discricionariedade.

O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação, decorrente de sua efetiva correspondência à ordem jurídica.

A jurisdição constitucional, seja por via de ação (controle concentrado de constitucionalidade), seja por via de exceção (controle difuso de constitucionalidade), sempre se exerce por meio do processo e culmina com um pronunciamento judicial.

E, nessa seara, quanto maior o espectro de abrangência dos efeitos do provimento, maior o número de entes legitimados a integrar o contraditório, isto é, a participar democraticamente do procedimento que precede sua formação e com ele se conclui.

Observe-se, por exemplo, que no âmbito do controle difuso de constitucionalidade[14], em que a questão constitucional é apreciada incidenter tantum, como verdadeira prejudicial, e o provimento jurisdicional emitido em princípio deverá operar efeitos apenas interpartes, a imprescindível participação será destas, com a eventual possibilidade de assistência ou intervenção de terceiros, nas formas dos arts. 50 e seguintes do Código de Processo Civil).

Ainda em prol de legitimidade democrática da jurisdição constitucional pode ser chamada de processual, visto que concerne ao modo pelo qual aquela se desenvolve, isto é, o processo. E, tal pensamento encontra em Elio Fazzalari seu precursor, tem refutado ao processo a natureza de relação jurídica e reabilitado no seu conceito a noção de procedimento, compreendido como sucessão de atos normativamente disciplinados, vinculados reciprocamente e ordenados à preparação de um provimento imperativo, somado ao  contraditório, percebido como garantia de participação nessa  preparação, em situação de simétrica paridade, dos interessados, isto é, daqueles que serão atingidos em suas esferas jurídicas pelo aludido provimento.

Processo, portanto, é uma espécie de procedimento, justamente aquela realizada em contraditório.19 Por sua vez, para Flaviane de Magalhães Barros, pode-se pretender a apropriação da teoria do processo como procedimento em contraditório como adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

De fato, o contraditório galgou um significado, essencialmente político, pois confere ao processo judicial uma face democrática, legitimando-o como instrumento para o exercício do poder estatal sub specie jurisdictionis. Assim, o processo jurisdicional é assumido, a partir dessa ótica, é encarado como um microcosmo da democracia participativa.

Trata-se da construção participada da decisão,24 reflexo da chamada visão cooperativa do processo.

Outrossim, a decisão judicial necessita ser a mais correta, a mais justa, à luz dos elementos do caso concreto, pois o julgador, mesmo nas hipóteses que comportem mais de uma solução plausível, não ostenta poder de livre escolha ou discricionariedade.

O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação, decorrente de sua efetiva correspondência à ordem jurídica.

Finalmente, merece registro uma terceira fonte, que se pode denominar técnico-profissional e que fornece à jurisdição constitucional uma legitimação por expressa delegação constitucional.

Conforme leciona Rodolfo de Camargo Mancuso, incumbe precipuamente ao Poder Judiciário a aplicação da norma de regência aos casos concretos que lhe são apresentados, tratando-se sempre de atuação a posteriori, dependente de provocação e balizada por esta, o que se explica pelo fato de que a legitimidade dos julgadores não apresenta origem popular, e sim de base técnica.

Ademais, como bem registra Luís Roberto Barroso, a maioria dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercitada por agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral, e cuja atividade é de natureza predominantemente técnica e imparcial.

Com efeito, o juiz, nos sistemas de tradição romano-germânica (Civil Law), não detém grande margem de liberdade criativa na aplicação do direito, estando jungido ao critério de legalidade, em sentido lato, isto é, deve se ater aos dados objetivos extraídos da Constituição e dos atos normativos em geral (leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos, portarias etc.), exigindo-se dele, por conseguinte, adequado preparo intelectual e técnico-científico e invulgares conhecimento e compreensão do ordenamento jurídico, além de idoneidade moral.

