Ele não era branco. Negro, pobre, gago e epilético e o maior escritor do Brasil

A sutileza e ironia sofisticada de Machado de Assis para com a questão da escravidão pode ter sido responsável para que a militância negra não dirigisse ao Bruxo do Cosme Velho todos os tributos merecidos e rendidos a outras personalidades brasileiras que eram afrodescendentes. Infelizmente, o movimento negro contemporâneo também tratou o escritor como um colaboracionista. O que é simplesmente inverídico e indigno.

Fonte: Gisele Leite

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Em 1838, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil que abrigava parcos trezentos mil habitantes, em sua grande maioria escrava. Eis que estava iluminada por lampiões a azeite de peixe, tem transporte precário por tração animal e ambiente insalubre pelas ruelas estreitas. Apesar de tantas belezas naturais mergulhadas e sufocadas pela extrema falta de higiene.

Existiam apenas quatro canais que carregavam os esgotos para o mar e mangues. Nem existiam fossas sanitárias. Os dejetos domiciliares o que incluía fezes e urina eram levados para as praias em carroças ou em tonéis que eram carregados na cabeça por escravos chamados de tigres (pois tinham na pele as marcas daquele serviço).

As doenças epidêmicas mataram muitas pessoas e, os morros do Rio de Janeiro abrigavam estabelecimentos militares, ordens religiosas enquanto os ricos em suas chácaras e casarões.

Seu pai um pardo forro[1] e sua mãe uma açoriana, Maria Leopoldina que se casam em 19 de agosto e, depois, em dez meses nascia em 21 de junho de 1839 Joaquim Maria Machado de Assis, que recebeu esse nome em homenagem aos seus padrinhos.

Teve uma infância pobre e difícil, sua mãe morreu de tuberculose quando ainda tinha apenas nove anos e, também sofria das crises de epilepsia. Sua educação era deficiente mas fora compensada pela caridade dos patrões de seu pai e pelo autoditatismo dele.

Apesar da obra de Machado de Assis escancarar a existência da escravidão e o racismo, alguns levianamente acusaram-no de ter negado a sua origem negra. Por mais de um século o perfil de Machado de Assis fora ditado por uma elite branca a “dona da cultura” brasileira.

Afinal, reconhecer que o maior escritor brasileiro era afrodescendente seria uma ofensa num país doente por racismo estrutural. Os disparates que foram ditos e apontados como para camuflar a real identidade de Machado de Assis são impressionantes.

Aliás, o uso de barba e bigode era quase que obrigatório entre os homens de seu tempo, mas alegam os detratores que era apenas para disfarçar seus traços negroides. Isso sem falar dos polêmicos retoques nos retratos da época.

Afrodescendente em pleno período escravista, escrevendo em jornais lidos pela elite, trabalhando em empregos públicos e vivendo de aluguel, era natural que Machado não tivesse uma atuação militante e panfletária, ressalta Assis Duarte.

Caso contrário, certamente, seria perseguido. A opção, então, veio na fina ironia e na dissimulação como “autor-caramujo” em suas obras para denunciar a escravidão.

O livro de Assis Duarte destaca, então, trechos representativos do tema em Ressurreição (1872), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Casa velha (1886), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1901) e Memorial de Aires (1908) e ainda de crônicas, contos e poemas de todas as fases da vida de Machado[2].

O tom e o ritmo narrativo de Machado de Assis é contrário ao pensamento hegemônico da época. Ele firmemente ironizava o chamado “escravismo benigno” praticado pelo colonizador e desaprovava a  visão sobre a miscigenação.

A ideologia veio aprimorar ao longo do século passado a construir uma leitura do passado histórico sob a moldura do mito da democracia racial[3] para apenas substituir a brutalidade pela tolerância e o rebaixamento do outro pela mestiçagem.

Outro exemplo da postura contrária de Machado de Assis ao sistema então vigente é o racismo brutal apresentado no conto “Pai contra mãe”[4], que mostra como um capitão do mato (caçador de escravos foragidos), obrigado a entregar o filho recém-nascido para adoção por não ter como sustentá-lo, captura uma escrava fugitiva e fica indiferente quando ela aborta na sua frente.

Sua reação é: “Nem todas as crianças vingam”[5]. Se isso não for denúncia contra a escravidão, o que será? Essa era a forma de Machado, sem ser militante, denunciar as atrocidades escravistas do seu tempo[6].

A crítica sociológica vê no conto aspectos inteiramente capitalistas e maquiavélicos; existe uma certa "coisificação" do homem quando os senhores,  donos e libertos enxergam os escravos como meras mercadorias e objetos, como atenuado na passagem [...] grande parte [dos escravos] era apenas  repreendida; havia alguém em casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói.

