A confissão de Cid
Refletir sobre os múltiplos aspectos da confissão envolve severa atenção aos dispositivos legais e morais que devem estar presentes no requerimento da atenuante da confissão espontânea. E, a partir de caso contemporâneo e através de farto material jurisprudencial destaca-se que na confissão o seu caráter objetivo, bastando a espontaneidade para seu reconhecimento.
A já tão anunciada confissão
de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República, sobre o caso
de joias, doravante defendido pelo criminalista Cezar Bitencourt trouxe novas
atribulações. O defensor que é um reconhecido criminalista e respeitado
doutrinador de direito penal afirmou que seu cliente irá confessar que recebeu
ordens. E, que dentro da ótica da hierarquia cega militar, as ordens foram
cumpridas.
Inclusive valendo-se da conta
corrente do seu pai, para transferir dinheiro que fora entregue em espécie ao
então presidente da república. O impacto bombástico das declarações de
Bitencourt já começou verter manobras de recuo.
Apesar de Bitencourt ter
negado ter sofrido ameaça[1], mas afirmou temer pela
segurança da família de Mauro Cid por conta de todo contexto. A confissão
parece já acenar para uma futura delação premiada apesar de ter ficado em
silêncio sobre as joias e a possível falsificação de cartões de vacina, o que resultou
em sua prisão em maio do corrente ano.
Bitencourt ainda afirmou que
conversará com o Ministro Alexandre de Moraes do STF, no sentido de mitigar a
punição ao seu cliente. Cumpre avisar que o Código Penal brasileiro vigente
prevê redução da pena quando o crime for cometido por ordem de autoridade
superior.
Ressalte-se que há
entendimento pacífico mesmo entre os militares que ordem ilegal não deve ser
cumprida. Funda-se numa interpretação[2] da legislação penal comum,
a qual impõe ao subordinado a responsabilidade pelo crime cometido em
obediência à ordem de seu superior hierárquico, quando esta for manifestamente
ilegal (art. 22, Código Penal)[3].
Portanto, argumenta-se que o
militar deve recusar-se a obedecer a ordem ilegal de seu superior, porque,
cumprindo-a, estaria sujeitando-se a responder a processo-crime juntamente com
o emissor da ordem, caso tal atendimento resulte em prática de ilícito penal.
Mas, lembremos quem está
detido é Mauro Cid e, não, o emissor da ordem. Há não apenas um único ilícito,
mas, sim, vários, que vai desde falsificação de cadernetas vacinais, venda de
presentes dados ao presidente da República, entre outros, como portar altos
valores em moeda estrangeira sem declará-los às autoridades competentes
constitui indício de crime contra o sistema financeiro nacional.
O Estatuto dos Militares[4] (Lei Federal nº 6.880, de
09.12.1980), ao cuidar de definir hierarquia, anota, em seu artigo 14, § 1º,
que “a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes,
dentro da estrutura das Forças Armadas. [...]
O respeito à hierarquia é
consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade”. De igual forma, o mesmo diploma legal, no
texto do artigo 14, § 2º, anota que disciplina: “[...] é a rigorosa observância
e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que
fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e
harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos
e de cada um dos componentes desse organismo”.
O instituto da obediência
hierárquica é tratado, no artigo 22 do Código Penal comum, dentre as normas que
cuidam das causas excludentes de culpabilidade.
Com o advento da Lei n. 13.344/2016,
a figura da obediência hierárquica, descrita no art. 22 do CP como causa legal
de inexigibilidade de conduta diversa, passa a abarcar situações nas quais se
identifica (concretamente) a relação de hierarquia, não só na esfera de
relações de Direito Público, mas igualmente no âmbito de vínculos
empregatícios.
O Exército do Brasil informou
que não vai abrir procedimento administrativo para apurar o suposto
envolvimento em crimes do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de
Jair Bolsonaro (PL).
Zafaroni e Pierangeli (2011)
ao tratarem dos requisitos para o reconhecimento da obediência hierárquica,
apontam que:
“Em princípio, deve tratar-se de uma
ordem que emane de um superior hierárquico, isto é, de quem se encontra em
condições legais de comunicá-la, e estar num plano superior de relação
hierárquica pública, não sendo admissíveis a hierarquia decorrente da relação
privada, como a comercial, a trabalhista privada, de ordens religiosas,
familiar etc.”.
É lógico que o superior
hierárquico deve ser competente para expedir a ordem. O conteúdo dessa ordem
deve estar de acordo com a natureza da atividade de que se trate, isto é, que o
sujeito deve estar habilitado a cumpri-la. A ordem não deve ser manifestamente
ilegal[5].
