Cegueira moral. Insensibilidade contemporânea
A globalização da indiferença é notada pelo mundo todo, mas aqui em nosso país, especialmente reflete-se na cultura dos maus-tratos para com idosos, crianças e minorias natas tais como mulheres, negros e indígenas. Nesse contexto é que se situa o genocídio dos ianomâmis.
Entre
os narcisismos e os personalismos, faz-se necessária a defesa do humanismo
solidário na contemporaneidade.
Em
meio tantas as patologias sociais da atualidade onde se revelam como distintos
narcisismos e propor o personalismo com meio fundamental para haver a
materialização de humanismo integral. Para tanto precisamos das bases
epistemológicas da teoria crítica, do personalismo e, ainda, da sociologia
contemporânea capitaneada por Habermas, Axel Honneth, Zygmunt
Bauman
e Leonidas Donskis, Emmanuel Mounier e o atual Papa Francisca em sua célebre
Encíclica Laudato Si, para citar os principais pensadores, com o fito de
diagnosticar os principais sintomas da crise contemporânea e esboçar uma saída a
partir do humanismo integral e solidário.
Naufragamos
num mar de ambivalências e paradoxos. A cultura é marcada por feridas e cicatrizes
que nos deixam perplexos e atônitos diante tamanhas bizarrices. E, as
perspectivas são preocupantes. Pois existe uma complexa relação global principalmente
depois da Pandemia de Coronavírus.
As
patologias do social trazem à baila a arqueologia do sofrimento psíquico humano
e revelam as profundas angústias e doenças que afetam toda a sociedade
contemporânea. O conceito de patologia social externa abrange as paranoias, esquizofrenias
da cultura contemporânea.
Há a
franca expansão do individualismo possessivo e tóxico, a desintegração de
identidades coletivas e ainda o enfraquecimento da solidariedade o que atinge a
concepção de ser humano que resta cada vez mais fragilizado e crescente
decadência. Perdemos a noção da integralidade da pessoa, em sua ecologia
humana, parafraseando o Papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si.
Evocando
Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis que, em primorosa obra, "Cegueira Moral:
a perda da sensibilidade na modernidade líquida" (2014) fazem um
verdadeiro diagnóstico das mutações culturais e sociais pelas quais passam as
sociedades atuais.
Deve-se
enfocar as narrativas sociais contemporâneas sobre as transformações em tempos
líquidos das pessoas, da natureza e das nossas relações com o mundo que nos
circunda. Enfim, a cegueira moral é uma das maiores doenças de nosso tempo.
Em
termos etimológicos, Nárkissos, há o elemento nárke, que, em grego, significa
entorpecimento, torpor. Com o sentido de torpor, nárke já era empregado por
Aristófanes. E, assim nasce o bojo da cultura narcísica que nos leva à
mitologia grega, o que se passou ao Ocidente com a denominação do Mito de
Narciso, que traçou a bela a trama da bela ninfa Eco que ficou apaixonada pelo
belo Narciso, porém, jamais seu amor fora correspondido.
Cumpre
ainda destacar que a relação entre o arquétipo, narcisismo e self a partir das
concepções junguianas. É possível discutir sobre o caráter de Narciso enquanto
arquétipo que é termo que se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e os
contos de fada. E, existe toda uma relação entre Narciso e o arquétipo que nos
remete ao contexto contemporâneo e ao culto da autoimagem.
Na
concepção de Jung do conceito de self, a meta final de qualquer personalidade é
chegar a um estado de auto-regularização e de conhecimento do próprio self.
Afinal, desconhecer o próprio self inconsciente mostra os elementos reprimidos
do próprio inconsciente nos outros. Assim, o narcisismo é a negação do
autêntico self.
Os
narcisistas estão mais preocupados com o modo como se apresentam do que com o que
que sentem. São egoístas, concentrados em seus próprios interesses, mas
carentes dos verdadeiros valores do self - auto-expressão, serenidade,
dignidade e integridade.
