Responsabilidade civil do Estado
O texto apenas aborda de forma resumida e didática toda a evolução doutrinária da responsabilidade civil do Estado, buscando-se analisar seus fundamentos e requisitos. atualmente, no cenário brasileiro, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada na teoria do risco administrativo, exigindo-se tão somente a relação de causalidade entre o dano e alguma atividade estatal. O Estado responde tanto por intervenção quanto por inação qualificada e a perquirição sobre a conduta culposa do agente causador direto do dano tem relevância apenas no tocante a eventual ação de regresso a ser promovida pelo Poder Público
A
responsabilidade civil do Estado acarreta a responsabilização da Administração
Pública[1] que terá de reparar os
danos causados, sejam estes patrimoniais ou extrapatrimoniais, causados a
terceiros em razão de ação ou omissão do Estado[2], por intermédio de seus
agentes.
Registre-se
que um dos princípios cruciais que busca justificar a existência da responsabilização
civil do Estado é o princípio igualitário dos ônus e encargos sociais.
O
referido princípio preconiza que a atuação do Estado deverá beneficiar toda a
sociedade de forma que todos também serão responsabilizados pelos danos por
este causados, uma vez que o patrimônio é pertencente à coletividade.
Não
podemos impor que as vítimas suportem os danos causados pelo Estado eis que a
responsabilidade e a boa-fé são características inerentes ao Estado de Direito
que não se coaduna com injustiça.
A
primeira teoria de responsabilidade civil estatal preconizava a total
irresponsabilidade do Estado e, se expressava na assertiva: the king can
do no wrong. Tal tese prevaleceu nos
Estados absolutistas, onde o todo poder estatal concentrava ou numa única
pessoa, o rei, ou em pequeno grupo com destaque na figura do monarca.
Enfim,
em tradução literal, o rei não podia errar, pois era o próprio poder, era ainda
expressão do poder divino (exemplo clássico é a frase “L’État c’est moi”,
O Estado sou rei, atribuída ao Rei Luís XIV, rei francês).
Caso
tal figura com quase infinitos poderes não comete erros, também não poderia
equivocar-se na escolha de seus agentes, impossibilitando a responsabilização
do Estado.
Já a segunda
teoria é a da culpa individual quando surgiram teses civilistas onde prevalecia
a responsabilidade subjetiva em igualdade com o particular.
Em
evolução, passou-se, então a admitir que o Estado fosse obrigado a reparar os
eventuais danos causados, apelando para as teorias civilistas.
Porém,
será indispensável demonstrar a intenção, ou seja, a culpa em sentido amplo do
agente em causar o dano. Sendo necessários os seguintes elementos da plena
configuração da responsabilidade civil, a saber:
1. a
conduta que pode consistir em ação ou omissão do agente;
2.
dano correspondente ao prejuízo patrimonial e extrapatrimonial suportado por
terceiro;
3.
nexo de causalidade que é o elo entre a conduta praticada por certo sujeito e o
resultado determinado, direto e imediato, propiciando a ocorrência do prejuízo;
4.
Culpa em sentido amplo que também engloba a culpa em sentido estrito e dolo do
agente.
Apesar
da teoria da culpa individual é corrente que depende da distinção entre os atos
de gestão e os atos de império para se impor ao Estado, o ônus de eventual
prejuízo causado.
Isto
porque, nos casos de atos de império, não poderia haver responsabilização
estatal. Apenas quando a atuação estatal se fundasse em atos de gestão que
falar-se-ia em colocar o Estado em igualdade com o particular.
Atos
de império são aqueles causados pelo Estado na posição de supremacia/soberania
em relação ao particular.
Atos
de gestão são aqueles praticados pelo Estado quando em igualdade com o
particular, sem o uso da autoridade pública.
Cumpre
diferenciar o que eram atos de império do que sejam atos de gestão. Os atos de
império: Caso verificada a ocorrência de dano, o ente público não tinha o dever
de repará-lo, pois os atos de império eram praticados “com todas as
prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e
coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo
regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os
particulares não podem praticar atos semelhantes”. (In: DI PIETRO, 2013,
p. 703- 704.).
