A imparcialidade do julgador na fase pré-processual penal no Brasil

A decisão do STF, em quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305), deu prazo de 12(doze) meses, prorrogáveis por outros 12 (doze), para que leis e regulamentos dos tribunais sejam alterados para permitir a implementação do novo sistema a partir de diretrizes fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O prazo começou a contar a partir da publicação da ata do julgamento.(24.8.2023). A então ministra Rosa Weber, presidente do STF, afirmou que o direito ao juiz imparcial é uma garantia prevista na Constituição Federal e em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Segundo a presidente, a obrigação do Estado passa pela criação de normas para inibir a atuação do magistrado em situações que comprometam ou aparentem comprometer sua imparcialidade

Fonte: Gisele Leite

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O nosso vetusto Código de Processo Penal publicado pelo Decreto-Lei 3.689 de 1941[1] sofrera algumas significativas mudanças interpretativas, particularmente após a Constituição Federal brasileira de 1988 e, com a instituição de direitos e garantias fundamentais procurou primar por uma persecução processual justa, tendo como princípio bussolar a presunção de inocência do réu.

Mas, permanece no processo penal pátrio os resquícios do regime ditatorial, sendo  a fase pré-processual regida pelo sistema inquisitivo.

Tanto que  CPP traz ainda disposições que são, no  mínimo, incompatíveis com a CF/1988, como, por exemplo, a possibilidade de a autoridade  judiciária atuar na fase investigatória, bem como na fase processual, produzindo provas independentemente de provocação, isto é, de ofício.

A CF de 1988, cujo viés garantista é substancialmente diferente da que permeava a sociedade à época do dito CPP, trouxe novos institutos e suscitou novos princípios, e entre a Constituição que orientava a nação quando do surgimento do nosso CPP e a atual, nossa sociedade experimentou períodos de muita agitação, tanto política quanto institucional, ora sob regimes autoritários ora sob regime mais democrático.

Mostrou-se o doutrinador Pacelli enquanto a ideologia do CPP mostra-se claramente autoritária, havendo sempre preocupação com a “segurança pública”, nossa atual Constituição prima por um sistema com uma gama de garantias individuais, a começar por considerar a inocência do acusado, regra, que terá seu status alterado apenas quando houver sua responsabilidade penal reconhecida por sentença condenatória transitada em julgado, como preceitua o artigo 5º, LVII “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

O viés garantista[2] da vigente Constituição Federal brasileira passou a demandar do processo muito além do meio para a simples aplicação da lei penal, mas, sobretudo, exige que este se transforme em meio de garantia ao cidadão frente ao poder punitivo do Estado.

Realiza-se então conforme nos ensina Pacelli, uma busca da igualdade, durante a persecução criminal, entre o acusado e o Estado, que “ocupa posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre o qual exerce o monopólio”.

Outro ponto questionável é a configuração da organização judiciária do país, que permite que o mesmo magistrado responsável por conduzir o Inquérito Policial[3] também julgue o réu em eventual processo instaurado.

Sublinhe-se que a atuação do juiz na produção probatória, confunde-se por atuar como verdadeiro órgão acusador e, ainda, na condução consecutiva da fase investigatória e processual, o que coloca em dúvida a imparcialidade do julgador e quais seriam os meios adotados para mitigar ou extinguir tal parcialidade, que traz evidente prejuízo ao réu no processo penal brasileiro.

A história do processo penal pátrio passou por períodos obscuros pelos quais o país sofrera bastante e com o advento da Redentora ou a Constituição Cidadã[4], deu-se a sinalização de novo Estado apto a priorizar melhor os direitos e garantias fundamentais das pessoas.

É crucial para materialização do Estado de Direito que o processo judicial venha a seguir a ótica constitucional e que o julgador assuma a responsabilidade legal de praticar os atos necessários para o bom e regular desenvolvimento do processo.

Mas, o vetusto Direito Processual Penal esbarra no texto constitucional vigente em face das regras do devido processo legal, o torna obrigatório que tanto as partes como o juiz devam observar o caminho justo e democrático na condução do processo penal.

Lembremos que o princípio da ampla defesa deve fornecer o espaço e as condições adequadas para que as partes possam finalmente atuar no processo exercendo o direito de impugnação, oferecendo assim, todas as informações que sejam necessárias para expor seu ponto de vista sobre os fatos submetidos ao julgamento. A ampla defesa inclui a defesa técnica, a autodefesa, a defesa efetiva e também qualquer meio de prova capaz de demonstrar a inocência do réu acusado.

E, atrelado ao princípio da ampla defesa[5] há o princípio do contraditório que possibilitar aquele ser aliado no processo, o que estabelece a igualdade entre as partes podendo ter oportunidade de dizer e contradizer. Portanto, graças à dialética que se materializa o princípio do contraditório.

A conjugação do princípio da ampla defesa com o do contraditório[6] torna-se, então, imprescindível para que o princípio do devido processo legal que é previsto constitucionalmente vigente seja plenamente aplicado.

Há proteção ao indivíduo submetido a julgamento pelo Estado, de forma a proporcionar paridade entre as partes ao se garantir direitos relativos à petição, à plenitude de defesa, à  citação regular, aos recursos, às revisões criminais, dentre outros.

O princípio do juiz natural e imparcial talvez seja o que abarque maior relevância neste  estudo, cuja interpretação advém do art. 5°, incisos XXXVII e LIII da CF/1988, e pode ser compreendido, conforme expõe Guilherme de Souza Nucci, como aquele princípio que “estabelece  o direito do réu de ser julgado por um juiz previamente determinado por lei e pelas normas  constitucionais, acarretando, por consequência, um julgamento imparcial.”

Merece considerável destaque o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 5°, LVII, da CF/1988. Pelo referido princípio, o réu ingressa no processo sendo  presumidamente inocente, ficando a cargo único e exclusivo da acusação provar o contrário,  utilizando-se, para tanto, da dialética processual para alcançar o convencimento do juiz acerca  da culpabilidade do acusado.

Conclui-se que diversos são os princípios norteadores do processo penal brasileiro, em particular referência a CF/1988, pelo fato do ordenamento jurídico pátrio manter e guardar íntima relação com o diploma normativo que se situa no ápice superior de toda hierarquia das normas jurídicas.

Existem três sistemas[7] principais construídos historicamente e que tutelam o processo penal. O primeiro deles é o sistema inquisitorial, que se caracteriza por ser um  sistema no qual o magistrado exerce concomitantemente as funções de julgador, defensor e  acusador. Esse sistema foi adotado precipuamente pelo Direito Canônico no início do século  XIII e se propagou por toda a Europa.

O sistema inquisitivo predominou até  o início do século XIX, quando então sofreu abalos pelos ideais da Revolução Francesa, principalmente em razão da valoração do ser humano, que se disseminou por todo processo penal

Já o sistema acusatório traz nítida separação de funções. De forma que a acusação e defesa são partes distintas, mas que estão em igualdade de condições. E, o juiz deve se manter equidistante em razão das partes, configurando-se imparcial. É chamado de acusatório o sistema porque ninguém deverá ser chamado em juízo sem haver uma acusação fática e precisa. Além de o juiz não determinar a atividade investigatória e probatória, sendo proibido, agir de ofício.

