Afinal, gay pode doar sangue?

Milton Silva de Vasconcellos, acadêmico de Direito da FABAC. Artigo elaborado em setembro/2006.

Fonte: Milton Silva de Vasconcellos

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Milton Silva de Vasconcellos ( * )

Sabe-se que a Administração Pública, em obediência ao princípio da legalidade, segue a premissa de que seus atos só podem ser permitidos por força da lei, não se admitindo assim, qualquer atuação que não contenha expressa autorização legal. Seguindo este comportamento assaz positivista, o Estado, através da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), publicou uma norma (RDC 153/04), que traz a inabilitação taxativa para doação de sangue de: "Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e ou as parceiras sexuais destes", baseando-se assim nos argumentos da necessidade de controle da qualidade ao sangue doado, estipulando as chamadas "situações de risco".

É sobre a desastrada norma, que ao mesmo tempo segrega e lesiona diversos princípios da Administração Pública, que este trabalho versará, na tentativa de responder a pergunta do título.

É dever do Estado, primar pela qualidade do sangue nos hemocentros, realizando desta forma todos os exames necessários, entretanto há de se ponderar sobre a execução e forma de como fazê-lo. Sabe-se que nem toda norma legal é moral, portanto caberá a prudência ao administrador em respeito ao princípio da moralidade na execução da norma da ANVISA, pois da mesma forma como são realizados os testes para diversas outras doenças, assim deveria ser feito com o sangue proveniente de doadores homossexuais e não a proibição taxativa e preexistente. A solução dada pela norma RDC 153/04 é discriminatória e ineficaz, vez que sua aferição é dada apenas mediante perguntas dirigidas ao doador sobre sua sexualidade, o que não garante a veracidade das informações.

A Administração pública, agindo desta forma, não considera também o tratamento desigual, ferindo por consequência o princípio da impessoalidade. Nesse sentido pondera o Prof. Dyrley da Cunha Júnior (CUNHA JÚNIOR: 2003) " Este princípio exige que a atividade administrativa seja exercida de modo a atender a todos os administrados, ou seja, a coletividade e não a certos membros em detrimento de outros". Ora, se é verdade que o administrador neste caso direciona seus atos em prol da coletividade é também verdade que os direciona para um grupo específico, mas neste caso numa espécie de favorecimento às avessas. E se a conduta do administrador não deve favorecer este ou aquele grupo, contrátrio sensu não deverá também desfavorecer.

Ademais, tal norma da ANVISA consegue proporcionar mais uma antinomia no ordenamento jurídico brasileiro, vez que versa a nossa Carta Magna, em seu art. 5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Diante de tal absurdo, cumpre-nos questionar: o que deveria preponderar: a norma da ANVISA ou uma norma constitucional?

Ainda se poderia alegar que a privacidade é direito personalíssimo, segundo disposto no art 5º, X, CF "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra,e a imagem das pessoas" e que tal norma, ao indagar sobre a sexualidade do doador estaria também lesionando estes direitos. Mas além de todas estas "violações jurídicas", sabe-se que vivemos numa sociedade extremamente machista e preconceituosa, onde é certo que o doador poderá facilmente mentir ao ser indagado sobre sua sexualidade, ou seja, a tal norma RDC 153/04, além de inconstitucional é extremamente não-funcional, ferindo também o princípio da eficiência dos atos da Administração Pública, que integra o caput do art. 37 da Constituição Federal.

Por outro lado, poderia se alegar que tal procedimento não discrimina e sim obedece à supremacia do interesse público sobre o interesse privado, quando o interesse individual é substituído pelo interesse maior, da coletividade. Nestes termos, é oportuna a palavra da Prof. Alice Maria Gonzalez Borges ( BORGES: 2004)"O interesse público, em uma ordem democrática, não se impõe coativamente. Somente prevalece, em relação aos interesses individuais divergentes, com prioridade e predominância por ser um interesse majoritário". Ou seja, trata-se de um interesse maior que deve preponderar diante do interesse pessoal.