Significando que, dentro das
atribuições de revisão e das possibilidades de conhecimento do subordinado
acerca da sua legalidade (e que, em cada caso, dependerão da natureza da
atividade, da função que cumpre o subordinado, de sua preparação técnica e do
acesso à informação necessária que a função possibilite), a ordem não lhe
pareça ilegal.
Por último, o cumprimento da
ordem deve ser “estrito”, no sentido de que o subordinado se limite a
cumpri-la, sem exceder, em nada, o seu conteúdo.
Cabe diferenciar as espécies
de ordem quanto à sua legalidade e discriminam com precisão os efeitos que a
sua obediência acarreta. Anotam os doutrinadores que a ordem do superior pode
ser legal ou ilegal.
O cumprimento de ordem legal
está, para os doutrinadores dentro da normalidade jurídica, não sendo seu
cumprimento reprovável sob qualquer aspecto.
No entanto, no que “concerne à
ordem ilegal, é preciso distinguir: (a) ordem manifestamente ilegal e (b) ordem
não manifestamente ilegal. Quando
manifestamente ilegal a ordem, desde logo fica eliminada qualquer hipótese de
absolvição, seja do superior, seja do inferior hierárquico (salvo eventual erro
de proibição)”.
A ordem será manifestamente
ilegal, nos dizeres de Fragoso (1987): a) quando é dada por autoridade
incompetente; b) quando sua execução não se enquadre nas atribuições legais de
quem a recebe; c) quando não se reveste de forma legal; d) quando evidentemente
constitui crime.
Em complemento, segundo Aníbal
Bruno (1967), que “a expressão ordem manifestamente ilegal deve ser entendida
segundo as circunstâncias concretas do fato e as condições de inteligência e
cultura do subordinado”[6].
Se o agente supõe ser lícita a
ordem (não manifestamente ilegal), há também erro de proibição (erro sobre a
ilicitude), que aqui se afirma ser relevante. Todavia, o verdadeiro fundamento
da exclusão da culpa nos casos de obediência hierárquica é a inexigibilidade de
conduta diversa, e não o erro, pois este pode não existir. A ordem não
manifestamente ilegal, portanto, é aquela que, embora ilegal, parece, ao
subordinado, revestida de legalidade.
Relevante destacar que a
possibilidade de o inferior hierárquico avaliar a ordem do superior não é uma
regra, mesmo no campo do direito penal comum.
A ordem ilegal apresenta vício
em qualquer um de seus elementos (competência, finalidade, forma, motivo,
objeto), ao passo que na ordem manifestamente ilegal o vício é patente,
visível, facilmente detectável por qualquer pessoa.
Na ordem manifestamente
criminosa, por sua vez, o vício concentra-se unicamente no seu objeto, que é a
prática de um ilícito penal.
Importante também é
diferenciar confissão de delação[7]. Pois, na confissão há um
prêmio que seria a mitigação de pena, embora o Código Penal Brasileiro não
tenha critério fixo. Em torno de um sexto da pena.
A confissão[8] é o resultado de um ato
pelo qual a parte assume como verdadeiro um fato relevante e controvertido que
fora alegado pelo adversário e que lhe é prejudicial.
A confissão poderá ser
judicial ou extrajudicial. A primeira é feita, naturalmente, em juízo, ao passo
que a segundo é realizada fora do processo, porém, com o fito de registrar a
veracidade de um fato e, posteriormente, ser usada em um determinado processo.
A confissão judicial poderá
ainda ser espontânea ou provocada quando de comparecimento da parte, que teve
como consequência a confissão, deu-se ou por pedido da parte adversária
(depoimento pessoal) ou por determinação judicial.
Positivou o artigo 200 do
Código Processual Penal brasileiro que: "A confissão será divisível e
retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das
provas em conjunto". A confissão é divisível porque o juiz considerá-la
apenas parcialmente, não no seu todo. É corolário lógico do princípio do livre
convencimento do juiz (artigo 157).
De acordo com a Exposição de
Motivos do Código de Processo Penal brasileiro (Item VII) desmente-se que a
confissão seja a "rainha das provas" (regina probatorum),
assim não existe hierarquia, possuindo junto as demais espécies de provas o
mesmo valor probante.
Questiona-se: na sentença, a
confissão retratada pode ser utilizada pelo magistrado como a atenuante de que
trata o art. 65, III, d do CP?
A Súmula 545 do STJ pacifica a
questão, no sentido de admitir a possibilidade, desde que o magistrado tenha
usado a confissão, mesmo que retratada, como elemento de convencimento.
Já a delação[9] implica também em
confissão, mas além de confessar há a entrega da participação de outras pessoas
além de provas, e, portanto, o prêmio é sobejamente maior.
