A proibição de sentença ilíquida no procedimento sumário

Celso Anicet Lisboa, Advogado e Professor de Direito Processual Civil.

Fonte: Celso Anicet Lisboa

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Celso Anicet Lisboa ( * )

Do tópico que abordaremos neste trabalho não se pode dizer que exista controvérsia na doutrina. Há, isso sim, perplexidade. A doutrina majoritária não compreende como o juiz fará para proferir sentença líquida - baseado apenas no seu prudente critério - se o pedido (genérico) for de indenização por danos originados em acidente de veículo. Se o dano, cujo ressarcimento se pede, for patrimonial, ainda se tolera a proibição - afinal, conforme diz Araken de Assis, pode o autor na inicial juntar três orçamentos, elaborados por técnicos ou oficinas idôneas e, com base neles, formular seu pedido de ressarcimento (Cumprimento da sentença, p. 101). A perplexidade se refere ao pedido de indenização por dano moral (que os alemães denominam, juntando três palavras, Schmerzensgeldanspruch). Como fixar na decisão o valor da indenização - baseado apenas no prudente critério do juiz - se, às vezes, o dano causado pelo ofensor se propaga no tempo e pode se manifestar mesmo após a prolação da sentença? Em casos excepcionais, como o exemplo dado por Daisson Flach (A nova execução, obra coletiva coord. de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira), no qual houve um acidente de automóvel envolvendo atleta profissional, que, por hipótese, ficou gravemente ferido e, por isso, submeteu-se a várias cirurgias reparadoras, e perdeu o patrocínio de empresas, a apuração dos danos para fins de indenização deve ser remetida para uma fase de liquidação de sentença. Aliás, o próprio formulador do exemplo acima informa que em situações semelhantes, o STJ tem entendido possível a utilização do procedimento ordinário ao invés do sumário, mesmo quando a rigor este seria o indicado. Mas são casos, a toda evidência, especiais, que escapam ao disposto no § 3º do art. 475-A.

Antes de marcar nossa posição sobre essa matéria, gostaríamos de falar sobre a sentença ilíquida. Como é óbvio, ela necessita de um processo de liquidação, que, agora, por força da Lei nº 11.232./05, foi suavizado, no que se refere à sua complexidade. Por exemplo, o pronunciamento que o encerra não é mais uma sentença, mas uma decisão interlocutória (art. 475-H). Mas, embora mitigado, ainda existe o processo, e a sentença ilíquida deve passar por ele. Portanto, o melhor mesmo é que não existam sentenças ilíquidas; que sejam elas banidas do nosso ordenamento jurídico.

Isso é o que pregavam, em outros tempos, dois grandes processualistas, Lopes da Costa e Luiz Machado Guimarães, certamente inspirados pelo direito alemão, onde não há a fase processual chamada liquidação de sentença. A sentença na Alemanha, independentemente de o pedido ser genérico, já nasce líquida. Um dos maiores processualistas do mundo e certamente o maior do Brasil, José Carlos Barbosa Moreira, dizia em palestra destinada a juízes proferida em 16 de março de 1992, no auditório da Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, o seguinte: "A sentença ilíquida é sempre, ou quase sempre, uma calamidade, porque torna necessária esta excrescência, que é o processo de liquidação (...) De modo que, de longe, o ideal seria que não houvesse sentença ilíquida, e todos devemos ter isso em mente. Sempre que possível, porque não fazer todas as investigações durante o processo condenatório? A não ser em casos de absoluta impossibilidade. Mas deixar para a liquidação alguma coisa deve ser uma atitude que o juiz só tomará em último caso, como último remédio, e contristado. Eu, como juiz, deveria chorar toda vez que me visse a fazer essa coisa altamente inconveniente, que é proferir uma sentença ilíquida" (Arquivos dos Tribunais de Alçada - ATA, vol. 15, p. 21).

Portanto, interpretemos a regra do § 3º do art. 475-A do Código de modo diverso do que está sendo feito pela maioria da doutrina; de um modo tal que se possa desvendar-lhe as virtudes que possui e, indo mais além, para que sirva de modelo para todas as causas em que se pretende indenização por dano moral em procedimento ordinário. Em suma, deve-se restringir o odioso (a sentença ilíquida) e ampliar o favorável (odiosa restringenda, favorabilia amplianda). E a interpretação nos moldes sugeridos contraria, como dissemos, a doutrina, por enquanto, majoritária. Veja-se, por exemplo, o que diz um autor que consultamos: "a regra insculpida no art. 475-A, § 3º é completamente desarrazoada. Basta pensar em duas hipóteses: a) o juiz fixa um valor que, afinal, se revela insuficiente para cobrir o prejuízo sofrido pelo autor; b) o juiz fixa um valor que se revela excessivo. No primeiro caso, não poderia a vítima do acidente postular o complemento da indenização, pois a tanto lhe vedaria a coisa julgada. No segundo, não poderia o ofensor pleitear a repetição do indébito, pelo mesmo motivo (...) O ideal seria que essa vedação desaparecesse" (Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, p. 83).

