Entre o Bardo e o Bruxo

O ilustre e renomado escritor inglês William Shakespeare fora chamado em seu tempo de "O Bardo", em referência aos antigos poetas, cantores, trovadores e contadores de histórias da Europa, que viajavam levando as histórias colhidas nas mais diversas culturas. Já o “Bruxo do Cosme Velho” adquiriu o apelido devido a queimar[1] papéis num caldeirão em seu quintal da sua casa situada no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Entre ambos os escritores, a crítica e a ironia, além do pessimismo foram as marcas indeléveis dos que se debruçaram sobre o abismo da natureza humana.

Fonte: Gisele Leite

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Machado de Assis[2] foi um grande leitor de Shakespeare, principalmente das obras Othelo, Hamlet e Macbeth. O personagem principal de “Ressurreição” (1872), seu primeiro romance, era o rico, entediado e ciumento Félix.

Luís Batista torna-se Iago, o segundo-tenente do general mouro, disposto a provocar ciúmes no incauto Félix. Othello mediado por Iago envolvido com ciúmes, ao encontrar provas da traição de Desdêmona, demonstra-se descontrolado. Todo amor se transforma em fúria e ódio em exaltação sem medida.

No romance “A Mão e a Luva” (1874), o tímido e apaixonado Estevão decidiu morrer logo no primeiro capítulo. Esta passagem é muito semelhante à terceira cena do Primeiro Ato de Othello. Rodrigo, desanimado com a anunciada ida de Desdêmona para Chipre, toma uma decisão extrema: “Vou me abater incontinente”

Na primeira cena da peça, Iago diz ao amigo Rodrigo, referindo-se a Otelo: “Servindo a ele, estou servindo apenas a mim mesmo” (In following sim, I follow but mel). Em “Helena”, há três referências a Othello.

Em “Iaiá Garcia” (1878) o escritor revelou que o viúvo Luís Garcia, pai da protagonista, não se casou por amor ou interesse, casou-se apenas por ser amado.

Othello, referindo-se a Desdêmona, admitiu que me amava pelos perigos por que passei, e eu a amava porque ela se comovia com eles. Toda a idealização da relação entre amantes é completamente shakespeariana.

O escritor é tão convincente que o leitor não pode deixar de ver em Capitu uma autêntica Desdêmona brasileira e, portanto, inocente. Capitu não morre como Desdemôna, mas seu banimento assemelha-se a uma morte em vida.

Machado de Assis deu o título de “Uma Ponta de Iago” ao Capítulo LXII de Dom Casmurro, devido ao ciúme sofrido por Bentinho. Já no capítulo LXXII, Otelo, Desdêmona e Iago são mencionados nominalmente. Há também neste capítulo uma bela tradução machadiana da fala de Othello acima mencionada.

O mouro rolou de raiva convulsivamente e Iago destilou sua calúnia. Tais eram as ideias que me passavam pela cabeça, vagas e obscuras. No romance seguinte, “Esaú e Jacó” (1904), o autor se pergunta, no capítulo LVIII, ‘como se mata saudades’.

Assim como o apaixonado Rodrigo, em Othello, outros dois personagens dos contos machadianos fingem ser tolos a ponto de se afogarem por amor. Em “Um Capitão de Voluntários”, um dos personagens confessa: “Pensei em entrar no barco de Niterói e, no meio da baía, me jogar no mar”.

As palavras país desconhecido fazem parte do famoso solilóquio “Ser ou não ser, eis a questão”. A expressão país descoberto aparece no poema de Machadiano como “este eterno país misterioso”. O famoso solilóquio aparece como referência em alguns contos. Em “A Mulher de Preto”, Estêvão reconhece: “Aqui estou na dúvida de Hamlet”

No conto “Aurora Sem Dia', há a seguinte descrição da personagem Luís Tinoco: “Colheu de outras produções um acervo de alusões e nomes literários, com os quais fez as despesas da sua erudição” Nos contos “Troca de Datas”, Machado de Assis citou no original: That is the rub, sem traduzir a frase ou referir-se à sua origem. O mesmo ocorre na crônica “História de 15 Dias”.

Machado fez muitas referências a Ofélia, namorada do príncipe Hamlet. Um de seus poemas é justamente uma paráfrase chamada "A Morte de Ofélia". No conto “A Chave”, Machado cita no original a famosa frase de Laerte: Água demais tens, pobre Ofélia![3]

No conto “A Cena do Cemitério”, a passagem é incorporada a um sonho do protagonista. Machado registra o seguinte comentário sobre a resposta evasiva de Hamlet a Polônio: “Se eu tivesse que dar o título de Hamlet em linguagem puramente carioca, traduziria a famosa resposta do Príncipe da Dinamarca”

Machado de Assis  era um leitor de Macbeth e usou a frase "O que está feito está feito" em várias ocasiões. Os exemplos mais expressivos estão nos romances. Em outra linha bem conhecida, Lady MacBeth, sonâmbula, tenta lavar as mãos de manchas de sangue imaginárias.