Curiosamente, a defesa[10] de Mauro Cid após o
depoimento do hacker Walter Delgatti Netto à CPI dos atos golpistas de 8
de janeiro, resolveu seguir essa linha defensiva de confissão sobre a venda da joia.
Mauro
Cid é alvo de oito investigações por parte do Poder Judiciário, principalmente
pelo Supremo Tribunal Federal (STF)[11].
Jurisprudencialmente, há os
seguintes entendimentos a respeito da confissão:
STF
“A confissão espontânea, ainda
que parcial, é circunstância que sempre atenua a pena, ex vi do artigo
65, III, d, do Código Penal, o qual não faz qualquer ressalva no tocante à
maneira como o agente a pronunciou. Nesta parte, merece reforma a decisão
condenatória.”
“A atenuante genérica prevista pelo artigo 65, III, d, do Código Penal refere-se tão-somente à confissão espontânea manifestada perante a autoridade, seja policial ou judiciária.
STJ
“A confissão espontânea
configura-se tão-somente pelo reconhecimento do acusado em juízo da autoria do
delito, pouco importando se o conjunto probatório é suficiente para
demonstrá-la ou que o réu tenha se arrependido da infração que praticou.
Precedentes dessa Corte Superior.”
“A confissão espontânea,
perante a autoridade, da autoria do crime, é circunstância que atenua a pena,
nos termos do art. 65, inciso I, alínea “d”, do CP. Writ concedido.”
“Não se exige que a autoria do
crime seja desconhecida, nem que o réu demonstre arrependimento pelo
cometimento do delito, para a incidência da atenuante da confissão espontânea.”
“Caracterizada a confissão
espontânea, a incidência da atenuante de que cuida o artigo 65, inciso III,
alínea “d”, do Código Penal é de imposição, em razão do seu caráter objetivo.”[12]
Depois da publicação da
possível confissão na Revista Veja, o atual advogado de Mauro Cid indica recuo
e afirma que a confissão não irá tratar de joias. Portanto, em menos de um dia,
depois de todas as notícias veiculadas na imprensa, o indiciado que iria
apontar o ex-Presidente da República tido como mandante de esquema que desviou
presentes milionários recebidos pela Presidência da República, o advogado e
doutrinador Cezar Bitencourt recuou e afirmou não ter cogitado sobre transações
envolvendo joias. Mas apenas de um
relógio que é uma joia. Apontou que foi erro da Veja.
Infelizmente, estariam
envolvidos no desvio de joias o pai do indiciado, o segundo tenente Osmar
Crivelatti e o advogado Frederick Wassef. Estima-se que o referido esquema
teria angariado cerca de um milhão de reais.
Após todas essas revelações, a
pedido da Polícia Federal, o Ministro Alexandre de Moraes do STF autorizou a
quebra de sigilo bancário e fiscal do ex-presidente da República e da
ex-primeira dama. A investigação também já fez buscas contra aliados de
primeira hora do ex-presidente como o general Mauro César Lourena Cid, o
criminalista Frederick Wassef, advogado do ex-presidente e o tenente Osmar
Crivelatti.
De qualquer forma, com ou sem confissão a situação do indiciado é bastante complicada e, com provas já recolhidas pela Polícia Federal, a tendência é sua situação agravar.
Referências
Anteprojeto de Código de
Processo Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1971.
ARAÚJO, Luiz Alberto David. Direito
à Imagem. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1996.
BADARÓ, Ramagem. Comentários
ao Código Penal Militar de 1969 – Parte Geral – 1º Vol. São Paulo: Juriscrédi,
1972.
BATISTA, Nilo. Matrizes
ibéricas do sistema penal brasileiro – I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos
Editora, 20
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado
de Direito Penal – Parte Geral. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
______. Código Penal
Comentado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRUNO, Aníbal. Direito
Penal Tomo 2. Fato Punível. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
CAPEZ, Fernando. Curso de
processo penal 23. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.
DE FARIA, Antônio Bento. Código
Penal Brasileiro Comentado Volume 1. Parte Especial. Rio de Janeiro:
Record, 1961.
DOTTI, René Ariel A
atenuante da Confissão. Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica
da Fundinopi. Disponível
em:https://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/download/55/55 Acesso
em 18.8.2023.
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições
de Direito Penal – A Nova Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
MARQUES, José Frederico. Elementos
de Direito Processual Penal. Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1965.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São
Paulo: Saraiva, 1971.