No sistema misto vige uma conjugação dos sistemas inquisitorial e acusatório posicionando-se em duas fases distintas, e ordenadas, primeiro, sendo inquisitorial e depois acusatório. É também chamado de sistema francês em face de ter sua inspiração decorrente do Code d'Instruction Criminelle, de 1808.

Nota-se que na primeira fase, o investigado não é visto como parte, mas sim, como objetivo, quando não são observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Já na segunda fase, adotam-se os elementos peculiares ao sistema acusatório, onde, teoricamente, as funções do julgador e acusador são divorciadas.

Realmente existem divergências doutrinárias sobre o qual o real sistema vigente no ordenamento jurídico brasileiro, Eugênio Pacelli e Renato Brasileiro de Lima defendem que há o sistema acusatório em face da previsão na CF/1988 do artigo 129, I, que aponta que a titularidade da ação penal cabe ao Ministério Público.

Ademais, a fase investigativa,  segundo esses autores, não faz parte do processo, sendo apenas procedimento administrativo.  Já Guilherme de Souza Nucci acredita que o sistema adotado seja o misto, aduzindo que há  verdadeiro hibridismo no vigente sistema processual penal brasileiro.

Embora a CF/1988 estabeleça princípios constitucionais relativos ao processo penal que apontem para o sistema acusatório, não há imposição de sua adoção, ou melhor, não havia.

A Lei 13.964/2019, dentre várias inovações, introduziu o art. 3°- A ao CPP, por meio do qual expressamente declarou que a estrutura do processo penal deverá ser acusatória, vedando-se qualquer iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão acusador (BRASIL, 2019).

Entretanto, em apreciação da Medida Cautelar nos autos das   Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, o Ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia dos artigos 3°-A a 3°-F.[8]

Uma ação seja instaurada e se dê início ao processo propriamente dito, é necessário percorrer um caminho delineado pela própria legislação.

As investigações criminais,  segundo a maior parcela da literatura especializada, constituem a fase pré-processual do processo penal e, lato sensu, se iniciam pela instauração de um procedimento próprio pela autoridade competente denominado de Inquérito Policial, procedimento administrativo que objetiva  arregimentar indícios de autoria e materialidade.

 Trata-se de procedimento investigatório, conduzido pela Polícia, denominada de judiciária, que se destina, ao final,  a fornecer ao titular da ação penal os elementos necessários para a provocação do Poder Judiciário, por meio do oferecimento da denúncia.

No tocante às características do Inquérito Policial, tem-se, inicialmente, a sua dispensabilidade. Ao afirmar que para se propor uma ação penal são necessários a prova da materialidade do delito e os indícios de autoria, não significa afirmar, necessariamente, que deverá ser instaurado Inquérito Policial[9] para apurar tais elementos.

Inclusive, o artigo 27 do Código de Processo Penal brasileiro estabelece que qualquer pessoa do povo poderá se dirigir até o Ministério Público, comunicando a prática de crime, fornecendo, por escrito, todas as informações sobre o fato e a autoria. Ademais, prevê o artigo 46, §1°, do aludido diploma legal, prazo específico para o Ministério Público oferecer denúncia quando optar por dispensar o Inquérito Policial.

A instauração do Inquérito Policial no Brasil pra apuração do crime e de sua autoria não é obrigatória, sendo que tais elementos podem ser obtidos por outros meios, desde que não violem os princípios e garantias fundamentais elencados e positivados na CF/1988.

Foi o que ratifica Eugênio Pacelli, in litteris: “[...] o inquérito não é indispensável à propositura de ação  penal, podendo a acusação formar o seu convencimento a partir de quaisquer outros elementos informativos.” (PACELLI, 2018, p. 57).

O Inquérito Policial tem por característica ser escrito, por exigência do artigo 9° do CPP,  motivo pelo qual todas as diligências devem ser devidamente documentadas nos autos. (BRASIL, 1941).

Além disso deverá ser sigiloso, justamente para se evitar qualquer frustração na produção de provas, preservar a intimidade e a imagem daqueles que figuram como vítima ou investigado no feito. No entanto, apesar do sigilo, o artigo 7°, inciso XIV, do Estatuto da Ordem dos Advogados  do Brasil, confere ao advogado o direito de ter acesso aos autos de flagrante e de investigações

de qualquer natureza, mesmo sem procuração. Isto é, conquanto estejam as informações documentadas e na posse da Polícia Judiciária ou do Ministério Público (BRASIL, 1994).

Por fim, o Inquérito Policial é inquisitivo. Ensina Paulo Rangel que esse caráter “(...) faz com que seja impossível dar ao investigado o direito de defesa, pois ele não está sendo acusado de nada, mas, sim, sendo objeto de uma pesquisa feita pela Autoridade Policial.

É conveniente sublinhar que durante a investigação criminal não vigem os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, posto que seja um procedimento destinado a colher informações por parte da autoridade policial. É quando vige propriamente a fase de caráter inquisitorial.

Uma vez realizadas as primeiras diligências, todos os dados apurados na investigação, como já mencionado, serão reduzidos a escrito nos autos do Inquérito Policial e, após, serão remetidos ao juiz competente, nos termos do artigo 10, §1° do CPP.

A autoridade judiciária, em seguida, remeterá os autos para o Ministério Público, pois é o destinatário final das provas obtidas para o exercício do direito de ação (BRASIL, 1941).

Quando os autos do inquérito policial forem recebidos pelo representante do Ministério Público irá, então, decidir se oferecerá ou não denúncia, e se entende que são suficientes as provas para confirmar tanto a materialidade do crime como também os indícios de autoria delitiva.

E, caso as provas não sejam cabais para elucidação dos fatos, o MP em atenção ao artigo 16 do CPP, poderá requerer, ao juiz, a devolução dos autos do inquérito policial para haver a realização de novas diligências necessárias e imprescindíveis para o oferecimento da denúncia.

Quando encerradas as investigações, o Inquérito Policial será remetido ao Ministério Público  para que este decida por dois caminhos possíveis: caso não provada a materialidade do crime  ou não existentes indícios suficientes de autoria, o representante do Ministério Público poderá  requerer ao juiz o arquivamento do Inquérito Policial; se provada a materialidade do crime e  haja indícios suficientes de autoria do delito, o Ministério Público deverá oferecer denúncia, em  respeito ao princípio da obrigatoriedade que o vincula a esse múnus, dando início à ação penal.

Cabe mencionar, que a Lei 13.964/2019, que ficou conhecida como “Pacote anticrime”, alterou  substancialmente a forma de arquivamento do Inquérito Policial, dando maior autonomia ao  próprio órgão acusador.

