A obediência a uma lei injusta e a desobediência civil na Teoria da Justiça de Rawls

Marcos Rohling. Graduado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - e graduando em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. E-mail: marcos_roh@yahoo.com.br.

Fonte: Marcos Rohling

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Marcos Rohling ( * )

THE OBEDIENCE TO AN UNJUST LAW AND THE DESOBEDIENCE CIVIL IN JOHN RAWLS'S THEORY OF JUSTICE

RESUMO: O presente artigo versa sobre a idéia de lei legítima na teoria da justiça de Rawls, filósofo contemporâneo, a partir de uma democracia constitucional. O texto é articulado em quatro momentos: consideração lacônica da injustiça de uma lei; definição da desobediência civil; justificação e papel desta dentro da sociedade democrática.

PALAVRAS-CHAVES: lei, injustiça legal, desobediência civil, Rawls.

ABSTRACT: The present article turns on the idea of legitimate law in the theory of justice as equity of Rawls, philosopher contemporary, from a constitutional democracy. The text is articulated at four moments: short consideration of the injustice of a law; definition of the civil disobedience; justification and paper of this inside of the democratic society.

Keywords: law, legal injustice, disobedience civil, Rawls.

O presente texto versa sobre a obediência à lei injusta e a desobediência civil, no contexto da obra de John Rawls, filósofo contemporâneo, a partir de uma democracia constitucional. Rawls nasceu em 1921, em Baltimore, nos Estados Unidos e era proveniente de uma tradicional e abastada família. Com a publicação da obra Uma Teoria da Justiça(1), em 1971, alcançou notável reconhecimento no âmbito acadêmico. Faleceu em novembro de 2002, em razão de insuficiência cardíaca. O texto é articulado em quatro momentos: consideração lacônica da injustiça de uma lei; definição da desobediência civil; justificação e função desta dentro da sociedade democrática.

Na teoria rawlsiana, uma lei injusta é aquela que não está de acordo com as enunciações e implicações provenientes dos princípios da justiça, os quais estão na base do estabelecimento de todos os deveres e obrigações. Para o filósofo, contudo, o fato de uma lei ser injusta não é motivo e razão suficiente para deixar de obedecê-la em virtude de que as leis são vistas como obrigatórias, não excedendo certos limites de injustiça, quando a estrutura básica de uma sociedade é razoavelmente justa - quase justa. Uma lei injusta, em linhas gerais, em determinadas ocasiões, deve ser obedecida tendo-se em vista o objetivo de se obter as vantagens de um procedimento legislativo eficaz e de não incorrer em prejuízos à estrutura básica de uma sociedade, quando esta é razoavelmente justa(2).

I. A Injustiça de uma Lei

A discussão sobre a obediência, ou não, a uma lei injusta, na teoria rawlsiana, é situada, principalmente, no § 53, da obra, Uma Teoria da Justiça. Nesta passagem, Rawls afirma que a questão relevante consiste em saber em quais circunstâncias e em que medida somos obrigados a obedecer ordenações injustas. A elaboração teórica de tal indagação parte da pressuposição de que é claro que o nosso dever e obrigação de aceitar ordenações concretas pode ser sobrepujado, em certas ocasiões, por exigências que dependem do conceito de justo e que, consideradas todas as circunstâncias, podem justificar a não obediência, em certos momentos, a uma lei injusta.

A injustiça de uma lei e, igualmente, de uma política, para Rawls, pode surgir de dois modos: num, as leis, em grau diverso, podem afastar-se dos padrões de justiça publicamente aceitos; noutro, essas leis podem conformar-se com a definição de justiça de uma sociedade ou de uma classe dominante, que pode não ser razoável em si mesma, em virtude de algumas concepções serem mais ou menos razoáveis que outras(3). Entretanto, para o filósofo, a construção dessa teoria funcional baseada nestes dois modos pelos quais uma lei torna-se injusta é complexa, no sentido de que, inicialmente, quando as leis afastam-se dos padrões publicamente reconhecidos é pensável que se recorra ao senso de justiça da sociedade - para o caso da desobediência - e, num outro caso, se deve discutir por que temos o dever de obedecer a leis injustas.

