A Lei 11.923/09 e o famigerado "Sequestro - Relâmpago": Afinal, que "raio" de crime é esse?
Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-graduação da Unisal.
Eduardo Luiz Santos Cabette ( * )
1 - INTRODUÇÃOHá muito tempo que a subtração ou obtenção, mediante violência e/ou grave ameaça de bens das pessoas tem eventualmente ocorrido com o adicional do cerceamento da liberdade da vítima pelo infrator, seja como meio usado para a realização do crime patrimonial, seja como conduta posterior, motivada pelas mais variadas razões.
Ocorre que o advento da tecnologia, especificamente aquela aplicada aos serviços bancários, acabou por intensificar tal procedimento criminoso. Com o surgimento e a disseminação dos caixas eletrônicos de autoatendimento (caixas 24 horas), elevou-se bastante a estatística dessa espécie de ocorrência. As "vantagens" assim apresentadas pelo sistema bancário aos seus clientes, acabam sendo muito mais interessantes para os próprios bancos do que efetivamente para o público. É claro que isso não é nenhuma surpresa ou exceção à regra, mas parece que muito poucas pessoas se dão conta da lesão que sofrem, travestida em supostos benefícios.
A lesão ao público inicia-se por uma forma sutil de prestação de serviços a terceiros sem contraprestação, numa discreta proximidade com uma situação de "trabalho escravo" descontínuo ou pontual e sem necessidade de uso de coação física ou moral. As pessoas são convertidas em assemelhados a "escravos" pelos bancos, através do recurso não violento do engodo, que as transforma em algo pior do que simples "escravos"; as converte em "escravos satisfeitos". Afinal, quando um cliente vai a um banco fazer um saque, um depósito, pagar uma conta etc., deveria receber o atendimento de um funcionário. No autoatendimento o cliente presta esse serviço ao banco e nada recebe em troca. Aliás, embora a proximidade com o "trabalho escravo" seja abrandada pela ausência de coação, cerceamento da liberdade etc., em certos pontos é pior. Isso porque, ao que se saiba, os antigos escravos não costumavam, além de nada receberem por seu trabalho, ainda pagarem para trabalhar. E é isso que hoje, "alegremente", todos fazem para os bancos quando utilizam o "vantajoso" autoatendimento.(1) Note-se também que a lesão à sociedade é ainda maior se for levada em consideração a eliminação dos inúmeros postos de emprego que seriam ocupados por bancários que deveriam atender aos clientes.
Mas, não é somente sob o aspecto da exploração descarada, ocultada pelo engodo do discurso da modernidade ágil, autônoma e eficiente, que o sistema de autoatendimento tem causado prejuízos às pessoas e vantagens muito maiores aos bancos. Como já mencionado, acresce-se o problema da segurança. O acesso do cliente aos terminais em locais e horários nos quais não se disponibiliza um sistema adequado de segurança, certamente é um dos motivos do assustador incremento das condutas criminosas objeto desse estudo. Ora, se os bancos pretendem ofertar serviços e facilidades a seus clientes, tendo como um dos motivos a enorme ampliação do número de usuários das agências, deveria efetuar o devido investimento, inclusive prestando sua cota de contribuição à sociedade com a respectiva criação de empregos para bancários e agentes de segurança necessários para um verdadeiro atendimento 24 horas.
Inobstante a clareza do absurdo da situação exposta, com seus consequentes prejuízos sociais em prol dos interesses de um segmento privilegiado e restrito, a verdade é que muito poucos ou quase ninguém se dá conta da realidade em geral e especificamente de seu matiz criminógeno.
O enfrentamento da questão acaba, como usualmente acontece, se reduzindo obtusamente a aparentes e meramente simbólicas reações repressivo - punitivas de cariz jurídico - penal.
O Direito Penal aparece como a "solução" mais fácil ao alcance do legislador e de maior apelo popularesco e demagógico. Para cada problema uma nova lei penal é editada como suposta solução, acalmando a mídia e a população. E ainda que o mesmo problema retorne à pauta, sempre haverá uma nova lei penal a ser elaborada, aprovada e apresentada como solução. Essas soluções aparentes vão se sucedendo, enquanto os problemas se agigantam e, quando se resolvem ou ao menos se abrandam, isso ocorre por naturais ajustes sociais que nada têm a ver com as leis penais ou qualquer medida legislativa ou governamental.
