A invenção da escravidão
Assiste razão o que disse Padre Antônio Vieira: “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África.”. O Brasil representou o maior território escravista do hemisfério ocidental, tendo recebido cerca de cinco milhões de cativos africanos, quarenta por cento do total de doze e meio milhões embarcados para a América ao longo de três séculos e meio. Fomos o último país abolir o cativeiro, através da Lei Áurea de 1888. Todos esses fatos são definidores da identidade brasileira e o que também explica o que fomos e o que seremos...
A história da escravidão ou
escravatura inclui muitas culturas, nacionalidades e religiões desde tempos
imemoriais, vindo até os presentes dias. Numa análise sobre as posições
sociais, culturais, econômicas e legais, o status dos escravos diferiam
muito em diferente sistemas de escravidão em diferentes épocas e lugares.
A escravidão no Brasil
iniciou-se por volta da década de 1530, quando os portugueses implantaram as
bases para a colonização da América portuguesa, para atender, mais
especificamente, à demanda dos portugueses por mão de obra para o trabalho na
lavoura.
Antropólogos e estudiosos
concluíram que a escravidão era relativamente rara entre os
caçadores-coletores, porque esta se desenvolveu sob condições de estratificação
social. E, operou-se nas primeiras civilizações, como a suméria, remontando a
3.500 anos antes de Cristo. Está presente no Código de Hamurabi[1].
Tornou-se comum em quase toda
Europa no início da Idade Média[2] e prosseguiu nos séculos
posteriores. As guerras bizantino-otomanas (1265-1479) e também as guerras otomanas
(dos séculos XIV ao XX) resultaram em grande número de escravos cristãos.
Os holandeses, franceses,
espanhóis, portugueses, britânicos, árabes e vários reinos da África Ocidental
desempenharam um papel proeminente no comércio de escravos no Atlântico, principalmente após
1600. A República de Ragusa tornou-se o primeiro país europeu a proibir o
tráfico de escravos em 1416. Na era
moderna, a Dinamarca-Noruega aboliu o comércio em 1802
Embora a escravidão não seja
mais legal em qualquer lugar do mundo, o tráfico de seres humanos continua
sendo um problema internacional e, conforme
dados de 2013, cerca de 25 a 40 milhões de pessoas foram escravizadas, a
maioria na Ásia. Durante a Segunda Guerra Civil do Sudão de 1983-2005, pessoas
foram levadas à escravidão. [3]
No final dos anos 1990,
surgiram evidências de escravidão e tráfico infantil sistemático em plantações
de cacau na África Ocidental.
A escravidão continua no
século XXI. Embora a Mauritânia tenha criminalizado a escravidão em agosto de
2007, estima-se que até 600 mil homens, mulheres
e crianças, ou 20% da população da Mauritânia, estejam atualmente escravizados,
muitos deles usados como trabalho por dívida.
A escravidão no século XXI continua, mesmo em
países como os Estados Unidos e o Reino Unido, com a Índia sendo a número um
com uma estimativa de 8 milhões de
escravos, seguida pela China e pela Rússia. Quase-estados islâmicos, como o
Estado Islâmico do Iraque e do Levante e Boko Haram, sequestraram e
escravizaram mulheres e crianças (muitas vezes para servir como escravas
sexuais).
Há mais escravos atualmente do
que em qualquer outra época histórica, numa estimativa de cerca de 40 milhões,
ou 1 a cada 200 pessoas, segundo a Organização Internacional do Trabalho e a
Fundação Walk Free.
Dos 12,5 milhões de negros
embarcados na África, 20% não chegaram vivos ao destino, vítimas de disenteria,
escorbuto, varíola, sífilis e sarampo, ou da brutalidade dos comandantes.
Nosso país foi o derradeiro do
Ocidente a abolir o trabalho escravo e, por isso, apesar de ser resultante de
um longo procedimento que contou também com forte mobilização popular e
política, ainda respinga vívida a presença de racismo estrutural. De
preconceitos de mais variadas matizes.
A Confederação de
Abolicionistas[4]
foi criada no Rio de Janeiro por figuras notáveis como André Rebouças e José do
Patrocínio e, reunia cerca de trinta clubes e associações, presentes em todas
as províncias do Império brasileiro e tinha um agenda ativa, pois: aliciou
escravos, acoitou fugitivos, produziu panfletos, organizou conferências. Ela
também esteve a postos para apoiar os fugitivos do [quilombo] do Leblon, e
contribuiu com as condições para a proteção, organização e manutenção do
refúgio de escravos […].
