Considerações sobre a Lei Henry Borel ou Lei 14.433/22

A Lei Henry Borel veio alterar o Código Penal brasileiro ao considerar o homicídio contra menor de quatorze anos um tipo qualificado com pena de reclusão de quatorze a trinta anos, majorada de 1/3 à metade se a vítima é pessoa com deficiência ou tem doença que implique em aumento de sua vulnerabilidade. Seguindo os moldes da Lei Maria da Penha, a lei empenha-se em reprimir a violência doméstica e familiar em face de criança e adolescente.

Fonte: Gisele Leite

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Os alarmantes índices de violência doméstica e familiar contra a criança e adolescente vieram propiciar a lei em comento. Aliás, desde a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) tem-se criticado a ausência de regras protetivas especiais para a violência no âmbito doméstico e familiar e também contra outros hipossuficientes, particularmente, crianças e adolescentes.

A lei em comenta constitui um marco na positivação de proteção de modo que seus dispositivos praticamente espelham o sistema já existente para as mulheres, conforme a Lei Maria da Penha. E, já espelham o sistema já existente para as mulheres, conforme a Lei Maria da penha. Mas, seu âmbito de incidência é mais amplo e atingem os menores independentemente de sexo.

O fenômeno conhecido como a especificação do sujeito de direito, cujo objetivo é dar, através de lei, tratamento especial para pessoas em condição de maior vulnerabilidade, promovendo e concretizando, o princípio constitucional da igualdade.

O artigo 1º da Lei 14.344/2022 destacou os dispositivos constitucionais em que se fundamentam as regras que vêm a lume, o artigo 226, §8º da CFRB/1988 bem como os tratados, convenções e acordos internacionais acerca da proteção à infância e juventude firmados pelo Brasil no âmbito internacional.

Não poderia deixar de frisar uma assertiva constante da Lei Maria da Penha a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher. A violência doméstica e familiar contra as crianças e adolescentes é declarada como uma das formas de violação dos direitos humanos (artigo 3º, da Lei 14.344/22) o que implica em atribuir a toda violência dessa espécie um enorme desvalor da conduta, impedindo os tratamentos legais e institucionais condescendentes ou pouco rigorosos.

A lei em comento é aplicável à violência doméstica e familiar contra os menores e não a qualquer violência que tenha por sujeito passivo uma criança ou adolescente. A definição do que seja um caso de violência doméstica e familiar, conforme descrita no artigo 2, incisos I, II e III da Lei 13.444/22 praticamente em cópia dos conceitos da Lei Maria da Penha.

Também determina o parágrafo único do mesmo artigo 2, a utilização das definições de violência doméstica estabelecias na Lei 13.431/17, mais precisamente em seu artigo 4.

A guisa de exemplificação, cabe afirmar que se um adulto, por exemplo, se desentender com um adolescente na rua devido a um problema de trânsito (por exemplo: o menor esbarra sua bicicleta no carro estacionado do maior) e o agredir fisicamente, não tem aplicação a Lei Henry Borel, já que inexiste o vínculo doméstico ou familiar. Mas, se um pai ou padrasto praticar maus-tratos[1] contra o filho terá plena aplicação a legislação em comento.

Cumpre esclarecer sobre a violência contra crianças e sua aferição por critérios objetivos, que pode muito ajudar nas constatações, denúncias e apurações. A violência no âmbito doméstico, principalmente, contra as crianças de tenra idade, é questão chocante e, muitas vezes, relegada a segundo plano pela sociedade, que prefere ignorar a realidade em face de sua natureza deplorável e abjeta.

As sequelas e características desse tipo de violência conduzem a um conjunto de sintomas capazes de levar a uma constatação segura da possibilidade de uma criança estar sendo vítima desse tipo de conduta.

Tal conjunto tem sido denominado de Síndrome de Caffey ou Síndrome da Criança Espancada[2] e pode ser um instrumento de grande valia para a detecção de casos de espancamentos de crianças por profissionais das mais diversas áreas que tenham algum contato com crianças ou venham a investigar casos que tais (como professores, cuidadores, pedagogos, psicólogos, médicos, policiais etc.).