Vale sempre lembrar a lição de Alberto Silva Franco quanto à inconveniência do chamado "pampenalismo" ou uso do Direito Penal "como uma espécie de 'panaceia' para todos os males". Isso não só é ilusório como solução para os problemas sociais, como produz uma verdadeira "bastardização desse instrumento de controle social", podendo conduzir à sua absoluta "desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia".(2)
O mal do "Direito Penal Simbólico" tem se alastrado com terríveis consequências, pois não somente oferta soluções ilusórias, como afasta e retira o estímulo da busca de caminhos reais. Nas palavras de Zaffaroni e Batista:
"Se em lugar de procurar soluções apela-se para a reiteração de um discurso que só traz tranquilidade através de uma solução ilusória (porque se baseia em uma falsa causação social), não só não se solucionará o problema, como também acontecerá algo pior: a procura de soluções reais será desestimulada, porque o ilusório ocultará o urgente".(3)
O que torna toda essa situação ainda mais grave é a presença constante de uma espécie de cegueira por parte de toda a sociedade e até mesmo dos juristas especializados, levando-os a frequentemente não se darem conta do ridículo do discurso penal onipotente que adorna as medidas criminais simbólicas.
Percebe-se claramente que "o direito penal não incorporou a seu horizonte os limites factuais e sociais do poder punitivo"(4), de modo que reiteradamente, inclusive por obra de seus cultores e estudiosos, se autoatribui qualidades e capacidades que não tem, naquilo que Salo de Carvalho com propriedade denominou de "Narcisismo Penal". Desprovida da importante virtude de reconhecer seus limites, a ciência penal erige um ideal de crença na "eficiência do controle punitivo do delito e do desvio", que passa muito longe da realidade.(5)
Na realidade esse narcisismo que domina o Direito Penal não constitui apanágio exclusivo das ciências criminais. As ciências em geral e os avanços tecnológicos têm sido constantemente apresentados como caminho seguro para a construção de um mundo melhor. Existe um verdadeiro culto, uma inabalável fé numa certa "filosofia do progresso", a que alguns chegam a denominar de "teologia do progresso".(6) Essa crença desmedida no progresso científico em geral como praticamente ilimitado produtor do "bem" e desprovido de "mal" não é produto exclusivo de um positivismo cientificista ao estilo e da época de Auguste Comte ou Herbert Spencer. As raízes dessa fé no saber, desprezando seus limites, de forma a praticamente identifica-lo ao poder, inclusive atribuindo aos sábios a exclusiva legitimidade do exercício do poder político, remonta a Sócrates e Platão, desembocando num discurso científico que quase invariavelmente "encobre uma autêntica vontade de capacidade e de poder".(7) O narcisismo, a incapacidade de reconhecer os próprios limites, pode corroer as ciências em geral, levando a terríveis equívocos, distorções e dilemas éticos. Como bem destaca Carvalho:
"O encantamento do homem teórico com sua racionalidade, manifestação exemplar do narcisismo dos cientistas da modernidade - e dentre eles os teóricos das ciências criminais -, impediu perceber as limitações e os riscos da técnica. Ao pensar estarem domando a natureza (crime, violência) através dos instrumentos criados pela razão (direito penal, processo penal, criminologia e política criminal), foram, lentamente, dominados pelo ideal científico, o qual impediu notar que 'dominar a ciência é determinar seu valor no sentido de controlar a exorbitância de suas pretensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver. É formular a questão dos limites".(8)
Esse narcisismo surge de forma mais pujante nas ciências criminais e, especialmente, no Direito Penal, por tratar-se de uma "ciência normativa", a qual produz e pode alterar seu próprio objeto de trabalho. As normas penais são criadas, alteradas, estudadas e aplicadas pelo próprio Direito, diferentemente das outras ciências que encontram um limite externo e indelével no fato da ausência de identidade com seu próprio objeto de pesquisa e trabalho. Por mais que um biólogo creia em sua capacidade de criar um ser humano num laboratório por reprodução assexuada, dotado de asas e capaz de voar, não o poderá fazer no presente. Mas, um legislador pode à vontade criar leis penais na crença de combater males sociais os mais variados, por mais absurdas que sejam suas pretensões.
