Trajetória discursiva até a liberdade
A Lei Áurea foi resultante da trama de três fatores, a saber: a mobilização dos escravos, organizando fugas e refugiando-se em quilombos, a mobilização de abolicionistas que apoiavam os escravos fugitivos e, a mobilização política que culminou com a aprovação da lei. É interesse observar todo o trajeto discursivo da liberdade, seja no léxico nacional ou mesmo no texto constitucional brasileiro vigente. O declínio da demanda de escravos no século XIX, explica-se pelas antecipações pessimistas inspiradas pela pressão abolicionista sobre o futuro da escravidão. Mas, uma conclusão é inescapável que a rentabilidade do trabalho escravo teria permitido prolongar o sistema escravagista quasse até o final do século XIX. O Brasil foi o último país da América a abolir o trabalho escravo.
A questão a respeito da língua
representa a realidade ou se a realidade é mais uma criação discursiva,
trata-se de questão complexa e muito debatida. Há vários alinhamentos teóricos
mas a tese construtivista supera a da descrição de uma realidade objetiva,
principalmente quando tema é a escravidão.
Aprendemos na escola que os
escravos brasileiros foram libertados pela Lei Áurea, assinada pela Princesa
Isabel, na ausência do Imperador e seu pai Dom Pedro II. A formulação de cunho
simples não é ingênua, pois ao comunicar o fim formal e legal da escravidão no
país, creditou à uma figura feminina, na ausência do Imperador, e destacou a
passividade de seus beneficiários, doravante ex-escravos, ou simplesmente,
libertos.
A voz passiva entoada pela
decisão feminina em típico espaço masculino e na ausência da autoridade maior,
articula muitas figuras culturais que também participaram da construção e, deu
uma versão final da escravidão na qual os negros submissos aceitaram de boa-fé de
corajosa alma, a libertação.
A seu turno, Dom Pedro II,
como fiel governante e honrado, acatou e respeitou integralmente a decisão da
Regente. O cenário ratificou o papel da elite branca no término da escravatura
brasileira. E, essa liberdade doada correspondente a uma dívida de gratidão,
deu-se na hierarquia simbólica na qual os negros deixaram de ser escravos e,
passaram ao status de devedores morais.
Deve-se sublinhar que a
conquista da liberdade exigiu esforços anteriores à assinatura da Lei Áurea[1], especialmente, pelo
movimento abolicionista, que se configurou como sendo uma das manifestações
sociais de luta e resistência, dirigido para concretização de nova sociedade,
livre de opressão e das desigualdades sociais.
Esmaecer o significado da
abolição a um gesto de boa vontade ou de doação empreendido pela
Princesa-regente representa o ocultamento da relevância histórica que fora
construída por homens e mulheres, fossem negros ou brancos, integrantes dos
mais variados arranjos sociais e que tanto se emprenharam de diversas formas
pelo fim de sistema escravagista e estruturado para manter parcela
significativa da sociedade.
A liberdade simbólica
patenteada pela assinatura da Lei Áurea[2], sem prévio projeto
político vocacionado para mudança efetiva das relações e estruturas sociais,
foi acontecimento que teve pouca ou quase nenhuma relevância para os negros
que, viviam, até então, como escravizados. E, muitos, apesar da Lei,
continuaram sendo explorados.
Enquanto outros que resistiam,
isolavam-se da sociedade, criando as comunidades alternativas, tais como os
quilombos. A liberdade legal devia seguir a liberdade pragmática, para qual a
libertação simbólica foi condição.
Os percursos discursivos dessa
conquista da liberdade trouxe o uso de vocábulos como liberdade, livre, escravo
e escravizado, em português, e, free, freedom, liberty, slave, enslave
em inglês.
Para o Dicionário Houaiss da
língua portuguesa, liberdade aparece com as seguintes denominações: [...] grau de independência legítimo que um
cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal [...]; poder
que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a
lei;
[...] condição daquele que não
é cativo ou que não é propriedade de outrem;
[...] capacidade individual de optar com total
autonomia, mas dentro dos condicionamentos naturais, por meio da qual o ser humano
realiza sua plena autodeterminação, organizando o mundo que o cerca e satisfazendo
suas necessidades materiais [...] (p. 1175).