As primeiras características dominantes dessa violência são que os atos ocorrem normalmente no lar e em situações do cotidiano. Os agressores geralmente são os pais ou responsáveis, sendo fato que as mães predominam nas estatísticas.

As crianças[3], particularmente, as entre zero a três anos, aumentando a incidência em razão direta à maior ou menor vida de relacionamento da criança, ou seja, nas fases em que começa a engatinhar, andar, falar, enfim, ter maior manifestação e contato com o ambiente onde vive.

Normalmente a conduta do agressor se desenvolve, torna-se trivial o uso de objetos domésticos como instrumentos para provocar as lesões (variados como ferro de passar, cabo de vassouras, talheres, panelas, alimentos fumegantes e, etc.) sendo ainda comuns as agressões manuais como chutes, tapas e socos e até arremesso das vítimas contra a parede ou o chão.

Pode-se verificar as características das lesões que são indicadores, como um trajeto de cima para baixo, em geral, produzido por adulto contra uma criança. E, a gravidade de lesões e vindo até ter consequências letais em face da desproporção física entre os envolvidos, o que pode até mesmo ocasionar resultados não previstos pelo agressor (preterdolo) que não mensura devidamente o grau de violência de seus golpes.

O rosto e a cabeção são os alvos mais atingidos, inclusive devido ao instinto natural de qualquer agressor que procura atacar mais avidamente tais partes do corpo. E, são comuns queimaduras no rosto e na boca, especialmente, relacionadas ao momento em que a criança é alimentada e ainda a recusa ou quer o alimento com impaciência, findando por receber a comida ainda muito quente propositalmente para queimar ou gerar lesões, por vezes, com uso de talheres e outros utensílios.

Outra causa de morte comum é a asfixia, especialmente, em casos em que se pretende calar a criança que chora e grita e isso redunda em sufocação e óbito. As fraturas em ossos longos em datas diversas além da presença de equimoses de tempo variável, constatáveis pela evolução cromática do espectro equimótico e, outras características que são indícios de espancamento continuado da criança ou adolescente.

Essas indicações deverão ser ciosamente cotejadas nas narrativas dos suspeitos agressores que procurarão dar explicações mirabolantes sobre a origem dessas lesões, a serem analisadas quanto à sua verossimilhança e discrepância ou não com a natureza de lesões encontradas.

Outro forte índice de violência doméstica é revelado no caso de múltiplas lesões de datas diversas, a habitual procura de atendimento da vítima seja em clínicas, hospitais e pronto-socorro[4] diferentes em cada oportunidade, certamente visando evitar a constatação da continuidade das ocorrências lesivas, envolvendo os mesmos personagens.

A síndrome da criança espancada revela uma situação repugnante e difícil de se aceitar na realidade. Mas, existe em todas as camadas sociais e pode estar ocorrendo bem ao nosso lado, sem que percebamos, de modo que sua divulgação é importante para servir de alerta a todos.

Faz-se necessária a conscientização dessa realidade há que ser difundida a fim de sensibilizar a sociedade e, suscitar a criação de mecanismos necessários para atender com eficiência e rapidez esses casos de altíssima gravidade e de consequências funestas e cruéis para as vítimas.

É curial essa conscientização até para se aferir a assistência mais adequada que deve ser dada às vítimas procurando garantir-lhes a incolumidade física e psíquica.

No aspecto criminal, fora os casos mais extremos (vide arts. 136, §§ 1º,2º 3º; art. 129, §§ 1º,2º e 3º e art. 121, §2º do Código Penal brasileiro), a violência então perpetrada contra a criança, principalmente, a praticada pelos responsáveis, poderia ficar adstrita aos meros maus-tratos, considerada infração de menor potencial ofensivo, conforme prevê o artigo 136, caput do CP c/c art. 61 da Lei 9.099/95).

Já com a Lei 9.455/1997 que definiu os crimes de tortura positivou-se um tratamento mais rígido quanto à matéria com seus dispositivos do artigo 1, II e §§ 3 e 4,II do referido diploma legal.

