O limite da privacidade

A defesa da liberdade de expressão dos autores de biografias e a exigência do direito à privacidade daqueles que têm suas vidas expostas colocam artigos do Código Civil e da Constituição Federal em discussão

Fonte: Gazeta do Povo

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O debate sobre liberdade de expressão e direito à privacidade no Brasil vem sendo aquecido com a possibilidade de aprovação da Lei das Biografias (Projeto de Lei 393/11). Essa é uma das propostas que representam a tentativa de garantir aos autores de biografias o direito de publicar suas obras independentemente da autorização dos retratados. O assunto está tendo grande projeção na imprensa nacional não só por se referir a uma questão que afeta o interesse de editoras e produtores culturais mas também por envolver grandes personalidades da cultura nacional, como Caetano Veloso, Roberto Carlos e Djavan. Eles fazem parte da organização Procure Saber, que defende que a biografias só devem ser publicadas com autorização dos próprios retratados ou de seus familiares.


A Associação Nacional de Editores de Livro (Anel) foi criada para defender a alteração do Código Civil (veja quadro ao lado), proposta no PL 393/11, de autoria do deputado Newton Lima (PT-SP). A mudança já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos deputados (CCJ), mas agora precisa passar pelo plenário da Casa.


A porta-voz do Procure Saber, Paula Lavigne, disse, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, que o grupo não quer proibir nada, mas apenas manter a lei como está. “O Código Civil é de 2002 e seus artigos estão vigentes. Os biógrafos é que querem derrubar os artigos 20 e 21 do Código Civil, vigente há 11 anos, usando argumentos nem sempre verdadeiros.”


O professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná Rodrigo Xavier Leonardo considera que o novo parágrafo proposto no projeto de lei aumenta ainda mais a contradição sobre a necessidade ou não de autorização para se publicar biografias. “As alterações legislativas deveriam evitar as ambiguidades na interpretação. Não deveriam ampliá-las. [A proposta], no que diz respeito ao requisito da autorização, efetivamente dá margem para que o receio de uma vedação indevida à publicação de biografias continue.”


Além do projeto de lei, a Anel recorreu ao STF e pro­­pôs a Ação Direta de Incons­­titucionalidade (ADI) 4815, que pede que “se declare a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil”. A interpretação do atual texto do CC tem dado margem para que os biografados exijam que apenas as biografias autorizadas possam ser publicadas. A ministra Cármen Lúcia, relatora do processo, já convocou uma audiência pública para os dias 21 e 22 de novembro a fim de discutir a questão.


Entre os argumentos apresentados na ADI está o de que a história de vida das pessoas públicas se confunde com a história coletiva, e, portanto, a exigência de autorização dessas pessoas ou de seus familiares (quando falecidos) é contrária aos incisos IV e IX da Constituição Federal, que garantem a livre manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade intelectual.


O professor Rodrigo Xavier observa que, se a interpretação do artigo 20 do Código Civil for desconexa com a Constituição, o resultado pode ser a censura. “Lamentavelmente, essa interpretação aparece reiteradamente em alguns tribunais brasileiros”, diz o jurista.


A produção de apenas biografias autorizadas é inconstitucional na opinião do também professor de direito da UFPR Sérgio Staut. Ele defende, contudo, a tutela preventiva e considera um grande equívoco a tentativa de impedi-la, já que, muitas vezes, os danos morais podem apenas ser compensados, mas não reparados. “O Judiciário procura evitar a violação de direitos que, quando violados, são de dificílima reparação”, argumenta o professor ao defender que, quando interpelada, a Justiça deve sim conferir se haverá dano moral e evitá-lo.


Interesses vão além do campo jurídico


A discussão sobre a Lei das Biografias ultrapassa o campo jurídico e envolve também interesses econômicos. A porta-voz e presidente da diretoria do grupo Procure Saber, Paula Lavigne, afirmou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo: “Nosso grupo é contra a comercialização de uma biografia não autorizada. Não é justo que só os biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca o biografado ou seus herdeiros”.


O interesse no lucro muitas vezes se sobrepõe à preocupação com a honra do biografado ou com a veracidade dos fatos veiculados. Prova disso é que, conforme Luiz Schwarcz, da Editora Companhia das Letras, escreveu em sua coluna, a família de Garrincha permitiu que a obra de Ruy Castro sobre o jogador voltasse a circular após volumoso acordo, sem se preocupar com o conteúdo ou a capa da obra.


O professor de direito da UFPR Sérgio Staut chama atenção para o peso que o dinheiro tem nessa briga. “As duas partes estão travestindo o interesse econômico com direito”, avalia e acrescenta: “Não sei se uma grande editora está tão preocupada com a tutela da liberdade de expressão, como está em lucrar com a obra de um biografado importante. E não sei se os biografados estão tão interessados em proteger a sua imagem, sendo que, diariamente, expõem sua privacidade”.


A Associação Nacional de Editores de Livro (Anel) e o grupo Procure Saber foram procurados pela reportagem, mas não deram retorno até o fechamento.

Palavras-chave: limite privacidade biografias discussão cc direito

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