Já os
atos de gestão, a seu turno: Somente caso se demonstrasse que o ato danoso
tinha natureza de gestão é que nasceria o dever de indenizar.
Eram
definidos como “aqueles [atos] exercidos pelo Estado em situação de igualdade,
de equiparação ao particular, no intuito da conservação e desenvolvimento do patrimônio
público e para gestão de seus serviços, o que levava ao reconhecimento da responsabilidade
nas mesmas condições e proporções a que se submetem os cidadãos”. (In: BACELLAR
FILHO, 2006, p. 306).
A
terceira teoria da responsabilidade civil do Estado pauta-se na teoria da culpa
do serviço (culpa administrativa, culpa anônima ou faute du service).
Também
conhecida como faute du service, esta teoria objetivou afastar o caráter
pessoal da responsabilidade do agente, centralizando o ato danoso no serviço público.
Segundo esta, o dever de reparar o dano não advém da ação individualizada do
agente, mas do serviço público omitido, mal prestado ou realizado com atraso.
Pouco importa quem causou o dano, haverá a obrigação de indenizar se a atividade
fim do Estado foi executada com defeito.
Neste
caso, portanto, a responsabilidade prescinde da culpa do agente público
(negligência, imprudência ou imperícia)[3].
O fundamento
da responsabilidade civil por omissão do Estado.
•
Pressupostos: serviço não funcionou; funcionou mal; ou funcionou atrasado.
Observemos a divergência doutrinária: o ato
omissivo é responsabilizado sob a ótica objetiva ou subjetiva?
“(...) a falha do serviço ou culpa do serviço
(faute du service, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo
algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e
alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade
subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo) (...).
Há
responsabilidade subjetiva quando para caracterizá-la é necessário que a
conduta geradora de dano se revele deliberação na prática do comportamento
proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou
habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em
uma ou outra hipótese resulta transgredido”. (In: BANDEIRA DE MELLO, 2012,
p. 862).
Evoluiu-se
a teoria civilista para a culpa anônima, ou culpa do serviço, ante a dificuldade
em demonstrar a culpa do agente público.
Desta
forma, tornou-se desnecessária a demonstração de culpa do agente, devendo o
particular que sofreu o dano a ocorrência de qualquer das seguintes hipóteses: Serviço
mal prestado; Serviço prestado de forma ineficiente e serviço prestado com
atraso.
Torna-se
inócua a identificação do agente ou até mesmo individualizar e demonstrar a
culpa em sua atuação, embora ainda estejamos preocupados em figurar a
responsabilidade subjetiva, devendo o particular provar a ação ou omissão eivada
de culpa ou dolo[4]
da própria Administração Pública. Esta teoria é utilizada no Brasil nos casos
de responsabilidade civil por omissão genérica do Estado.
A
adoção da responsabilidade subjetiva no direito brasileiro, nos casos de
responsabilidade civil do Estado por descumprimento do dever de eficiência nas
situações omissivas (serviço não funcionou ou funcionou atrasado), não procede
por pelo menos quatro motivos: (a) a teoria da faute du service não
remonta, necessariamente, à responsabilidade subjetiva;
(b) o
critério para distinguir a responsabilidade pour faute (por falta) da responsabilidade
sans faute (sem falta) no direito francês não é a natureza omissiva da conduta;
(c) na
França admite-se a hipótese de responsabilidade objetiva do Estado por omissão;
(d) os
contornos da responsabilidade estatal dependem do regime jurídico administrativo
de cada ordenamento, e a Constituição Federal de 1988 impõe um sistema de
responsabilização objetiva.” (In: HACHEM, 2013, p. 1139).
Aliás,
a omissão genérica ou imprópria é aquela que o poder público possui o genérico
dever de fornecer determinado serviço, mas, pela inviabilidade fática de estar
presente em todos os lugares ao mesmo tempo, não é possível o cumprimento deste
dever.
É o
caso do fornecimento de segurança pública e da fiscalização das vias públicas.
Não há nestas hipóteses o dever específico do Estado estar naquele determinado
lugar, em determinada hora, para evitar o dano.