E, sua caracterização muitas vezes, torna-se difícil por conta da dificuldade de comprovação do elemento subjetivo pois há uma nítida diferença entre maus-tratos e tortura[5].

O artigo 233 da Lei 8.069/90(ECA que exibia validade duvidosa, antes da definição tipificada da tortura trazida pela Lei 9.455/97, e restou revogado por esta, e, com tratamento penal mais brando ao autor da violência contra crianças e adolescentes, já que a nova pena seria menor que a anteriormente prevista no ECA, salvo se aplicado o patamar de majoração máxima prevista no quarto parágrafo, inciso II, do artigo 1, da Lei 9.455/97, o que é raríssimo.

O pecado crucial da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais foi eleger único critério determinador e definidor de crime de menor potencial ofensivo o quantum da pena máxima, ensejando assim que um crime danoso apesar de prejudicial à formação do menor, venha a ser abrandado.

E, assim, surgiu uma nova redação dada pela Lei 14.344/22 ao artigo 226, §1º da Lei 8.069/90 (ECA) vedando a aplicação de benefícios da Lei 9.099/95 aos casos de violência contra crianças e adolescentes.

Foi errático o legislador pátrio ao não descrever casuisticamente as condutas tipificadoras de tortura, afastando os debates sobre os elementos subjetivos de difícil comprovação pericial e material.

Conclui-se que a tutela penal sobre os casos de violência perpetrada contra tais sujeitos hipervulneráveis se apresenta de forma branda, e conturbada na caracterização de condutas mais gravosas, o infelizmente, indica maior impunidade e continuidade delitiva.

E, nesse contexto, a Lei Henry Borel se revela por ser uma iniciativa positiva no fito de promover maior proteção integral à infância e adolescência, porém, é incapaz de solucionar os fatores relativos à insuficiência protetiva que persistem dentro da legislação pátria.

Novamente, frise-se que a lei em comento representa um progresso quanto às medidas protetivas à disposição de crianças e adolescentes em situação de avulso.

Porém, o quadro real brasileiro é desolador, pois com mais de três décadas de vigência do ECA, são poucos os locais que dispõem de meios necessários para prover efetiva proteção imediata às vítimas e, mesmo, quando são criados os mecanismos para a manutenção e continuidade parecem estar sempre em xeque, não sendo assumidos como importantes e indispensáveis.

O resta para as Políticas Públicas é promover maior conscientização e mobilização para efetivar a defesa e proteção dos que não podem fazê-lo por si mesmos.

Ainda na lei em comento, em seus artigos 11 ao 14 há regulação do atendimento pela autoridade policial em moldes similares ao praticado segundo a previsão da Lei Maria da Penha.  E, repetida a possibilidade de se realizar o afastamento imediato do agressor do ambiente doméstico realizado

De fato, a lei em comento reprisou o progresso que representou a Lei Maria da Penha, é positivou o célebre "gatilho de eficiência" dos instrumentos protetivos de urgência, não se deixando postergar e tardar por causa da burocracia e lentidão processual brasileira.

Igualmente ainda prevê a possibilidade da atuação do Conselho Tutelar que pode representar pelo afastamento do agressor ao juiz, ao Delegado de Polícia ou mesmo ao policial, conforme o caso concreto.

Note-se que o Conselho Tutelar[6] não é legitimado para determinar o afastamento diretamente, mas, apenas por postular, exercendo uma capacidade postulatória anômala em face da urgência e premência do hipervulnerável.

Na mesma senda da Lei Maria da Penha, o artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22 veda a concessão de liberdade provisória ao preso nos casos de risco à integridade física da vítima ou à efetividade da medida protetiva de urgência.

A disposição especial está em plena consonância com o disposto no artigo 312, CPP no que tange à garantia da “ordem pública”, bem como ao “perigo gerado” pela liberdade do imputado.

Assim também se coaduna com a proibição de concessão de fiança quando presentes os motivos da prisão preventiva[7] (artigo 324, IV, CPP).

Isso quer dizer que a vedação de liberdade provisória deve ser analisada e fundamentada casuisticamente, tendo em mira não somente o disposto no artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22, mas também as regras atinentes aos requisitos e fundamentos da prisão preventiva, conforme determinado no Código de Processo Penal.