In
casu, os narcisistas restam soterrados por uma cegueira que invisibiliza
pessoas, posto que as inferioriza, motivados por razões étnicas, culturais
sociais e políticas, que as inferioriza, motivados por razões étnicas, culturais,
sociais e políticas.
Um
episódio mais recente que externa bem tal cultura narcísica e a cegueira moral
que pode ter culminado com o óbito do negro norte-americano George Floyd que
fora morto brutalmente por um policial branco apoiado em cima de pescoço. A
complexidade brutal dessas relações estão nos empurrando para a globalização da
indiferença que nos atormenta, ao criar discursos e narrativas em torno das
vidas desperdiçadas (Bauman, 2005), isto é, a construção de perfeitos refugos
sociais, dos lixos humanos.
E, de
acordo com Bauman, todo refugo, incluindo as pessoas refugadas, tende a ser
empilhado indiscriminadamente nos mesmos depósitos. O ato de destinar ao lixo
põe fim às diferenças, individualidades, idiossincrasias, sobretudo ao se
tratar dos refugos humanos em contextos multiculturais, em que os desafios
éticos são tormentosos para garantir a integridade e inviolabilidades dos
sujeitos dos diferentes países que vivem em situações de profunda
vulnerabilidade humana.
A
Encíclica Laudato Si nos convoca a repensar as formas humanas de lidar com a
natureza, procurando manter o diálogo em torno da preservação da ecologia
humana e integral, cuidando de salvaguardar as bionarrativas e biodiversidades.
Alertou
o Papa Francisco alerta-nos na referida encíclica sobre os modelos econômicos
hegemônicos que findam corroendo as formas de vida e impondo padrões culturais
e estéticos, criando uma cultura de consumidores vorazes. Os altos índices de
consumo deterioram a biodiversidade e extingue a vida no planeta. Ambos apontam
a destruição das bionarrativas e dos ecossistemas frutos de consumismo
desenfreado, embargando todo e qualquer apelação de ordem ética ou moral na
relação com a natureza.
A vida
do planeta está ameaçada justamente pela falta de respeito e cuidado com sua
existência enquanto a diversidade étnica, cultural e social. Lembremos de
Brumadinho, em Minas Gerais que em 2019 a barragem estouro e acarretou a morte
de mais de 259 pessoas e 11 desaparecidos, somado à fauna e flora local,
cogita-se em cerca de onze toneladas de peixes mortos. Todo um ecossistema fora
ameaçado e devastado por uma política econômica que é regulada pela lógica dos
mercados.
E,
agora, todo o drama contemporâneo da pandemia de Covid-19 que forçou repensar
os estilos de vida, as formas de sociabilidade humana e as regras econômicas de
um capitalismo avançado que se esgotou.
Novos
conceitos emergem para então capturar os grandes deslocamentos ambientais no
mundo e, abismais disparidades sociais surgem. É o caso de famílias inteiras
expulsas de suas nacionalidades originais por razões que perpassam desde
questões econômicas, étnicas e culturais que são invisíveis, não contam as
estatísticas;
Será
preciso pensar nos conceitos de terra morta e borda sistêmica. E, as bordas
sistêmicas estão proliferando em variados domínios, referindo-se às famílias
quando elas se tornam invisíveis, fora do espaço de conhecimento, o locus
existencial. Milhões de refugidos perderam literalmente tudo, porque foram
substituídos por minas exploratórias e por novas e ambiciosas expansões
urbanas.
Alargaram-se
os espaços públicos e o império das Fake news, criando profundo vácuo moral. E,
há duas formas de manifestação, a saber: a insensibilidade ao sofrimento humano
e o desejo de colonizar a privacidade. No mundo editorial são fluídas e
constantes as fórmulas de sucesso, expondo mundialmente as biografias,
intimidades, vidas, experiências e sentimentos de outras pessoas, trata-se de
sintoma de insensibilidade e falta de sentido.