A infâmia de preconceito,
discriminação e racismo foram provocados por conta da chegada de navios negreiros
e que durou mais de três séculos, totalizando cerca de cinco milhões de
escravos da África até o Brasil e, impactam firmemente gerando efeitos
devastadores na sociedade, ou seja, a desigualdade e a segregação são os
efeitos mais visíveis, mas não são os únicos.
O jornalista e o escritor
Laurentino Gomes[5]
se dedicou ao tema tendo feito aprofundado estudo sobre a captura,
encarceramento e transporte forçado de cativos africanos durante os temos que o
Brasil era Colônia de Portugal.
O surgimento do Brasil como
nação independente desde do tempo da chegada da Família real portuguesa e, a
partir daí, a nação se organizou em termos legais e administrativos tendo como
parâmetro o modelo português, a ex-metrópole.
Laurentino Gomes afirmou:
"Primeiro visitei Cabo Verde, local que podemos chamar de primeiro
'hipermercado' de mão de obra escrava na história do Atlântico. Era um
arquipélago desabitado quando os portugueses chegaram lá, ainda no século XV.
Ali, eles capturavam e distribuíam escravos para outros locais, como as Ilhas
Canárias e São Tomé e Príncipe, onde estabeleciam plantações de cana de açúcar.
Foi uma espécie de laboratório inicial do fluxo de escravos que viriam para o
Brasil".
Seguiram-se viagens a Angola e
Congo – de onde vieram 70% dos escravos trazidos ao Brasil – e ao Golfo de
Benin e Moçambique, último território fornecedor de mão de obra cativa.
"Também percorri o
Brasil. Fui a locais como a Serra da Barriga, onde morreu Zumbi dos Palmares, e
o Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, maior porto negreiro do começo do
século XIX".
Frise-se que quatorze
cadáveres por dia, eis o número trivial durante o tráfico negreiro.
Neste primeiro volume, o
escritor aborda desde o primeiro leilão de negros cativos, em agosto de 1444,
ainda antes do descobrimento, até a morte de Zumbi dos Palmares[6], em 1695.
A descrição dos movimentos
iniciais daquilo que, mais tarde, seria conhecido como tráfico negreiro é um
dos pontos que mais chama atenção no texto. Muito por conta da brutalidade a
qual os negros escravizados eram submetidos ainda no processo de transporte
entre a África e o Brasil.
"As condições dos navios
eram as piores que podemos imaginar. Pelo menos 1,8 milhão de pessoas morreram
na travessia do Atlântico. Se dividirmos a quantidade de mortos no transporte
pelo número de dias de escravidão vigente naquele período, chegaremos a um
resultado assustador: pelo menos quatorze escravos morriam por dia – todos eram
arremessados ao mar.
É uma situação tão terrível
que relatos da época dão conta que isso mudou o comportamento dos cardumes de
tubarões - todos passaram a seguir os navios negreiros à espera de alimento
fácil. Ou seja, a dor e o sofrimento provocados pela escravidão começavam bem
antes da chegada ao Brasil".
O Brasil foi o maior
território escravista do continente americano. Além disso, foi o último a
abolir o tráfico negreiro, por meio da
lei Eusébio de Queiroz, de 1850, e o último a pôr fim à escravidão, em 1888, quinze
anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba.
A busca por escravos nasceu a
partir da necessidade dos portugueses de conseguir a mão de obra necessária
para a produção de bens como o açúcar - antes da escravidão, um bem caríssimo e
inacessível à maioria das pessoas na Europa.
Essa situação começou a mudar
com a chegada dos portugueses no Brasil. A criação de grandes plantações de
açúcar, mas também de tabaco, algodão e café levaram os colonizadores a
buscarem mão de obra em grande quantidade.
A venda de escravos já existia
há milhares de anos no continente africano. Era uma prática ancestral, muito
anterior à chegada do europeu. Lá, já existiam feitorias, locais de captura e
rotas de transporte escravagista para o Oriente Médio".
Na África, a captura de
escravos se deu em três fases: na primeira, em meados do século XV, os próprios
portugueses sequestravam negros na costa da Mauritânia e do Senegal.