No
entanto, para obter a devida restituição pecuniária, cabe ao particular
prejudicado comprovar que a Administração Pública, informada a respeito da ação
criminosa no local ou da via pública defeituosa, não agiu, agiu com
ineficiência ou agiu com atraso.
A
quarta teoria é a do risco administrativo[5] sendo a moderna regra
aplicada no ordenamento jurídico pátrio, sendo esta responsabilidade de ordem
objetiva, pois não há que se falar em demonstração de dolo ou culpa.
A
teoria doravante apregoa que ao Estado se atribui prerrogativas especiais para
o exercício de suas funções. Tais atividades possuem riscos próprios[6] e inerentes que podem
causar danos aos particulares. Riscos estes que devem ser suportados por toda a
coletividade, pois o Estado age em função dela.
Eis
que o fundamento legal da responsabilidade civil objetiva do Estado está no
artigo 37, §6º da Constituição Cidadã, que prevê literalmente:
Art. 37 (…) § 6º As pessoas
jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo
ou culpa.
Sendo
assim, o Estado sofrerá responsabilização em caso de agir causando um dano ou
na hipótese de omissão específica (omissão própria). Vale destacar que omissão
própria é aquele em que o Estado tinha o dever específico de agir e evitar o
dano.
Portanto,
os elementos necessários para obrigar o Estado a reparar o dano conforme esta
teoria são apenas a conduta, o dano e o nexo de causalidade.
Cumpre
sublinhar a interpretação do dispositivo pelo STF que consagrou entendimento de
que o particular lesado somente poderá demandar o ente público ou pessoa
jurídica de direito privado visando a reparação do dano causado, não sendo
possível ajuizar a ação diretamente contra o agente causador do dano.
E,
assim, figura a teoria da dupla garantia, uma tese em prol do particular,
possibilitando a ação indenizatória contra a pessoa jurídica, maior e tornando
certa a possibilidade de indenização do dano suportado.
E, a
segunda garantia é em prol do agente estatal que somente responde
administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional
se vincular.
Atente-se
para as excludentes da responsabilidade civil estatal. É quando o Estado pode
eximir-se de arcar com o prejuízo ocorrido em razão de algumas excludentes da
responsabilidade, em que o elemento nexo causal restará afastado, quais sejam:
Culpa
exclusiva da vítima ocorre quando o dano é causado pela própria vítima. Por exemplo,
quando a vítima se joga na frente de um veículo estatal ou quando profissional
de imprensa descumpre advertência ostensiva e clara das forças de segurança
sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade
física.
Culpa
exclusiva de terceiro ocorre quando o dano é causado por fato de terceiro, sem
qualquer vínculo com a Administração Pública.
Exemplo é o caso de roubo ou furto ocorrido no interior de ônibus ou de
eventos com multidões.
Caso
fortuito e Força maior[7] – o dano é causado por
eventos naturais ou humanos inevitáveis, ainda que previsíveis. É o caso de
enchentes, tempestades, furacões ou mesmo uma árvore que cai e danifica veículo
de um particular.
Enquanto
a força maior é vista como o risco não intrínseco, sendo aquele que realmente
impede o cumprimento da obrigação assumida.
Para o
doutrinador Flávio Tartuce, o caso fortuito se caracteriza como evento
totalmente imprevisível e a força maior como evento previsível, mas inevitável.
O caso
fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da
responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade
desenvolvida.
Enunciado
443: O caso fortuito e a força maior
somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o
fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida. Referência
Legislativa Norma: Código Civil 2002 - Lei n. 10.406/2002 ART: 393; ART: 927;
Com a
pandemia (de coronavírus) de 2020, muitos contratos precisaram ser descumpridos
ou repactuados com o objetivo de adequação à nova realidade que se fez
presente.
A
necessidade de distanciamento social, muitas vezes imposta por decretos
legislativos dos governos estaduais e municipais com fechamento compulsório de
empresas até segunda ordem, simplesmente impossibilitou que alguns contratos
fossem cumpridos.
Na
prática e no dia a dia dos tribunais o que se nota é que, assim como o
legislador, a jurisprudência não tem se debruçado sobre a distinção entre caso
fortuito e força maior, unificando os institutos.