Para Rawls, o dever de justiça e o princípio da eqüidade pressupõem que as instituições sejam justas. Mas isso não é suficiente. É preciso, para a elaboração de uma teoria que se esclareça o porquê de se obedecer uma lei que seja injusta. Assim, Rawls postula que possa existir uma sociedade na qual o sistema social seja bem ordenado, sem apresentar uma ordenação perfeita, isto é, uma sociedade quase justa na qual exista um regime constitucional viável que satisfaça o princípio da justiça.

Rawls entende, também, que a constituição é vista como um procedimento justo, porém imperfeito visto que não há como garantir, mediante procedimentos políticos factíveis, que as leis hão de ser justas. Nas atividades políticas, prossegue o filósofo, é impossível atingir uma justiça procedimental perfeita. No pensamento de Rawls, numa sociedade cujo regime político interno seja de quase justiça, os cidadãos têm o dever de acatar ordenações e políticas injustas em virtude do dever natural de apoiar instituições justas.

Além disso, há o problema da instabilidade, latente nesta discussão levada a efeito por Rawls em torno do dever de obediência, tendo em vista que o dever natural mais elementar e fundamental, a partir da teoria da justiça, é o de apoiar e promover as instituições justas. Isto é, há o risco, no caso da não obediência a certas ordenações injustas, de se incorrer na geração da instabilidade das instituições. Para promover a estabilidade das instituições, é preciso, em certos casos, obedecer certas ordenações injustas. A estabilidade das instituições justas, no contexto de, Uma Teoria da Justiça, é simplesmente fruto do estímulo da aceitação da exigência de apoio e acatamento destas instituições. Tal estabilidade é ameaçada, fundamentalmente, por duas posturas, quais sejam: a postura egoísta, e a desconfiança da lealdade alheia.

Deste modo, tendo em vista que o objetivo dos cidadãos é barganhar benefícios para si - isto é, cada cidadão vivendo em sociedade, compreendendo-a como um sistema de cooperação social, procura por meio desta, através da cooperação social entre pessoas livres e iguais haurir benefícios para si - cada cidadão tem o dever de acatar e obedecer instituições, políticas e leis injustas em vista da manutenção desta sociedade.

II. Definição da Desobediência Civil

Rawls alerta que uma teoria acerca da desobediência civil(4) deve, antes de tudo, definir o âmbito dentro do qual situa-se e que identificar, igualmente, as considerações que são, de fato, pertinentes.

Para o filósofo, a desobediência é iniciada com um público cujos constitutivos principais são a não-violência e a consciência no sentido de que propõe uma mudança na lei. O ato de protesto configurante da desobediência civil não viola necessariamente a mesma lei contra a qual se protesta. Há, para Rawls, uma distinção entre a desobediência civil direta e indireta. Além disso, Rawls entende literalmente que a desobediência civil é um ato contrário à lei, e que os envolvidos, mesmo considerando que uma lei protestada seja mantida, estão preparados para opor-se a ela.(5)

A desobediência civil, observa Rawls, é um ato político(6). Assim o é porque orienta-se e justifica-se por princípios embasadamente políticos, isto é, aqueles princípios reguladores da constituição e das instituições sociais. Nota-se que o autor compreende, no Uma Teoria da Justiça, que a concepção de justiça, comumente partilhada, subjaz à ordem política. Há presunção, por parte do autor, de que haja uma concepção pública de justiça. Ora, é a partir desta concepção que, numa sociedade razoavelmente democrática, os indivíduos regulam suas atividades políticas e interpretam sua constituição, de modo que a violação contínua e deliberada dos princípios básicos dessa concepção por um longo tempo incita, ou à submissão, ou à resistência.

A desobediência civil é um ato público(7), no sentido estrito do termo, ou seja, ela é feita em público, sendo comparada, pelo filósofo, ao ato de falar em público. Por conta disso, é caracterizada como uma ação que não violenta, sendo esta incompatível com a noção de apelo público latente em si. Há, para Rawls, outra razão pela qual a desobediência civil é considerada uma ação não violenta(8): ela expressa uma desobediência à lei dentro dos limites da fidelidade à lei (essa fidelidade é expressa pela natureza pública e não violenta do ato), embora seja situada na margem externa da legalidade. Ou seja, é a fidelidade à lei que move a desobediência.