No entanto, em pouco tempo,
perceberam que estavam em ambiente hostil,
muitos africanos resistiam e matavam o invasor, por meio da utilização
de flechas, dardos e lanças.
Em um segundo momento, os
portugueses criaram alianças com tribos locais para levar inimigos de outras
tribos que haviam sido capturados. Estes eram trocados por ouro em Gana.
"E há a terceira fase, a
mais extensa e significativa para a nossa história, quando se estabelece um
acordo entre os invasores e as elites militares africanas. Estimuladas pelos
portugueses, estas promoviam guerras contra tribos rivais. Todos os inimigos
capturados eram vendidos como escravos que acabavam no Brasil".
"Joaquim Nabuco já dizia
que não bastava acabar com a escravidão - também era necessário tratar de seu
legado. É triste, mas isso jamais foi feito. Os escravos e seus descendentes
jamais tiveram acesso à educação, terra e trabalho.
Essa enorme massa da população
brasileira, que é majoritária, não ganhou cidadania. Em verdade, tudo o que o
Brasil fez foi se livrar da mancha da escravidão, que comprometia sua imagem
internacional no fim do século XIX. No entanto, o país abandonou sua população
afrodescendente à própria sorte".
Para o escritor, o resultado
dessa abordagem é visto com facilidade em todos os cenários da sociedade
brasileira.
"Há um desnível imenso
entre os descendentes de europeus e descendentes de africanos no Brasil. E,
isso vale para qualquer item tais como renda, moradia, educação, insegurança.
Olhe para as periferias, olhe para as favelas, olhe para os presídios. Os
negros estão sempre nas piores condições.
Os mais importantes cargos da
administração pública, os diretores de empresas privadas, os professores de
universidades, escritores, médicos, advogados, diretores de cinema e teatro -
basta olhar, quase nunca são negros.
O que é absurdo, vista a
importância central da presença do negro na cultura, na política e na economia
nacionais. Tudo isso deixa muito claro que a escravidão e o preconceito
resultante dela permanecem no DNA da sociedade brasileira".
Foi a Lei Áurea que ratificou
a extinção do trabalho escravo dos negros e, a abolição da escravatura foi resultante
de luta popular que contou com a adesão de consideráveis parcelas da sociedade
brasileira, além de ter havido forte resistência dos escravos.
A abolição foi um processo
longo, lento e muito difícil de muitas lutas. E, não fora resultado do humanismo
ou benevolência da família real brasileira, mas aconteceu porque grande número
de pessoas se mobilizou para forçar o Segundo Império a pôr fim ao trabalho
escravo.
Enfim, a questão de novos
padrões civilizacionais que estavam surgindo e que condenava a prática
escravista e, de quebra, colocava o país em vexame, no plano internacional,
pois fora o derradeiro país a abolir a escravidão.
O movimento abolicionista, por
sua vez, só ganhou força a partir da década de 1870, e o fortalecimento do
abolicionismo fez com que algumas leis fossem aprovadas no Parlamento
brasileiro: a Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários. Veja o que cada uma
dessas leis determinou:
Lei do Ventre Livre (1871):
determinava que todo filho de escravo nascido após 1871 seria considerado
livre, cabendo ao dono do escravo dar sua liberdade com oito anos de idade
(recebendo indenização), ou aos 21(vinte e um) anos de idade (sem receber
indenização).
Lei dos Sexagenários (1885):
concedia alforria aos escravos que possuíssem idade superior a 60 anos. Os
escravos alforriados ficavam obrigados por lei a prestar “serviços
indenizatórios” durante três anos.
Ambas as leis atendiam
demandas importantes para os escravocratas: a demanda por indenização dos
cativos (seja por meio de trabalho compulsório, seja por meio de um valor
específico) que garantiam sua liberdade e o enfraquecimento temporário dos
movimentos abolicionistas. A Lei dos Sexagenários, por exemplo, foi encarada
pelos abolicionistas da época como uma verdadeira derrota para a causa.
A década de 1880 foi um
momento de grande agitação política e a abolição do trabalho escravo foi a
pauta que agitou a sociedade brasileira. O movimento abolicionista tinha
ganhado uma força muito grande e a causa foi abraçada por inúmeros grupos de
nossa sociedade. As associações abolicionistas espalhavam-se pelo país e
atuavam em diversas frentes: legais e ilegais (à luz da legislação da época).