De acordo com o art. 28, do CPP, o arquivamento determinado pelo Ministério Público não mais será submetido ao crivo do juiz, mas ao órgão de revisão do parquet, donde será realizada a homologação (BRASIL, 1941). Porém, o STF também suspendeu os efeitos da nova regra por meio da liminar na ADI 6.298, reestabelecendo a validade da regra anterior até que haja julgamento de mérito pelo Plenário.

O juiz competente, então, apreciará a denúncia quando provocado, dando-se início à  segunda fase do processo penal (se compreendido que o Inquérito Policial faz parte da primeira fase do processo ou fase pré-processual).

Nessa fase, as diligências a serem tomadas dependem de diversos procedimentos especiais previstos na legislação. Mas, tomando-se  como referência o procedimento ordinário, o juiz ouvirá a defesa, que apresentará suas razões  sustentando o não recebimento da denúncia.

Após, o julgador decidirá recebê-la ou rejeitá-la. Caso recebida, tem-se o início do desenvolvimento regular do processo, havendo apresentação da resposta à acusação, produção de provas e o proferimento de sentença judicial, sempre observando o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

Assim, vale destacar que tanto o contraditório quanto a ampla defesa com o advento da Lei 13.245/2016 inquérito policial deixou de ser meramente inquisitório, pois a Lei 13.245/2016, alterou o artigo 7º da Lei 8.906/1994, possibilitando o contraditório e a ampla defesa em sede do inquérito policial, o princípio do contraditório e ampla defesa ganhou outra dimensão com o fragmento da nova lei.

A referida lei ao permitir o advogado fazer perguntas, formular quesitos, inaugurou o contraditório dentro do inquisitório.

O contraditório e ampla defesa, princípio constitucional, tal princípio é assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal, no inquisitório consiste em dar ao acusado a oportunidade de defesa até em fase do inquérito policial com a criação da Lei 13.245/2016.

O contraditório no inquérito policial veio positivar com a alteração da Lei 8.906/1994 o que já é uma garantia constitucional. Quando a Constituição Federal preceitua em seu artigo 5º, inciso LV que são direitos de todos, o contraditório e ampla defesa não exclui ninguém e, sim afirma que é para todos, portanto não há que discutir se é injusto ou não as mudanças que a Lei 13.145/2016 trouxe para o inquérito policial, que dar a prerrogativa do advogado ter acesso na fase inquisitório do inquérito policial.

Assim sendo, as fases comunicam-se entre si, por questões lógicas, o que torna imprescindível à obediência às regras processuais e aos princípios que delineiam o procedimento em questão, sob pena de nulidade dos atos praticados.

Conclui-se, portanto, que a fase inquisitorial lida com direitos e garantias fundamentais  protegidos pela CF/1988 e por isso merece a devida tutela normativa e fiscalização por parte  dos órgãos e instituições públicas tais como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia  Judiciária e a Defensoria Pública, a fim de que as prerrogativas máximas conquistadas pela  sociedade sejam respeitadas.

Apesar de haver notórias previsões legais que protejam ostensivamente os direitos dos cidadãos, é possível ainda se defrontar com ilegalidade crassas que passam despercebidas e violam cronicamente o sistema acusatório na fase processual e também o princípio da imparcialidade do juiz que são consolidados pelo texto constitucional brasileiro em vigor.

O busilis principal é sobre as atribuições do juiz em fase de investigações criminais e, particularmente, quanto à atual organização judiciária brasileira, vez que esses dois fatores contribuem em muito para a contaminação da imparcialidade do juiz, quando se der início, a fase processual.

A atuação do juiz na fase pré-processual, ainda que merecedora de críticas, é necessária  para o desenvolvimento regular da investigação criminal. Não se poderia dar a cargo exclusivo da Polícia Judiciária e do Ministério Público a execução de atos sem a autorização do Poder Judiciário, sob pena de violação aos princípios constitucionais processuais e aos direitos e garantias fundamentais protegidos pela Carta Maior.

No entanto, o atual sistema inquisitorial brasileiro confere determinadas atribuições ao Poder Judiciário que despertam questionamentos. Em regra, o juiz atua na fase inquisitorial quando provocado.

De início, percebe-se a incidência do princípio da inércia, quando o Inquérito Policial é enviado ao juiz para que a partir  daí se abra vista dos autos ao Ministério Público e este, por sua vez, requeira o que entender  de direito. Caso o parquet opine, por exemplo, pela decretação de prisão preventiva, o juiz proferirá decisão fundamentada nos autos.

Se o Ministério Público entender que ainda necessitam ser realizadas diligências investigatórias pela Autoridade Policial, o juiz, então, proferirá  despacho nos autos remetendo o Inquérito Policial à Polícia Judiciária para que o pedido formulado seja executado.

O atual Código de Processo Penal brasileiro e as leis que tutelam as mais diversas diligências investigatórias, tais como a Lei de Prisão Temporária (Lei  7.960/1989) e a Lei de Interceptação Telefônica (Lei  9.296/1996), por exemplo, estão de acordo com sistema processual penal  adotado pela CF/1988 e pelo CPP, ao passo em que estabelecem a necessidade de peticionamento do órgão acusador ou da Autoridade Policial perante o juiz, em se tratando de decretação  de prisão temporária, de interceptação de comunicações telefônicas, de busca e apreensão.

Contudo, nos mesmos diplomas legais acima mencionados, com exceção da Lei de Prisão  Temporária, é possível se deparar com ocasiões em que o juiz pode atuar independentemente  de provocação, isto é, de ofício, o que ocasiona violações ao sistema processual e, consequentemente, a contaminação da imparcialidade do juiz.

De início, conforme já destacado, a Lei  9.296/96 regula a maneira pela qual as interceptações telefônicas serão executadas pela autoridade competente. Nesse sentido, estabelece  o artigo 3° da Lei de Interceptações Telefônicas, que ela poderá ser determinada pelo juiz, de  ofício, ou a requerimento da Autoridade Policial ou pelo representante do Ministério Público.  (BRASIL, 1996).

A guisa de exemplificação,  a interceptação telefônica constitui diligência de caráter extremo. Trata-se de medida excepcional justamente por lidar com a restrição do direito fundamental do indivíduo ao sigilo  das suas comunicações.

É uma medida investigatória que busca colher provas da materialidade do delito e/ou indícios de autoria, partindo-se do pressuposto que somente o titular da  ação penal poderia se manifestar nos autos do Inquérito Policial requerendo a realização de tal  diligência, independentemente de manifestação da Autoridade Policial nesse sentido.

O interesse em produzir provas deve estar estritamente ligado  ao órgão acusador. A partir do momento em que o juiz tem permissão pelo artigo 3° da Lei  9.296/1996 para decretar de ofício a interceptação de comunicações telefônicas do investigado  ou de possíveis suspeitos da prática delituosa, passa também a ocupar a figura de um órgão  acusador na fase inquisitorial.