ROTH, Ronaldo João; DA SILVA
Iremar Aparecido. Ordem ilegal deve ser cumprida?: a obediência hierárquica
militar Disponível em:https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2020/07/05/ordem-ilegal-deve-ser-cumprida-a
obedi%C3%AAncia-hier%C3%A1rquica-do-militar Acesso em 18.8.2023.
ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. Brasileiro. 9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 20
Notas:
[1]
O criminalista Cezar Bittencourt, advogado de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens
de Jair Bolsonaro, mudou a versão dos fatos relatados à revista Veja após
conversar com o atual advogado do ex-presidente, Paulo Amador da Cunha Bueno. O
advogado de Mauro Cid vinha negando qualquer contato e parceria com a defesa de
Bolsonaro. Porém, após ser pressionado por jornalistas da Globonews, durante o
programa Estúdio i, Bittencourt assumiu ter conversado com o atual advogado do
ex-presidente após a repercussão negativa da entrevista concedida por ele.
[2]
O Código Penal deve ser interpretado de maneira sistemática e harmônica e seu
art. 149-A, incluído pela Lei n. 13.344, de 2016, ao estipular causas de
aumento de pena para o crime de tráfico de pessoas, estipula o acréscimo quando
o agente (entre outras hipóteses) se prevalecer 'de autoridade ou de
superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função'
(art. 149-A, § 1º, III, parte final). Note, portanto, que o legislador admite a
existência de hierarquia em contextos baseados em relação empregatícia.
Poder-se-ia contra-argumentar que o emprego mencionado no dispositivo é o
emprego 'público'; ocorre, porém, que esse adjetivo não consta da norma e, onde
o legislador não distinguiu, não cumpre ao intérprete e ao aplicador da lei
fazê-lo.
[3]
Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência
a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o
autor da coação ou da ordem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Exclusão
de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
[4]
O Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001, de 1969) regula de modo diverso
referida excludente. Segundo a legislação castrense, o subordinado (militar)
estará isento de pena mesmo que a ilegalidade seja manifesta. Anote-se que
este, além de não poder discutir a conveniência ou oportunidade de uma ordem
(do mesmo modo quanto o civil), não pode questionar sua legalidade
(diversamente do civil), sob pena de responder pelo crime de insubordinação
(CPM, art. 163). Ao militar, somente não é dado cumprir ordens manifestamente
criminosas. Portanto, se, apesar de flagrantemente ilegal, a ordem não for
manifestamente criminosa, o subordinado estará isento de pena (CPM, art. 38, §
2º). Um dos requisitos para a configuração dessa causa legal de inexigibilidade
de conduta diversa é, como acima se destacou, que exista, entre o emissor da
ordem e o destinatário, relação de hierarquia, a qual, tradicionalmente, sempre
foi apontada como sendo aquela estabelecida no seio de relações jurídicas de
Direito Público (leia-se: entre agentes ou servidores públicos).
[5]
Presença de três pessoas: envolve o mandante da ordem (superior hierárquico),
seu executor (subalterno) e a vítima do crime por este praticado. Cumprimento estrito da ordem: o executor não
pode ultrapassar, por conta própria, os limites da ordem que lhe foi
endereçada, sob pena de afastamento da excludente. A propósito, dispõe o art.
38, § 2.º, do Código Penal Militar: 'Se a ordem do superior tem por objeto a
prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma de
execução, é punível também o inferior'. (...) O estrito cumprimento de ordem
não manifestamente ilegal de superior hierárquico exclui a culpabilidade do
executor subalterno, com fulcro na inexigibilidade de conduta diversa. O fato,
contudo, não permanece impune, pois por ele responde o autor da ordem. Imagine
a hipótese de um Delegado de Polícia, com larga experiência em sua atividade,
que determina a um investigador de Polícia de sua equipe, recém ingressado na
instituição, a prisão em flagrante de um desafeto, autor de um crime de roubo
ocorrido há mais de uma semana, em relação ao qual não houve perseguição, fato
desconhecido pelo subordinado. O subalterno, no caso, seja em face do restrito
conhecimento do caso concreto, seja em respeito ao superior hierárquico, em
quem muito confia, não pode ser responsabilizado, devendo o crime ser atribuído
exclusivamente ao autor da ordem.
[6]
Para Bento de Faria (1961), a confissão, ainda que tenha nascido de uma maneira
indevida, mas que depois ela tenha apontado elementos místicos, tais como um
auto de apreensão de uma coisa roubada ou furtada, o juiz poderia desprezar
aquela parte inicial ilícita, extraída sob tortura ou sob coação e considerar
como prova, para condenação, a segunda parte, que seria o auto de apreensão
naquela presunção, que foi criada pelos tribunais de que, se uma pessoa é
encontrada com a res furtiva ela tem que dizer porque está com a coisa em seu
poder, ela tem que dar a prova de que não é roubada. De qualquer maneira, o
auto de apreensão seria suficiente, as testemunhas que a acompanharam até o
local poderiam testemunhar, enfim, todo o complexo que adviria após aquela
confissão ilícita, seria lícito.