Um grupo notável de pessoas
como Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, Aristides Lobo, Manuel
Quirino, entre outros, atuava firmemente na defesa da causa abolicionista. A
mobilização de parte da sociedade na defesa da abolição ocorreu de diversas
formas, e os escravos eram muitas vezes incentivados a se rebelar, eram
abrigados por pessoas quando fugiam e defendidos nos tribunais por advogados.
Houve casos em que os escravos
rebelados tomavam o controle da propriedade na qual eram escravizados e matavam
seus senhores. Em muitos locais, os escravos organizavam-se para se rebelar nos
“dias santos”, isto é, dias de festas religiosas ou de missas. Tudo isso
reforça uma visão trazida pelos historiadores de que os escravos foram agentes
ativos na luta pela emancipação.
Assim, dentro desse contexto,
a ação do Estado em manter a escravidão tornou-se ineficaz. O sinônimo
correspondente do enfraquecimento da escravidão no Brasil foi as ações tomadas
no Amazonas e no Ceará, em 1884. Esses dois Estados decretaram a abolição da
escravatura em seus territórios.
Nesse contexto, foi levado
para o Senado o projeto que defendia a extinção imediata e sem indenização da
escravidão no Brasil. Esse projeto foi proposto por João Alfredo, político do
Partido Conservador. A lei foi aprovada no Senado e, no dia 13 de maio de 1888,
foi levada para a princesa Isabel para que ela assinasse, colocando-a em vigor.
A princesa regente do Brasil
assinou a Lei Áurea no dia mencionado, e a capital do Brasil – na época o Rio
de Janeiro – entrou em festa. Os relatos resgatados pelos historiadores contam
que milhares de pessoas se reuniram nas ruas do Rio de Janeiro e as
comemorações pela abolição estenderam-se na capital durante dias.
O importante é resgatar o
verdadeiro esforço das massas populares para alcançar direitos elementares de
cidadania, onde negros e brancos possam viver em paz e harmonia.
O Código Penal brasileiro de
1940 previu no título das liberdades individuais o art. 149 que tipifica o
crime de impor a alguém a condição análoga à de escravo.
A escravidão atualmente é uma
situação de Direito que o Brasil não reconhece, logo é considerado um fato
inexistente no país, mas é reconhecida situações que se assemelham à
escravidão, pois sua liberdade de direito ainda continua existindo, porém, a
liberdade de fato é violada.
Nesse sentido, o atual Código
Penal Brasileiro tipifica a conduta de submeter pessoa à trabalho análogo à
escravidão, no supramencionado artigo, tornando-se assim uma das ferramentas
mais importante para o combate de tal prática no Brasil:
Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à
de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto:
Pena – reclusão, de dois a
oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Como visto, tal crime pode ser
praticado de várias formas, quando realizado mediante submissão é caracterizado
por duas situações: a primeira, quando a vítima não oferece resistência em
virtude de imposição de violência, ameaça ou fraude; já a segunda, quando a
vítima é submetida a trabalho até exaustão física sem qualquer intervalo.
Quando realizado mediante à
sujeição a condições degradantes de trabalho: nesta situação ocorre na relação
trabalhista, quando o empregado é obrigado a trabalhar em condições desumanas
sem que haja a possibilidade de interrupção voluntária da relação.
Por fim, o crime pode ser
praticado também mediante restrição, por qualquer meio, da locomoção do
indivíduo em razão de dívida contraída com empregador ou preposto; acontece
quando a vítima tem cerceamento de sua liberdade até o pagamento de dívida em
face do patrão ou preposto, no truck-system/sistema de barracão.
No §1º, incisos I e II do art.
149, há as figuras equiparadas ao crime que quando praticadas, incorrem nas
mesmas penas do caput do referido artigo.
A primeira é o ato de cercear
o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de
retê-lo no local de trabalho, podendo essa conduta ser realizada pelo empregador
ou qualquer uma pessoa a mando dele; a vítima tem a vontade de sair, todavia,
todos os meios de transporte estão retidos.
Já a segunda, é manter em
vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou
objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Em
ambas as condutas há dolo específico de manter a vítima no local de trabalho.
Este crime de impor o trabalho
análogo à escravidão, trata-se de uma Ação Penal Pública Incondicionada, é
doloso, não admite forma culposa e possui forma vinculada.