O
pensamento interessante de Habermas na sua obra "A Inclusão do Outro[1]" que visa de forma
enfática com essa dimensão ligada à insensibilidade ao sofrimento humano.
Habermas ainda reflete sobre o papel das democracias na perspectiva da
inclusão, sobretudo, dos refugiados e imigrantes que vêm crescendo por todos os
lados dos hemisférios, pois a vida vem sendo relegada pelo mundo afora.
Existem
milhões de refugiados que buscam novos territórios e novas esperanças para si
mesmos e para seus filhos e descendentes. É uma gigantesca onda migratória que
se dá por questões culturais, religiosas e políticas. Afirma-se que se
consolida o medo, a indiferença e a perda de sensibilidade.
Dentro
do contexto da modernidade líquida, Bauman ainda problematizou o conceito de
liquidez em face da complexidade de suas implicações para o tecido social e
formação das subjetividades. E, realmente, a concepção líquida ampara-se na
fugacidade e efemeridade.
A
liquidez nos apresenta a complexidade de suas implicações diretas e indiretas
para o tecido social e principalmente na formação de subjetividades. Enfim, não
existem mais os fenômenos e realidades sólidas assim.
Existem
contextos líquidos, maleáveis, softs e lights. E, mais nada se
constrói a partir do conceito de longevidade, tudo é tremendamente transitório
e efêmero. Até os tempos e espaços são albergados nesse conceito.
As
novas tecnologias de informação estão integrantes em redes globais e, mediadas
por computadores em rede que geram complexo conceito de identidade, e novos
espaços de fluxos porosos e permeáveis as relações de temporalidades e espacialidades.
Há a
cultura da virtualidade real. E, a transitoriedade e banalidade atingem os
laços afetivos, o significado de compromisso se torna proibitivo, seguindo na
contramão de como a pós-modernidade desfila sua existência.
Há
portanto, os efeitos de uma cultura muito hedonista, narcisista e
individualista e, Bauman afirmou que tamanho individualismo expressa bem a
imoralidade dos tempos antigos, o que afeta o olhar cuidadoso e genuíno às
necessidades do outro persistem como uma esquecida nota de rodapé de nossos
tempos contemporâneos. Tempos de mercúrio.
O
mercúrio é um elemento químico da classe dos metais pesados que pode assumir
diferentes formas químicas mercúrio metálico (metal prateado líquido e
volátil), mercúrio inorgânico (combinados com outros elementos, como cloro,
oxigênio e enxofre) e mercúrio orgânico (combinação entre mercúrio e cadeias de
carbono). O mercúrio (Hg) é um elemento químico metálico pertencente à classe
dos metais de transição, mono e bivalente de cor argêntea, brilhante, que se
localiza no grupo 12 e período 6 da Tabela Periódica.
Não se
trata de imperativo exclusivo dos tempos atuais. Habermas refletiu sobre o
papel das democracias na perspectiva de inclusão, sobretudo, dos refugiados e
imigrantes. Habermas percebeu essa perda exponencial da sensibilidade para com
as diferenças nas atuais democracias, e uma ausência de cultura pública
democrática que assegure aos sujeitos os seus direitos e suas liberdades em
contexto de crescente multiculturalismo, em uma concepção de Estados
pós-nacionais.
O que
na ótica de Habermas é a interpretação e aplicação da política de
reconhecimento que esteja sensível às minorias natas e, sobretudo, em
sociedades pluriétnicas e multiculturais nas quais vivemos atualmente.
A
morte do negro George Floyd[2] nos EUA que gritava “I
can’t breath”, eu não posso respirar, foi profundo ato de desrespeito e
tirania contra a vida humana e, neste sentido, numa interpretação liberal ou neoliberal
da política econômica obstaculiza uma política de reconhecimento com atenção as
diferenças e pensando em contextos culturais diversos e com distintas formas de
vida, amparadas nas mais variadas tradições socioculturais.