A concepção de liberdade tida
como poder fazer de acordo com os limites legais vigentes no domínio do
espaço-tempo do sujeito, e eivada de essência eufórica, como o poder de
realizar segundo os seus próprios desígnios e, na medida em que uma das quatro
acepções a coloca condicionada à não catividade.
No direito brasileiro, o
diploma jurídico mais importante é a Constituição Federal. É ela que assegura a
liberdade de expressão como um direito fundamental. Exemplificando:
“Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(…)
II – Ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
IV – é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
IX – é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença.
XIV – é assegurado a todos o
acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao
exercício profissional;”
No mesmo sentido, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da
Assembleia-Geral das Nações Unidas de 1996 (e em vigor no Brasil em 1992),
através do Decreto n. 592, explicita que:
Art. 19 Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.” Não restam dúvidas de que o direito nos dá o respaldo inequívoco sobre nossa liberdade de expressão.
O artigo 5º da Constituição
Federal (CF) de 1988 conta com 78 incisos que determinam quais são nossos
direitos fundamentais, como a Igualdade de Gênero, a Liberdade de Manifestação
do Pensamento e a Liberdade de Locomoção, que têm como objetivo assegurar uma
vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos de nosso país.
Entre alguns dos direitos
fundamentais da Constituição Brasileira vigente está: à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança, à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho, ao lazer,
à assistência aos desamparados, ao transporte, ao voto, entre outras
A liberdade para o Grande Dicionário
etimológico-prosódico da língua portuguesa, aparece como o estado de quem é
livre, de quem não está sujeito a uma obrigação, dever, horário e, etc. A
liberdade é considerada como faculdade de fazer ou não fazer alguma coisa.
Para o Cambridge international
Dictionary of English, freedom é denominada como “the condition or right of
being able or allowed to do, say, think, etc. whatever you want to, without
being controlled or limited” […] “A freedom is a right to act in the way
you think you should […] Freedom is also the state of not being in prison […]”
(p. 562). E liberty, outro vocábulo em língua inglesa para liberdade, aparece
como “[…] the freedom to live as you wish or go where you want […]” (p. 816).
Para The Oxford English
dictionary, freedom aparece como “Exemption or release from slavery or
imprisonment; personal liberty”. […] “Exemption from arbitrary, despotic, or
autocratic control; independence; civil liberty”. […] “The state of being able
to act without hindrance or restraint, liberty of action” (p. 524).
Além disso, freedom aparece
como “The quality of being free from the control of fate or necessity; the
power of self-determination attributed to the will” (p. 525).
Em inglês, temos a
consideração de liberdade como uma condição ou estado no qual o sujeito tem o
poder de agir autonomamente e de acordo com suas vontades, marcadamente quando
livre de restrições.
Temos então, liberdade como um
estado pragmático e de alma do sujeito que, dentro dos limites de seu campo de
presença, dispõe de total controle sobre suas ações, se constituindo como um sujeito
livre, porém não no absoluto, como as entradas em português sugerem, mas diante
da eliminação ou superação de restrições.
A liberdade religiosa foi
expressamente assegurada pois que faz parte do rol dos direitos fundamentais,
sendo considerada por alguns juristas como uma liberdade primária.
Jorge Miranda também relaciona
a liberdade religiosa com a liberdade política. São suas palavras: "Sem
plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões — compatível, com
diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado —
não há plena liberdade política. Assim como, em contrapartida, aí, onde falta a
liberdade política, a normal expansão da liberdade religiosa fica comprometida
ou ameaçada.
A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.
Consoante o magistério de José
Afonso da Silva, entra na liberdade de crença "a liberdade de escolha da
religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o
direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir
a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu
e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o
livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença..."
A liberdade de culto consiste
na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações
exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições
para tanto.
A liberdade de organização
religiosa "diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização
de igrejas e suas relações com o Estado."