Portanto, como bem aponta Hans Jonas, a "humildade" exsurge como uma virtude necessária enquanto "antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica"(9), a qual em nosso caso se converte na incontinência da produção legislativa criminal com sua ilusória onipotência solucionadora.
O fenômeno dos apelidados "seqüestros - relâmpago" foi mais um que gerou a reação do legislador mediante o manejo irresponsável e irrefletido (?) de um "Direito Penal Simbólico".
No decorrer deste trabalho proceder-se-á a uma apresentação do tratamento do tema em relação às normas penais, enfocando duas alterações legislativas que pretenderam (?) tratar da matéria a contento. A primeira pela Lei 9426, de 24 de dezembro de 1996, que acrescentou o inciso V, no § 2º., do artigo 157, CP, fazendo nascer uma nova causa de aumento de pena no crime de roubo "se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade". A segunda, mais recente, pela Lei 11.923, de 17 de abril de 2009, que acrescenta um § 3º., no artigo 158, CP, passando a prever modalidades de extorsão qualificada, com penal de "reclusão, de 6 a 12 anos e multa", "se o crime é cometido mediante restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica". E com as penas do "artigo 159, §§ 2º. e 3º., respectivamente", caso resulte "lesão corporal grave ou morte".
Afora as críticas já expostas quanto ao caráter eminentemente simbólico dessas alterações legislativas, pretende-se demonstrar o emaranhado legal produzido, ocasionando dificuldades interpretativas e aplicativas dos dispositivos legais, o que não contribui para a segurança jurídica e muito menos para a redução dos índices de violência e criminalidade.
Ao final serão retomadas as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto, apresentando as respectivas conclusões.
2 - O FAMIGERADO "SEQUESTRO - RELÂMPAGO" E A LEI
2.1 - DISTINÇÃO ENTRE ROUBO E EXTORSÃO
É inegável que quando se trata das condutas apelidadas midiaticamente de "seqüestros - relâmpago", versa-se sobre crime de natureza patrimonial e mais especificamente gravita-se entre os delitos de roubo e extorsão, quando não de extorsão mediante seqüestro.
Seria, portanto, impossível deslindar os questionamentos objeto deste trabalho sem incursionar pela tormentosa distinção levada a efeito entre trancos e barrancos na doutrina e na jurisprudência entre os crimes de roubo e de extorsão.
A extremada semelhança existente entre o roubo e a extorsão leva a literatura jurídica e a jurisprudência a divergir bastante quanto aos critérios que permitem apartar uma infração penal da outra.
Podem-se apontar, resumidamente, as seguintes orientações:(10)
a) Um primeiro critério se baseia na conclusão de que a diferença estaria "entre a 'concretatio' e a 'traditio', ou seja, se o autor subtrai há roubo; se ele faz com que a própria vítima entregue o bem há extorsão.
b) Também se aduz que "no roubo o mal é iminente e o proveito contemporâneo; enquanto na extorsão, o mal prometido é futuro e futura a vantagem a que visa".
c) Há ainda o critério preconizado por Luigi Conti e repetido por diversos autores nacionais, segundo o qual o que importa é a prescindibilidade ou imprescindibilidade do comportamento da vítima. Dessa forma, se a vantagem puder ser obtida sem o concurso da vítima haverá roubo; se não puder ser obtida sem a atuação da vítima, haverá extorsão. Dentro desse critério não será tão relevante se houve "concretatio" (subtração pelo agente) do bem ou "traditio" (entrega pela própria vítima). O que realmente assume relevo é o fato de que a obtenção do bem poderia (roubo) ou não (extorsão) dar-se sem a colaboração da própria vítima.