Enfim, extinta a celeuma atinente a possibilidade ou não de se usar a Lei Maria da Penha em analogia nos casos de violência contra crianças e adolescente. E, a Lei Henry Borel, seguindo os mesmos moldes da Lei Maria da Penha[8], trouxe medidas protetivas de urgência às crianças e adolescente vítimas de violência doméstica e familiar inerentemente ao sexo da vítima. (arts. 15 ao 21).

Apesar do rito similar da Lei Maria da Penha para a concessão de medidas protetivas de urgência, vige diferença relevante é que, considerando a incapacidade dos menores, não é previsto o requerimento direto da medida pela vítima, tal como ocorre em regra com as mulheres (artigo 16 da Lei 14.344/22).

A legislação prevê a concessão pelo Juiz, mas não por requerimento da criança ou adolescente e, sim do Ministério Público, da Autoridade Policial, do Conselho Tutelar ou, finalmente, a pedido de pessoa que atue em favor da criança ou do adolescente (v.g. pais, tutores, responsáveis etc.).

Outra diferença diz respeito à notificação dos atos relativos ao agressor, especialmente os pertinentes à entrada e saída da prisão (artigo 18 da Lei 14.344/22). No caso da Lei Maria da Penha, a mulher deve ser notificada pessoalmente.

Mas, quanto às crianças e adolescentes, considerando sua incapacidade, foi necessária uma adaptação, de modo que será notificado o responsável pela criança e, se for o caso, intimado o advogado constituído ou defensor público.

Observe-se que a notificação do responsável e a intimação do advogado ou defensor são cumulativas, de forma que a informação de um não dispensa a do outro.

Afinal, a Lei Henry Borel realiza a mesma distinção realizada na Lei Maria da Penha entre as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e traz medidas protetivas de urgência à vítima.

Porém, a doutrina aponta que cometeu erronia o legislador pátrio no que se refere às medidas protetivas de urgência à vítima nos incisos II e III do artigo 21. O inciso II trata do afastamento do agressor do lar.

O inciso III se refere à Prisão Preventiva do agressor. Nesse passo, não se tratam de medidas protetivas de urgência à vítima e sim que obrigam o agressor. Tanto é fato que o inciso II é repetido no artigo 20 também inciso II da lei.

Importa salientar que o rol de medidas protetivas da Lei 14.344/22 não é taxativo. Por disposição expressa do artigo 20, § 1º. e artigo 21, § 2º. do diploma em comento, o magistrado pode adotar outras medidas  protetivas previstas na legislação sempre que forem úteis à proteção da criança, do adolescente, de seus familiares, de noticiante ou denunciante.

Significa afirmar que são aplicáveis, por exemplo, medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), não importando o sexo da vítima, bem como outras cautelares previstas, por exemplo, no artigo 319, CPP.

Portanto, a Lei 14.344/22 estabelece integração do sistema de medidas protetivas e cautelares em benefício da tutela da integridade física e psicológica e da vida de crianças e dos adolescentes. Mas, deixou de prover medidas protetivas patrimoniais, diversamente do que ocorre com a Lei Maria da Penha embora tenha acrescido na Lei 13.341/17 o conceito de violência patrimonial contra crianças e adolescentes conforme prevê o artigo 28 da Lei Henry Borel e a nova redação do artigo 4, V da Lei 13.431/17.

Efetivamente, a chamada “violência patrimonial” certamente pode ocorrer contra as crianças e adolescentes dotadas de patrimônio próprio, tanto que está agora descrita na Lei 13.431/17 (v.g. direitos hereditários ou sucessórios, propriedades, bens ou valores pertencentes diretamente aos menores, contratos esportivos ou artísticos, pensões alimentícias e outros benefícios securitários ou de previdência social, ações empresariais etc.).

Nesse passo, conforme exposto, será plenamente possível adotar as providências previstas no artigo 24 da Lei 11.340/06, “mutatis mutandis” para a proteção patrimonial das crianças e adolescentes eventualmente exploradas nesse aspecto, independentemente do sexo da vítima.