Eis porque a Lei Maior mesma, atenta às peculiaridades do labor judicante e à necessidade de se escolherem aqueles que em tese se mostrem mais aptos a exercê-lo, instituiu dois modos essenciais para a seleção e investidura originária de magistrados, quais sejam, no que concerne aos juízes de carreira, o concurso público de provas e títulos, realizado pelo respectivo tribunal (da União, dos Estados ou do Distrito Federal) e com a participação da OAB em todas as suas fases (art. 93, I, combinado com o art. 96, I, c, da CF/1988 , e, no que se refere a membros dos tribunais, a nomeação pelos chefes dos Poderes Executivos da União, dos Estados e do Distrito Federal (arts. 84, XIV e XVI, 101, 104, 107, 111, 119, II, 120, III, 123 e 125, da CF/1988

Em ambas, outrossim, a Carta Magna promoveu expressa delegação para essas escolhas: aos tribunais, na primeira, e aos chefes dos Poderes Executivos da União, dos Estados e do Distrito Federal, na segunda.

Superada a averiguação da legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira, cabe indagar quais os seus limites, ou seja, quais as fronteiras que, se transpostas, ensejarão clara invasão e usurpação das esferas de competências reservadas ao Legislativo e ao Executivo, bem como quais as cautelas necessárias para minimizar os riscos de um exagerado protagonismo do Poder Judiciário no trato de temas em princípio mais afeitos à esfera política.

Neste ponto, imperioso abordar os contemporâneos fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial.

A judicialização da política que paira entre os ativismos e passivismos. Novamente, o Ministro Barroso explana que a judicialização[15] significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais, isto é, o Congresso Nacional e o Poder Executivo, o que, como intuitivo, envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações marcantes na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade.

Para Rodolfo de Camargo Mancuso, a fim de que a expressão judicialização da política preserve a devida clareza e a densidade conceitual e não se disperse em indesejável vacuidade ou latitude excessiva, ela há que ter por significado o acesso à Justiça de controvérsias relativas às diversas políticas públicas programadas ou implantadas pelo Estado.

Se de um lado, judicialização e ativismo judicial são conceitos separados, que podem ser mensurados por diversos parâmetros, sendo possível cogitar, em tese, a judicialização sem ativismo (bastando que os juízes atenham-se aos limites propostos) e o ativismo sem judicialização (tomando-se, por exemplo, a ideia de judicialização como tendência, e a decisão ativista como um impulso isolado), de outro, é inegável que a judicialização facilita, ou, ainda, “abre as portas”, para o ativismo.

Eduardo Cambi, a seu turno, afirma que o direito constitucional judicializou a política, posto que esta, representada pelos conflitos sociais e pelos direitos fundamentais, historicamente sonegados, passou a ser um de seus temas, abrindo margem a uma relação de complementaridade entre ambos.

Três fatores podem ser arrolados como determinantes da judicialização da política no Brasil: (a) a redemocratização do país, cujo ponto culminante foi a promulgação da Constituição de 1988, que fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário e aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira; (b) a constitucionalização abrangente, que incorporou na Lei Maior inúmeras matérias antes deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária; e (c) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais amplos do mundo, combinando aspectos dos sistemas americano (controle incidental e difuso, por qualquer juiz ou tribunal) e europeu (controle concentrado por meio de ação direta) e concedendo a diversos órgãos e entes a legitimação para a iniciativa dos processos objetivos

Em acréscimo, o fenômeno não é gerado espontaneamente, nem é autopoiético, mas radica, remotamente, na recusa, na leniência ou na oferta insatisfatória de prestações primárias que deveriam ser disponibilizadas pelo Poder Público à população.

Essa postura ineficiente abre um vácuo que passa a atrair as demandas reprimidas e as insatisfações gerais, as quais, restando  sem atendimento e sem canal de expressão adequado, acabam se voltando para a instância que se apresenta quando as demais falham: o Judiciário.

