Crise de autoridade

Por 29 vezes nossa Constituição Federal emprega o vocábulo "autoridade", no singular ou plural. Entretanto exime-se de definir essa palavra, o que nos leva a consultar outras fontes.

Fonte: Folha de S. Paulo

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Por 29 vezes nossa Constituição Federal emprega o vocábulo "autoridade", no singular ou plural. Entretanto exime-se de definir essa palavra, o que nos leva a consultar outras fontes.

Vemos assim que a Carta usa o termo no sentido de abranger todo representante do poder público "que tem por encargo fazer respeitar as leis", como expressam o dicionário "Aurélio" e outros de igual valor. Portanto quem exerce autoridade tem a obrigação de ser o primeiro cidadão no respeito à lei, principalmente quando ela o obriga a agir para impô-la, a ponto de lhe reservar sanção penal caso se omita. Se não atuar como foi preceituado, a autoridade estará lesando o múnus público e cometerá o crime de prevaricação.

Esse princípio está nos alicerces do Estado democrático de Direito. Para entendê-lo, basta correr os olhos pelo texto constitucional. Ficará claro que, em nosso regime político, o princípio de autoridade difere totalmente do autoritarismo contraposto à liberdade individual nas ditaduras.

Então, por que, em plena vigência das normas democráticas revitalizadas na Constituinte de 1988 à luz dos direitos humanos, ainda vemos perdurar algo como o sentimento de vergonha e culpa entre autoridades, a ponto de fazê-las negligenciar a aplicação da lei? Ou estaria havendo omissão proposital para macular a liberdade com as tintas da desordem, desmoralizar a lei como se fosse letra morta e abrir caminho para o autoritarismo?

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Enquanto é tempo, seria bom que nossas autoridades aplicassem as leis como simples obrigação legal
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Realmente, o Brasil vive uma crise de autoridade que corrói a imagem até do mais alto dignitário da República, como apontam sucessivas pesquisas de opinião. A inconsistência do Estado e a sensação de impunidade estão na raiz dessa involução. Ameaçam pôr abaixo a credibilidade dos poderes constituídos.

A reação de autoridades do Rio de Janeiro ao clamarem por intervenção federal e emprego das Forças Armadas no policiamento, fugindo à própria responsabilidade diante da coação exercida pelo crime organizado para o tráfico de drogas, dá-nos a dimensão do perigo que paira sobre as instituições democráticas.

O recuo do governo federal diante da chantagem feita pelo MST com o "abril vermelho", destinado a "infernizar" o país, é outra amostra da crise.

Poderíamos alinhavar dezenas de exemplos de omissão, fraqueza ou condescendência. A imprensa retrata-os todos os dias. Devido à repetição de tais casos, a corrupção, a violência e a impunidade são problemas que se avolumam e, pouco a pouco, vão empanando o sentido da palavra "autoridade".

Bem lembrou o desembargador Américo Lacombe, em recente artigo nesta Folha, que, "se o juiz não cumpre o seu dever de forçar a obediência à sua decisão, estará desabrigando o direito e comportando-se como covarde (...) Será o fim da cidadania" ("A balança e a espada", "Tendências/Debates", 13/4). Isso se estende a todos os que, como os magistrados, têm a seu cargo a aplicação da lei.

Para demonstrar a legitimidade e a importância dessa ação, não há necessidade de nos socorrermos de Beccaria, Rousseau, Montesquieu ou outros portentos do direito universal. Nossa história está repleta de exemplos de que, quando as autoridades se omitem em seu mister legítimo, transformam-se em aríetes do arbítrio associado a práticas antidemocráticas e anti-sociais. Ao contrário, o exercício de autoridade no contexto democrático de direito objetiva fazer o cidadão perceber a legitimidade, justeza e o valor das normas legais que lhe garantem a vida numa sociedade livre. Por isso, enquanto é tempo, seria bom que nossas autoridades aplicassem as leis como simples obrigação legal, e não porque elas ou seu objeto lhes agrade ou desagrade. Só assim farão jus à confiança de que são depositárias e representarão o maior empecilho ao autoritarismo.

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Romeu Tuma, 72, senador pelo PFL-SP, é primeiro-secretário e corregedor do Senado. Foi diretor-geral da Polícia Federal (1985-92) e secretário da Receita Federal (1992).

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