Estado beira a litigância de má-fé ao descumprir dever constitucional de atendimento à saúde

Fonte: TJRS

Comentários: (0)




O Estado do Rio Grande do Sul tem estabelecido estranho ritual para adiar e até descumprir o dever constitucional de atendimento das necessidades decorrentes de problemas de saúde daqueles que não têm condições financeiras e a ele recorrem. "Se o réu, contudo, não crê nas regras trazidas pela Constituição Cidadã deve, então, tentar mudá-las mas, enquanto isso não acontece, não deveria resistir às pretensões que vêm embasadas nestes preceitos, de forma a beirar a litigância de má-fé.?

As afirmações embasaram decisão do Juiz Breno Beutler Júnior, do 1º Juizado Regional da Infância e da Juventude (JIJ) do Foro Central de Porto Alegre, ao julgar procedente a solicitação para o fornecimento com urgência de suprimento nutricional, Isalado de Soja 100g/dia, oito latas por mês, para o menor G.H.P., que tem ?síndrome do intestino curto?, além de fibrose cística. O julgamento ocorreu nessa sexta-feira (17/6).

Destacou que há ordem constitucional suficientemente clara para atribuir ao Estado a obrigação referente ao custeio das despesas necessárias para o fornecimento do remédio ou o próprio tratamento. Informou existirem, ainda, portarias da Secretaria Estadual da Saúde, onde o próprio Executivo se obriga a estes encargos.

A ação ordinária contra o Estado foi movida pela mãe do menor, V.M.B.P. Para o magistrado, o direito invocado pelo autor do processo também se encontra garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Carta Magna, acrescentou, assegura o direito à vida e à saúde, com absoluta prioridade, às crianças e adolescentes, levando em consideração as peculiaridades de pessoa humana em desenvolvimento, ?merecedores de direitos especiais e específicos?.

Fazendo referência às alegações do Estado quanto à necessidade de perícia para se comprovar a real necessidade do suplemento, o magistrado frisou que ?é de se ter tal argumento como expediente meramente protelatório (além de caro, aliás, com um custo a ser suportado pelo ?ente? Estado, dado que o autor litiga sob o pálio da gratuidade)?.

Os documentos que acompanham o feito, esclareceu, são firmados por profissional habilitado e provenientes de hospital especializado da rede pública. ?Além de idôneos ? e nada foi alegado em contrário ? atestam sobejamente, não só as doenças das quais padece o autor, como também de suas necessidades, incluído aí o suplemento alimentar pleiteado.?

O Estado afirmou, ainda, que o menor necessita de complementação alimentar em decorrência de outra doença e não fibrose cística e que o suplemento alimentar não faz parte da listagem de medicamentos que é obrigado a fornecer. ?Essa situação em nada altera as obrigações do demandado quanto ao fornecimento de medicamentos, suplementos ou insumos aos pacientes que deles necessitem, independentemente do mal que os aflija.?

Casos reincidentes

Ressaltou que são inúmeras as ações daqueles que se sentem lesados e buscam o Judiciário para a solução judicial dos seus pleitos e as liminares são deferidas. Entretanto, lamenta, o Estado recorre invariavelmente das determinações, quando passa a agir a Procuradoria-Geral do Estado (Estado) que, além de contestar a demanda, sempre agrava ao Tribunal de Justiça (Estado) em razão da liminar.

Deduz que da condenação definitiva do Estado ou do início de um sem número de recursos até as instâncias superiores, implica ?num custo infinitamente superior ao ?bem? (latu sensu) que se pretende, numa eterna ?briga? do Estado contra ele mesmo?.

Para o magistrado, ?a visão sectária e imediatista na tentativa de evitar gastos resulta em dispêndios que poderiam senão resolver o problema minimizá-lo, em muito, facilitando a vida da população necessitada e, ainda, de quebra, transmitindo ao povo uma outra imagem do poder público?. O reflexo, completou, seria o ?desafogo do Judiciário e demais serviços que, assim, também poderiam cumprir suas tarefas de modo mais satisfatório?.

Proc. 1470830 (Lizete Flores)

Confira a íntegra:

PRIMEIRO JUIZADO REGIONAL DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

Porto Alegre
Autos n. 1470830
Ação Civil Pública
Sentença n.
17 de junho de 2005.
Prolator: BRENO BEUTLER JUNIOR

Vistos.