Tem por objeto jurídico a
liberdade em seu sentido amplo, status libertatis, é um crime comum,
permanente e permite tentativas, podendo a vítima ou autor ser qualquer pessoa,
mas é causa de aumento de pena (pela metade) se a vítima for criança,
adolescente ou for praticado por motivo de preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou origem (parágrafo 2º, incisos I e II, art. 149, CP), possível o
flagrante enquanto permanecer a submissão.
Ressalta-se que o dolo é a
vontade consciente de submeter a vítima em seu poder, de maneira que tire a
liberdade de fato dela.
Sua consumação ocorre quando à
vítima é reduzida à condição análoga à escravidão, ou seja, basta ocorrer
qualquer um dos fatos descritos no parágrafo anterior. Já a tentativa é
caracterizada quando emprega os meios necessário para sua consumação, mas por
circunstâncias alheias a sua vontade não obtém êxito.
O Código Penal também prevê os
crimes de atrair trabalhadores com promessas de trabalho ou qualquer outra forma
fraudulenta com objetivo de levá-los para outro país, caracterizando a conduta
tipificada no art. 206 do CPP, bem como, o ato de aliciar trabalhadores com
objetivo de levá-los para outro local do território brasileiro, caracteriza a
tipificação do art. 207 do CPP.
Mas, em ambos os casos a
vontade consciente do agente é a emigração e migração respectivamente, não
havendo o dolo de submeter o indivíduo em situações análogas à escravidão. Além
disso para a consumação dos crimes descritos acima, não se faz necessária a
prática de maus-tratos ou sofrimentos ao sujeito passivo (RJTJSP 39/286 e
39/386).
Ao passo que o trabalho
análogo à escravidão se caracteriza quando uma pessoa é coisificada e retiram
de si a sua liberdade, sendo obrigada a trabalhar para aquele que o ameaça, sua
mão de obra é retirada forçadamente.
A competência para processar e
julgar crimes de redução análogo à escravidão, em regra, é da Justiça Estadual,
salvo nos casos em que é denunciado junto com um dos crimes contra a
organização do trabalho. Posto que na segunda situação, viola direitos
coletivos do trabalho, diferente do primeiro que viola direitos de uma pessoa
ou um determinado grupo. Estando sujeito também ao procedimento ordinário em
razão da pena máxima ser superior a quatro anos de pena privativa de liberdade
(CPP, art. 394, § 1º, I).
Os motivos das absolvições se
dão em razão das dificuldades na comprovação do delito, ausência na comprovação
do dolo e da grande demora na função judiciária.
As teses mais usadas para
absolvição é ausência de prova da restrição de liberdade, ausência da prova do
dolo, ausência de ofensa à dignidade do trabalhador, entre outros. Os acordos,
denominados de Termos de Ajustamentos de Conduta (TAC), realizados entre o
Ministério Público e o empregador com a finalidade de deixar de responsabilizar
criminalmente para cumprir determinados cumprimentos de exigência
extrajudiciais, tem contribuído também para a não responsabilização criminal.
As ausências de provas para
condenação decorrem também pela degradação da prova ao longo dos tempos, da
dificuldade de provar o dolo e principalmente da complexidade dos processos
quando há mais de 3 (três) réus que os tribunais têm para tramitar.
Diante do exposto, é possível
afirmar que a impunidade na esfera criminal tem contribuído para realização do
fato típico. Pois não basta apenas que os verbos do fato estejam tipificados
com as devidas penas cominadas, se na seara processual não há trâmite
processual com a devida eficácia para a sociedade.
Para que ocorra a efetividade
do processo penal, referente aos crimes de trabalho análogo à escravidão, é
necessário que se dê uma maior prioridade para julgamento, visto que muitas
provas são perdidas ao longo do trâmite processual.
E nos casos de processos
complexos, em virtude de haver mais de 2 (dois) réus, é necessário por parte do
magistrado uma análise do caso concreto, e, constatando que os réus estão em
fases processuais muito diferentes, ao ponto de prejudicar a efetividade no
andamento do processo, que seja determinado o desmembramento dos autos
processuais.
Por parte do custos legis, é
preciso que venha tentar buscar meios que possam tornar cada vez mais eficaz a
comprovação do dolo, para que a sentença não seja fundamentada na absolvição do
acusado em virtude da ausência de dolo ou de outras provas. Um dos meios
poderia ser a designação de um servidor para analisar os processos que tratam
de trabalho análogo à escravidão a cada 3 (três) meses, verificando assim se o
andamento processual está tendo celeridade.