Frente a essa prodigalidade de critérios a jurisprudência e o entendimento dos estudiosos são vacilantes. Em sua obra, Mirabete e Fabbrini apresentam duas decisões jurisprudenciais sobre o tema: uma adotando o critério diferenciador simplista da análise reduzida à subtração ou tradição. Se o bem é subtraído há roubo; se a vítima entrega o bem constrangida pelo agente há extorsão. Outra que ultrapassa a análise reduzida à tradição ou subtração, para exigir que em caso de tradição a vítima não esteja totalmente submetida ao agente, caso em que, independentemente da entrega, haveria roubo.(11)
Por seu turno Nucci(12) e Capez(13) deixam claros seus entendimentos quanto a configurar-se extorsão sempre que o comportamento da vítima seja imprescindível. O critério adotado por tais autores é o de que, independentemente da tradição ou não, haverá extorsão sempre que a colaboração da vítima for "conditio sine qua non" para a obtenção da vantagem patrimonial no caso concreto.
Malgrado toda essa polêmica, tem predominado doutrinária e jurisprudencialmente uma interpretação que agrega um pouco de cada um dos critérios apontados, dando ênfase à subtração/tradição, mas também ao grau de liberdade da vítima quando da entrega do bem.
É possível delinear um breve roteiro para a distinção entre roubo e extorsão, considerando o pensamento predominante:
Em primeiro lugar o critério da subtração/tradição deixa claro que sempre que houver subtração por parte do agente trata-se de roubo. Nesses casos nada mais precisa ser perquirido, eis que o verbo do artigo 157, CP, já soluciona qualquer dúvida.
Na verdade o problema encontra-se nos casos em que há tradição do bem pela vítima. Para alguns, como já visto, seria diretamente o caso de extorsão. No entanto, esse não tem sido o entendimento prevalente. Tem sido majoritariamente defendida a tese de que quando houver a entrega do bem pela vítima, haverá apenas um indício (a ser confirmado) da presença da extorsão e não do roubo. A confirmação quanto à ocorrência de extorsão ou roubo nesses casos dar-se-á por meio da avaliação do grau de liberdade decisória da vítima no momento da entrega. Se a vítima é absolutamente constrangida pelo criminoso, entregando-lhe os bens, como um instrumento seu, como uma verdadeira "longa manus" do infrator, inobstante a presença da tradição, o crime é de roubo. Se, por outro lado, a vítima, ao entregar o bem tem certo grau de deliberação, certa autonomia de decisão, realmente haveria um crime de extorsão. Para esse pensamento nem mesmo a imprescindibilidade da colaboração da vítima no caso concreto seria decisiva e sim a sua possibilidade de tomar decisões. Mesmo que sua colaboração seja imprescindível, se o ofendido não tiver espaço para deliberar o crime será de roubo, pois que é instrumentalizado pelo agente, equiparando-se tal situação àquela da subtração. Isso porque a conduta praticada de fato pela vítima sob coação absoluta não contém valor jurídico, devido à ausência de qualquer voluntariedade.
Neste sentido a lição de Rogério Greco, alicerçada no escólio de Weber Martins Batista:
"Entendemos que o melhor critério para a distinção entre o roubo e a extorsão reside no fato de que, na extorsão, há necessidade de colaboração da vítima, conjugada com um espaço de tempo, mesmo que não muito longo para que esta anua ao constrangimento e entregue a vantagem indevida ao agente. No roubo, como dizia Carrara, o mal é imediato. Aqui, mesmo que sem colaboração da vítima o agente não pudesse obter a vantagem indevida (compreendido, aqui, o patrimônio alheio), o fato de não ter um tempo para refletir sobre a exigência que lhe é feita mediante violência ou grave ameaça faz com que o crime seja de roubo".(14)
Em posição similar encontra-se Bitencourt, afirmando:
"No roubo, o agente toma a coisa, ou obriga a vítima (sem opção) a entrega-la; na extorsão, a vítima pode, em princípio, optar entre acatar a ordem e oferecer resistência".(15)
Pode-se sumariar esse entendimento predominante que congrega os critérios da subtração/tradição, do tempo, da imprescindibilidade/prescindibilidade da colaboração da vítima e acrescenta a análise de seu grau de liberdade deliberativa, de acordo com o seguinte quadro:
CRIMES |
SUBTRAÇÃO |
ENTREGA |
DECISÃO
DA VÍTIMA |
ROUBO |
OK |
POSSÍVEL |
NULA |
EXTORSÃO |
N/C |
NECESSÁRIA |
OK |