A
pandemia causada pela COVID-19[8], e sua exponencial
disseminação, suscita infindáveis reflexões de natureza social, econômica e
política, inclusive com a imposição de isolamento e distanciamento social,
conforme dispõe a Lei nº 13.979/2020, o que, naturalmente, gera repercussões
jurídicas, particularmente sobre as obrigações em geral, os contratos e a responsabilidade
civil.
É
sabido que a Organização Mundial da Saúde recebeu o primeiro reporte de caso da
COVID-19, com origem em Wuhan, na China, em 31 de dezembro de 2019, e o coronavírus
propagou-se, de forma veloz e exponencial, por todos os continentes, e, após
cerca de sessenta dias, teve o primeiro registro de ocorrência no Brasil.
Notadamente,
a COVID-19, catástrofe biológica, pode se enquadrar, em regra, entre as
hipóteses de exclusão de reparação civil (fato fortuito ou força maior), por
estes corresponderem, como prediz o citado art. 393, parágrafo único, do Código
Civil brasileiro, a um “fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis de se
evitar ou impedir”.
Todavia,
esta hipótese não pode, de forma indiscriminada, servir como fundamento para a
aplicação da excludente, visto que, havendo a possibilidade de o Estado prever
ou impedir as consequências do evento natural, a sua omissão enseja o dever de reparar.
Tal
entendimento é corroborado pelo Superior Tribunal de Justiça que, no julgamento
do Recurso Especial nº 1.299.900/RJ47, afastou a excludente de responsabilidade
civil estatal pelo caso fortuito ou força maior, aplicando o princípio da
precaução.
O
mencionado postulado exige a ação preventiva da Administração Pública frente
aos riscos potenciais que, de acordo com o conhecimento à época dos fatos,
ainda não eram identificados.
No
julgamento, entendeu-se que a não adoção do imprescindível controle da
qualidade do sangue em transfusões, em que pese a anunciada epidemia do vírus
de HIV em curso em todo mundo, configurou conduta danosa da Administração
Pública e, consequentemente, a imposição do dever de reparar.
Entretanto,
as políticas públicas adotadas para o combate e a disseminação da moléstia,
muitas vezes, parecem não surtir efeito.
Neste
sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.133.257,
impôs ao Estado o dever de reparar o dano sofrido pelo pai em face do
falecimento da filha acometida pela doença, por entender que este não adotou um
programa de combate à epidemia da dengue. Entretanto, cabe a ressalva de que o
Estado não é segurador universal[9].
Parece-nos
nítido que a COVID-19 acometeria inevitavelmente a população brasileira,
independentemente das medidas preventivas adotadas. Isso porque o coronavírus
afetou pessoas em todos os continentes, não sendo crível admitir-se que seria possível
ao Estado brasileiro conter completamente o avanço da pandemia viral em território
nacional.
Ocorre
que se pode afirmar que nem todos os efeitos da COVID-19 podem ser tidos como
inevitáveis, de forma que certas consequências da doença derivaram de ato
omissivo da Administração Pública.
Dentre
as diversas situações vivenciadas, podem ser citadas a falta de fornecimento de
equipamento de proteção aos profissionais de saúde, a escassez de leitos em unidades
de tratamento intensiva (UTI)e a não fiscalização de medidas implementadas.
Nestas hipóteses, não se pode, prima facie, afastar a responsabilidade
estatal.
Nestes
casos, a responsabilização do Estado dependerá da análise do nexo causal, que
não poderá ser apriorística e peremptoriamente determinado.
Isso
porque, pela complexidade das consequências da pandemia[10], deverá ser sopesado se,
para determinada situação, seria exigível do Estado que tivesse adotado
determinada conduta, considerando-se as peculiaridades dos entes federados, em
especial os limites dos recursos orçamentários e a necessidade de contratação
por licitação, dentre outras, sem deixar de lado que o dano suportado pela
parte deve resultar, de forma direta e imediata, da omissão da Administração Pública.
Caso
fortuito e força maior podem ser entendidos como tudo que está alheio ao
comportamento e vontade das partes, ocorrendo sem a sua interferência e que
impeça o cumprimento de obrigação anteriormente pactuada.