De acordo com a acusação, os
trabalhadores da fazenda eram privados das mínimas condições de higiene, não
dispondo nem mesmo de água potável no local do trabalho. Se essa situação não
for considerada degradante – acrescentou o MPF –, o trabalho em condições análogas
à de escravo não será erradicado no país.
O ministro Nefi Cordeiro
explicou que a redação do artigo 149 do CP assim como a jurisprudência do STJ, é
clara no sentido de que o delito se configura independentemente de restrição à
liberdade, e que este é um crime de ação múltipla e conteúdo variado.
Para o relator, foi correta a
sentença ao fundamentar a condenação "em razão das condições degradantes
de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas", atestadas em
relatório de fiscalização.
Com a decisão reconhecendo a
configuração do crime, a Sexta Turma determinou o retorno dos autos ao TRF1
para que prossiga na análise de outros aspectos do recurso de apelação.
Vide acórdão no link: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1946514&num_registro=201903065301&data=20200602&formato=PDF e também
https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=9492984 .
A Portaria do Ministério do
Trabalho nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, publicada no Diário Oficial da
União de 16.10.2017, dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada
exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de
seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do
Ministério do Trabalho, nos termos do art. 2º-C da Lei 7.998/1990, bem como
altera dispositivos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de
maio de 2016, a qual dispõe sobre as regras relativas ao Cadastro de Empregadores
que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo.
Um dos aspectos de maior
destaque na referida Portaria 1.129/2017 é a conceituação restritiva de
“trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “condição degradante” e “condição análoga
à de escravo” (art. 1º).
Como desdobramento de nítida
relevância, de acordo com o art. 2º da Portaria 1.129/2017, os conceitos
estabelecidos no seu art 1º deverão ser observados em quaisquer fiscalizações
procedidas pelo Ministério do Trabalho, inclusive para fins de inclusão de nome
de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
à condição análoga à de escravo, estabelecido pela Portaria Interministerial
MTPS/MMIRDH nº 4/2016.
A Portaria 1.129/2017
conceitua, de forma restritiva, “trabalho forçado” como “aquele exercido sem o
consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de
expressar sua vontade” (art. 1º, inciso I).
Não obstante, na atualidade,
considera-se trabalho forçado não só aquele em que o empregado não tenha se
oferecido espontaneamente, mas também quando o trabalhador é enganado com
falsas promessas de condições de trabalho, havendo coação física ou moral.
Na mesma linha de restrição, a
Portaria 1.129/2017 a conceitua a “jornada exaustiva” (art. 1º, inciso II) como
“a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de
ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”
(destaquei).
A hipótese de jornada
exaustiva, entretanto, segundo a previsão legal (art. 149 do Código Penal, com
redação dada pela Lei 10.803/2003), não exige essa privação da liberdade de
locomoção propriamente.
Conforme a Portaria
1.129/2017, “condição degradante” (art. 1º, inciso III) é caracterizada por
“atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do
trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por
meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade”
Entretanto, o conceito
contemporâneo de trabalho em condições análogas à de escravo, inclusive em
conformidade com a atual previsão do art. 149 do Código Penal, com redação dada
pela Lei 10.803/2003, por ser mais amplo, não faz essa exigência restritiva.
A redução de trabalhador a condição análoga à de escravo configura grave violação à dignidade da pessoa humana, prevista como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, da Constituição da República), o que resulta em manifesta contrariedade ao chamado trabalho decente, previsto e exigido também na esfera internacional
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do Trabalho, São Paulo, SP, v. 85, n. 2, p. 116-129, abr./jun. 2019.
Notas:
[1] — Se um homem furar o olho de um homem livre, furar-se-lhe-á um olho. — Se ele fura o olho de um escravo alheio ou quebra um membro ao escravo alheio, deverá pagar a metade do seu preço.
Artigo 197 do Código de Hamurabi
197. Se um homem quebrar o
osso de outro homem, o primeiro terá também seu osso quebrado. 198. Se ele
arrancar o olho de um homem livre, ou quebrar o osso de um homem livre, ele
deverá pagar uma mina em ouro.