A crítica social[7] do conto machadiano é dada também através de perfis psicológicos das personagens. Assim como muitas obras anteriores de Machado de Assis, é inspirado em Voltaire[8]; seu Cândido, ou “O Otimismo” possui um protagonista homônimo que é otimista e sempre procura o lado positivo das situações, seguindo os ensinamentos de seu mestre Panglós, e que é sensível, apaziguador e sensato; de forma irônica, o Cândido machadiano é insensível e egoísta, como mostra-se quando ignora o pedido da escrava grávida e a arrasta pelas ruas a fim de conseguir dinheiro.

Ao lado do capítulo LXVIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que um escravo liberto compra um escravo para si próprio, tratando-o e batendo nele tal qual apanhava na infância, este conto é considerado como um dos retratos mais brutais e impressionantes da escravidão no Brasil[9].

Referências

BLOOM, Harold. Gênio. Os Cem Autores Mais Criativos da História da Literatura. Tradução de José Roberto O'Shea. São Paulo: Editora Objetiva, 2003.

DARK BLOG. Medo Clássico. Redescobrindo Machado de Assis: Um intelectual negro. Disponível em: https://darkside.blog.br/redescobrindo-machado-de-assis-um-intelectual-negro/ Acesso em 25.2.2023.

DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: antologia e crítica. São Paulo: Malê, 2020.

GARCIA, Fernando. Astrojildo Pereira e a última visita a Machado de Assis. Disponível em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/astrojildo-pereira-e-a-ultima-visita-a-machado-de-assis/ Acesso em 25.2.2023.

O Bruxo Jurídico. Live. Disponível em:  https://www.youtube.com/live/aOLNgjVy6Bg?feature=share

Machado de Assis ocultava suas origens? Disponível em:  https://youtu.be/9Wfjviede0U

LEITE, Gisele. O Bruxo Jurídico (três tomos). São Paulo: Palavra é Arte, 2023.

NECCHI, Vitor. A polêmica tentativa de embranquecer Machado de Assis.  Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7177-a-polemica-tentativa-de-embranquecer-machado-de-assis Acesso em 25.2.2023.

NOGUEIRA, Paulo. Conheça o verdadeiro Machado de Assis: negro e crítico da escravidão. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2020/06/26/interna_pensar,1159969/conheca-o-verdadeiro-machado-de-assis-negro-e-critico-da-escravidao.shtml Acesso em 25.2.2023.

PEREIRA, Lucia Miguel. Machado de Assis. Estudo Crítico e Biográfico. 6ª edição. Brasília: Edições do Senado Federal, 2017.

E SILVA, Mateus Lôbo de Aquino Moura. Casa-Grande & Senzala e o Mito da Democracia Racial. Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/papers-39encontro/gt/gt28/9704-casa-grande-e-senzala-e-o-mito-da-democracia-racial/file Acesso em 25.2.2023.

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Notas:


[1] Filho de uma lavadeira e de um pintor negro, Machado é celebrado por obras como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, além de inúmeros poemas, contos e crônicas. Ele também foi jornalista, crítico literário e dramaturgo, além de um dos fundadores e presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), ao lado de amigos intelectuais e escritores como Júlia Lopes de Almeida, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Afonso Celso, Inglês de Souza e Medeiros e Albuquerque.

[2] Em 69 anos, o Bruxo do Cosme Velho conseguiu abordar uma pluralidade de assuntos tão densa e diversa quanto os gêneros que trabalhou. Caçoou dos jogos políticos e do cinismo dos mais abastados, expôs as fraquezas, os arrependimentos e as ilusões humanas com a mesma concisão com que tratou temas universais como o amor, a ganância e o ciúme. Morreu na primavera de 1908 cercado de amigos e, dali em diante, tornou-se ainda mais imortal. Não podemos deixar de concordar com Harold Bloom.

[3] Desde 1966, a data de 21 de março foi consagrado do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, nem sempre lembrada e muito menos respeitada. No presente século, o pretenso símbolo de futuro, o Brasil continua a deixar a população negra liderando as trágicas estatísticas que culminam em mortes, desemprego e de analfabetismo, entre outras. O mito da democracia racial não nasceu em 1933, com a publicação da obra "Casa-grande & senzala, mas ganhou através dessa obra a sistematização e até status científico. O referido mito tem o seu nascimento quando estabelece uma ordem, pelo menos do ponto de vista do direito livre e minimamente igualitária. "Autores como Kabengele Munaga, o saudoso sociólogo brasileiro e professor da USP Florestan Fernandes, o artista e político Abdias do Nascimento, a escritora Conceição Evaristo, entre outros nomes, são os responsáveis por desmistificar a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil."