Com
agudeza Habermas frisou que, geralmente, é a maioria em uma interpretação
liberal que impõe as regras e costumes às minorias natas e que ficam à mercê da
famosa vontade geral e, assim, são impedidas de viver à sua própria identidade
composta por sua cultural, língua, tradições e costumes.
Apelando-se
para uma interpretação comunitarista, segundo Taylor (2011), percebe-se maior
sensibilidade para com as diferenças em um contexto de maior reconhecimento, a
coexistência em igualdade de direitos diversas comunidades étnicas, grupos
linguísticos, confissões e formas de vida não pode ser comprada ao preço da
fragmentação da sociedade.
A
cultura da maioria precisa se livrar de sua fusão com a cultura política geral.
No contexto brasileiro atual, aplica-se às regras econômicas adotadas pelo
sistema neoliberal, no qual existe o livre mercado, isto é, a interpretação neoliberal
é a de soterrar as minorias natas, tais como indígenas, quilombolas, sem-terra,
sem-tetos e sem-direitos. São regras perversas que geram a cegueira moral e,
assim em contexto muito massificado, solidifica-se a ditadura do capital.
É
neste contexto que vivenciamos o genocídio dos ianomâmi. Só a cegueira moral é
capaz de ser cúmplice com toda a desumanização dos indígenas[3] e a permissão aos
garimpeiros ilegais e aproveitadores de ocasião.
E,
como nos relata Contardo Calligaris[4] (2013) dá-se a perda de
laços afetivos que nos impulsionam a autodestruição, onde a capacidade moral é
diluída em escolhas desprovidas de responsabilidade para com o coletivo e para com
o outro.
O
outro nada me diz ou inquieta, pois vivo apenas segundo minhas escolhas
privadas e solitárias. Num modelo hedonista e narcisista. E, tal cultura brutal
provoca drásticos efeitos na existência humana. Dunker (2017) ao reverenciar a
"Reinvenção da Intimidade, em sociedades contemporâneas, remete-nos às
questões do psiquismo e aos temas clássicos da psiquiatria, em função das
políticas do sofrimento
Em
verdade, os narcisismos contemporâneos revelam os graves sintomas que envolvem
as dinâmicas societárias que fraturam as mais diferentes sociabilidades, isto
é, quando os acordos ou contratos sociais são rompidos ou quebrados, as
manifestações que surgem e pululam por todas as partes do planeta. Devemos
lutar pela prevalência da preservação da dignidade humana.
Obs. Dia 7 de fevereiro é o Dia Nacional de Lutas dos Povos Indígenas. Junte-se aos nossos irmãos!
Referências
ADORNO,
Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. São Paulo:
Zahar, 1997.
BRANDÃO,
Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1987.
BAUMAN,
Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
_________.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
_________e
DONSKIS, Leonidas. Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade
líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
CALLIGARIS,
Contardo. Todos os reis estão nus. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
DUNKER,
Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano.
São Paulo: Ubi Editora, 2017.
FRANCISCO,
Papa. Carta Encíclica Laudato Si: Sobre o cuidado da casa comum. São
Paulo: Editora Paulinas, 2015.
FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HABERMAS,
J. A inclusão do outro. São Paulo: UNESP, 2018.
JUNG,
Carl Gustav. Os arquétipos e inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes,
2000.
MENEZES,
Anderson de Alencar. Entre narcisismo e personalismo: a defesa do humanismo
solidário na contemporaneidade. Disponível em:
https://revistas.anec.org.br/index.php/revistaeducacao/article/download/313/176.
Acesso em 07.2.2023
TAYLOR,
Charles. A ética da autenticidade. São Paulo: É Realizações, 2011.