A liberdade de religião não
está restrita à proteção aos cultos e tradições e crenças das religiões
tradicionais (Católica, Judaica e Muçulmana), não havendo sequer diferença
ontológica (para efeitos constitucionais) entre religiões e seitas religiosas. O
critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos,
costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar
vinculado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos[3]. Se a organização tiver
por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em
prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do
Estado.
Em relação ao vocábulo livre,
o Dicionário Houaiss o denomina como o sujeito “que é senhor de si e de suas
ações [...] que não está sob o jugo, que não é escravo de outrem [...] que não
é prisioneiro; que goza de liberdade física” (p. 1189).
Já para o Dicionário
etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa livre é aquele “que pode dispor
de sua pessoa, que não está sujeito a algum senhor [...]” (p. 478).
Para o Cambridge
international Dictionary of English, free é o sujeito “not limited
or controlled […]; not a prisoner (any longer), or having unlimited movement”
(p. 560-561).
Para The Oxford English
Dictionary, free aparece com as seguintes denominações:
Not in bondage to another. […]
Not bound or subject as a slave is to his master;
enjoying personal rights and
liberty of action as a member of a society or state. […]
At liberty; allowed to go
where one wishes, not kept in confinement or custody. […]
Also, released from
confinement or imprisonment, liberated (p. 520). […] Acting without restriction
or limitation; allowing oneself ample measure in doing something (p. 521).
Novamente, em português apenas
“livre” surge como conjunção eufórica e também como disjunção de elemento
disfórico. Em inglês, predomina o efeito de sentido resultante de disjunção de
elemento disfórico, associando “ser livre” a “não ser algo disfórico”.
O Dicionário Houaiss da língua
portuguesa denomina escravo “que ou aquele que, privado da liberdade, está
submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade” (p. 803).
O Grande dicionário
etimológico-prosódico da língua portuguesa denomina escravo como “Quem perdeu a
liberdade, cativo” (p. 1205).
Já o Dicionário etimológico
Nova Fronteira da língua portuguesa denomina o vocábulo como “indivíduo que
vive em estado de absoluta servidão” (p. 317) e complementa dizendo que a
palavra vem do latim medieval, sclavus, tendo como
acepção primitiva ‘eslavo’.
Ainda segundo o dicionário “a translação de sentido decorre do fato de que, nos
sécs. VIII-IX, Carlos Magno e seus sucessores aprisionaram grande número de
eslavos, tornando-os cativos”. Além disso, o dicionário assinala que
[...] enquanto em francês,
italiano, inglês e alemão o voc. já aparece documentado desde os sécs.
XII-XIII, em português e em castelhano ele só ocorre a partir do século XV;
essa ocorrência tardia é devida, provavelmente, à concorrência de cativo, o
qual já se documenta nestes idiomas, com as mesmas acepções de escravo, em época
muito anterior [...] (p. 317).
Quanto as palavras inglesas como slave,
enslave que estão no Cambridge international Dictionary of English
denomina slave como “a person who is legally owned by someone else, who
works as a servant for that person, and who has no personal freedom […]” (p.
1350).
E para The Oxford English
Dictionary, slave é “One who is the property of, and entirely subject
to, another person, whether by capture, purchase, or birth; a servant
completely divested of freedom and personal rights” (p. 182).
Contudo, é importante dizer
que, nos dicionários de língua inglesa pesquisados, não encontramos o vocábulo
enslaved.
Assim, tanto em inglês quanto
em português, escravo (slave) é disjunto de querer, de poder e até mesmo de
saber (sobre si e sobre o mundo), como também submetido, em estado de coisa, à
vontade alheia.
E quanto a
escravizado/enslaved? Ocorre basicamente o mesmo, porém com a distinção entre
ser escravo e estar escravizado, entre um estado perene e um estado, ao menos
virtualmente, findável. Esperamos mostrar que essa sutil diferença pode
engendrar poder de realização do querer.
Já os usos contemporâneos que
têm sido feitos do vocábulo escravizado para se referir à escravidão negra
parecem ter como propósito resgatar o contexto e a relação histórico-social
referente ao período escravocrata, evocando ressonâncias semânticas do
pressuposto de responsabilização e de opressão pelo processo de escravidão.
