A covardia é a mãe da crueldade
Uma ode à liberdade.
Comentar
o "Discurso sobre a servidão humana", de Étienne de La Boétie é muita
responsabilidade, não só pela obra do vasto e impactante conteúdo, mas
principalmente, porque revela-se muito contemporânea.
O
autor faleceu ainda jovem, com trinta e três anos e, a obra em comento é uma
ode à liberdade, toda sua obra ficou como legado ao amigo e filósofo Montaigne.
Uma frase que tanto impressiona seja por sua verdade ou crueldade é, in
litteris: O poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo".
O
autor era um humanista e filósofo francês do século XVI e, nesse valioso
discurso, procurou defender a liberdade política e religiosa. Aliás, sobre esse
mesmo tema, Montaigne escreveu "Ensaios".
A
obra se revela ser uma ode à liberdade e, esculpe cuidadoso alerta contra a
servidão humana tão bem produzida pela tirania do poder. Incrivelmente, há nas
obras lições muito relevantes mesmo nos dias atuais. Etienne era ardoroso
defensor da liberdade e da igualdade religiosa e, corajosamente levou seu
coração até confissões inebriantes.
O
que é certo que se multiplicaram os tipos de servidão bem como de tiranos. Há a
servidão ao consumismo, ao dinheiro, ao poder, aos cargos públicos, à
competitividade e, até mesmo aos afetos, mesmo que num mundo líquido onde as
certezas desapareceram.
A
existência humana só galga dimensão quando existe a liberdade humano. Mas, há
uma intrigante questão: Seríamos realmente livres? Ou somos apenas uma fauna
condicionada e adestrada aos ditames sociais, políticos e, principalmente,
econômicos?
As
instituições engendram uma teia que torna paradoxalmente, a servidão doce e a
liberdade tão amarga... quando, em verdade, é justamente o contrário.
A
servidão ocorre voluntariamente apesar de que a natureza do homem seja ser
livre e, deseja permanecer assim. E, aconselhava, Ettiénne: “Sede resolutos em
não servir mais, e estaremos livres”.
Enfim,
não precisamos derrubar o poder, apenas não devemos mais tolerá-lo e, veremos
que a base do imenso colosso começará a ruir, e, finalmente, sossobra por sob o
próprio peso.
Afinal,
a tirania e, portanto, o tirano é como o fogo ou uma árvore, na comparação do
filósofo, in litteris:
“Sabe-se que o fogo de uma pequena faísca
cresce e se intensifica sempre, pois, quanto mais lenha encontra, mais lenha se
apresta a queimar; contudo, ao se retirar a lenha, sem jogar água para
apagá-lo, ele não tem mais o que consumir e consome a si mesmo, perdendo a
força e deixando de ser fogo.” Já uma árvore, da mesma forma, quando a sua raiz
“está desprovida de humor ou alimento, faz o galho secar e morrer.”
Ocorre
o mesmo com os tiranos: “quanto mais saqueiam, mais exigem, mais arruínam e
destroem, e, quanto mais se lhes concede e lhes serve, mais se fortalecem,
prontificando-se com mais vigor a aniquilar e destruir tudo; e se são
desafiados, se são desobedecidos, sem qualquer combate ou luta, tornam-se
desnudos, derrotados, reduzidos a nada.”
Em verdade, o tirano “não ama, nunca amou. A
amizade é um nome sagrado, uma coisa santa; só se dá entre pessoas de bem e só
sobrevive pelo apreço mútuo; e se baseia não tanto em favores, mas na boa vida
e não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há
injustiça; o verdadeiro pilar da amizade é a equidade e cujas partes, para que
a relação não claudique, devem estar em pé de igualdade.”
A
conclusão a que chegou Ettiénne, sobre o fato de a servidão ser sempre
voluntária, está exatamente no costume e, assim dizem os servos, acomodados…,
que in litteris:
“Sempre foram subjugados, que seus pais
viviam assim; pensam que estão fadados a tolerar o mal e convencem-se disso
citando exemplos. Servem voluntariamente porque nascem servos e assim são
criados”, transformando-se “com facilidade em covardes.”
Obviamente
que nem todos aceitam e se conformam com tal subserviência, pois há alguns,
“mais virtuosos que outros, que reagem quando sentem o peso do jugo, jamais
tomam gosto pela sujeição e buscam por seus privilégios naturais e a lembrança
de seus predecessores e sua essência ancestral.”
Enfim,
no “Le Discours de La Servitude Voluntarie” compreendemos que a origem
da desumana e cruel opressão exercida pelos poderosos sobre os menos
favorecidos é atemporal e universal. Assim, o povo que se sujeita e o que se
degola. Podemos escolher em ser súdito ou ser livre, devemos escolher se
rejeita a liberdade ou aceita o jugo, consente tal mal e até o persegue.
Assim,
o tirano obtém seu poder da conivência do próprio povo subjugado e escravizado
e, que bastaria o povo decidir não mais servir, recusar-se a sustentá-lo para
que se tornasse livre.
Afirma
também haver três tipos de tiranos, maus príncipes:
1)
os que o obtém o poder pela força das armas;
2)
àqueles que o herdam por sucessão da raça e,
Os
que o obtém pelo direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto aos
reis, nascidos e criados no seio da tirania, consideram os povos a eles
submetidos como servos hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como
extensão de sua herança.