Portanto, resulta que a desobediência civil, numa sociedade bem-ordenada, é definida por Rawls como uma forma de protesto nos limites da fidelidade à lei, sendo, nesta perspectiva, distinta, por um lado, da objeção de consciência, e por outro, da própria ação armada.

III. Justificação da Desobediência Civil

Em sua argumentação acerca da justificação da desobediência civil, na qual Rawls não menciona o princípio da eqüidade, mas somente o dever natural de justiça, base primeira dos vínculos políticos com um regime constitucional, Rawls esclarece que esta reserva-se aos limites internos de um estado democrático, isto é, é restrita às injustiças internas - entendendo aqui que estas são promovidas por suas instituições -, de uma sociedade bem-ordenada.

Para o autor, há três pressupostos, que são condições a partir das quais elabora-se uma justificação da desobediência civil. A primeira condição pressuposta concerne à injustiça, a qual constitui o objeto da desobediência civil. Rawls considera, como acima apontado, que a desobediência civil é um ato político, dirigido ao senso de justiça razoável da comunidade. Ela deve ser restringida a casos de injustiça evidente, sobretudo, à violação do princípio da liberdade igual, uma vez que este define o status comum da cidadania igual dentro de um regime constitucional. Dessa maneira, Rawls exclui da desobediência civil as violações ao princípio da diferença, posto que suas infrações são mais difíceis de serem verificadas em razão de o princípio ser aplicado a práticas e instituições sociais e econômicas. A despeito disso, argumenta o filósofo, é melhor deixar a resolução dessas questões ao processo político - desde que as liberdades iguais necessárias estejam preservadas.

A segunda condição imposta por Rawls diz respeito à suposição de que os apelos normais dirigidos à maioria política já foram feitos de boa-fé e não obtiveram êxito, mostrando-se os meios legais evidentemente inúteis. Nos casos em que a desobediência civil é o último recurso, pondera Rawls, deve-se ter certeza de que ela é factualmente necessária. De fato, na perspectiva rawlsiana, só se encontra a segunda condição se houver comprovadamente necessidade da desobediência civil. Caso não haja, não se a tem.

A última condição se configura, para Rawls, no sentido de que em certas ocasiões o dever natural de justiça(9) pode exigir uma determinada restrição, qual seja, o problema das minorias. Entende o filósofo que tal problema se coloca quando minorias, durante certo tempo, sofrem graus de injustiça e, por esta razão, alicerçadas nas condições referidas anteriormente, têm razão para a prática da desobediência civil. Rawls reconhece que pode haver uma situação na qual diversas minorias tenham, comprovada e evidentemente, razão para a prática da desobediência civil. Isso pode gerar, no seio desta sociedade quase justa, uma grave desordem, e esta poderia minar a eficácia da constituição justa. Assim, a solução ideal, no entender de Rawls é um acordo de cooperação política entre as minorias, o qual objetiva regular o nível total, nesta sociedade, de desarmonia, sob pena de, se assim não for feito, gerar-se um dano permanente na constituição conforme à qual tais cidadãos têm um dever natural de justiça.

O autor considera ainda, à luz dessas três condições, se é sensato e prudente exercer o direito à desobediência civil tendo em vista que, num estado de quase justiça, é improvável que se reprima a dissensão legítima de modo vindicativo, mas é importante que a ação seja concebida de forma adequada para exercer um apelo efetivo sobre a comunidade mais ampla.

IV. Papel da Desobediência Civil

Por fim, Rawls esclarece o papel da desobediência civil no âmbito de um sistema constitucional e mostra sua ligação com o governo democrático, supondo que a sociedade em questão é, como vinha fazendo, quase justa e que os princípios da justiça são, em sua maior parte, reconhecidos como termos básicos da cooperação voluntária entre pessoas livres e iguais.

O que Rawls pretende é deixar claro que, pela prática da desobediência civil, um cidadão apela ao senso de justiça da maioria com o intuito de tornar público, no tocante à pessoa, que as condições de cooperação livre estão sendo violadas. Disso, tem-se que, numa sociedade bem-ordenada, na qual as instituições são injustas, apesar de imperfeitas, os cidadãos quando são lesados comprovadamente, a partir das condições anteriormente especificadas, não precisam obedecer às leis que lhes ferem porque, segundo Rawls, a desobediência civil é um recurso estabilizador de um sistema constitucional, embora, como afirma o próprio Rawls, seja por definição ilegal. A desobediência civil, com a devida moderação e o critério justo, auxilia a manter e a reforçar as instituições justas visto que, restituindo à injustiça dentro dos limites da fidelidade à lei, ela serve para prevenir desvios da rota da justiça e para corrigi-los quando acontecem.