São exemplares casos concretos de prodígios infantis e juvenis, especialmente na área artística e esportiva, indevidamente explorados e vilipendiados, inclusive sob o prisma patrimonial, por pais, procuradores, empresários, tutores e afins.

Não se olvide, contudo, que os pais, tutores, guardiões ou responsáveis em geral não perdem  devido aos dispositivos legais em estudo o poder – dever de administrar os bens dos menores  sob seu poder familiar, tutela, guarda ou responsabilidade, sempre no interesse do próprio  menor.

Assim sendo, são obviamente possíveis e não constituem violência patrimonial, mas exercício regular de direito, eventuais restrições e controles de caráter educativo e disciplinar. Isso, aliás, foi muito bem ressalvado no inciso V, do artigo 4º., da Lei 13.431/17 em sua parte final, quando afirma que a violência patrimonial ocorre nos casos ali descritos, “desde que a medida não se enquadre como educacional”. Isso é muito importante porque a imaturidade dos menores pode levá-los facilmente à dilapidação do próprio patrimônio se não são devidamente assistidos por pessoas responsáveis.

Quanto a falta de previsão expressa pelo legislador pátrio da modalidade de violência moral contra os menores, diversamente do que ocorre na Lei Maria da Penha, conforme prevê o artigo 7 da Lei 11.340/06.

E o legislador pátrio se confundiu ainda mais quando, em pontos específicos da exemplificação legal de violência psicológica, cita constrangimento, humilhação etc., circunstâncias essas que mais se aproximam do rótulo de agressão moral do que psicológica.

Deveria ter mantido a técnica e guardado o rigor analítico de tal classificação (a exemplo do que foi feito no âmbito da Lei Maria da Penha).

De toda sorte, acreditamos ser perfeitamente possível que o inciso V art. 7º da Lei Maria da Penha socorra essa lacuna da Lei Henry Borel, pois a razão intuitiva de ambas  as leis parece assim o permitir (proteção de hipervulneráveis).

Com relação à “violência moral” não ficou totalmente olvidada, pois, embora impropriamente, como frisam os doutrinadores, há referências a “constrangimento, humilhação, discriminação, depreciação, desrespeito, agressão verbal, xingamento, ridicularização, indiferença” e “bullying”.

Efetivamente não existe a citação expressa da violência moral, mas certamente esta se encontra abrigada no dispositivo da Lei 13.431/17 que trata da “violência psicológica”. Há um desacerto técnico sim, mas

 meramente formal, não havendo impedimento da tutela das crianças e adolescentes sob o aspecto moral. Em suma, não se pode considerar que haja uma efetiva lacuna legal.

Não bastasse isso, conforme os próprios autores apontam, é plenamente aplicável aos casos de violência doméstica e familiar contra menores, por integração, o artigo 7º., V., da Lei Maria da Penha, o qual trata especificamente da “violência moral” (inteligência do expresso no artigo 33 da Lei 14.344/22).

Discute-se que quanto à necessidade de maiores fundamentos a serem aferidos no que se refere a delimitação do perigo de ineficácia, mas parece que tal questionamento se torna inútil diante do próprio nome das medidas protetivas, as quais são de urgência.

Nada impede que o julgador fundamente seu ato de deferimento sem prévio contraditório, seja pela urgência expressa pela própria lei, seja ainda, em reforço, por eventual caso em que também concorra a questão de possível ineficácia da medida protetiva.

Ressalte=se também que há idêntica previsão legal ao artigo 24-A da Lei Maria da Penha correspondendo ao artigo 25 da Lei Henry Borel, o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.

Indo de encontro a jurisprudência do STJ que se posicionava que o descumprimento das medidas protetivas de urgência não caracteriza o crime de desobediência, vez que tal conduta já seria sancionada na esfera processual, seja pela possibilidade de substituição da medida protetiva decretada ou pela possibilidade de decretação da prisão preventiva[9] do sujeito.

A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça está pacificada no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha não caracteriza a prática do delito previsto no art. 330 do Código Penal, em atenção ao princípio da ultima ratio, tendo em vista a existência de cominação específica nas hipóteses em que a conduta for praticada no âmbito doméstico e familiar, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal.