[7]
Torna-se oportuno apontar a diferença entre confissão, delação e colaboração. A
primeira, o responsável pelo fato chamam a si a autoria do mesmo. Já na
segunda, o sujeito, admitindo ou negando a responsabilidade pelo evento, aponta
outra pessoa como autor, coautor ou partícipe. E, na terceira, o colaborador
presta auxílio à Polícia, ao Ministério Público ou ao Juiz instrutor para que o
fato seja devidamente esclarecido, prontificando-se, por exemplo, a identificar
suspeitos ou recolher elementos de prova.
[8]
Ora, a confissão é ato de revelação de segredo íntimo, em que o declarante
revela sua própria transgressão. Há uma assunção subjetiva, com possível
remorso, em que o confitente faz uma acusação contra si e não contra outros.
Nesta senda, mesmo não se constituindo em prova absoluta ou como rainha das
provas, a confissão carrega um conteúdo indicativo demasiadamente importante,
pois se origina do maior interessado. A
relevância da confissão pode ser depreendida como instrumento duplamente
qualificado, seja no ponto de vista objetivo, porque recai sobre fatos
contrários ao interesse de quem confessa; seja no ponto de vista subjetivo,
porquanto provém do próprio acusado e de ninguém mais.
[9]
No caso das delações premiadas, a confissão de um dos réus não vincula os
demais? Não. Entretanto, para que tenha força probatória, deve-se oportunizar
aos defensores dos delatados que façam reperguntas durante o interrogatório
(Enunciado 65 das Mesas de Processo Penal da USP), havendo, inclusive, a
possibilidade de marcação de novo interrogatório, de modo a respeitar o
princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). Nestes casos, é cediço o
entendimento de que o delator produz confissão no momento em que confessa a sua
autoria no delito a ele atribuído. Todavia, com relação aos delatados, este
depoimento terá força testemunhal. Detalhe: o delator não responde por falso
testemunho, visto que a delação premiada é caso de testemunho impróprio, uma
vez que a isenção de suspeição, exigida a qualidade de testemunha é inviável em
se tratando de corréu, já que este é parte no processo. Com isso, o delator
(informante) não está obrigado a prestar o compromisso de dizer a verdade.
[10]
A principal estratégia de defesa de Mauro Cid é impor a tese de que, como
militar e subordinado ao Chefe do Poder Executivo, devia obediência
hierárquica. Aliás, seu atual advogado frisou que seu cliente "sempre
cumpriu ordens". A revista Veja publicou uma reportagem bombástica que
mostra a confissão do ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro
(PL), o tenente-coronel Mauro Cid, sobre o esquema de venda de presentes
recebidos de autoridades estrangeiras, incluindo joias da Arábia Saudita.
Segundo Cid, Bolsonaro ordenou que ele “derretesse os presentes” para “fazer
dinheiro”. In: CARVALHO, Fabrício. Confissão
de Mauro Cid complica situação de Bolsonaro, revela Veja. Disponível em:
https://diariodegoias.com.br/confissao-de-mauro-cid-complica-situacao-de-bolsonaro-revela-veja/342648/
Acesso 18.8.2023.
[11]
O direito de informação poderia ou não se sobrepor ao direito individual? — É
uma questão tormentosa e o equilíbrio deve ser buscado. No livro Direito à
Imagem, de Luiz Alberto David Araújo, são mencionadas uma série de situações e
restrições em que a liberdade de imprensa deve ser cerceada, ou mesmo, o direito
à imagem deve ser cerceado, como no caso de segurança nacional, de saúde
pública e questões do interesse do Judiciário.
[12] “A finalidade do interrogatório é tríplice: a) facultar ao magistrado o conhecimento do caráter, da índole, dos sentimentos do acusado: em suma, compreender-lhe a personalidade; b) transmitir ao julgador a versão, que, do acontecimento, dá, sincera ou tendenciosamente, o inculpado, com a menção dos elementos, de que o último dispõe, ou pretende dispor, para convencer da idoneidade da sua versão; c) verificar as reações do acusado, ao lhe ser dada diretamente, pelo Juiz, a ciência do que os autos encerram contra ele. Aí está porque se costume dizer, e muito razoavelmente, que o interrogatório é uma fonte de prova”.
Autora: Gisele Leite (ORCID https://orcid.org/0000-0002-6672-105X)