Luís Roberto Barroso também esclarece habilmente o que se deve entender por ativismo judicial e quais as suas causas, características e relações com a judicialização[16]: “A judicialização e o ativismo judicial[17] são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política”.

Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance.

Normalmente, este se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.”

A postura ativista, por conseguinte, está associada a uma atuação mais incisiva do Poder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência nos âmbitos de atribuições do Legislativo e do Executivo, manifestando-se por meio de diferentes condutas, tais a aplicação direta da Lei Maior a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário, a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição, bem assim a imposição de ações ou abstenções aos Poderes Públicos, notadamente no que tange a políticas públicas.

Pode-se observar que a judicialização da política é atualmente inevitável em nosso país, dados o caráter analítico da Carta Magna de 1988 e o amplo acesso ao Poder Judiciário que ela garantiu. Ao introjetar a disciplina de determinadas matérias (ainda que prima facie de índole política) e lhes conferir assim feição normativa da mais alta estatura, a Constituição institui critérios jurídicos para a avaliação de condutas a elas relacionadas, cria situações subjetivas ativas e passivas e fomenta pretensões suscetíveis de serem deduzidas em juízo.

Ademais, devido à expansão do controle jurisdicional e do universo dos legitimados a invocá-lo, que não mais engloba apenas os titulares dos interesses substanciais contrariados ou insatisfeitos, tendo sido acrescido de outros órgãos e entidades aos quais se abrem as vias das ações coletivas e dos instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade, é certo que qualquer ato comissivo ou omissivo dos Poderes Legislativo e Executivo pode ser questionado e submetido à apreciação do Judiciário, que verificará sua conformidade com a ordem jurídica como um todo, em especial com o estrato constitucional, e concluíra, em caso positivo, por sua validade ou licitude, ou, em caso negativo, por sua invalidade ou ilicitude, julgando a causa de acordo com tal conclusão.

Trata-se de regular exercício da atividade típica do Poder Judiciário, que a este não é possível declinar quando presentes os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo e as condições da ação. Não há aí nenhuma invasão ou usurpação de competências alheias.

Destarte, o cerne da controvérsia não se situa na judicialização dos megaconflitos em si mesma, já que é uma virtualidade em um sistema que resguarda a universalidade da jurisdição, porém se desloca para outro foco, o dos excessos que, a partir daquela judicialização, podem vir a ser cometidos, mormente quando a conduta judicial revelar incapacidade de recepcionar e mensurar os elementos no entorno da questão central, que com ela compõem um só contexto, ou quando faltar ao magistrado percepção mais acurada e sensível no tocante ao balanço entre custo e benefício ou em face dos contingenciamentos financeiro--orçamentários a que estão sujeitos os órgãos e entes demandados.

Por isso, avulta a importância de serem tomados em conta pelo Judiciário, sempre que instado a se pronunciar sobre questão de natureza política, os critérios de sua capacidade institucional para melhor resolvê-la, em detrimento do locus deliberativo primariamente encarregado, e dos efeitos sistêmicos de sua decisão, isto é, dos perigos de repercussões externas imprevisíveis e indesejadas.

Tais cautelas, entretanto, não devem servir para intimidá-lo ou constrangê-lo no desempenho de seu nobre mister de guardião máximo da ordem constitucional.

Têm razão Ronald Dworkin e Eduardo Cambi, ao asseverarem que a transferência de poder político ao Judiciário certamente fará com que a maioria dos cidadãos, notadamente aquela imensa parcela destituída de privilégios, ganhe mais do que perca.

De fato, conquanto o aparato judicial se mostre imperfeito, em muitos casos será o último refúgio para a exigência de satisfação dos direitos fundamentais dos excluídos, não raras vezes completamente ignorada pelo Legislativo e pelo Executivo. Essa pretensão, deduzida perante os órgãos jurisdicionais, ao menos será analisada e receberá decisão fundamentada, ainda que contrária à sua tutela.