Madame Macbeth também é destaque na crítica “A Nova Geração”, em versos do poeta e ensaísta francês Charles Baudelaire. As três bruxas que apareceram ao general Macbeth e seu colega Banquo estão presentes em dois romances de Machado. Em “Esaú e Jacó”, as promessas das feiticeiras são devidamente parodiadas.

O fantasma do general Bancho, que tanto assombrou Macbeth, é mencionado de passagem na crônica “História de 15 dias”. Na peça original, ao comentar sobre a escuridão da noite, Bânquo diz ao filho Fleance: “Há economia no céu, suas velas estão todas apagadas”.

A tragédia dos infelizes amantes de Verona é outra das predileções de Machado. Curiosamente, há poucas referências a eles nos romances. A presença mais expressiva do casal apaixonado encontra-se nos contos. A inimizade familiar não impediu os jovens de se amarem, mas é necessário ir a Verona.

"Romeu e Julieta" estão presentes em três poemas de Machado de Assis, todos do livro “Falenas”. O conto” Lágrimas de Xerxes” é um curioso diálogo entre Frei Lourenço e os noivos antes do casamento. Em “Pálida Elvira”, nosso poeta disse: "Bem sei que é um preceito dominante Não misturar comida com amor".

A magia e o encanto dessa comédia sofisticada, que envolve fadas e um elfo desajeitado, a tornaram a mais presente na obra de Machado de Assis. Em “Iaiá Garcia”, no capítulo XI, o personagem Procópio Dias diz que “nada se deve imputar aos dementes e aos amantes”

Numa crônica de 23 de abril de 1893, aniversário de Shakespeare, Machado encerra sua crônica aludindo à data assim: “E vamos acabar aqui, vamos acabar com ele, que a gente vai acabar bem”. Na crítica intitulada “O Teatro de José de Alencar”, de março de 1866, Machado comenta a peça de Alencar “O Demônio[4] Familiar”.

A tragédia de “Júlio César” é mencionada em apenas duas crônicas machadianas. Na primeira, Machado se refere à “multidão, a eterna multidão forte e móvel, que execra e grita contra César, ouvindo Bruto”. que pode ser convocado para comparecer ao serviço a qualquer momento?

Machado de Assis usou uma de suas falas da comédia “Medida por medida” como prólogo de seu romance Ressurreição. O autor volta a referir-se à peça numa crónica de 16 de setembro de 1888, traduzindo o título original “Como queres” para “Como aprovador a Vossa Excelência”.

Machado de Assis  se referia a um personagem de Otelo como “o pão amargo do desterro”. O chamado “pão amargo” também aparece no capítulo XXVI do romance Helena. Também é possível que Charmian, uma das criadas de Cleópatra, tenha inspirado o nome da “bela Charmion, palmeira única, deitada ao sol do Egito”.

Além de Ofélia, Machado citou outras três personagens femininas das peças de Shakespeare. A primeira dessas três é Imogene, a infeliz filha do rei na peça Cymbeline. A segunda é Miranda, a filha caçula de Próspero em “A Tempestade” A terceira personagem é a destemida Viola, de “Noite de Reis”

Ao reler Machado de Assis o que representou  a maior homenagem que se pode prestar a Shakespeare. Que deu frutos como, por exemplo, de Helen Caldwell, que viu nele “uma joia que deveria causar inveja ao mundo inteiro”. , ele só poderia compô-lo, pois não deixou intacta nem uma fibra do coração humano”.

Shakespeare quebra as unidades de tempo, espaço e ação. Machado inverte a tragédia, incorpora o drama ao romance e, assim, mescla os gêneros, à semelhança do inglês, reforçando que o trágico tem cores cômicas”, analisa a pesquisadora.

Eis que Machado criou uma terceira via para o romance, uma outra maneira de observar, em que predomina uma descrição mais robusta do universo interior dos personagens, oferecendo-lhes uma psicologia plenamente individualizada.

“E como Machado de Assis fez isso? Optando por uma espécie de anacronismo deliberado e buscando na literatura do Renascimento[5] (Cervantes, Shakespeare, Dante e Camões) determinadas maneiras de falar sobre valores humanos que pertencem à vida moral, ao mergulho do eu, ao terreno da dúvida, à avaliação do indivíduo, e à capacidade de fingir”, analisa.

“Com isso, adensa os personagens fazendo com que tenham uma relação complexa com o tempo[6], ou seja, que eles percebam que mudaram entre o começo e o fim da história.”

O procedimento de paródia peculiar na obra de Machado de Assis se apresenta como uma ironia à tragédia, à ideia da morte e todos os valores mais requintados. No texto de Machado de Assis não há preocupações metafísicas e tudo é colocado no mesmo nível - o material.

Machado de Assis[7] está, assim, vulgarizando e materializando a própria ideia da morte, mostrando as caveiras sendo exploradas, em seu aspecto material através das companhias “Batatas econômicas” “Balsâmica” e, também, no aspecto espiritual, pelas companhias “Salvadora” e “Pronto alívio”. Isso porque, para o próprio narrador, essas não eram “bem títulos nem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos nos olhos, dentes por assinaturas”.