Exclui,
portanto, a culpa da parte inadimplente, tendo em vista que o não cumprimento
da obrigação não decorreu nem de sua intenção e tampouco de um descuido de sua
parte, mas sim de um evento alheio à sua intervenção.
A
quinta teoria da responsabilidade civil do Estado, a do risco integral que é
adotada como sendo exceção no ordenamento jurídico brasileiro. Quando não se
admite a exclusão de responsabilidade civil do Estado, de forma objetiva.
Estando presentes o dano e o nexo de causalidade, nasceu para o Estado o dever
de indenizar o particular.
Pois o
Estado convola-se na figura de garantidor universal pelos danos causados dentro
de seu território nacional. É exemplo desta teoria é o dano decorrente de
atividade nuclear, por ser expressa previsão da Carta Magna vigente em seu
artigo 21, XXIII, “d”.
Tem-se
os casos de dano ambiental, em que o STJ assentou ser objetiva a
responsabilização civil do Estado, sem se importar se a poluição adveio de ação
ou omissão, direta ou indireta.
Quando
o Estado é considerado poluidor indireto, a responsabilidade é solidária entre
os participantes do dano, porém, de execução subsidiária, em que somente haverá
execução contra o Estado após frustrada a execução contra o particular
provocador do dano.
Analisando
todas as teorias da responsabilidade civil do Estado, consegue-se ter um
panorama histórico e evolutivo das teses que obrigam o Estado a arcar com os
prejuízos causados aos administrados, além de adentrar aos diversos pontos
atinentes da matéria.
A
ótica civilista de responsabilização do Estado foi derrubada pela corrente
jurisprudencial publicista francesa quando no julgamento de importantes casos
paradigmáticos pelo Tribunal de Conflitos Francês durante o século XIX.
É
importante analisar os grandes casos concretas da jurisprudência francesa que
impactaram as definições doutrinárias da responsabilidade civil do Estado.
Caso
Rothschild (1855): Controvérsia julgada em 09 de maio de 1855 pelo Tribunal de Conflitos
Francês entre Louis-Meyer Rothschild, comerciante, e Larcher, funcionário do
serviço postal. A lide teve como objeto pedido de indenização decorrente do
envio equivocado de uma correspondência por Larcher contendo o equivalente a 30.000
francos em diamantes para outro destinatário com o sobrenome Rothschild que não
Louis-Meyer Rothschild.
O
Tribunal Civil do Sena, no entanto, declarou-se incompetente para apreciar a
questão e o problema foi parar no Tribunal de Conflitos, o qual decidiu que o
julgamento do caso não poderia se dar segundo as regras e disposições do
direito civil, sendo a autoridade administrativa a competente para decidir
questões envolvendo obrigações indenizatórias do Estado.
A
Corte ressalvou, contudo, que em se tratando de responsabilidade civil do
Estado por falta, erro ou negligência de um serviço público, tal obrigação
estatal não seria geral e nem absoluta. (LES TRÈS GRANDES DÉCISIONS DU DROIT
ADMINISTRATIF Recueil de décisions juridictionnelles. Disponível em
https://www.guglielmi.fr/IMG/pdf/TGD.09.pdf.).
Outra
referência relevante.
Caso
Agnès-Blanco 1873: Controvérsia julgada em 08 de fevereiro de 1873 pelo
Tribunal de Conflitos Francês envolvendo Agnès-Blanco, criança francesa, e a Companhia
Nacional de Tabaco da França. A disputa tinha como objeto pedido de indenização
formulado pelo pai de Agnès-Blanco em virtude do atropelamento da filha por um
vagão de trem da Cia. De Tabaco.
O
Tribunal Civil mais uma vez se julgou incompetente e o caso foi remetido para o
Tribunal de Conflitos. Este, por sua vez, confirmou o entendimento do Caso
Rothschild e afirmou que “a responsabilidade do Estado pelos danos causados aos
particulares por faltas cometidas por agentes públicos não pode ser regida
pelos princípios estabelecidos no Código Civil, cujas disciplinas atingem
somente as relações entre particulares”.