Portanto, a singela possibilidade da minoria de acessar o Poder Judiciário em busca de proteção aos seus interesses jurídicos já consubstancia um eficaz instrumento para impedir a ditadura da maioria. A jurisdição constitucional, assim, é capaz de estabelecer um compromisso constante entre a maioria e a minoria, em favor da paz social.

Outrossim, a sua intervenção não é irrestrita, dependendo, além da provocação dos legitimados, da constatação da infringência de preceitos da Lei Maior, mormente daqueles que consagram direitos fundamentais, hipótese em que não poderá se eximir de tutelá-los.

Em suma, trata-se da defesa de um ativismo judicial responsável, comprometido com a implementação das disposições constitucionais e com a efetivação dos direitos fundamentais de todos, todavia, ciente das limitações institucionais e técnicas inerentes ao Poder Judiciário e da necessidade de respeitar o jogo democrático e de motivar consistentemente as decisões que impliquem censura aos atos comissivos ou omissivos dos outros Poderes Públicos.

Dentro desse modelo ideal que se preconiza, algumas diretrizes merecem nortear o comportamento do juiz constitucional: (a) ele só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (b) deve guardar deferência relativamente às decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; (c) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação haverá, na medida do possível, que estar em sintonia com o sentimento social, porém sem resvalar para o populismo, posto que a conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, são condição para o funcionamento do constitucionalismo democrático.

Parece restar claro que os três dilemas do Estado Democrático de direito no constitucionalismo contemporâneo trazidos no presente texto somente têm soluções satisfatórias perante a realidade sociopolítica brasileira se não perdida de vista a Constituição da República de 1988, porquanto é apenas ela que pode fornecer o conceito de Constituição constitucionalmente adequado, de que dependem inexoravelmente as respostas aos questionamentos.

Do contrário, continuar-se-á no terreno das abstrações e elucubrações, sem muitos resultados úteis sob as perspectivas teórica e prática.

Fixada tal premissa, e realizada a leitura da Lei Maior guiada por aquelas indagações, não é difícil perceber que ela se filia ao paradigma substancialista, contemplando numerosos preceitos de conteúdo material e atribuindo à jurisdição constitucional, por conseguinte, a tarefa de torná-los efetivos, a par da também relevantíssima incumbência de resguardar a integridade das estruturas político-deliberativas da formação da vontade coletiva.

Noutro ângulo, a Carta Magna legitima democraticamente a jurisdição constitucional por meio de três fontes primordiais, que denominamos de funcional-material (legitimação de natureza substancial), processual (legitimação de natureza participativa) e técnico-profissional (legitimação por expressa delegação constitucional).

Por derradeiro, a concretização das disposições constitucionais demanda certo grau de ativismo judicial[18], o qual não deve ser leviano, tendo antes que respeitar critérios norteadores capazes de compatibilizá-lo com as exigências democráticas.

Conclui-se que a preocupação e o compromisso fundamentais dos cientistas e aplicadores do direito, mais do que com opiniões herméticas e formulações sistemáticas, hão que ser com o resgate das incumpridas promessas emancipatórias trazidas no art. 3.º da CF/1988, de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inc. I); garantir o desenvolvimento nacional (inc. II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inc. III); e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc. IV).

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Notas:


[1] Há muito, a ideia de jurisdição não pode mais ser compreendida como a atividade exclusivamente estatal, seja em razão do caráter jurisdicional da arbitragem (arts. 3º, § 1º, e 42 do CPC/15), seja pela notória evolução dos métodos adequados de resolução de conflitos, especialmente a mediação e a conciliação, considerados verdadeiros equivalentes jurisdicionais. “O convívio harmônico dos juízos arbitrais com os órgãos do Judiciário constitui ponto fundamental ao prestígio da arbitragem. Na escala de apoio do Judiciário à arbitragem, ressai como aspecto essencial o da execução específica da cláusula compromissória, sem a qual a convenção de arbitragem quedaria inócua.” STJ, REsp 1.331.100-BA, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. para acórdão Min. Raul Araújo, DJe 22/2/2016 (Informativo n. 577). 