Escravizado, nessa
perspectiva, remete a um campo semântico distinto daquele construído e
constituído em torno do vocábulo escravo.
Escravo conduz ao efeito de
sentido de naturalização e de acomodação psicológica e social à situação, além
de evocar uma condição de cativo que, hoje, parece ser intrínseca ao fato de a
pessoa ser negra, sendo desconhecida ou tendo-se apagado do imaginário e das ressonâncias
sociais e ideológicas a catividade dos eslavos por povos germânicos, registrada
na etimologia do termo.
O campo semântico de escravo
aproxima a pessoa cativa de um ente que seria escravo, no lugar de permitir
entrever que ele estaria nessa condição.
A responsabilização sobre a
condição de cativo desliza da parte que exerce o poder e escraviza outrem, para
a parte que, oprimida, passa a ser vista como natural e espontaneamente
dominada e inferiorizada. Em não se tratando de um estado transitório, mas de
uma condição de vida, implícita no termo escravo, seu emprego contribui
ardilosamente para a anistia dos agentes do processo histórico de
desumanização, despersonalização e de expoliação identitária do escravo ou
ex-escravo.
O termo escravo reduz o ser
humano à mera condição de mercadoria, como um ser que não decide e não tem
consciência sobre os rumos de sua própria vida, ou seja, age passivamente e em
estado de submissão, o vocábulo escravizado modifica a carga semântica e
denuncia o processo de violência subjacente à perda da identidade, trazendo à
tona um conteúdo de caráter histórico e social atinente à luta pelo poder de
pessoas sobre pessoas, além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força dos
opressores.
Nos dicionários pesquisados,
não encontramos essa distinção semântica. Porém os verbos “escravizar” e “to
enslave” se fazem presentes, associados à força e à dominação, como entradas em
alguns dos dicionários pesquisados com as seguintes denominações:
O Dicionário Houaiss da língua
portuguesa apresenta escravizar como “[...] submeter (alguém) à condição de
escravo [...]. [...] exercer dominação moral sobre; oprimir [...]. [...] tornar
submisso, dependente” (p. 803).
O Grande dicionário
etimológico-prosódico da língua portuguesa apresenta a forma passiva
“escravizado” apenas como uma derivação para o verbo escravizar (p. 1205).
O Cambridge international
Dictionary of English denomina to enslave como “to control and keep
(someone) forcefully in bad situation, or to make a SLAVE of (someone)”
[…] (p. 460).
Diferentemente do “escravo”,
privado de liberdade, em estado de servidão, o “escravizado” entra em cena como
quem “sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.
As lutas pela liberdade, ao
longo da história do Brasil, ganharam especial fôlego nos momentos precedentes
à Proclamação da República. Essas lutas, no entanto, dependendo dos setores
sociais que as empreendiam, tinham objetivos e ideais muito distintos, ou seja,
“brancos e negros interpretavam de modo diverso o significado da liberdade”
(WOODARD, 2008 apud GUIMARÃES, 2011, p. 32). Nas palavras de Guimarães (2011),
“por ’brancos’ se entende a classe média urbana e os fazendeiros e por
‘negros’, a população pobre” (GUIMARÃES, 2011, p. 32).
Essas considerações trazem à
tona os conflitos sociais inerentes ao período anterior e posterior à Proclamação
da República. No entanto, essas relações polêmicas receberam, no âmbito da
linguagem um tratamento atenuante.
Exemplo disso é o teor do Hino
da Proclamação da República, cuja letra é de Medeiros e Albuquerque (1867-1934)
e a música de Leopoldo Miguez (1850-1902). O hino, inicialmente. submetido como
candidato a novo hino nacional em um concurso promovido pelo governo no início
do regime republicano, foi, em janeiro de 1890, apenas decretado como Hino da
Proclamação da República.
O ideário de liberdade
presente no hino aparece discursivizado como uma entidade transcendental,
idealizada, resultante muito mais de uma dádiva do que de uma conquista, capaz
de acolher todos os brasileiros, independente das distinções culturais, raciais
e econômicas, sendo ela responsável por uma integração igualitária e fraterna
de todos os cidadãos, elevando-os à condição de irmãos de pátria: “Livre terra
de livres irmãos! / Liberdade! Liberdade! / Abre as asas sobre nós!”.
