Sobre a guarda compartilhada no direito de família brasileiro

A guarda compartilhada foi criada pela Lei 11.698/2008 e alterada pela Lei 1.058/2014 quando deixou de ser mera opção e se transformou em regra. A guarda compartilhada traz a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. Poderá deixar de ser aplicada nos casos de vulnerabilidade da prole em razão de violência doméstica e familiar, mas deverá se proceder a análise de cada caso concreto

Fonte: Gisele Leite

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Acautele-se que não se refere a proteção da mulher, na condição de vítima de violência doméstica ou familiar[1], pois há outros diplomas legais brasileiros que já se ocupam de tal tarefa, especialmente, a Lei 11.340/2006 a célebre Lei Maria da Penha, mas sim, de proteção a prole de casais separados e, que poderá estar em risco de violência doméstica ou familiar, o que  afastaria a possível fixação da guarda compartilhada.

A violência doméstica e familiar corresponde a qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, moral ou psicológico e gerando dano extrapatrimonial, ou material, praticada no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto (conforme o artigo 5º da Lei Maria da Penha).

As Nações Unidas, especialmente a OMS, definem a violência contra as mulheres como  "qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar  em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de  liberdade, seja em vida pública ou privada".

Para escorreita aplicação das disposições da Lei 11.340/2006 não sendo suficiente que a violência tenha sido praticada demonstrada também a situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência da vítima[2].

Destaque-se, ainda, a  súmula 588 do STJ e o  entendimento do STF, in litteris: "A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico  impossibilita a substituição da pena privativa de  liberdade por restritiva de direitos”.

Atentem-se que os  requisitos da Lei 11.340/2006 que configuram violência  doméstica, a saber: Seja cometida por alguém que possua relação íntima de afeto,  seja por laços naturais (biológicos), por afinidade ou por  vontade expressa; A relação íntima de afeto seja independente  de coabitação; As relações pessoais independem de orientação sexual.

Em 2023, o que mudou na Lei Maria da Penha foi a constituição de obrigação no sentido de aperfeiçoar as políticas públicas voltadas ao combate à violência doméstica. E, a Lei 14.550/2023 assegura a proteção contra todas as formas de violência[3] no contexto das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto[4].

Para haver o afastamento da regra geral da guarda compartilhada e a concessão da  excepcional guarda unilateral, interpretando-se de forma equilibrada e sensata  a recente redação do artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil, trazida pela Lei 14.713/2023, a saber:

 i. A probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar deve ser futura e potencial,  não sendo suficientes agressões ou fatos pretéritos envolvendo os genitores para se afastar a guarda compartilhada.

 ii. A violência doméstica ou familiar a que se refere deve necessariamente impedir ou tornar muito difícil o compartilhamento da guarda do filho, vez que a prole e  não a mulher é a destinatária da proteção da norma prevista no artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil.

 iii. O risco de violência tem que ser concreto e não abstrato ou baseado em meras conjecturas, suposições  ou argumentações sem lastro probatório, sob pena de esvaziamento da regra geral, que é a guarda compartilhada.  

Não correspondendo, por exemplo, que um mero boletim de ocorrência policial (BO) com notícia de violência doméstica  contra a mulher afaste a possibilidade da concessão da guarda compartilhada dos filhos.

 iv. Quando restar evidenciado que o menor não se encontra em estado de vulnerabilidade nem há evidências de que a guarda  compartilhada ofereça risco à sua integridade física, psicológica ou emocional, a despeito do disposto no  parágrafo 2º do artigo 1584 do Código Civil vigente, não se deve afastar a possibilidade de guarda compartilhada,  ainda que tenha havido episódio passado de violência doméstica entre os genitores.

 v. A norma positivada no artigo 1.584, parágrafo 2º CC/2002 deverá ter interpretação restritiva[5], para afastar a guarda compartilhada somente nas hipóteses em que haja risco efetivo e comprovado de violência doméstica ou familiar  futura, não sendo suficiente a existência, comprovada ou não, de episódios de violência doméstica pretérita  entre os genitores, sendo certo que a violência a que se refere o dispositivo legal tem que ser de tal natureza a afetar  o menor ou impossibilitar o exercício do compartilhamento de responsabilidades entre os genitores.

De fato, há sério e concreto risco de ocorrer equivocada interpretação sobre a referida inovação legislativa que poderá atentar contra as mudanças e evolução implementadas pela Lei 11.698/2008 que veio priorizar a guarda compartilhada como melhor modalidade que atende ao interesse da prole de pais separados.

De sorte que não é a mera concessão de medida protetiva[6] em favor da mulher pelo Juizado da Violência Doméstica não afastará automaticamente a guarda compartilhada, é necessário que se configure sério risco à integridade da prole.