É bom afirmar que o objeto jurídico tutelado pelos novos tipos penais é a manutenção de respeito às decisões judiciais, especialmente, as medidas protetivas de urgência. Trata-se de crime próprio pois se refere ao sujeito ativo que é vinculado à medida judicial concedida.

Destaca-se ainda que o sujeito passivo original é a Administração da Justiça, mas secundariamente, a própria vítima de violência doméstica e familiar.

Como se trata de crime contra a Administração da Justiça, surgirão novos entendimentos no sentido de que o artigo 41 da Lei Maria da Penha, que afasta a aplicação da Lei 9.099/95 e, ipso facto, todos seus benefícios, bem como o artigo 226, primeiro parágrafo do ECA com a nova redação dada pela Lei Henry Borel não sejam observados no caso específicos dessas infrações penais.

De fato, a mulher e as crianças ou adolescentes são as vítimas indiretas da conduta, ficando  absolutamente expostas com o descumprimento das ordens judiciais.

Não se pode olvidar que nos termos do artigo 7º, inciso II, da Lei 11.340/06, constitui violência psicológica qualquer conduta  que cause danos emocional à mulher. Da mesma maneira há reconhecimento da violência psicológica contra as crianças e adolescentes, na forma do disposto no artigo 2º., Parágrafo Único, da Lei 14.344/22 que remete à Lei 13.431/17 (artigo 4º., II, “a”, “b” e “c”).  Ora, é evidente que ao desrespeitar uma ordem judicial o agente abala diretamente a estrutura emocional da vítima, que se sentirá vulnerável à prática de outras infrações penais, gerando angústia e isolamento.

Demais disso, numa interpretação sistemática e teleológica da Lei, só podemos concluir que a intenção do legislador foi a de ampliar o âmbito de proteção à mulher e às crianças e adolescentes, o que é reforçado pela previsão constante no §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da Penha e também no § 2º., do artigo 25 da Lei Henry Borel, que proíbe a concessão de liberdade provisória mediante fiança pelo delegado de polícia, restringindo essa prerrogativa ao juiz.

Cumpre sublinhar a vedação de fiança em caso de prisão em flagrante delito pelo Delegado de Polícia, pois a mens legis é no sentido de aplicar o artigo 24-A da Lei Maria da Penha e no artigo 25 da Lei Henry Borel em coerência ainda com o artigo 41 da Lei 11.340/06 e no artigo 226, §1º da CFRB/1988.

A possibilidade da prisão em flagrante, além de impedir os típicos benefícios de infrações de menor potencial ofensivo, tais como a substituição da prisão pela lavratura de simples Termos Circunstanciado com a liberação do agressor.

Ainda devemos salientar que não se cogita em inconstitucionalidade na previsão de infrações penais com pena superiores a dois anos que não sejam tratadas como de menor potencial ofensivo[10].

Pois o texto constitucional é explícito ao deferir ao legislador ordinário a função de fixar quando será ou não tratado como infração de menor potencial ofensivo, conforme o artigo 98, CFRB/1988. Afora isso, o STF já reconheceu a plena constitucionalidade do disposto legal do artigo 41 da Lei Maria da Penha (Vide ADC 19, de 09.02.2012) o que vale também para a Lei Henry Borel.

No âmbito do Direito Comparado cumpre apontar que nosso país não adotou o mesmo sistema protetivo que há na Espanha, onde a desobediência às medidas protetivas pode ser imputado tanto ao agressor como também à vítima, configurando o que se chama de quebratamiento de condena.

Portanto, quando a medida protetiva é adotada em prol da mulher vitimizada e contra o agressor. A ordem judicial se dirige ao agressor e não à vítima, a qual não tem como desobedecer a um mandamento que não se lhe foi dirigido pela Administração da Justiça.

O artigo 26 da Lei Henry Borel[11] erige em crime a conduta de não comunicar às autoridades públicas competentes a prática de violência, tratamento cruel ou degradante ou demais formas violentas de educação, correção ou disciplina contra crianças ou adolescente, bem como os casos de abandono de incapaz. (vide artigo 133 CP).