Como seria possível, pois, o juiz proferir sentença líquida quando o pedido de indenização por danos patrimoniais e/ou extrapatrimoniais fosse genérico? Façamos uma visita ao direito alemão, porque lá, sabidamente, por mais de um motivo, não existe sentença ilíquida. (A razão principal é que nas hipóteses de pedido genérico de indenização por dano, utiliza-se a chamada Stufenklage, prevista no § 254 da ZPO, que guarda alguma semelhança com as nossas ações de prestação de contas, cuja característica mais notável consiste em que o valor da condenação depende de uma fase anterior, em que se reconheça a obrigação de indenizar). Em primeiro lugar, é possível lá na Alemanha o pedido genérico? Em sendo positiva a resposta, como agem os juízes quando se defrontam com pedidos com essa característica, como seriam os de indenização por danos morais (Schmerzensgeld) e patrimoniais (Schadensersatz).

O pedido genérico, sim, é possível, por construção jurisprudencial. Os tribunais admitem o pedido genérico, e um dos autores consultados (Arens/Lüke, Zivilprocessrecht, p. 108) cita o § 847 do BGB, que trata do pedido de indenização por dano moral formulado por mulher vítima de assédio sexual, e pondera ser impossível fixar na petição inicial o quantum pretendido. Mas ressalva, também com base na jurisprudência, que deve haver uma ordem de grandeza do valor pretendido. Por outras palavras, deve a inicial fornecer elementos, e, com base neles, o autor indicar aproximadamente o quantum pretendido, até para que o réu e o próprio juiz possam conduzir-se no processo. O juiz alemão certamente não admite uma discrepância acentuada, como costuma acontecer aqui nestas paragens, entre o valor dado à causa e a indenização pretendida. O pedido pode e, em alguns casos será necessariamente genérico, mas não tão genérico assim que não possa ser fixado um valor, uma ordem de grandeza (Grössenordnung) do que pretende o autor. Do mesmo modo em Portugal, conforme o art. 315º, 1: "O valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à causa o valor que considere adequado".

Particularmente cremos nisto: se o pedido é genérico, não quer isso significar que à causa possa ser dado qualquer valor, sem a mínima vinculação com aquele elemento. Pelo contrário, pedido, valor da causa e sentença estão em íntima correlação, de modo que se houver na petição inicial elementos para se inferir o quantum ou, pelo menos, a ordem de grandeza do ressarcimento pretendido, não poderá o juiz, nem mesmo quando o réu se omita sobre o ponto, permitir o desenrolar de um processo nessas condições, em que salta aos olhos a desproporção entre o valor da causa e o benefício econômico nela ambicionado pelo autor. Pode-se contra-argumentar, é verdade, que ao juiz não é lícito corrigir ex officio o valor da causa em casos de fixação voluntária (como é o que estamos tratando), só o podendo fazer quando o réu ofereça o incidente do art. 261. Mas, em certas ocasiões, o baixo valor propositadamente dado à causa pode ser conveniente ao réu, principalmente quando antevê sua derrota no processo. Há, aí, uma espécie de conluio tácito entre as partes com o objetivo de fraudar a lei, em detrimento de terceiros favorecidos com o recolhimento de custas e taxas devidas. Certamente, o legislador não quis deixar o juiz desarmado para coibir tal prática, podendo ele se valer do art. 129 do CPC, desde que se convença da prática do ato fraudulento e desde que o autor não queira corrigir o valor dado inicialmente à causa, quando então deverá proferir sentença extintiva do processo. Em suma, uma boa medida para evitar a emissão de uma sentença ilíquida já começa a tomar o juiz no momento em que tem de apreciar, na petição inicial, o valor da causa. Não deve permitir que tal valor discrepe de modo muito acentuado do pretendido pelo autor, podendo, para tanto, até utilizar-se de prova pericial (art. 261), com o que, em certa medida, estará exercendo com grande proveito atividade para liquidar o próprio pedido genérico, com óbvia e vantajosa repercussão na sentença de mérito.

Respondendo, por fim, a pergunta de como agem os juízes da Alemanha quando se deparam com pedidos genéricos, sabendo-se que lá a sentença não pode ser ilíquida, respondo da seguinte maneira: ou fixam o valor da condenação conforme seu prudente critério, desde que nos autos existam elementos para tal, como a gravidade do ato, a maior ou menor culpa do agente causador do dano, a capacidade econômico-financeira deste, a posição social do ofendido etc.; ou determinam a produção de prova pericial, a ser realizada na fase apropriada para tal, quando, então, a apuração do quantum devido ficará ao encargo de um perito, sob supervisão do juiz. De qualquer modo, tudo se passa dentro do processo de conhecimento, não podendo o juiz adiar para depois da sentença a apuração do quantum devido, tal qual ocorrerá agora por força do § 3º do art. 475-A do nosso CPC.

Assim, reputamos esse dispositivo como um dos pontos mais altos da recente reforma, porque com ele pode-se antever a possibilidade de se terminar de uma vez para sempre com as sentenças ilíquidas.


Notas:

* Celso Anicet Lisboa, Advogado e Professor de Direito Processual Civil. [ Voltar ]

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