Quanto
ao eleito pelo povo[2],
não nos enganemos: ao se ver alçado a um posto tão elevado, tão alto –
“lisonjeado por um não sei quê que chamam de grandeza” – toma a firme resolução
de não abrir mão da res pública. “Quase sempre considera o poderio que lhe foi
confiado pelo povo como se devesse ser transmitido a seus filhos”.
Para
La Boétie, é essa ideia funesta que o faz superar todos os outros tiranos em
vícios de todo tipo e, até em crueldades.
Igualmente
existem como instrumentos de alienação, verdadeira mantenedora da tirania, a
fim de adormecer o povo, súditos da escravidão, disponibiliza-se todo e
qualquer meio de distração: drogas, tavernas, casas de prostituição, jogos,
lutas públicas, fanfarras, enfim, toda sorte de iscas para o entorpecimento:
caras, bundas, sejam puros-sangues ou seduções do gênero.
Afinal,
não há então necessidade de precaver-se contra o povo ignorante e miserável,
fácil e bestialmente entretido e domesticado com tolices vãs: “Os tiranos
romanos foram longe [na política do pão e circo], festejando frequentemente os
homens das decúrias (homens do povo, agrupados de dez em dez, e alimentados às
custas do tesouro público), empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por
onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído
dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da
República de Platão[3].
Os
tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o
sestércio (uma espécie de “bolsa-família” romana); e então dava pena ouvir
gritar: Viva o Rei!
Os
broncos não percebiam que, recebendo tudo isso, apenas recobravam uma parte de
seu próprio bem, e que o tirano não teria podido dar-lhes a própria porção que
recobravam, se antes não a tivesse tirado deles mesmos.
O
que hoje apanhava o sestércio, o que se empanturrava no festim público
abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser
obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxuria, sua própria
condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam mudos como uma pedra
e imóvel como um tronco”. Subserviente, iludida e enfeitiçada é a massa de
ignorantes! “A covardia é a mãe da crueldade” (Montaigne) grifo meu.
Nós
mesmos, pacífico e cordial povo brasileiro, temos tradição, orgulhamo-nos de
nossa mansidão e vivemos um paradoxo pois a violência é efeito (e não causa) da
servidão voluntária.
Na acalentadora ilusão de que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que tanto nos conduzem à servidão (hábito, covardia e participação). Infelizmente, não estamos livres. Mas, ainda podemos vir a ser, e acreditar que a justiça também é um hábito que nunca morre.
Referências:
DA
CRUZ, Flávio Antônio. O discurso sobre a servidão voluntária: algumas notas
sobre a liberdade. Disponível em: https://www.academia.edu/2510505/O_discurso_sobre_a_servid%C3%A3o_volunt%C3%A1ria_algumas_notas_sobre_a_liberdade
Acesso em 31.3.2021.
LA
BOÉTIE, Ettiénne. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução Laymert
Garcia dos Santos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
MOREIRA,
Rômulo de Andrade. A servidão nossa de cada dia. Disponível em: https://www.justificando.com/2019/01/31/a-servidao-nossa-de-cada-dia/
Acesso em 31.3.2021.
TONETI,
Edson Donizete. Discurso da Servidão Voluntária: relações de força e de
liberdade na obra de La Boétie. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/11762
Acesso em: 31.3.2021.
Notas:
[1]
Benito Mussolini (Liderou um movimento operário, esteve envolvido em uma série
de conflitos políticos e chegou a ser preso algumas vezes. Foi crescendo aos
poucos na política até alcançar altos cargos de poder, quase sempre através da
força); Adolf Hitler (Como presidente, já em 1934, aplicou com ainda mais
afinco as terríveis doutrinas nazistas que acreditava e criou, por exemplo, os
campos de concentração. O Holocausto foi responsável por dizimar milhões de
judeus (e não só) com métodos de assassinatos cruéis); Josef Stálin (Patriota,
autoritário, centralizador e nacionalista, Stalin estimulou a economia através
da industrialização e fomentou uma série de cooperativas e coletivos agrícolas.
O ditador implacável promoveu uma série de perseguições aos seus rivais
políticos aprisionando, exilando e torturando um número imenso de pessoas.);
Mao Tsé-Tung (teve um governo caracterizado especialmente pelo culto à sua
personalidade e pela propagação dos ideias comunistas chineses (que acabaram
por se distanciar dos ideais de Stalin);
Nicolás Maduro (Em 1998 foi eleito para a Câmara dos Deputados, no ano a
seguir ingressou na Assembleia Nacional Constituinte, que chegou a presidir);
Francisco Franco (O percurso militar de Francisco começou na Academia de
Infantaria de Toledo (1910) e treze anos mais tarde tornou-se tenente-coronel
passando a comandar a Legião Espanhola).
[2] “Assim,
para dizer toda a verdade, encontro entre eles alguma diferença, mas não vejo
por onde escolher. Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de
reinar é sempre idêntica. Os eleitos procedem como quem doma touros; os
conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os
sucessores como quem lida com escravos naturais"(La Boétie).