Notas:
[1]
A inclusão do outro e Facticidade e Validade apresentam o seguinte ponto: o
desejo pela questão das conclusões do conteúdo universalista dos princípios
republicanos, para as sociedades complexas. O livro é uma coletânea de ensaios
que combina, de modo sistemático, as reflexões teóricas sobre as relações entre
moral, política e direito, com uma análise das
questões práticas de inclusão do outro enfrentadas pelas sociedades
democráticas, que, ainda enquadradas pela normatividade do Estado nacional, se
defrontam com os fenômenos do
multiculturalismo e da globalização".
[2]
Black Lives Matter (Vidas Negras Importam ou Vidas Negras Contam) é um
movimento ativista internacional, com origem na comunidade afro-americana, que
faz campanha contra a violência direcionada às pessoas negras. O BLM
regularmente organiza protestos em torno da morte de negros causada por
policiais, e questões mais amplas de discriminação racial, brutalidade
policial, e a desigualdade racial no sistema de justiça criminal dos Estados Unidos.
Em 2013, o movimento começou, com o uso da hashtag #BlackLivesMatter em mídias
sociais, após a absolvição de George Zimmerman na morte a tiros do adolescente
afro-americano Trayvon Martin. O movimento tornou-se reconhecido nacionalmente
por suas manifestações de rua após a morte, em 2014, de dois afro-americanos:
Michael Brown, resultando em protestos e distúrbios em Ferguson, e Eric Garner
na cidade de Nova York. Desde os protestos de Ferguson, os participantes do
movimento têm se manifestado contra a morte de numerosos outros afro-americanos
por ações policiais ou enquanto sob custódia da polícia, incluindo: Tamir Rice,
Eric Harris, Walter Scott, Jonathan Ferrell, Sandra Branda, Samuel DuBose, e
Freddie Gray, o que levou a protestos e tumultos em Baltimore. No verão de 2015
(meio do ano), Black Lives Matter começou a questionar publicamente os
políticos—incluindo os candidatos à eleição presidencial nos Estados Unidos de
2016—para declararem suas posições nas questões do BLM. O movimento no geral,
entretanto, é uma rede descentralizada e não tem nenhuma hierarquia ou
estrutura formal. Em 2016 o movimento, que começou nos Estados Unidos, chegou a
países como Brasil, África do Sul e Austrália, onde ativistas tomaram as ruas e
as redes sociais em solidariedade às vítimas da violência policial. Eles
adotaram o grito de guerra “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) para
amplificar suas lutas em seus próprios países e para apontar o que consideram
uma abordagem hipócrita da imprensa e do governo. Em janeiro de 2021, o BLM foi
indicado ao internacional Prêmio Nobel da Paz. A indicação foi feita pelo
deputado norueguês Petter Eide.
[3]
Grosso modo, a desumanização pode acontecer de duas formas: na forma
animalizante, quando as pessoas são associadas a animais; e na forma
mecanicista, quando as pessoas são percebidas como objetos/máquinas (Haslam,
2006). Ao longo da história do Brasil, reforçaram-se discursos de poder que,
reafirmados pela disseminação de mitos, consolidaram um quadro de profundas
injustiças sociais. Sob esse viés, destacam-se as narrativas que associam as
comunidades indígenas à incivilidade, à barbárie, caracterizando-as como
inimigas do progresso e, por fim, demonizando-as. A herança do eurocentrismo do
período colonial, por exemplo, tratou de desvalorizar a história e a cultura
desses nativos, pois diferiam do referencial europeu, de modo a explorar esses
indivíduos sob a justificativa de guiá-los à salvação católica europeia e ao
progresso. Considerando a universalidade dessa sequência de fenômenos, a
filósofa Hannah Arendt descreveu que a desumanização de um segmento socialmente
vulnerável – as comunidades indígenas, nesse contexto- possibilita a
banalização de grandes males, como a opressão e a violência, uma vez que a intolerância
é naturalizada pelo processo citado. Não obstante, a postura individualista,
oriunda da valorização dos ideais neoliberais, que priorizam o lucro em
detrimento do valor humano, coloca entraves ao exercício da ética proposta por
Kant e agravam o problema.