Guilherme de Souza Nucci, ao tratar sobre o ônus da prova[10], também critica a atuação de ofício do juiz no processo penal ao afirmar, in verbis:

“Quando se percebe um juiz personalista, que chama a si tudo ou quase tudo relacionado com o crime principal, pode realizar, nessa busca excessiva por  concentração de poder de julgar, um trabalho pior do que a atividade do inquisidor da Idade Média, pois este, em várias épocas, defendia o mais fraco do  mais forte. E não julgava inúmeros casos por conexão: cada caso era um caso”.

A respeito da interceptação das comunicações telefônicas[11] decretada de ofício está  fundada única e exclusivamente na intenção do juiz em produzir provas em uma espécie de  atuação conjunta com o Ministério Público, ou ainda de evitar que provas pudessem ser perdidas por algum motivo. Por melhor que sejam as intenções do juiz, por assim dizer, a autoridade  judiciária na fase inquisitorial deve respeitar os limites de suas atribuições estabelecidas constitucionalmente.

Assim sendo, o juiz deve figurar nessa fase pré-processual apenas como um intermediador entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, analisando e decidindo fundamentadamente acerca de diligências que necessitem de posicionamento prévio do Poder Judiciário.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de 3.450 ajuizada pela Procuradoria-Geral da  República, questiona o art. 3° da Lei Federal  9.296/1996.

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3450 Relator: ministro Gilmar Mendes. Procurador-geral da República x Presidente da República e Congresso Nacional. A ação questiona o artigo 3º da Lei Federal 9.296/1996, a fim de lhe excluir a interpretação que permite ao juiz, na fase de investigação criminal, determinar de ofício a interceptação de comunicações telefônicas".

O procurador-geral da República afirma que "a iniciativa da interceptação pelo juiz, na fase que antecede a instrução processual penal, ofende o devido processo legal na medida em que compromete o princípio da imparcialidade que lhe é inerente, e vai de encontro ao sistema acusatório, porque usurpa a atribuição investigatória do Ministério Público e das Polícias Civis e Federais".

Em discussão: saber se o dispositivo impugnado viola o princípio do devido processo legal, o princípio da imparcialidade da instrução processual penal e o sistema acusatório.

PGR: pela procedência do pedido, para que seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do artigo 3º da Lei Federal 9.296/1996, excluindo-se-lhe a interpretação que permite ao juiz, na fase pré-processual penal, determinar de ofício a interceptação de comunicações telefônicas. Sobre o mesmo tema será julgada também a ADI 4112

No caso, o órgão ministerial utiliza-se dos mesmos argumentos aqui trazidos para apontar a inconstitucionalidade contida na  redação do aludido dispositivo legal que autoriza a decretação da interceptação das comunicações telefônicas de ofício pelo juiz. A ADI em questão ainda está pendente de julgamento pelo  Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2020)

O Código de Processo Penal brasileiro também comete equívocos ao passo em que  admite, de maneira ainda mais explícita, que o juiz possa atuar de ofício para produzir provas  no processo. O artigo 156, inciso I do CPP, alterado pela Lei 11.690/2008, prevê, em sua atual  redação, ser possível ao juiz “[...] ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção  antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida [...]” (BRASIL, 1941).

Assim sendo, não apenas na interceptação telefônica, mas em outras diligências investigatórias que o juiz desejar realizar, poderá fazer independentemente de manifestação do titular da  ação penal ou da Autoridade Policial, bastando que as considere urgentes e relevantes.

O Supremo Tribunal Federal, em 2004, afirmou haver violação ao princípio da imparcialidade do juiz quando atua de ofício produzindo provas no processo. É o que se extrai do julgamento colegiado da Ação Direta de Inconstitucionalidade  1.570 (BRASIL, 2004).

Questiona-se a atuação de ofício do juiz na fase  inquisitorial, o que manifestamente viola o princípio da imparcialidade do juiz. Logo, no tocante à atuação de ofício do juiz na fase processual, sabe-se que há entendimentos doutrinários que defendem a incidência dos princípios da verdade real e do impulso oficial sob o argumento de que, desde que observados e aplicados devidamente com imparcialidade pelo juiz, servem de fundamento para que provas sejam decretadas de ofício para que o  magistrado forme a sua convicção.

Todavia, com o devido respeito a tais entendimentos doutrinários, a relação entre o Processo Penal e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme já abordado,  não permitem que o magistrado atue se não devidamente provocado pelas partes, razão pela  qual tais princípios não encontram respaldo normativo e constitucional.

Assim sendo, não há dúvidas de que, não apenas na fase processual, mas também na fase  inquisitorial, a atuação de ofício do magistrado é claramente inconstitucional.

Constata-se que o contemporâneo ordenamento jurídico brasileiro apresenta flagrantes inconstitucionalidades, não somente no que se refere à possibilidade de o Judiciário atuar como espécie de acusador na fase inquisitorial, porém, em face da estrutura organizacional do Judiciário brasileiro que tanto compromete a imparcialidade do juiz.

Na atual organização judiciária se constitui no fato de que o mesmo juiz que conduziu a fase inquisitorial será o juiz que receberá a  denúncia eventualmente oferecida pelo titular da ação penal e dará início à fase processual  penal, proferindo, ao final, sentença. Diversas são as consequências que se originam desse  problema e que prejudicam severamente o réu durante a instrução processual. E neste ponto,  vale mencionar a Teoria da Dissonância Cognitiva.

Trata-se de estudo na área da psicologia sobre a cognição e comportamento humano,  formulada inicialmente pelo autor Leon Festinger e intitulada originalmente de Theory of cognitive dissonance[12]. A teoria descreve que há tendência natural do ser humano em se prender à  estabilidade cognitiva, isto é, diante do conflito de ideias e tomada de decisões, prevalece o que  estiver conectado às pré-compreensões do intérprete.

Segundo o jurista alemão Bernd Schünemann e publicada no Brasil em obra coordenada por  Luís Greco. No trabalho do jurista intitulado “O juiz como terceiro manipulado no processo  penal?”, Schünemann demonstra que o contato prévio do juiz com as investigações criminais  e a produção de provas macula sua percepção no momento da instrução e julgamento do processo, pois de acordo com a teoria da dissonância cognitiva, ficaria o magistrado vinculado,  mesmo que involuntariamente, às conclusões arregimentadas na fase pré-processual, o que,  consequentemente, afetaria sua imparcialidade.

Para afastar essa parcialidade do juiz, em 2010, por meio do Projeto do Novo CPP, PL  8045/10, foi criada a figura do juiz das garantias. Entretanto, como o projeto permanece em tramitação na Câmara dos Deputados, esse instituto ficou relegado até o ano de 2019.

Com a Lei  13.964/2019, diversas mudanças foram introduzidas no CPP,  como novas regras para colaboração premiada, inauguração da cadeia de custódia, formalização da audiência de custódia, acordo de não persecução penal e, como não poderia deixar de  mencionar, a instituição do juiz das garantias.