Trata-se de crime omissivo próprio posto que a conduta se configura por meio de inação, de um não fazer. Não é possível a tentativa do crime previsto no artigo 26 da Lei Henry Borel.

Ainda a respeito do artigo 26 da Lei Henry Borel é que se trataria de crime próprio de agentes públicos, portanto, crime funcional. Mas, não se trata de crime próprio, mas de crime comum, seja porque a lei não descreve nenhuma especial qualidade do sujeito ativo, nem mesmo sua condição de agente público, seja porque o crime em questão deve ser interpretado sistematicamente com o artigo 23 do mesmo diploma legal, o qual estabelece o dever de qualquer pessoa de comunicar os serviços públicos a respeito de abusos domésticos ou familiares contra crianças e adolescentes.

O dever de comunicar é dirigido a qualquer pessoa não seria coerente que o crime omissivo em análise somente se aplicasse a alguma categoria especial de pessoas.

Caso tenha sido agente público que se omitiu em comunicar às autoridades o abuso doméstico e familiar de crianças e adolescentes, parecer existir conflito aparente de normas entre o artigo 26 da Lei Henry Borel e o crime de prevaricação previsto no artigo 319 CP, o que pode ser solucionado pelo princípio da especialidade de modo que o agente público também deveria responder pelo delito previsto na legislação extravagante ou esparsa, afastando-se o ilícito da prevaricação.

A lei em comento entrou em vigor em 09 de julho de 2022 e, trouxe maior rigor penal aos tipos descritos em casos de violência doméstica e familiar contra criança e adolescente, não podendo retroagir.

Referências

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VAN COILLIE, Dries. Suicidio Moral: en la cárcel bajo Mao Tsé – tung. Tradução de Martín Ezcurra. Barcelona: Eler, 1963.

Notas:


[1] Conforme Guilherme de Souza Nucci, “expor, neste contexto, significa colocar em risco, sujeitar alguém a uma situação que inspira cuidado, sob pena de sofrer um mal.” I Impende mencionar que: “[…] é preciso destacar que tudo gira em torno da finalidade especial do agente, tratando do elemento subjetivo do tipo específico, de ter alguém sob sua autoridade, guarda ou vigilância, maltratando-a. Por isso, o tipo faz referência ao que pode ser usado para esses objetivos, mencionando a privação da alimentação ou dos cuidados indispensáveis e a sujeição a trabalho excessivo ou inadequado.” Destarte, vê-se que o dolo presente no tipo penal de maus tratos é de expor a perigo. Seria, por exemplo, um pai tentando “ensinar uma lição” ao seu filho deixando-o trancado no quarto por um dia apenas com pão e água. Além disso, nos crimes de maus-tratos, qualquer resultado além da mera exposição a perigo é considerado culposo. Logo, caso os maus-tratos resultem em lesão corporal grave ou homicídio, haverá aumento de pena por este resultado preterdoloso. Ademais, no tocante aos sujeitos ativo e passivo, aquele  precisa ser detentor de autoridade, guarda ou vigilância em relação a este. Não pode ocorrer este crime entre cônjuges, por exemplo.

[2] A síndrome da criança espancada é reconhecida como aquela em que a criança é vítima de deliberado trauma físico não acidental provocado por uma ou mais pessoas responsáveis por seu cuidado (4,5,9). No Brasil, de acordo com Uchôa, em 1994, cerca de 750 crianças sofreram violência em casa por hora, 110 foram vitimadas por espancamento e morreram, somente em São Paulo.

[3] O ECA dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Considera-se criança, para os efeitos dessa lei, a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquele entre 12 e 18 anos de idade, podendo, em casos expressos em lei, aplicar-se, excepcionalmente, às pessoas entre 18 e 21 anos de idade.

[4] Em razão da atividade que exercem, algumas pessoas estão legalmente obrigadas a denunciar tais casos, sob pena de ser responsabilizadas. Têm essa obrigação o médico, o professor e o responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche. A omissão desses profissionais configura a infração administrativa prevista no art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim dispõe: “Art. 245 - Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente. “Pena: multa de três a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.”