[2] São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. O efetivo reconhecimento constitucional dos direitos sociais, por si só, determina, em qualquer circunstância, e mesmo em tempos de crise econômica, um núcleo “duro”, indisponível para os diversos agentes e poderes públicos e/ou políticos (inclusive os órgãos jurisdicionais) em matéria de atendimento às demandas sociais, de forma que esse mínimo constituirá, na ação desses diversos agentes e poderes, inclusive no âmbito da ação da Administração Pública uma barreira intransponível que obriga a uma permanente delimitação e demanda certa integração entre justiça e política, entre magistrados, legisladores e administradores.

[3] O Estado Democrático de Direito funda-se nos valores eleitos como mais relevantes pelo corpo social e estes mesmos axiomas alimentam o sistema jurídico, consolidando princípios que se tornam a base do Direito vigente. Nesse prisma, verificaremos a seguir quais são os valores informadores do texto constitucional brasileiro e os princípios que nele foram consolidados, a fim de identificar os parâmetros que devem ser observados em nosso Estado Democrático, fundado na dignidade humana.

[4]  Observam-se quatro tipos de “processos” (as aspas são devidas, pois se verificará que não se trata especificamente de processos, conquanto de procedimentos de modo geral): 1) os processos em que se tem a atuação do Estado por meio da Jurisdição—seriam os arquétipos processuais; 2) os “processos” nos quais se identifica convergência de interesses entre o Estado e o provocador, cabendo àquele a guarda e tutela dos interesses que lhe são confiados — não se verifica aqui a busca de um provimento no qual se exige um contraditório, de modo que se tem, em regra, mero procedimento; 3) os “processos” nos quais se enfatiza a atividade estatal, podendo ou não desenvolver-se na busca de um provimento final, situação na qual se faz imperioso o contraditório no procedimento; e, 4) o “processo” por meio do  qual o Estado determina as regras; trata-se da atuação do Poder Legislativo por meio de sua função típica, não objetivando provimento imediato, conquanto direção do Estado nas mais diversas formas. (FAZZALARI, 2006, p. 36).

[5]As formas de Estado são diferentes formas históricas de globalização estão associadas a formas bastante diferentes de Estados. Em comparação com aquele do início do século XX o governo contemporâneo é “grande”, na medida em que os Estados administram uma proporção significativa da renda nacional, empregam um número significativo de pessoas, e tem amplas responsabilidades não apenas pela administração da economia mas também pela segurança e o bem estar de seus cidadãos. Como uma consequência, a globalização tem tido provavelmente impactos políticos mais visíveis sobre os Estados desenvolvidos hoje do que em  comparação com os Estados menos intervencionistas e menos orientados pelo bem estar da era pré-1914. 

[6] Arthur Kaufmann (1872 — 1938) foi um advogado, filósofo e mestre de xadrez austríaco. Arthur Kaufmann deixa claro que as normas jurídicas completas ou autônomas não podem ser compreendidas como uma proposição declarativa, pois o seu conteúdo objetiva um alcance de maior proporção. Em verdade, tais normas jurídicas precisam ser entendidas como uma “ordem de vigência” ou “norma de valoração”, nas quais se encontram contidos os preceitos do que “deve ou não deve ser”. Em contrapartida, deve-se considerar também a existência de normas jurídicas “incompletas” ou “dependentes”, que, por resultado da compreensão da sua proposição antinômica, seriam aquelas nas quais faltariam alguns dos elementos necessários de autonomia ou completude, isto é, previsão factual, conexão ou consequência jurídica.

[7] Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios — como ninguém deve, aliás, nessa vida — impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.