Esse juiz seria o responsável pela fase de investigação, enquanto um segundo juiz atuaria  na fase processual.

O juiz das garantias, como o próprio nomen aduz,  seria o garantidor dos direitos do acusado, sendo responsável por analisar às representações  feitas pelo Ministério Público e Autoridade Policial, receber ou rejeitar a denúncia ou queixa,  além de poder decidir pela absolvição sumária do acusado e, não sendo o caso desta, finalizar  sua atuação com o agendamento da audiência de instrução e julgamento, quando então outro  juiz assumiria o processo.

A instituição do juiz das garantias consubstanciada à vedação expressa da atuação de ofício do juiz na fase investigatória e probatória (art. 3°-A, CPP), com a consequente imposição do  sistema acusatório, constitui meio eficaz para preservação da cognição prévia e imparcialidade  do magistrado.

Embora a lei tenha previsto essas mudanças, elas permanecem incólumes,  haja vista a decisão em Liminar na Medida Cautelar nas ADIN ’s  6.298, 6.299, 6.300 e 6.305,  do Ministro Luiz Fux, que suspendeu, sine die, a eficácia dos art. 3°-A a 3°-F, até que ocorra  julgamento pelo Plenário (LIMA, 2020, p. 128).

Quando se trata sobre organização judiciária, é importante frisar que, em regra, os Tribunais dos Estados-membros e do Distrito Federal se utilizam de suas competências legislativas  para se estruturarem internamente, em conjunto com a existência de uma lei de origem do  Poder Legislativo daquele ente federativo que trate sobre a organização e divisão judiciária.

Sobre o âmbito federal, a própria Constituição trata sobre essa divisão, a partir de seu artigo 92. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por exemplo, organiza-se mediante Resoluções editadas por sua Corte Superior, por meio das quais há divisão de varas especializadas em  determinados campos do direito para todas as comarcas existentes no Estado de Minas Gerais.

Nos termos da Resolução da Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado  de Minas Gerais de  523/2007, em seu artigo 5°, parágrafo único, no caso fictício citado, o  juiz atuante na Vara de Tóxicos, que conduziu a fase inquisitorial, foi o mesmo que recebeu a  denúncia e julgou o réu (BRASIL, 2007).

Ora, sabido é, por tudo o que aqui foi exposto, que na fase de investigações criminais  não há observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Por tais circunstâncias,  aliado ao fato de a legislação brasileira conter equívocos que permitem ao juiz atuar como acusador, quando a denúncia é recebida e é dado início ao processo penal, o magistrado já se  encontra viciado e maculado cognitivamente.

O Inquérito Policial deve ser observado exclusivamente sob o enfoque de servir como  fundamento para a justa causa da ação penal. É por esse motivo que o artigo 155 do Código  de Processo Penal veda a utilização de provas colhidas tão somente na fase inquisitorial para a  formação da convicção do juiz, uma vez que elas não foram produzidas sob o crivo do contraditório (BRASIL, 1941).

Durante a instrução do processo, conceda à defesa, pelo prazo legal,  o direito de contestar as provas trazidas pela acusação, certamente, o convencimento do juiz  acerca dos fatos estará atrelado, de certa maneira, às investigações policiais realizadas no  Inquérito Policial, em decorrência do contato direto do magistrado com as provas ali produzidas  e lançadas nos autos.

A situação torna-se ainda mais grave para o réu quando o juiz eventualmente atua na fase  inquisitorial decretando a produção de provas de ofício, conforme já abordado. Dificilmente a  defesa conseguirá reverter a convicção do juiz acerca da culpa imputada ao réu pela acusação  quando, por exemplo, a autoridade judiciária determinou a interceptação das comunicações  telefônicas na fase inquisitorial de ofício, ou que ainda deferiu o pedido de prisão temporária  formulado pelo Ministério Público, sem, no entanto, ouvir a parte contrária

O Ministério Público oferece denúncia por estar convicto de que o  delito foi praticado pelo acusado, também estará o juiz quando recebe uma denúncia fundada em  provas que ele mesmo determinou a produção de ofício, com base em suas próprias convicções.

Assim como afirmado pelo STF na já mencionada ADI 1.570 (tópico 4), o juiz que se apropria  das funções de investigador e inquisidor viola o princípio da imparcialidade (BRASIL, 2004).

O cenário ideal, portanto, à luz do princípio da imparcialidade do juiz, é de que o magistrado tenha o primeiro contato com os fatos narrados a partir do processo. Ou melhor, que  haja a adoção do juiz das garantias para atuar na fase pré-processual e um segundo juiz para  a fase processual.

Dessa forma, o juiz responsável pelo julgamento ficaria equidistante entre as  partes, passaria a analisar os fatos sob o ponto de vista tanto da defesa quanto da acusação,  primando-se, sempre, pela presunção de inocência do réu.

Somente após a produção de provas, observado o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência do réu, é que o juiz, então, formaria sua convicção nos termos do devido  processo legal idealizado pela Constituição, restando apto a proferir a sentença penal.

Não se pode olvidar o fato de que o Inquérito Policial possa ser consultado pelo juiz no  curso do processo. No entanto, a mera consulta não acarreta violação a sua imparcialidade, já  que, repita-se, as provas ali contidas devem ser descartadas para fins de formação de convicção do julgador.

 Ocorre que, em muitas capitais brasileiras já existe juízo reservado ao controle de legalidade das investigações, como, por exemplo, a cidade de Belo Horizonte (MG). Conforme mencionado, processos envolvendo crimes tipificados na Lei 11.343/06, por força da Resolução  de 523/2007 do TJMG, devem tramitar perante a Vara de Tóxicos, a mesma em que tramitará  o Inquérito Policial. Contudo, a referida resolução traz algumas ressalvas (BRASIL, 2007).

Na verdade, o objeto principal da Resolução 523/2007 é a criação da chamada Central  de Inquéritos Policiais da Comarca de Belo Horizonte. Esta central é responsável pela tramitação de Inquéritos Policiais que versem sobre crimes que não sejam os dolosos contra a vida,  ou aqueles tipificados na Lei  11.343/06, ou aqueles previstos no Estatuto da Criança e do  Adolescente (arts. 225 a 244-A da Lei Federal  8.069/1990) e no Estatuto do Idoso (arts. 95  a 108 da Lei Federal 10.741).

Estabelece o artigo 5°, caput, da Resolução  523/2007 que:

              “Caberá à Central de Inquéritos Policiais, por seus Juízes ali designados, com competência jurisdicional plena, o processamento de todos os  Inquéritos Policiais da competência das Varas Criminais da Comarca de Belo  Horizonte, a elas previamente distribuídos, até a apresentação da denúncia ou  queixa, conhecendo e decidindo sobre os atos a eles relativos e seus incidentes, inclusive medidas cautelares, habeas corpus e mandado de segurança em  matéria criminal, competindo-lhe, ainda, o processamento das propostas de  transação penal e o arquivamento do inquérito ou das peças de informação,  se for o caso, observado o disposto no art. 28 do Código de Processo Penal.  (BRASIL, 2007)”.