Cumpre notar que o ciúme é tema principal na tragédia de Shakespeare, na obra Othello, por causa dele, Desdêmona é estrangulada pelo marido que crê que esta tenha cometido adultério com seu amigo Cássio.

Na obra “Dom Casmurro”, o mesmo ciúme compareceu e gerou a desconfiança em Bentinho, com relação ao seu amigo Escobar.  Aliás, Bentinho, após assistir à peça teatral de Othello, o Mouro de Veneza, se imaginou no papel de Othello e Capitu, no da personagem Desdêmona.

Capitu é apresentada na obra machadiana através dos olhos de Bentinho, o narrador-personagem e é somente através do seu depoimento, que é possível conhecer as características de Capitu. Cada vez mais, autores e críticos trazem a personagem Capitu para a atualidade, discutindo-a, analisando-a ou comparando-a com Desdêmona. Essa análise contínua comprova a imortalidade do perfil feminino de Capitu.

Em ambas as obras dos escritores,  pude realizar interessantes incursões em vários ramos do Direito, como o Direito de Família, o Direito Civil, o Direito Penal, Direito Constitucional e até mesmo o Direito Previdenciário. Os dramas, as tragédias e mesmo as comédias foram muito úteis em casos concretos que não perderam a contemporaneidade sobre preciosos debates doutrinários e jurisprudenciais.

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Referências

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1994.

CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

LEITE, Gisele. A contemporaneidade de Coriolano. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/a-contemporaneidade-de-coriolano Acesso em 08.01.2023.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955.

SHAKESPEARE, W. Otelo. São Paulo: Escala Educacional, 2005.

Notas:

[1] Diz a lenda que ele queimou várias cartas em um caldeirão no sobrado situado nesse endereço, fazendo a vizinhança o chamar de “O Bruxo do Cosme Velho” – alcunha que só se popularizou quando o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu “A um bruxo, com amor”, no qual reverencia a vida e a obra de Machado de Assis.

[2] Machado de Assis foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897, ao lado de ícones como Olavo Bilac, Visconde de Taunay e Ruy Barbosa. Sua cadeira, a de número 23, já foi ocupada por outros escritores famosos, como Lafayette Rodrigues Pereira, Jorge Amado e Zélia Gattai. Desde 2013, a posição pertence a Antônio Torres. A inspiração para a ABL, da qual Machado foi o primeiro presidente, veio da Academia Francesa de Letras.

[3] No caso de Ofélia e seu contexto, o suicídio fora o seu último gesto de desespero, enquanto Justine ainda sobrevive, na metáfora completa da melancolia e o planeta que nunca a deixa, como a depressão. Tanto Ofélia quanto Hamlet se correspondem em suas relações com a loucura.

[4] Se observarmos com cautela o Antigo Testamento, constataremos que não existe  menção ao Diabo. O Diabo nasceu, fecundou e procriou junto com o cristianismo. No  Antigo Testamento temos o episódio da tentação e da serpente que provocou a queda  de Adão e Eva^ relatado em Génesis , depois o ritual envolvendo o dia da expiação  e o bode expiatório em Levítico 16, e, mais à frente, o surpreendente Livro de Jó, no  qual aparece pela primeira vez Satanás. Com relação ao episódio da serpente, provavelmente foi escrito por influência de mitologias ou lendas de outras culturas no Oriente  Médio com as quais os judeus tiveram contato, já que a serpente, nessas culturas, era  símbolo de sabedoria, astúcia e poderes maléficos, e foi por isso tardiamente associado  ao Diabo'.

[5] A literatura renascentista é caracterizada pela adoção de uma filosofia humanista e pela recuperação da literatura clássica da Antiguidade, e se beneficiou da disseminação da impressão na última parte do século XV. O termo "Renascimento" foi criado no século XVI para descrever o movimento artístico que surgiu um século antes. Posteriormente acabou designando as mudanças econômicas e políticas do período também e é muito contestado hoje em dia. O conceito "Renascimento" carrega a ideia de que esse período trouxe profundas e drásticas mudanças para o contexto europeu. Porém, apesar de ter sido um momento de alterações consideráveis para o velho continente, não houve uma total ruptura com as características existentes na Idade Média. Afinal, mesmo considerando as mudanças urbanas e no comércio, as cidades nunca desapareceram totalmente e os povos não deixaram de comercializar entre si, nem de usar moeda. Houve, sim, uma diminuição dessas atividades durante a Idade Média.

[6] "O tempo é muito lento para os que esperam Muito rápido para os que tem medo Muito longo para os que lamentam Muito curto para os que festejam. Mas, para os que amam, o tempo é eterno". William Shakespeare

[7] A parte do bruxo é um pouco mais curiosa e até mesmo divertida: dizem que certa vez, quando morava no Cosme Velho, Machado queimou algumas cartas em um caldeirão no sobrado onde vivia. A vizinhança viu o ato e passou a chamá-lo de bruxo a partir daquele dia.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Machado de Assis William Shakespeare Filosofia Sociologia Direito

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