Além do perigo de se configurar penalidade exagerada ao pai, que se prolongaria por muitos anos, ou até por prazo indeterminado, afastando-o de ter o poder decisório sobre aspectos concernentes à educação, saúde e demais necessidades específicas da prole, que impõem naturalmente sua participação e preocupação.

Para a configuração da situação de vulnerabilidade da prole, o juízo de família deverá analisar todos os meios, utilizando quiçá a equipe multidisciplinar que tenha à disposição, valendo-se de avaliações psicológicas, sempre que requerer o caso concreto, para, então, ao final, e excepcionalmente, afastar a guarda compartilhada que prevalece como regra, ao passo que a guarda unilateral se impõe como exceção.

Impõe-se toda a cautela plausível para que a restrição à guarda compartilhada em razão do risco de violência doméstica ou familiar não se torne banal e traga apenas uma interpretação generalizada.

A concessão da guarda unilateral da prole na separação do casal deverá continuar como exceção, aplicável apenas em casos excepcionais, e apenas, quando a situação de violência doméstica ou familiar impor risco à segurança e integridade da prole.

Em sede da guarda[7] da prole, o interesse da criança ou adolescente é o prevalente, sendo direito fundamental destes haver a efetiva participação de ambos os genitores na educação e formação, como seres humanos em desenvolvimento.

A inovação legislativa ratifica plenamente a dicção constitucional brasileira e presente no Estatuto da Criança e do Adolescente que impõe o princípio da proteção integral de crianças e adolescentes, especialmente nos dispositivos dos artigos 3 e 5, o que lhes garante o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade.

Dificilmente, encontramos concretas razões amparadas na realidade contemporânea e na psicologia da criança e do adolescente que credencie indiscriminadamente a concessão da guarda compartilhada, apesar de que se reconheça que seja estipulada em benefício da prole.

Infelizmente, a despeito do que seja regra ou exceção, o juízo da vara de família deverá analisar cada caso concreto, preferencialmente, munido de sua equipe multidisciplinar para prover e estipular qual seria a guarda mais adequada atendendo aos ditames constitucionais e infraconstitucionais.

Referências

CASABONA, Marcial Barreto. Guarda Compartilhada. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

CEZAR-FERREIRA, Verônica A. da Motta; DE MACEDO, Rosa Maria S. Guarda Compartilhada; Uma Visão Psicojurídica. São Paulo: Artmed, 2016.

DA ROSA, Conrado Paulino. Nova lei da guarda compartilhada. São Paulo: Saraiva Jur, 2015.

DE SENA, Denis Pereira. Os Juízes de Família e a Guarda Compartilhada. São Paulo: editora Paco, 2018.

DA SILVA, Denise Maria Perissini. Mediação e Guarda Compartilhada. Conquistas para a Família. Curitiba: Juruá, 2016.

DUTRA, Bruna Martins Amorim. Lei Maria da Penha: as alterações da Lei 14.550/202 com perspectiva de gênero. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-25/tribuna-defensoria-maria-penha-alteracoes-lei-14550-perspectiva-genero/ Acesso em 10.2.2023.

Galvão & Silva Advocacia. Conheça quais são os tipos de guarda no Brasil. Disponível em: https://www.galvaoesilva.com/tipos-de-guarda-no-brasil/ Acesso em 9.12.2023.

MARQUES JUNIOR, Mario Moraes. Guarda compartilhada segue sendo a regra; guarda unilateral a exceção. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-08/guarda-compartilhada-segue-sendo-a-regra-guarda-unilateral-excecao/ Acesso em 10.12.2023.

Notas:

[1] Em nosso país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada sete horas. Disponível em; https;//forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf. Acesso em 10.12.2023.

[2] A vulnerabilidade social das pessoas, famílias ou comunidades é então entendida  como uma conjugação de fatores que pode afetar o nível de bem-estar das pessoas,  famílias ou comunidades e que resulta em uma exposição maior ao risco. Em relação ao conceito de vulnerabilidade, buscou-se seus elementos  fundantes no debate francês. Ao tratar da nova instabilidade para os grupos  desfavorecidos, Robert Castel avança no debate da vulnerabilidade através da  reflexão em torno das mudanças no mundo do trabalho. Segundo Castel, no contexto  de incertezas do futuro, essas mudanças somadas as fragilidades dos sistemas de  proteção estatal para os inempregáveis e trabalhadores precarizados, influenciaram  as situações de vulnerabilidade. Para o autor, a origem da problemática da vulnerabilidade ocorreu no início do século XX, com os vagabundos e  subproletariados (desempregados subqualificados).Lei