Nesse modo de contar a
história do Brasil, os negros cativos ganham a liberdade, pela mão de uma nobre
dama, essa mesma liberdade que espontaneamente “abre as asas” sobre todos os
brasileiros, sem restrições. Quanto ao passado, não há indício de superação das
injustiças ou de conquista de direitos. A poética oculta a dura realidade da
escravidão e da liberdade sem futuro.
É o Brasil, ainda eternamente
deitado em berço esplêndido, que se recusa a olhar para sua história e, a cuidar
suas feridas sociais e políticas. Ao revés, esforça-se por continuar deitado
eternamente e a acreditar que o passado foi outro, fugindo, assim, à responsabilidade
sobre o tema da escravidão, entre outros. defende serem três as liberdades
essenciais liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade
econômica.
Pela liberdade de cultura, o
homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém
lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que
tiver aprendido ou pensado.
Novamente, pela liberdade de
organização social, o homem intervém no arranjo da sua vida em sociedade,
administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos à medida que a sua
cultura se for alargando; para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça
de rebanho; é como que o aluno de uma escola de humanidade: tem de se educar
para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis.
Através da liberdade econômica,
o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de
preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e de mais
amplo; nenhum homem deve ser explorado por outro homem; ninguém deve, pela
posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, pôr em
perigo a sua liberdade de espírito ou a liberdade de espírito dos outros.
Para galgar tal nível de conquista
almejada pelo filósofo português, um passo importante parece-nos ser dado ao
evocar, na palavra empregada para referir os negros cativos brasileiros, a
necessidade da não permanência do estado e a ação do agente da passiva, logo,
sua responsabilização. É pouco, mas é suficiente para introduzir uma tensão que
nas narrativas brasileiras se tem escamoteado.
Ao narrar a história da
libertação dos escravizados, da conquista da liberdade daqueles que estiveram
subjugados pelo poder opressor, na figura e versão da aristocracia brasileira.
Os percursos discursivos da
conquista da liberdade são caminhos que perpassam uma série de valores
ideológicos, patêmicos[4] e pragmáticos, motivados pelos
mais variados interesses pessoais e coletivos.
Nessa perspectiva, cada contexto
de luta pela liberdade se configura como um sistema complexo e motivador de
leituras, significações e possibilidades interpretativas.
A substituição do vocábulo “escravo”
por “escravizado” significa a instauração de um novo ponto de vista, uma
pequena conquista, porém, com potencialidade para se desdobrar em outras mais
significativas.
A relação entre Machado de
Assis e a luta pela abolição da escravatura tem sido um tema constante, em
geral polvilhado de equívocos e – mesmo – preconceitos, em nossa história
literária. Como escreveu o próprio Machado, em uma de suas matérias
jornalísticas que antecederam o 13 de maio, “há muito burro neste mundo”.
em outra oportunidade, ao
elogio de Machado a uma peça teatral, Mãe, de José de Alencar, manifestamente
abolicionista. Porém, estávamos ali mais interessados nas contradições de
Alencar (que, como político, estava muito longe do abolicionismo) que na
atitude de Machado – que, como se sabe, não era branco – diante da mesma
questão (v. “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores-12”, HP
27/02/2015).
Na obra “Americanas”, livro de
poemas de 1875, deparamos com alguns trechos que não são, literariamente,
desprezíveis. Por exemplo, o quarteto inicial do poema que Machado dedica a
José Bonifácio (“De tantos olhos que o brilhante lume/ Viram do sol amortecer
no ocaso, / Quantos verão nas orlas do horizonte/ Resplandecer a aurora?”).
No mesmo livro está o poema
“Sabina”, sobre uma violência da escravidão especialmente cruel: “Sabina era
mucama da fazenda;/ Vinte anos tinha; e na província toda/ Não havia mestiça
mais à moda,/ Com suas roupas de cambraia e renda.”. Sabina, que não vive na
senzala, mas na casa-grande, não percebe – ou percebe difusamente, confusamente
– a sua própria condição de escrava, e se apaixona pelo filho de seus senhores.