[5] Com efeito, o dolo presente na tortura é o de dano. A intenção não seria expor a perigo, mas sim causar o dano em si. O elemento subjetivo não é apenas maltratar, é causar dor ou sofrimento intenso com o objetivo de punir. Não obstante, há quem opte por diferenciar ambos os delitos pela intensidade da punição. Logo, em consonância com quem defende este entendimento, a tortura-castigo seria uma modalidade mais incisiva de maus-tratos.  Em suma, vê-se que a diferença entre os tipos penais jaz no dolo de cada delito: no crime de maus-tratos, é de expor ao perigo, na tortura-castigo, é de dano. Além disso, há quem aponte que a tortura-castigo seria uma forma mais incisiva e intensa de maus-tratos.

[6]Garantir que as crianças e adolescentes tenham todos os seus direitos respeitados. Essa é a principal missão dos conselheiros tutelares, considerados essenciais na proteção da infância e adolescência no Brasil. Os conselheiros são responsáveis, por exemplo, por receber denúncias de situações de violência, como negligência, maus-tratos e exploração sexual. Se, no exercício das suas atribuições, o conselho tutelar entender necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará imediatamente o fato ao  Ministério Público, prestando-lhe informações a respeito dos motivos de tal entendimento das providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família

[7] A prisão preventiva é utilizada como um instrumento do juiz em um inquérito policial ou já na ação penal, ou seja, ela é um instrumento processual. Pode ser usada antes da condenação do réu em ação penal ou criminal e até mesmo ser decretada pelo juiz. Em ambos os casos, a prisão deve seguir os requisitos legais para ser aplicada, regulamentados pelo artigo 312 do Código de Processo Penal. A prisão preventiva pode ser decretada, segundo o artigo 313 do Código de Processo Penal, nos caso de: Crimes inafiançáveis – aqueles para os quais não há possibilidade de pagamento de fiança ou de liberdade provisória, ou seja, o acusado deve ficar preso até o seu julgamento. São considerados crimes inafiançáveis no Brasil (Constituição, art. 5º, incisos XLIII e XLIV): racismo, prática de tortura, tráfico de drogas, terrorismo, ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de Direito, crimes hediondos – tipos de crime considerados mais repugnantes para o Estado, nos quais há clara crueldade, como homicídio, estupro, latrocínio, entre outros; Crimes afiançáveis – quando as provas contra o réu são suficientes para tal ou quando há dúvidas sobre a sua identidade e não há elementos suficientes para esclarecê-la; Crimes dolosos – embora sejam crimes afiançáveis, a prisão preventiva pode ser aplicada quando o réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado – ou seja, da qual não cabem mais recursos; Se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

[8]  A Lei Maria da Penha trata especificamente da violência doméstica e familiar contra a mulher, e o Art. 7º enumera algumas das formas de violências que as mulheres podem sofrer. São elas, dentre outras, as violências física, psicológica, sexual, patrimonial ou sexual. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências

[9] A prisão temporária é regulamentada pela Lei 7.960/89. Com prazo de duração de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco, ela ocorre durante a fase de investigação do inquérito policial. Ela é utilizada para que a polícia ou o Ministério Público colete provas para, depois, pedir a prisão preventiva do suspeito em questão. Em geral, ela é decretada para assegurar o sucesso de uma determinada diligência. Pela Lei 7.960/89, ela é cabível: quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial; quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos crimes de homicídio, sequestro, roubo, estupro, tráfico de drogas, crimes contra o sistema financeiro, entre outros.

[10] Crimes de menor potencial ofensivo são aqueles cuja pena máxima é de até dois anos, como é o caso dos crimes de ameaça; lesão corporal leve; desacato, vias de fato, entre outros. As infrações penais de médio potencial ofensivo são aquelas que admitem suspensão condicional do processo, pois têm pena mínima igual ou inferior a um ano, mas são julgados pela Justiça Comum, já que sua pena máxima é superior a dois anos.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito Penal Homicídio Qualificado Lei 14.344/22 CP ECA Violência Doméstica e Familiar

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