[4] É um dos contos mais sérios e pesados do autor, pois trata do período da escravidão no Brasil. Começando com o famoso trecho “a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais [...]”, Machado mostra diferentes métodos usados pelos senhores de escravos para “educá-los” de seus “vícios” e explicita a dura realidade enfrentada pelos escravos que tentavam fugir de seus locais de trabalho forçado. “Pai Contra Mãe” se passa no Rio de Janeiro, nos fins do Segundo Império. É narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente e onipresente, que fala com o leitor em um  tom melancólico e muitas vezes irônico, para mostrar a dura realidade dos escravos. O conto inicia-se com uma explicação por parte do narrador acerca de algumas atividades e produtos relacionado ao período da escravidão no Brasil, principalmente aqueles que serviam para repressão e castigo de negros que tentavam fugir, mostrando artefatos tenebrosos, como coleiras de ferro, máscaras de ferro e outros utensílios de castigo físico. O narrador também explica sobre um ofício muito famoso nessa época: o de caçador de escravos fugidos, trabalho que era feito por aqueles que não conseguiam encontrar sucesso  em outras profissões. Esse é o caso do protagonista da história, Cândido Neves, que depois de tentar passar por todo o tipo de trabalho e falhar, resolve virar caçador de escravos. Ele é apaixonado pela jovem Clara, e ambos desejam viver uma vida estável e estabelecer uma família. Clara vivia com sua tia Mônica, a qual ajudava no ofício de costureira, que logo avisou-os que eles não tinham recursos para ter uma criança e que não conseguiriam mantê-la. Apesar disso, os dois decidem ter um filho, e Clara engravida. Cândido passa a ter muito azar com sua caça, pois os escravos fugidos já conheciam sua fama e havia muitos outros homens que estavam se tornando caçadores. Assim, cada vez mais a situação financeira do casal vai piorando, ao ponto de serem ameaçados de despejo por causa do aluguel atrasado. Com isso, a tia Mônica aconselha-os a entregarem a criança à Roda dos Enjeitados, local em casas de caridade que aceitava filhos indesejados. O casal sempre foi contra  a ideia, porém, quando Clara tem a criança (era um menino, o que Cândido mais queria) e ambos se veem em uma situação financeira impossível, decidem acatar a tia e levar a criança para lá. Com muita relutância, Cândido leva a criança para a Roda dos Enjeitados, mas no meio do caminho depara-se com a escrava Arminda, cuja captura poderia lhe render uma boa quantia de dinheiro, que o faria poder manter o filho. Apressadamente, deixa a criança em uma farmácia, cujo proprietário havia conhecido na véspera, e parte em busca da escrava. O final de “Pai Contra Mãe” é extremamente cruel: Cândido alcança a escrava e a amarra. A moça revela que estava grávida e que tinha medo dos castigos físicos que iria receber, mas mesmo assim, Cândido ignora seus apelos e em meio à luta por libertar-se, a escrava acaba abortando. Depois disso, Cândido entrega-a para seu dono, recebe o dinheiro da recompensa e retorna para sua casa com o filho nos braços, sem nenhum peso na consciência no fato da escrava ter abortado, pois de acordo com ele “nem todas as crianças vingam...”. A escolha do título “Pai Contra Mãe” fica evidente aqui: Cândido, por precisar do dinheiro da captura da escrava para manter seu filho (para ser um pai), acaba negligenciando e  confrontando a mulher grávida, fazendo-a perder seu filho (a mãe perde para o pai no confronto). Além disso, Machado mostra uma sociedade maquiavélica e capitalista, que apenas vê os escravos como “coisas” desprovidas de qualquer humanidade, o que pode ser comprovado pela falta de remorso de Cândido ao provocar o aborto da escrava. Também podemos ver a ironia presente no nome do protagonista e de sua esposa, que remetem à cor branca, muito simbólica nesse  contexto de repressão aos escravos africanos.

[5] Sem saída, Cândido decide levar o filho à Roda dos Enjeitados para que o bebê não morresse de fome mas, pelo caminho, encontra uma escrava fugitiva e, na esperança de obter uma boa recompensa, persegue-a. Cândido consegue capturá-la, mas ela suplica liberdade, afirmando que está grávida e não quer um filho escravo. O caçador ignora e entrega a escrava a seu dono. A mulher aborta a criança que esperava, enquanto Cândido recebe dinheiro pela caça e retorna com melhores meios pelos quais sustentar seu filho e esposa. O conto termina com a frase de Cândido: Nem todas as crianças vingam...

[6] http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdf

[7] José de Alencar, a quem Machado admirava, foi ativista contra a abolição. Mesmo assim, Machado o escolheu como o patrono de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras.

[8] François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês. Tornou-se historiógrafo real em 1745 e foi eleito membro da Academia Francesa.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Literatura Racismo Escravidão Machado de Assis Sociologia História do Brasil

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