G.H.P., representado por sua mãe, V.M.B.P., propôs a presente ação ordinária contra o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, todos qualificados, pleiteando, determinação judicial no sentido de lhe ser fornecido, com urgência, suplemento nutricional, necessário para o mal de que padece, ?síndrome do intestino curto?, uma doença genética autossômica, recessiva pancreática, além de fibrose cística, doença esta, genética, autossômica, identificada por pneumopatia crônica, insuficiência pancreática exócrina e elevada concentração de eletrólitos no suor, em decorrência da hiperviscosidade dos líquidos produzidos pelas glândulas mucosas, necessitando de alimentação adequada, não podendo tomar qualquer tipo de leite ou suplemento, como conseqüência da síndrome antes referida, precisando, com urgência e imprescindivelmente, de suplemento nutricional, ISALADO DE SOJA 100g/dia ? 8 latas/mês.

Assim, diante de sua necessidade, dada a gravidade de seu quadro, por conta de seus sérios problemas de saúde, mais a impossibilidade de aquisição de tal suplemento, em função de seu alto custo e, sendo ainda tal fornecimento um dever do Estado, estando sua pretensão consitutucionalmente garantida, é que requer seja o ente estatal condenado a atendê-lo.

A inicial veio instruída com documentos.

Houve pedido de antecipação de tutela, que restou deferido.

Cumprida a medida acautelatória e regularmente citado, o Estado do Rio Grande do Sul contestou o feito, alegando, no mérito, que o suplemento alimentar ora requerido não faz parte da listagem de medicamentos que o Estado é obrigado a manter, segundo a sentença prolatada na ação civil pública e, ainda, que não há elementos a demonstrar da necessidade do suplemento pleiteado, o que só poderá resultar esclarecido por perícia. Afirma, ainda, que o menor não precisa de tal complementação alimentar em decorrência da fibrose cística mas, sim, de outra doença, sendo necessário que se reavalie a real necessidade do alimento a base de soja. Requereu, pois, a improcedência da ação.

Houve réplica.

Após, sobreveio aos autos parecer do Ministério Público, opinando pela procedência do pedido, sustentando desnecessária a perícia, pois demonstrado à sagacidade, que o complemento é necessário, sim, para a manutenção de uma alimentação saudável, ao requerente, para que isso ocorra, é preciso do suplemento supra mencionado .

É o relatório.

Segue a decisão.

No presente feito, quanto ao mérito, a pretensão é de determinação judicial que garanta o fornecimento do suplemento alimentar, com custeio negado pelas entidades de saúde estatal, mesmo frente à incapacidade financeira do autor, que não lhe permite efetivá-lo sem tal concurso.

De plano, há que se ressaltar que o direito invocado pelo autor encontra-se insculpido na Constituição Federal. Não só na Constituição mas, em especial, no Estatuto da Criança e do Adolescente. Cumpre lembrar, ainda, o respeito ao princípio da prioridade absoluta que circunda a esfera da Infância e da Juventude, com base no artigo 227 da Carta Magna, que assegura o direito à vida e à saúde, com absoluta prioridade, às crianças e adolescentes, levando em consideração às peculiaridades de pessoa humana em desenvolvimento, merecedores de direitos especiais e específicos.

Vencida esta etapa, que diz com o direito invocado, ainda no mérito, relativamente às questões de fato, por conta da alegação do demandado, de que há necessidade de perícia, tal como salientado pela Ilustre Doutora Promotora, é de ter-se tal argumento como expediente meramente protelatório (além de caro, aliás com um custo a ser suportado pelo ?ente? Estado, dado que o autor litiga sob o pálio da gratuidade). Os dodumentos que acompanham a inicial, aliás firmados por profissional habilitado e provenientes de hospital especializado da rede pública, além de idôneos ? e nada foi alegado em contrário ? atestam sobejamente, não só as doenças das quais padece o autor, como também de suas necessidades, incluído aí o suplemento alimentar ora pleiteado.

Também não podem prosperar as alegações de que o requerente padece de outra doença que não só a fibrose cística, como elemento a ensejar o descompromisso do réu. Esses fatos são sabidos, alegados e reconhecidos tanto que, no caso, vem estribada a pretensão nas necessidades impostas pela síndrome do intestino curto, além do fato de o jovem padecer da mucovissidose. Essa situação em nada altera as obrigações do demandado quanto ao fornecimento de medicamentos, suplementos ou insumos aos pacientes que deles necessitem, independentemente do mal que os aflija.

Há nos autos, também, aspectos outros que demandam breve análise dado o contexto nos quais foram deduzidos.