[3] A Lei Maria da Penha trata especificamente da violência doméstica e familiar contra a mulher, e o Art. 7º enumera algumas das formas de violências  que as mulheres podem sofrer. São elas, dentre outras, as violências física, psicológica, sexual, patrimonial ou sexual. A Lei Maria da Penha trata especificamente da violência doméstica e familiar contra a mulher, e o Art. 7º enumera algumas das formas de violências que as mulheres podem sofrer. São elas, dentre outras, as violências física, psicológica, sexual, patrimonial ou sexual. I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; Nesse caso, não precisa necessariamente deixar marcas aparentes no corpo. É qualquer conduta contra a integridade física e saúde corporal da mulher. Ex.: tapas, empurrões, puxões de cabelo, socos, agressões com objetos cortantes e perfurantes, entre outros. II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; É importante destacar que o sexo sem consentimento é violência sexual, inclusive entre cônjuges. IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. A calúnia acontece quando o ofensor atribui um fato criminoso à vítima. A injúria se configura com xingamentos que ofendem a honra da mulher. Já a difamação ocorre quando o ofensor atribui um fato ofensivo à reputação da vítima.

[4] Em síntese, de acordo com a doutrina e a jurisprudência elaboradas desde a publicação da Lei que se apresenta como ação afirmativa para proteção de direitos humanos de mulheres, no ano de 2006, é sabido que a chamada Lei Maria da Penha se aplica em casos de violência praticada contra mulher por homem com quem a vítima possua relação de parentesco, habitação ou afeto (relação amorosa presente ou pretérita).

[5] A despeito da inovação trazida pela Lei nº 14.550/2023, alguns (as) autores (as) ainda defendem a interpretação restritiva, no sentido de que a presunção de violência de gênero no âmbito doméstico deve ser relativizada e afastada quando não estiver evidente. Esse é o posicionamento de SCARANCE FERNANDES e SANCHES CUNHA[2], para quem a nova redação do art. 40-A não se aplica em qualquer situação de violência doméstica. Para eles (as), a presunção relativa pode ensejar uma aplicação intransigente da norma, ignorando infrações penais que eventualmente ocorram em contexto doméstico e que não sejam direcionadas de forma direta à mulher. Tal situação levaria ao desvirtuamento do espírito de proteção da mulher, sobrecarregando os Juizados de Violência Doméstica com processos comuns, o que comprometeria a necessária agilidade para deferir medidas e outras providências, na prevenção de feminicídios.

[6] Entre os tipos de medidas protetivas a serem expedidas contra o agressor, segundo artigo 22 da Lei Maria da Penha, estão a suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar ou local de convivência com a ofendida; proibição de aproximação da vítima, de seus familiares e das testemunhas, com fixação de limite mínimo de distância entre estes e o ofensor; bem como proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação. “É importante deixar claro que, na imensa maioria dos casos, as medidas protetivas são suficientes para evitar novas violências. O ofensor normalmente é intimado das medidas e não volta a importunar a mulher”, afirma a Juíza. Os dados demonstram isso. Desde que a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15) entrou em vigor, em 2015, até esta segunda-feira, 7/8, foram confirmados 167 casos de feminicídios no Distrito Federal. Desses, cerca de 70% (67,3%) das mulheres vitimadas nunca haviam registrado ocorrência contra os agressores, conforme Painel de Feminicídios da Secretaria de Estado da Segurança Pública do DF (SSP/DF). Além disso, foram concedidas cerca de 12 mil medidas protetivas pelo TJDFT, em 2022, sendo que no mesmo ano, segundo a SSP/DF, foram registrados o descumprimento de 1.762 decisões que deferiram medidas protetivas e 16 feminicídios.

[7] Existem os seguintes tipos de guarda dos filhos: guarda compartilhada,  guarda unilateral, guarda alternada e guarda bird nesting ou nidal. Na guarda alternada Nesse formato, os pais da criança ou do adolescente dividem  de maneira igualitária a convivência com a criança.  Para que você melhor compreenda como funciona, o filho passaria, por exemplo, 15 (quinze0 dias morando com cada um dos pais.  Com isso, nesse período, toda a responsabilidade sobre a criança ou adolescente pertence àquela que está com o filho.  Essa modalidade traz o conceito de as crianças permanecerem na casa original, enquanto os pais, na verdade, fazem o revezamento de residência, e não ela. Sendo assim, as crianças não precisam ficar mudando de casa, sendo obrigadas a se adaptarem a um novo local de tempos em tempos. Nesse caso, elas possuem uma residência fixa e não necessitam realocar suas coisas a cada período determinado.  No Brasil, muitas pessoas não a conhecem muito bem, mas países da Europa e também os Estados Unidos a adotam amplamente.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito de Família Guarda Compartilhada Violência Doméstica e Familiar CF/88

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