Nos versos de Machado: “e ela
seguia/ Ao sabor dessas horas mal furtadas/ Ao cativeiro e à solidão, sem
vê-lo/ O fundo abismo tenebroso e largo/ Que a separa do eleito de seus
sonhos,/ Nem pressentir a brevidade e a morte!”.
Sabina engravida do rapaz, que
viaja – e, depois, volta já casado. Ela decide suicidar-se. À beira do rio em
que pretendia afogar-se, no entanto, o pensamento de que isso seria matar
também o filho faz com que desista: “Ali ficou. Viu-a jazer a lua/ Largo espaço
da noite ao pé das águas, / E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros;/ nenhum
deles, contudo, o disse à aurora.”
Em seu livro “Machado de
Assis: estudo comparativo de literatura brasileira”, publicado em 1897, Romero
dedica-se a demonstrar que Tobias Barreto – seu mestre e mentor na “Escola do
Recife” – é mais importante para a literatura nacional do que Machado de Assis.
Hoje, não há necessidade de
refutar a tese de Sílvio Romero. A realidade já se encarregou dessa tarefa. É necessário
apenas, no que vem a seguir, observar que Romero, ao levantar características
étnicas, não o fez como forma de ataque a Machado – até porque Tobias Barreto
também era mulato. Não deixam de ser interessantes alguns juízos que ele emite
sobre Machado:
“Machado de Assis pode e deve
ser também apreciado pelo critério nacionalista. Não o poeta, porque, a não ser
em suas pálidas Americanas, este nos desdenhou de todo; sim o romancista e o
contista; porque estes dignaram-se de olhar, uma vez por outra, para nós.
Em que pese ao Sr. José
Veríssimo, o nisus central e ativo de Machado de Assis é de brasileiro,
e como tal se revela no caráter essencial de sua obra de mestiço” (Sílvio
Romero, op. cit., Laemmert & C – Editores, Rio, 1897, p. 341).
A capacidade de Machado de
criticar a sociedade escravagista através do suposto ponto de vista dos
escravagistas é a chave para a explosão literária iniciada com “Memórias
Póstumas de Brás Cubas”, livro que foi publicado em partes – nas palavras do
autor: “aos pedaços” – a partir de março de 1880, pela “Revista Brasileira”.
Os dois últimos romances de
Machado – “Esaú e Jacó”, de 1904, e “Memorial de Aires”, de 1908 – talvez sejam
menos importantes para verificar a visão do autor sobre a escravidão (e sua
posição no movimento pela libertação dos escravos), pois foram escritos bem
depois da Abolição. Mesmo assim, merecem, sob esse ponto de vista, algum
relevo, especialmente o último.
O único ponto que une – além
da própria aparência, da idade e da beleza da lua e da enseada de Botafogo – os
gêmeos da Baronesa de Santos, em “Esaú e Jacó”, é a Abolição. Mas, logo em
seguida, os separa novamente:
“Não esqueça dizer que, em
1888, uma questão grave e gravíssima os fez concordar também, ainda que por
diversa razão. A data explica o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam
então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.
Não podemos olvidar, nessa
saga contra a escravidão, alguns dos afetados, como Machado de Assis pois, ao
caracterizar o escritor Machado de Assis, o professor Luís Augusto Fischer é
nada parcimonioso e afirma que se trata de “um caso realmente raro de um
sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra
podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época”, e que para o Brasil
tem “o valor de um Shakespeare, de um Balzac, de um Cervantes, de um Camões, um
Dante”.
Destacar este brilhantismo é
oportuno quando, ao longo do tempo, são percebidas tentativas polêmicas de
atenuar a inegável afrodescendência do escritor. Machado viveu quase meio
século até a escravatura ser abolida no país. Filho de mãe branca e pai negro,
seus avós paternos eram alforriados. “Etnicamente, pelos critérios de hoje, ele
é evidentemente afrodescendente.