Soa estranho a este magistrado o ritual estabelecido para o atendimento das necessidades decorrentes de problemas de saúde, de parte do Estado. Invariavelmente (e são incontáveis os feitos, não só no JIJ, mas nas Varas de Fazenda ? onde não deve ser diferente o ?irter?) as pessoas (sem condições financeiras a tanto) pleiteiam, pela via administrativa, o remédio, o insumo, a prótese, enfim, o bem que possa trazer a cura, alívio, melhor qualidade de vida ou, simplesmente, a manutenção dela e resultam frustradas nesse seu intento, por conta dos mais variados (e insubsistentes) argumentos, donde se antevê que as negativas tem por objetivo principal evitar dispêndios do ente público.

Vai daí que, (pela falta de dinheiro) buscam, os que se sentem lesados, a defensoria pública (Estado) ou, até mesmo, o Ministério Público (igualmente Estado, no sentido amplo). O passo seguinte é que, por um ou outro deles, resulta ajuizada a demanda que passa a movimentar a pesada (e cara) máquina judiciária, (de forma ou outra ainda o Estado). Na absoluta maiorida dos casos as liminares são deferidas (poucas cumpridas, como o caso destes autos) e o executivo (Estado) é intimado e citado. Ato contínuo passa a agir a Procuradoria-Geral do Estado (Estado) que, além de contestar a demanda, sempre agrava ao Tribunal de Justiça (Estado) em função da liminar. O Ministério Público (quando não substituto processual) é instado a pronunciar-se em ambas as instâncias (e aí, novamente, o girar ? oneroso ? da máquina estatal). As liminares, mesmo a mais das vezes não cumpridas, de modo geral, são mantidas e o feito termina julgado, também na absoluta maioria, com decretação de procedência, seqüestro de verbas e atendimento da pretensão. Da sentença, por evidente, a apelação (pois a Procuradoria não é negligente) e, a partir daí a condenação definitiva ou o início de um sem número de recursos até as instâncias superiores, tudo isso num custo infinitamente superior ao ?bem? (latu sensu) que se pretende, numa eterna ?briga? do Estado contra ele mesmo.

Se há ordem constitucional suficientemente clara para atribuir ao Estado a obrigação referente ao custeio das despesas necessárias para o fornecimento do remédio ou próprio tratamento ou, ainda, acesso a ele se, além dessas regras há, ainda outras, como as insculpidas no ECA e, até mesmo portarias, como a 4/202, da SES, onde o próprio executivo se obriga a estes encargos, qual o motivo de tantas demandas? A visão sectária e imediatista na tentativa de evitar gastos resulta em dispêndios que poderiam senão resolver o problema minimizá-lo, em muito, facilitando a vida da população necessitada e, ainda, de quebra, transmitindo ao povo uma outra imagem do poder público. Isso contribuiria, ainda como ?efeito colateral? no desafogo do judiciário e demais serviços que, assim, também poderiam cumprir suas tarefas de modo mais satisfatório. Este proceder gera efeitos ?bola de neve?, ?dominó? e não se limita a esta esfera da administração, lamentavelmente. Se o réu, contudo, não crê nas regras trazidas pela Constituição Cidadã deve, então, tentar mudá-la mas, enquanto isso não acontece, não deveria resistir às pretensões que vem embasadas nestes preceitos, de forma a beirar a litigância de má-fé.

Não se pode olvidar, no tocante à fixação de multa, em caso de descumprimento ou resistência à liminar que ela, dada sua natureza penal, possui o escopo de apenas e tão somente induzir o Estado ao cumprimento da ordem exarada, devendo, sim, ser fixada, no intuito de evitar a frustração de sua efetivação o que, hoje, parece ser um dos maiores problemas do Judiciário.

De qualquer sorte, sob qualquer ângulo que se examine a questão, seja jurídico, social ou político, resta evidente a procedência da pretensão do autor.

Diante do exposto, imperativo julgar procedente o pedido para tornar definitiva a antecipação de tutela ao início deferida, com a ressalva, quanto a multa, de que deve obedecer ao decidido pela egrégia superior instância.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Porto Alegre, 17 de junho de 2005.

BRENO BEUTLER JUNIOR,
Juiz de Direito

Palavras-chave:

Deixe o seu comentário. Participe!

noticias/estado-beira-a-litigancia-de-ma-fe-ao-descumprir-dever-constitucional-de-atendimento-a-saude

0 Comentários

Conheça os produtos da Jurid