Pela ordem

A jurisprudência é da Corte e não da Coorte

Fonte: Jota.info

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Às vésperas da aprovação do novo Código de Processo Civil, que atribui força vinculante aos precedentes dos tribunais superiores, estudiosos do Direito Processual têm destacado casos muito curiosos sobre a nossa jurisprudência.

Como já tive oportunidade de dizer em outras ocasiões, sou a favor do art. 521 do Projeto do novo CPC, que torna vinculantes as súmulas dos tribunais superiores e algumas decisões específicas, principalmente em incidentes de julgamento de causas repetitivas. Porém, a defesa desse novo sistema de precedentes não interessa a este artigo.

Quero, nestas linhas, contar mais um caso sobre a nossa jurisprudência titubeante, para reforçar a ideia de que precisamos mudar a postura no trato dessa questão. E esse episódio aconteceu comigo.

Como se sabe, o art. 94 da Constituição assegura que 1/5 das vagas dos tribunais de segunda instância devem ser preenchidas por membros do Ministério Público e advogados, escolhidos a partir de lista sêxtupla encaminhada pelos órgãos de representação das respectivas classes. É o chamado quinto constitucional.

Não há nenhum problema em estabelecer a fração de 1/5, quando o número de membros num tribunal é divisível por 5. Todavia, a dúvida surge quando o resultado da fração de 1/5 não corresponde a um número inteiro. Por exemplo: num tribunal com 56 membros, 1/5 dá 11,2. Diante disso, quantas vagas terá o quinto constitucional: 11, arredondando-se para baixo, ou 12, arredondando-se para cima?

Foi exatamente esse impasse que ocorreu no TRF-2 em 2009. O tribunal tinha 27 membros, e 1/5 desse número é  5,4.

A primeira posição do TRF-2 foi entender que, quando a fração é menor do 0,5, se deve arredondar para baixo, chegando a 5 vagas para o quinto constitucional.

Contra essa decisão administrativa, a OAB/RJ impetrou mandado de segurança, com fundamento em jurisprudência do STF que prestigia o arredondamento para cima (repito: com fundamento em jurisprudência do Supremo!). O Plenário do TRF-2, por ampla maioria, manteve o arredondamento para baixo [1].

Não vem ao caso dizer que a Seccional reformou esse acórdão no STJ, tampouco abordar as interessantes teses a respeito dessa peculiar questão. Importa destacar a forma inaudita como o Plenário do TRF-2 afastou a pacífica jurisprudência do Supremo.

O acórdão destacou que, durante 40 anos, o STF prestigiou o entendimento de que o arredondamento deveria ser para baixo. Realçou que essa posição foi forjada por ilustres ministros do Supremo, como Nelson Hungria e Orosimbo Nonato. E, para a surpresa de todos, afirmou que a atual jurisprudência, que vigora há menos de 20 anos, deveria ceder para a jurisprudência histórica, que vigeu por mais tempo.

Acrescentou, ainda, que a atual jurisprudência foi construída por uma composição do Supremo que não existia mais, e os novos ministros poderiam preferir a jurisprudência histórica.

É ler para crer:

“É verdade que, a partir de 1995, e por três vezes, ao que se noticia, o Egrégio STF externou orientação diversa. A peça da OAB, subscrita por brilhantes causídicos, expõe de modo simples, direto, sem delongas, os últimos julgados do Supremo, e seu fundamento de que ‘a regra explícita prevalece sobre a regra implícita’.

Mas, mesmo como fiel adepto de sempre estar vinculado ao Supremo, mesmo sem edição de súmula, o fato é que durante quase toda a história do quinto a orientação do Supremo foi outra, e a orientação dos Tribunais pátrios foi outra. Agora, a composição do Tribunal Magno está toda alterada, e é boa hora para, pelo menos, provocar uma revalorização do julgado histórico de 1957. Não há prejuízo a quem quer que seja, por ora (o tema é apenas reaberto)” [2].

Com se vê, o acórdão do Plenário do TRF-2 valeu-se de dois argumentos incomuns: a adoção da jurisprudência histórica em detrimento da atual, com base no critério de duração; e a aposta de mudança do entendimento, com fundamento na ideia de que a jurisprudência não é da Corte, mas da composição.

Esse caso mostra como ainda tratamos mal os precedentes em nossa prática forense. No entanto, o que mais chamou a atenção foi a compreensão de que não existiria jurisprudência do tribunal, mas da sua composição.

Infelizmente, essa compreensão não é isolada. Veja-se que, a cada vaga aberta no Supremo, a maioria de nós torce pela entrada desse ou daquele jurista, com a expectativa de que o novo ministro vai modificar esse ou aquele precedente. Ainda está muito arraigada a percepção de que a jurisprudência pertence à composição atual do colegiado.

Com efeito, a jurisprudência não deve ser modificada, apenas porque a composição foi alterada ou por qualquer outra razão que não seja a modificação do texto legal, o surgimento de uma nova convenção dogmática ou a mudança dos fatos sociais.

Independentemente dos precedentes vinculantes do novo CPC, já passou da hora de criarmos uma cultura de obediência, em qualquer medida, aos precedentes judiciais, a despeito das nossas convicções jurídicas. A dissidência é bem-vinda no meio acadêmico, mas não deve ser tolerada na jurisprudência.

Não podemos esquecer que o respeito aos precedentes serve à segurança jurídica, à isonomia e à sociedade, além de evitar que o ajuizamento de uma ação seja encarado, como atualmente ocorre, como uma aposta lotérica.

*Professor de direito processual civil da PUC-Rio, advogado e vice-presidente da OAB/RJ.

 

 – Para o bem do trocadilho, emprega-se “coorte” como grupo ou conjunto de pessoas, para se referir à composição do tribunal.

1 - Plenário do TRF-2, mandado de segurança coletivo nº 2009.02.01.002405-0, julgado em 07.05.2009.

2 – Trecho do acórdão do mandado de segurança coletivo nº 2009.02.01.002405-0.

Palavras-chave: Codigo de Processo Civil CPC STF STJ TRF

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