Em resumo, a Central de Inquéritos Policiais da Comarca de Belo Horizonte possui juízes  designados única e exclusivamente para atuarem no processamento dos Inquéritos Policiais  instaurados naquela Comarca. Os procedimentos investigativos recebem distribuição prévia  para algumas das Varas Criminais, mas enquanto não oferecida denúncia, os autos não são  remetidos àqueles juízos.

A Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais acertou em estabelecer a instalação de uma central responsável pela tramitação dos Inquéritos Policiais, pois,  dessa forma, o principal problema aqui exposto em que o réu é submetido a julgamento por um  mesmo juiz que conduziu a fase investigativa fica sanado

A figura do juiz das garantias já poderia ser implementada nas Comarcas em  que há, para tanto, operacionalidade. E como há autonomia quanto à organização judiciária  pelos Tribunais, as adequações seriam feitas conforme disponibilidade de tempo e orçamento.  Caso o Tribunal de Justiça de algum Estado-membro não possua condições suficientes,  outra opção mais viável seria a nomeação de um juiz auxiliar em cada Vara Criminal que ficasse  responsável única e exclusivamente pela tramitação dos Inquéritos Policiais, sendo que, a partir  do momento em que houvesse oferecimento de denúncia, o juiz titular daquela Vara passaria a  assumir a condução do processo.

Para os Tribunais superiores, como é o caso do STF, por exemplo, poder-se-ia pensar na  seguinte solução: o Ministro-relator responsável pelo processamento do Inquérito Policial fica  desautorizado a participar do julgamento colegiado. Da mesma maneira como ocorreria nas  Comarcas dos Estados-membros, oferecida a denúncia, o Ministro-relator submeteria os autos  para outro Ministro para que seja o responsável pela condução do processo criminal.

Para tanto, as soluções acima abordadas seriam implementadas com simples alterações  na estrutura organizacional de cada Tribunal mediante a edição de Resoluções próprias.

A instituição do juiz das garantias e alterações normativas nas  organizações internas dos Tribunais poderiam solucionar, ou ao menos mitigar, o problema da  contaminação da imparcialidade do juiz, estabelecendo-se a divisão de atuações dos magistrados, garantindo que aquele que conduziu as investigações policiais não seja o mesmo que julgará o réu em eventual ação penal. Ademais, não haveria dúvidas quanto à adoção do sistema  processual penal acusatório.

Por todo o exposto, depreende-se que a temática abordada é de relevante interesse social  e constitucional, já que envolve o direito fundamental à liberdade, intrinsicamente relacionado  à dignidade da pessoa humana.

É mais do que urgente, por assim dizer, que as instituições  públicas e todo o povo se mobilizem em busca de superação dos obscuros resquícios contidos  no atual ordenamento jurídico, fazendo-se prevalecer os institutos que respeitem os direitos e  garantias fundamentais.

O Supremo Tribunal Federal (STF) validou, nesta quinta-feira (24/8/2023), o instituto do juiz de garantias[13] e julgou que a sua implementação deve ser obrigatória em todo o território nacional. Os ministros fixaram um prazo de 12 meses, renováveis pelo mesmo período, para que as autoridades possam fazer as adequações necessárias.

Na 11ª sessão de julgamento, a presidente da Corte, ministra Rosa Weber, proclamou o resultado. A decisão foi proferida nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, em que são questionadas normas do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) que instituíram a figura do juiz de garantias no Código de Processo Penal brasileiro.

O STF estabeleceu que o juiz de garantias deverá atuar na fase da investigação criminal até o oferecimento da denúncia. A partir dessa etapa, a competência passará a outro magistrado, o juiz de instrução e julgamento. Atualmente as responsabilidades ficam apenas com o juiz de primeira instância.

Para o presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o advogado Renato Vieira, sócio do escritório Kehdi Vieira, a possibilidade de o Supremo mudar esse ponto vai “aniquilar” a essência do juiz de garantias e “frustrar” uma oportunidade de melhorar o sistema processual penal brasileiro.

A mudança nas competências do juiz das garantias surgiu na análise das ações no STF, a partir de uma proposta no voto do ministro Dias Toffoli. Renato Vieira entende que a atuação do juiz de garantias se encerra com o oferecimento da denúncia.

Um dos pontos que Toffoli levantou para basear seu entendimento é o de que a proposta inicial afetaria a independência funcional do juiz do julgamento.

“Restringir o acesso aos elementos do inquérito, alegando impacto na imparcialidade do juiz, afeta diretamente a independência funcional do magistrado em exercer seu julgamento conforme sua consciência jurídica, desde que concretamente motivada nos autos, em busca da verdade possível”, disse em seu voto.

Ao final do julgamento, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso será cumprida e, a AMB está pronta para auxiliar os magistrados na execução das determinações previstas na legislação. É fundamental, porém, que a implantação do novo modelo se dê dentro de um prazo razoável e com respeito à autonomia dos Tribunais.”

A definição de prazo para a implantação do juiz de garantias ainda está aberta no Supremo. Há propostas de 12(doze), 18 (dezoito) e 36 (trinta e seis) meses. A fixação deverá ser feita ao final do julgamento.[14]

Para defensores do referido modelo, a nova figura garante mais imparcialidade nos processos criminais e evita condenações injustas. O juiz das garantias foi instituído na esteira da "Vaza Jato"[15] e revelações de atuação parcial e conluio do ex-juiz Sérgio Moro com procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

De acordo com a proposta do novo CPP, o "juiz de garantias" atuaria apenas na fase inicial do inquérito criminal, durante as investigações. Já a fase final e a sentença seriam conduzidas por outro juiz. A Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) teme que essa medida obrigue a Justiça a deslocar juízes da área cível para a criminal, gerando atrasos, prescrições e impunidade no julgamento dos processos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) publicou, em  (19/12/2023), o acórdão da decisão que reconheceu a constitucionalidade do Juiz das Garantias. Trata-se de mais uma vitória da OAB Nacional, uma vez que as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 teve a entidade como amicus curiae. Vide a íntegra do acórdão disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15363755297&ext=.pdf Acesso em 14.2.2024.   

Já previsto na pauta desse mês de fevereiro, o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.042.075 (tema 977 de repercussão geral)[16], em que o IBCCRIM, como amicus curiae, sustenta a imprescindibilidade de decisão judicial para acesso a dados pessoais contidos em meios físicos ou digitais (como, a exemplo do caso concreto, de aparelho celular relacionado à prática delitiva) (Brasil, 2017a).

Para os meses subsequentes, aguarda-se a retomada do julgamento do RE 635.659, sobre a (in)constitucionalidade da criminalização de drogas para consumo pessoal. Como já mencionado pelo Instituto (IBCCRIM, 2023), espera-se que a Suprema Corte reveja o posicionamento até agora formado (restrito ao porte de maconha), para abranger qualquer substância psicoativa ilícita.