O espectro que ronda o
escritor Machado de Assis é o do “embranquecimento”. Desde o mal-estar causado,
por exemplo, em Sílvio Romero -- um dos principais críticos literários do final
do século XIX -- pela influência inglesa em seus trabalhos até o silêncio e/ou
desprezo dos atuais movimentos negros, o espaço socioideológico ocupado pelo
autor de Memorial de Aires (“o livro mais bem escrito em português que há”)
sempre foi tema conflitante.
Não é rara a caracterização de
Machado[5] como funcionário público
fisiológico, ardiloso burguês e mulato omisso em relação ao abolicionismo. Um
intelectual do porte de um Nélson Werneck Sodré, mesmo reconhecendo as
qualidades artísticas do escritor, também desenhou esse Machado traidor de sua
“raça” e de sua classe (o filho de Francisco José e Maria Leopoldina nasceu, em
1839, no Morro do Livramento, e pertenceu aos extratos mais baixos da sociedade
fluminense.). Pobre, negro, gago e epilético: Machado de Assis teve quase tudo
contra si e, mesmo assim, se erigiu como gigante, tanto que é reconhecido como
um dos mais expressivos, senão, o maior escritor brasileiro.
Referências
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Objetiva: 2009.
SCHWARCZ, Lilia &
STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
SILVA, Agostinho da. 'Textos
e Ensaios Filosóficos'. Disponível em: < http://www.citador.pt/textos/as-liberdades-essenciais-agostinho-da-silva>.
Acesso em 18.4.2023.
The OXFORD English
Dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1933.
VIALAR, Paul. Chronique française du XXe siècle. Volume 10, s/l: Del Duca, 1955.
Obs.: Esse modesto artigo
pretende ser uma homenagem póstuma ao Dr. Bóris Fausto que contribuiu com mais
de trinta obras e nos ajudou a compreender o nosso país e mazelas. Vá em paz,
mas vai deixar muita saudade.
Notas:
[1]
A Lei Áurea (Lei nº 3.353), foi sancionada pela Princesa Dona Isabel, filha de
Dom Pedro II, no dia 13 de maio de 1888. A lei concedeu liberdade total aos
escravos que ainda existiam no Brasil, um pouco mais de 700 mil, abolindo a
escravidão no país. A sanção dessa lei resultou numa vitória dos conservadores
que aboliram escravidão sem pagar indenização aos fazendeiros.
[2]
A palavra “áurea”, atribuída à lei que pôs fim a escravidão no Brasil, é uma
palavra que significa “ouro”, ao referir-se ao novo período “iluminado” que
surgia no país. Em 17 de maio foi rezada uma missa campal em frente ao Paço de
São Cristóvão (atual Museu da Quinta da Boa Vista), no Rio de Janeiro, onde
esteve presente o escritor Machado de Assis. Por coincidência, os debates
parlamentares se estenderam até 13 de maio, data de nascimento de Dom João VI
(1767-1826) de Portugal, bisavô da Princesa Isabel. Por isso, dia 13 de maio é
comemorado o “Dia da Abolição da Escravatura”.
[3]
Deve-se recordar que o Brasil é um Estado laico e, por essa razão o texto
constitucional vigente proporciona aos seus cidadãos um clima de perfeita
compreensão religiosa e proscreve a intolerância e o fanatismo. Há a separação
quase total entre Estaddo e Religião, não impede que tenhamos no texto
constitucional, não podendo existir nenhuma religião oficial.
[4]
O nome de patemização à ação que leva o indivíduo a reconhecer, em uma
determinada situação uma emoção particular que está prestes a vivenciar. Desse
modo, apresentaremos os resultados acerca de uma precisa situação na obra
analisada que possa fazer com que o indivíduo reconheça a emoção por ele
sentida. No discurso, o efeito patêmico pode ser obtido de forma explícita e
direta: o sujeito enunciador (EUe) emprega palavras que remetem a um universo
emocional, de tonalidade patêmica; ou pode ser obtido de forma implícita e
indireta: o EUe emprega palavras que, aparentemente, são neutras do ponto de
vista da emoção.
[5]
Era pobre mas frequentava o mundo dos ricos na "chacra" do
Livramento, a casa de Dona Maria José de Mendonça Barroso, sua madrinha.