[8] A primeira utilização da expressão “ativismo judicial” é creditada ao historiador Arthur Schlesinger, em artigo publicado na revista Fortune no ano de 1947. Em seu trabalho intitulado “The Supreme Court: 1947”, Schlesinger traça o perfil dos nove ministros da Suprema Corte dos Estados Unidos e faz uma divisão entre os ativistas (“Judicial Activists”) e os autocontidos (“Chanpions of Self Restraint”).

Ao abordar o tema, Kmiec cita interessante trecho da obra de Schlesinger, no qual o historiador apresenta um hipotético diálogo entre os ativistas e os auto-contidos:

Self-denial has thus said: the legislature gave the law; let the legislature take it away. The answer of judicial activism is: in actual practice the legislature will not take it away-at least until harm, possibly irreparable, is done to defenseless persons; therefore the Court itself must act. Self-denial replies: you are doing what we all used to condemn the old Court for doing; you are practicing judicial usurpation. Activism responds: we cannot rely on an increasingly conservative electorate to protect the underdog or to safeguard basic human rights; we betray the very spirit and purpose of the Constitution if we ourselves do not intervene.

[9] Luigi Ferrajoli (Florença, 6 de agosto de 1940) é um jurista italiano e um dos principais teóricos do Garantismo, definindo-se a si próprio como um juspositivista crítico. De acordo com Ferrajoli, garantias penais e processuais não são apenas garantias contra a arbitrariedade. "São a principal fonte de legitimação da jurisdição."  Para o professor, não é adequado comparar a operação "lava jato" com a e "mãos limpas" [mani pulite] italiana:  "nada nos permite apresentar hipótese de qualquer falta de imparcialidade dos juízes italianos e dos próprios promotores ou, pior, sua busca pelo consentimento popular ou da imprensa". Juiz por nove anos, Ferrajoli deixou a magistratura em 1975 para se dedicar exclusivamente à carreira acadêmica. Professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito, publicou "Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal", obra que o fez reconhecido internacionalmente e que sustenta seu pensamento de que sem garantias penais não há Justiça possível. Aos 80 anos, é um dos mais requisitados pensadores do Direito da atualidade.

[10]Para compreender o Estado Constitucional de Direito faz-se necessário relembrar que com a Revolução Francesa, inaugurou-se nova era, o chamado período legislativo ou primeiro positivismo. Esta última expressão remonta-se à Escola Exegética, que teve seu apogeu no século XIX. Pode-se considerá-la como vertente do método gramatical de interpretação, na qual predomina o subjetivismo histórico do legislador. Uma de suas características conforme alude Norberto Bobbio, é a influência do princípio da onipotência do legislador.

[11] Considerando que a teoria processualista de Élio Fazzalari é deveras importante para a compreensão da qualificação o acesso à justiça por meio do processo objetivo de constitucionalidade, bem como, que as concepções do objeto de estudo da teoria de base se devem às experiências do investigador, imprescindível, pois, emprestar-lhe especial atenção, uma vez que o resultado final suporta influência da trajetória percorrida no estudo. Importa destacar que o presente trabalho dedica-se ao aprofundamento na filosofia fazzalariana.

[12] O processo, como espécie do gênero procedimento, se denomina ou identifica em virtude do ato final que lhe põe fim, entrementes, esse ato deve representar o epílogo de um processo regular, que tenha garantido a paridade simétrica entre autor e contraditor. De modo que, se um ato da sequência processual é irregular, maculando a exigência do contraditório, todos os demais o serão, alcançando, por fim, o provimento final, de modo a repercutir na validade de todo o processo. Observa-se que a teoria fazzalariana identifica o processo não mais como relação jurídica angularizada, conquanto como procedimento em que as partes interessadas gozam de paridade de poderes, ou seja, do contraditório, possibilitando a visualização mais clara do processo de qualificação do acesso à justiça por intermédio da objetivação do controle difuso de constitucionalidade.