Rawls alerta que o recurso à desobediência civil, mesmo repousando unicamente sobre uma concepção de justiça que caracteriza a sociedade democrática, sendo, assim, parte da teoria do governo livre, acarreta riscos evidentes. Assim, argumenta Rawls, uma das razões de ser das formas constitucionais e de suas interpretações judiciais é a de estabelecer uma interpretação pública da concepção política da justiça e uma explicação da aplicação de seus princípios para as questões sociais.

O filósofo é convicto de que, tendo em mente os possíveis desvios que uma lei possa ter da concepção pública do justo compartilhada pelos cidadãos numa sociedade bem-ordenada, é mais relevante que a lei e suas interpretações sejam estabelecidas do que o fato de serem estabelecidas corretamente. Cada cidadão, a partir da perspectiva rawlsiana, é considerado autônomo e responsável por aquilo que faz, isto é, numa sociedade democrática se sabe reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Entretanto, tal fato não significa que a decisão da prática da desobediência civil seja como lhe aprouver. O filósofo entende que, para agir de modo autônomo e responsável, o cidadão deve observar os princípios que embasam e orientam a interpretação da constituição, vendo como esses princípios deveriam ser aplicados concretamente. Caso comprove a necessidade e a justificação da desobediência civil, isto é, quando as circunstâncias assim colocarem-se, sua prática será consciente e, portanto, de acordo com a teoria da desobediência civil.

V. Considerações Finais

À guisa de conclusão, entende-se que a lei deve ser, para o indivíduo, na teoria de rawlsiana, em última análise, expressão institucional da justiça para o benefício do sistema de cooperação social no qual está inserido, isto é, uma sociedade bem-ordenada. Caso não corresponda com essa finalidade, prejudicando deliberadamente membros ou grupos desta sociedade, Rawls, legalmente, isto é, dentro dos limites da lei, admite a desobediência civil como forma de protesto em benefício da sociedade e como forma de promover a justiça mediante a correção desta norma. Cabe enfatizar que a desobediência civil, como fora apontado já, é um recurso de protesto público dentro dos limites da lei em vista de reformulação ou abandono total desta norma jurídica em razão de sua injustiça.

VI. Referências Bibliográficas

RAWLS, John Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.



Notas:

* Marcos Rohling. Graduado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - e graduando em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. E-mail: marcos_roh@yahoo.com.br. [ Voltar ]

1 - Doravante utilizar-se-á a abreviatura UTJ para referir-se à Uma Teoria da Justiça, obra de Rawls, traduzida por Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves, pela editora Martins Fontes, 2002. Voltar

2 - Cf. Ibid., 388-94. Voltar

3 - Segundo Rawls, como regra geral, uma concepção de justiça é razoável na proporção da força dos argumentos que se podem apresentar a favor de sua adoção na posição original Cf. Rawls, UTJ, 390-1. Voltar

4 - A desobediência civil rawlsiana, segundo sua própria descrição, é concebida inexoravelmente para o caso particular de uma sociedade bem-ordenada, isto é, uma sociedade democrática, quase justa, na qual acontecem, porém, violações sérias da justiça. Neste sentido, aduz o autor, a desobediência civil apresenta-se no interior de uma sociedade democrática mais ou menos justa e configura-se como um problema de deveres conflitantes. A teoria da desobediência civil rawlsiana tem três partes, a saber: a definição, a justificação e o papel que ela desempenha na sociedade. Cf. Rawls, UTJ, 402-3. Voltar

5 - Cf. Rawls, UTJ, 404. Voltar

6 - Cf. Ibid., 405. Voltar

7 - Cf. Ibid., 405. Voltar

8 - Cf. Ibid., 406. Voltar

9 - O dever natural de justiça, também considerado o mais relevante, para Rawls, é aquele de apoiar e promover as instituições justas. Tem dois aspectos: 1) obedecer às instituições justas que nos dizem respeito; 2) cooperar à criação de instituições justas quando elas não existem. Cf. UTJ 369-71. Voltar

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