O mesmo ocorre com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental[17] (ADPF) 442, em que o Instituto, também como amicus curiae, pleiteia a inconstitucionalidade da criminalização do aborto, adotando-se como critério a possibilidade de interrupção de gravidez até a 12ª (décima-segunda) semana de gestação (Brasil, 2017b). Espera-se que os demais Ministros sigam o substancial voto proferido pela então Ministra Relatora Rosa Weber pela procedência da ação.

Outro julgamento que pode ter grande impacto no cenário nacional é o da quebra de sigilo de dados de coletividade de pessoas (RE 1.301.250, tema de repercussão geral 1.148).

O Instituto, na qualidade de amicus curiae[18], sustenta a inconstitucionalidade da medida, pois "esbarra no núcleo do direito fundamental à proteção de dados, na medida em que enseja grave risco de um cenário de vigilância permanente (proporcionalidade em sentido estrito)" (Brasil, 2020, peça 66).

Aguarda-se que, em breve, seja novamente incluído em pauta, após o voto da relatora, Ministra Rosa Weber, pelo provimento do recurso, e a vista dos autos solicitada pelo Ministro Alexandre de Moraes, que os devolveu para julgamento.

Igualmente, na figura de amicus curiae, o IBCCRIM aguarda o desfecho de duas importantes ações de constitucionalidade, 3.450 e 7.389, que tratam, respectivamente, da decretação de interceptação telefônica de ofício pelo juiz (art. 3º da Lei 9.296/96) (Brasil, 2005, peça 42) e da Política Antimanicomial do Poder Judiciário[19] (Resolução CNJ 487/23) (Brasil, 2023, peça 34).

Outra questão na ordem do dia diz respeito à licitude de relatórios de inteligência financeira (RIFs) do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF, atual Unidade de Inteligência Financeira - UIF), requisitados diretamente pela autoridade policial, sem prévia autorização judicial, à luz da decisão tomada no RE 1.055.941 (tema 990 de repercussão geral). Esse é o objeto da RCL 61.944 (Brasil, 2023), que se espera seja julgada pelo Plenário em 2024, para consolidar o entendimento da Corte nessa matéria.

Ressalte-se, por fim, que tecnicamente a imparcialidade do julgador corresponde ao pressuposto processual subjetivo, sem o qual o processo é nulo, ou pelo menos, anulável.

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Notas:

[1] A última atualização do CPP foi feita pela Lei 14.197/2021 que revogou a Lei de Segurança Nacional e incluiu o Título XI, que se refere aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Anteriormente, o CPP teve modificações sofridas em 2019 com a Lei 13.964/2019.

[2] O garantismo penal é a segurança dos cidadãos que, num Estado Democrático de Direito, onde o poder obrigatoriamente deriva do ordenamento jurídico, principalmente da Constituição Federal brasileira vigente, e atua como mecanismo para minimizar o poder punitivo e, garantir, ao máximo, a liberdade dos cidadãos. Garantismo designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Nesse derradeiro sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. Equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo.

[3] O inquérito, de acordo com Salles Júnior (2008), apresenta os atributos de oficialidade, oficiosidade, autoritariedade e indisponibilidade, a saber: a) Oficialidade: é uma atividade inerente do processo investigativo, feita por órgãos oficiais, não podendo, desta forma, ficar condicionada a particulares; b) Oficiosidade: não é necessário a provocação para ser instaurado, ou seja, não é necessária a ação direta de um cidadão para que o mesmo se inicie, porém, para a sua instauração é obrigatória a notificação da infração penal, exceto quando se trata de ação penal pública e privada, condicionados à apreciação direta do Ministério Público. A esse respeito, o Código Processual Penal define que qualquer pessoa pode provocar o inquérito e dispor de provas nos casos de ação penal pública condicionada e ação penal privada, conforme o a 27: “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção” (BRASIL, 1941); c) Autoritariedade: é liderado em sua execução por autoridade pública, no caso, a autoridade policial (Delegado de Polícia ou, em casos excepcionais, representante do Ministério Público); d) Indisponibilidade: é indisponível, ou seja, após seu efetivo início, não pode ser arquivado pela autoridade policial, segundo a disposição do CPP, contida no artigo 17.

[4] Na época da promulgação do CPP era vigente a Constituição brasileira de 1937, a Libertadora, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, caracterizou-se basicamente em uma república autoritária, atendendo a interesses de grupos políticos que ambicionavam um governo forte que consolidasse o domínio daqueles que se mostravam ao lado do presidente.  Dentre as principais características constantes nos 187 artigos da Constituição de 1937 estão a centralização do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário na pessoa do Presidente, a separação era apenas formal; o trabalhador não poderia fazer greve; os direitos e garantias individuais foram limitados.

[5] E o fato de a Constituição assegurar aos acusados a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, enquanto o CPP, lei infraconstitucional, exige que para ter acesso a tal direito o acusado (que não tenha bons antecedentes ou não seja primário) deve ser preso. Tal regra complementa-se no artigo 595 que diz “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação” — condiciona-se o acesso do acusado ao duplo grau de jurisdição à primariedade e bons antecedentes, pressupostos para, em tese, ver-se livre da prisão.

Tanto a ampla defesa como a garantia do duplo grau de jurisdição, embora este não esteja expresso, são tutelados pela Constituição Federal, como nos diz Nucci, fazendo com que os dispositivos que se discute devam, ao invés de serem interpretados literalmente, cotejados com nossa Carta, sendo lidos, como nos mostra Moreira, da seguinte maneira: “não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e de bons antecedentes”. Deve-se reconhecer do seu recurso, ainda que solto o réu, e mesmo que tenha sido preso e venha a fugir. A fuga do acusado não será impedimento para o regular andamento da apelação.

[6]  A Lei 13.45, de 12 de janeiro de 2016, modificou o Estatuto de Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Lei 8.906 de 04 de julho de 1994, que incidiu resultou em profundas mudanças na investigação criminal do Brasil. Essas alterações aumentaram a participação dos advogados na fase pré-processual investigativa dos processos e, por consequência, desencadeou uma série de discussões acerca desse procedimento.  A interpretação majoritária da redação anterior do artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, por muito tempo, tratou da atuação do advogado na fase preliminar da investigação criminal, muitas críticas foram direcionadas a essa realidade, pois o referido artigo era passível de interpretação restritiva, em conjunto com a Súmula Vinculante de número 14.

[7] A doutrina identifica três sistemas de processo penal: o inquisitivo, o acusatório e o misto. Os sistemas processuais variam de país para país e normalmente, não necessariamente, são reflexo da conjuntura político-social de cada um deles. No Brasil, tendo em vista as incongruências persistentes entre o Código de Processo Penal e a Constituição Federal de 1988, muito se discute, ainda, acerca do sistema processual penal vigente.

[8] Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305).

Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)

I - Receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

II - Receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

IV - Ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

V - Decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

VI - Prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

IX - Determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

X - Requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XI - decidir sobre os requerimentos de: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

c) busca e apreensão domiciliar; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

d) acesso a informações sigilosas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)     Vigência)

XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)   Vigência)

XV - Assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§ 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência.          (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)

§ 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)

Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.299)

Art. 3º-E. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)

Art. 3º-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305).

[9] Assim sendo, a fase pré-processual, trata-se do “procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois, à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação”. “O inquérito policial é a peça mais importante do processo de incriminação no Brasil. É ele que interliga o conjunto do sistema, desde o indiciamento de suspeitos até o julgamento”. Garcia (1999, p. 7-8), por sua vez, esclarece o conceito de inquérito policial como um: instrumento formal de investigações. É peça informativa, compreendendo o conjunto de diligências realizadas pela autoridade para apuração do fato e descoberta da autoria. Relaciona-se com verbo inquirir, que significa perguntar, indagar, procurar, averiguar os fatos, como ocorreram e qual o seu autor.

[10] A busca da verdade real ou material tão sagrada no bojo do artigo 156 CPP é decorrência da própria natureza do bem da vida e valores que justificam a existência mesmo do processo penal que é o interesse do Estado em tutelar, a liberdade individual. Conforme foi dito por Tancredo Neve apud Jardim, a lei deve ser a organização social da liberdade.

[11] Validade da interceptação decretada por Juiz da Central de Inquéritos Criminais que não será o competente para julgar a ação penal. Ementa Oficial Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. VARA ESPECIALIZADA EM INQUÉRITOS POLICIAIS. JUÍZO COMPETENTE PARA O EXAME DAS MEDIDAS CAUTELARES. 1. A Vara de Inquéritos Criminais de que trata o art. 50, I, “e”, da LC 234/2002 do Espírito Santo (Código de Organização Judiciária desse Estado), antes das modificações determinadas pela LC 788/2014, é competente para decidir sobre medidas cautelares que, na fase inquisitorial, estão sujeitas à reserva de jurisdição, inclusive a de quebra de sigilo de interceptações telefônicas. 2. Ordem denegada. (HC 126536, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 01/03/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 22-03-2016 PUBLIC 28-03-2016)

[12] A dissonância cognitiva é o nome dado a um viés cognitivo que leva as pessoas a procurarem algum tipo de coerência em suas crenças e ideologias, embora a realidade as desminta com fatos. Muito comum em diversos segmentos da sociedade, a dissonância cognitiva também faz vítimas diariamente no mercado financeiro; Festinger explica que a presença de dissonância (incoerência) conduz à ação para reduzi-la, assim como a presença da fome, por exemplo, leva à ação para reduzir a fome. Tal qual a ação de um impulso, quanto maior a dissonância, maior será a intensidade da ação para reduzi-la e maior a evitação de situações que a aumentariam.

Segundo Schünemann (2012), em virtude de o magistrado formar determinada concepção do crime pela leitura dos autos do inquérito (imagem construída), é de se supor, em princípio, que não divirja de seu conteúdo. Por essa razão, é natural que o magistrado procure confirmar o inquérito na audiência de instrução e julgamento conforme as informações tendencialmente supervalorizadas (consonantes) e em desacordo com as tendencialmente subvalorizadas (dissonantes).

[13] O juiz das garantias deverá atuar na fase do inquérito policial. Também será responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais dos investigados. O juiz das garantias ainda terá como atribuição supervisionar as investigações policiais e do Ministério Público. O juiz de garantias é um magistrado que tem a responsabilidade de salvaguardar os direitos individuais dos investigados e a legalidade da investigação criminal na fase de inquérito policial. Isso significa que a partir do oferecimento da denúncia, quando os investigados passam à condição de réu, essa responsabilidade passa a ser do juiz de instrução e julgamento, que propriamente julga os investigados. A legislação anterior à mudança aprovada em 2019 estabelecia que um mesmo juiz participa da fase de inquérito e de julgamento, o que, para alguns especialistas, compromete a imparcialidade do julgamento.

[14]  Existiram meras discussões teóricas em alguns países, tendo sido implementados institutos no intuito de evitar que os magistrados formassem sua convicção na fase pré-processual (investigação). Podem ser evocados os exemplos do giudice per le indagini preliminari (juiz de investigações preliminares), na Itália, e o juez de garantia, no Chile. Nesses casos, procedeu-se à especialização das funções do juiz responsável por intervir na investigação, a fim de distingui-lo do magistrado atuante na fase processual.

[15] Vaza Jato foi o vazamento de conversas realizadas através do aplicativo Telegram entre o então juiz Sergio Moro, o então promotor Deltan Dallagnol e outros integrantes da Operação Lava Jato. A divulgação das conversas foi feita pelo periódico virtual The Intercept Brasil, a partir de 9 de junho de 2019. As transcrições indicaram que Moro cedeu informação privilegiada à acusação, auxiliando o Ministério Público Federal (MPF) a construir casos, além de orientar a promotoria, sugerindo modificação nas fases da operação Lava Jato; também mostraram cobrança de agilidade em novas operações, conselhos estratégicos, fornecimento de pistas informais e sugestões de recursos ao MPF.

[16] Tema 977 - Aferição da licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular, relacionados à conduta delitiva e hábeis a identificar o agente do crime. Há Repercussão? Sim. Relator(a): MIN. DIAS TOFFOLI Leading Case: ARE 1042075 Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 5º, incs. XII e LVI, da Constituição da República, a licitude da prova produzida durante o inquérito policial subsistente no acesso, sem autorização judicial, de registros e informações contidas em aparelho de telefonia celular relacionado à conduta delitiva, hábeis a identificar o agente do crime.

[17] Ação inserida no âmbito do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, e é utilizada quando há alegações de que atos normativos, como leis, decretos ou regulamentos, estão violando diretamente preceitos fundamentais da Constituição. Pode-se dizer que as espécies de arguição de descumprimento de preceito fundamental são duas: arguição preventiva (evitar lesão) e arguição repressiva (reparar lesão).  A arguição de descumprimento de preceito fundamental, mesmo que criada para ocupar lacunas processuais-constitucionais, tem a característica de melhorar o controle de constitucionalidade, ainda que, a ampliação das objetividades jurídicas da ação direta de inconstitucionalidade parecesse mais vantajosa.

[18] Os amigos da corte: requisitos para admissão, funções e limites, segundo a jurisprudência do STJ. ​​Amicus curiae (amigo da corte) é uma expressão latina utilizada para designar o terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador. Para atuação como amicus curiae deve ser demonstrada relevância da matéria, especificidade do tema objeto da demanda ou repercussão social da controvérsia, nos termos do art. 138 do CPC, aplicável, por analogia, ao processo penal, com fundamento no art. 3º do CPP, o que não ocorreu.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Juiz de Garantias CPP CF/88 Imparcialidade Princípios Constitucionais Sistema Acusatório

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