[13]A mudança no funcionamento do direito processual brasileiro e seus evidentes reflexos para os juízes e a sociedade, dando destaque ao artigo 10 do CPC vigente, que traz o contraditório inclusive nas matérias em que o juiz deva decidir de ofício, trazendo diferentes posicionamentos na doutrina e na jurisprudência. Registre-se ainda que cabe aos litigantes mesmo em processo judicial ou administrativo e, ainda, aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a esta inerentes. E, portanto, o artigo 10 do CPC traz um novo contraditório.

[14] Entendimento tradicional: no controle difuso, os efeitos serão INTER PARTES e EX TUNC (retroativos). Contudo, o STF já entendeu que, mesmo no controle difuso, é possível dar efeito ex nunc ou prospectivo (RE 197.917) – modulação dos efeitos.

Vide INFO 886: o STF entendeu pelo efeito vinculante de declaração incidental de inconstitucionalidade em sede de processo objetivo. Essa decisão, assim como acontece no controle abstrato, também produz eficácia erga omnes e efeitos vinculantes (ADI 3406/RJ e ADI 3470/RJ, j. 29/11/2017).

Controle Difuso Incidental: todas as normas podem ser questionadas (normas estaduais, distritais, municipais, secundárias, etc.)

[15] A expressão “judicialização das relações sociais” refere-se ao fenômeno da expansão do poder judicial no âmbito das relações socioeconômicas, caracterizado pelo aumento geral de regulação e pela incorporação dos métodos e estruturas tipicamente associadas ao Poder Judiciário no seio da vida privada e das organizações particulares, bem como pelo incremento da interferência ou da efetiva transferência, para o Poder Judiciário, de deliberações de questões particulares, como o aumento da demanda por serviços judiciários.

[16] O fenômeno se estabelece, é possível destacar três processos: a “juridificação”, isto é, de expansão do

direito e da jurisdição no Estado e na sociedade; a “judicialização por transferência”, estabelecendo maior interferência do Poder Judiciário nas questões políticas e relações sociais, e, ainda, a “judicialização por incorporação”, com a internalização de argumentos e critérios jurídicos, métodos e procedimentos judiciais, organização e estruturas judiciárias, em outras esferas de atuação fora da própria esfera judicial.

[17] É evidente que não podemos cogitar de ativismo judicial sem falarmos da judicialização, pois são temas que se entrelaçam e algumas vezes se confundem. O ativismo judicial é uma atitude, ou melhor, uma escolha de um modo específico e proativo que o Poder Judiciário possui de interpretar a Constituição, muitas vezes, expandindo seu sentido e seu alcance. Assim, podemos observar o ativismo judicial, por exemplo, nas situações que envolvem o Poder Legislativo (classe política) e a sociedade civil, principalmente quando nessa relação as demandas sociais não venham ser atendidas efetivamente. Fica claro que o ativismo judicial é uma tentativa do Poder Judiciário de ter uma participação mais ampla e intensa na concretização de fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros poderes. Sob uma ótica mais garantista, podemos dizer que o ativismo judicial é um importante elemento no desenvolvimento dos direitos fundamentais no Brasil. Contudo, tal atividade deve estar balizada em critérios compatíveis com o princípio da divisão dos poderes, com as normas constitucionais e com o princípio democrático.

A judicialização, portanto, significa que algumas questões de grande repercussão política ou social estão sendo resolvidas pelo Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais, como Congresso Nacional e Poder Executivo. Assim, a judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política.

Importante destacar que na judicialização, o Poder Judiciário é devidamente provocado a se manifestar e o faz nos limites dos pedidos formulados. O tribunal não tem a alternativa de conhecer ou não das ações, de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez preenchidos os requisitos de cabimento.

A judicialização não decorreu de uma opção ideológica ou filosófica do Judiciário, pois esse decide em cumprimento, de modo estrito, ao ordenamento jurídico vigente.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Estado Democrático de Direito CF/88 Jurisdição Constitucional Democracia

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