Argumenta-se ainda que tal norma ganha sua força no poder discricionário da Administração Pública, sendo que o Estado segue o direito posto e a discricionariedade ocorre em função de espaços deixado pela própria lei. Neste caso, o Estado cumpre a norma e a forma discriminatória adotada estaria no âmbito da discricionariedade da Administração Pública. Neste sentido observa a Prof. Maria Sylvia Zanella Di Pietro (DI PIETRO: 2001) "a fonte da discricionariedade é a própria lei; aquela só existe nos espaços deixados por esta. Nesses espaços a atuação livre da administração é previamente legitimada pelo legislador".

Acreditar que a qualidade do sangue colhido possa ser feita por decreto, baseando-se em provas empíricas (a pergunta direta ao candidato) discriminando pessoas, beira a estupidez. O Estado tem outros meios mais seguros e científicos para resolver esta questão. Aliás, diria que o Estado não só tem o poder da utilização dos meios científicos, como também tem o dever de utilizá-los, em prol do interesse público.

Destarte a falta de bom senso no caso em tela, atinge em cheio o princípio da proporcionalidade, quando se verifica um desequilíbrio entre o modus operandi da Administração e o sacrifício do direito individual. Seguindo este raciocínio, pondera a Profª. Fernanda Marinela Souza Santos (SANTOS: 2006) " O princípio da proporcionalidade exige equilíbrio entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem de alcançar, segundo padrões comuns da sociedade em que vive e análise de cada caso concreto. Exige também uma relação equilibrada entre o sacrifício imposto ao interesse de alguns e a vantagem geral obtida, de modo a não tornar a prestação excessivamente onerosa". A norma (RDC 153/04), apesar de muito bem intencionada, apresenta um sacrifício demasiadamente alto a ser cobrado.

E, diante do exposto são oportunas as indagações: será justo exigir qualquer coisa com o ônus da discriminação? É este o interesse público?

Sabe-se que o interesse público é um somatório de interesses individuais e nestes termos cabe a indagação se tal norma da ANVISA realmente reflete o interesse da coletividade e se atinge o razoável. Trata-se pois, de desrespeito às normas constitucionais e a princípios norteadores da Administração Pública, mas acima de tudo trata-se também do respeito à dignidade da pessoa humana, reforçando-se o repúdio a qualquer tipo de discriminação e se a hierarquia das leis não é argumento suficiente para responder positivamente à pergunta que segue como título deste trabalho, que sirva como resposta a preponderância do bom senso ante o absurdo.

Fonte:

BORGES, Alice Maria Gonzalez - Temas de direito administrativo atual: estudos e pareceres, Belo Horizonte, ed. Fórum, 2004.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da - Direito Administrativo, 2ª edição, Salvador: Ed. Juspodium, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella - Direito Administrativo, 13. ed., São Paulo, Atlas, 2001.

MORAES, Cristina de - Gays querem doar sangue, Jornal ATarde, P. 10 ed. 30/08/06.

SANTOS, Fernanda Marinela de Souza - Direito Administrativo, 2ª ed. ed. JusPodium, Salvador, 2006.


Notas:

* Milton Silva de Vasconcellos, acadêmico de Direito da FABAC. Artigo elaborado em setembro/2006. [ Voltar ]

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Abilio Santos bacharel direito/técnico banco de sangue02/11/2006 16:32 Responder

O que parece como uma atitude eivada de preconceitos, é na verdade uma atitude, embora frágil, necessária a segurança para utilização de elementos advindos do sangue humano. A parte mais importante, quando na captação de doadores, é a entrevista do doador em potencial. A sugestão do autor é frágil, pois, na atualidade o exame, mesmo quando o doador é portador do vírus do HIV, pode ser negativo devido a existência da chamada janela imunológica. O doador, quando entrevistado, assina um termo de responsabilidade, a cerca da veracidade das informações prestadas. Não se trata de rejeitar o gay pela sua orientação sexual, e sim, rejeitar aqueles que por suas ações sejam mais propícios a serem portadores do referido vírus. São também rejeitados os usuários de drogas injetáveis, os de atitudes promiscúas, os que sofreram cirurgias recentes e tantos outros. A entrevista, acredito, ser um instrumento frágil para esta seleção, porém, não conheço outra, já que a simples realização dos exames laboratoriais, também não oferecem esta segurança.

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