[2]
No meio do período medieval, a maioria dos escravos pertencentes aos cristãos
da Iberia eram muçulmanos, capturado em batalha com os estados Islâmicos do sul
da Península, ou capturados do leste do Mediterrâneo e importados para a Península
Ibérica pelos comerciantes de cidades como Gênova. Com a ascensão social e
política da Igreja na Idade Média e a consequente cristianização das
monarquias, a pressão a favor dos pobres, das mulheres e dos escravos tornou-se
maior. Por exemplo, uma lei do século VI (sob influência da Igreja Católica)
afirmava que nenhum escravo poderia ser preso caso estivesse em um altar
católico: seu dono deveria pagar uma pesada multa caso fizesse isso. Nesses
séculos conhecidos pelos especialistas como Alta Idade Média (V-X) o
Catolicismo que se difundiu na Europa pressionou aquelas sociedades a
considerar a escravidão algo ultrajante aos seres humanos, já que, pela fé em
Jesus Cristo, somos todos filhos de Deus.
[3]
De forma mais simples, o termo trabalho escravo contemporâneo é usado no Brasil
para designar a situação em que a pessoa está submetida a trabalho forçado,
jornada exaustiva, servidão por dívidas e/ou condições degradantes Desde 2010,
quando começaram as operações de combate ao trabalho escravo voltadas
exclusivamente para estrangeiros, 128 bolivianos e um peruano foram
resgatados no Estado de São Paulo, que
concentra o maior contingente de trabalhadores estrangeiros do país.
Na avaliação de Luiz Machado, Coordenador Nacional do Programa de Combate ao Trabalho Forçado e Tráfico de Pessoas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o número de estrangeiros resgatados não ilustra a realidade porque esses trabalhadores têm medo de serem encontrados, o que resulta em poucas denúncias.
[4]
A Confederação Abolicionista brasileira foi uma organização política criada em
9 de maio de 1883, com o objetivo de pressionar o governo brasileiro para que
pusesse fim na escravidão. A Confederação Abolicionista foi capaz de coligar
sociedades antiescravistas de todo o Império. Seus meios de ativismos se deram
principalmente na imprensa, no teatro, na organização de reuniões e
conferências e nos fundos de emancipação locais. Dentre seus membros estavam
alguns dos mais ilustres líderes do Movimento Abolicionista brasileiro, tais
como: José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, André Rebouças e Luiz Gama. A
institucionalização da Confederação Abolicionista aconteceu dentro de um
contexto político e econômico marcado por uma forte pressão internacional para
o fim da escravidão no Brasil. Embora o ideal abolicionista já estivesse em
voga desde o final da década de 1860 é só a partir do ano de 1880 que o
Movimento Abolicionista ganha força. Nesse momento há um aumento na circulação
de ativistas, retóricas e estratégias através de navios a vapor e a tecnologia
dos telégrafos. Essas novas tecnologias possibilitaram a circulação de debates
e experiências políticas em escala internacional, o que impulsionou que vários
ativistas de diferentes países construíssem alianças, ou redes de sociabilidade.
A partir dessa conjuntura surgiram grupos de sujeitos que partilhavam os mesmos
interesses, e ao longo dos anos esses grupos passaram a se articular para
manter a comunicação, resultando no surgimento de várias associações políticas
nacionais.
[5] Homens e mulheres escravizados perfaziam mais de um terço do total de habitantes, estimado em 4,7 milhões de pessoas. Outro terço era composto por negros forros e mestiços de origem africana – uma população pobre, analfabeta e carente de tudo, dominada pela minoria branca. Os indígenas, já dizimados por guerras, doenças e invasão de seus territórios, sequer apareciam nas estatísticas. O último livro da trilogia Escravidão é dedicado ao século XIX; à Independência; ao Primeiro e ao Segundo Reinados; ao movimento abolicionista, que resultou na Lei Áurea de 13 de maio de 1888; e ao legado da escravidão, que ainda hoje emperra a caminhada dos brasileiros em direção ao futuro. A escravidão era, na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, "um cancro que contaminava e roía as entranhas da sociedade brasileira". Disseminado por todo o território, o escravismo perpassava todas as atividades e todas as classes sociais. Maior território escravista da América em 1822, o Brasil assim se manteria até o final do século XIX, com sua rotina pautada pelo chicote e pela violência contra homens e mulheres escravizados. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor da nossa identidade nacional quanto a escravidão.