Disse
ainda que a Responsabilidade Civil do Estado “não é geral e nem absoluta” sendo
disciplinada por regras especiais destinadas a equilibrar os direitos do Estado
com o Direito Privado. (LES TRÈS GRANDES DÉCISIONS DU DROIT ADMINISTRATIF
Recueil de décisions juridictionnelles. Disponível em
https://www.guglielmi.fr/IMG/pdf/TGD.09.pdf.).
Conclusões
sobre os casos acima relatados:
Embora
o caso Agnès-Blanco não tenha sido o primeiro em que o Tribunal de Conflitos
decidiu por cingir a responsabilidade do Estado, ele ainda é considerado o
julgamento mais importante da jurisprudência francesa na medida em que marcou o
completo abandono da teoria privada da responsabilidade civil do Estado pela
adoção integral da teoria pública;
A jurisprudência francesa, desde o século XIX,
inadmite qualquer ingerência da Justiça comum em questões envolvendo o Estado e
seus agentes públicos;
As
decisões inauguraram um novo momento na história da Responsabilidade Civil do
Estado em que se deixou de levar em consideração o elemento culpa como
determinante da obrigação de indenizar e se passou a considerar a
responsabilidade civil apenas sob a ótica do nexo de causalidade.
Os
danos reflexos ou por ricochete[11] é espécie de dano
indireto que teve origem na jurisprudência francesa, que, em algumas decisões
do final do século XIX passou a reparar o chamado préjudice d'affection[12].
O dano
reflexo tem na afeição seu principal elemento caracterizado já que o dano moral
atinge seres humanos que estão aptos a reagir na defesa dos valores por eles
amparados, dado a generalidade e universalidade do princípio ordenador da 56925responsabilidade
civil.
O
direito pátrio admite as hipóteses de reparação de danos morais reflexos para
além da prevista no artigo 948 CC e traz o homicídio como elemento propiciador
de indenização de terceiros ligados à vítima fatal.
Nesse
sentido o STJ firmou entendimento no sentido de conceder a reparação no caso de
lesão corporal, julgando prescindível a concretização do evento morte.
Com a
mesma orientação, a Primeira Turma do STJ reconheceu a reparação por dano moral
reflexo ao filho e à esposa de vítima de acidente automobilístico que resultou
em sua tetraplegia e deixou-a em estado vegetativo.
O
acórdão, portanto, foi paradigmático, sendo reproduzido em diversos outros
julgados do tribunal desde o julgamento do caso.
Em
situação diversa, a Quarta Turma do STJ confirmou o acerto da indenização
conferida na instância inferior à esposa e aos filhos de desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro por matéria jornalística
considerada ofensiva à honra da vítima direta do evento danoso, a partir da
compreensão de que a exposição negativa teria atingido a família e, a própria
vítima em sua esfera íntima.
O
Código Civil português contém previsão específica de "indemnização a
terceiros em caso de morte ou lesão corporal" nos artigos 495º e 496º,
tratando dos danos patrimoniais no primeiro dispositivo e dos danos
extrapatrimoniais no segundo, ao passo em que o Fatal Accidents Act 1976[13] da Inglaterra e os Principles
of European Tort Law contêm previsão de compensação pelo dano
não-patrimonial.
Posicionando-se
em sentido contrário ao contexto europeu exposto, a normatização do dano
reflexo na Alemanha é diversa: não há, no Código Civil alemão (Bürgerliches
Gesetzbuch — BGB) previsão de indenização por danos morais para familiares
em decorrência da dor sentida (Angehörigenschmerzengeld).
Significa
afirmar que o luto ou qualquer outro sofrimento decorrente de dano sofrido por
familiar não têm previsão normativa de reparação civil e, por isso, não podem
ser indenizados, já que o BGB dispõe, em seu § 253 (1), que danos imateriais
(extrapatrimoniais) somente serão reparados nos casos estipulados em lei.
Também
no direito germânico apenas há previsão, nos § 844 e § 845 do BGB, de reparação
por homicídio, especificamente das despesas com o funeral de pessoa falecida e
da prestação de alimentos em favor de pessoas a quem o falecido os devia por
força de lei, e de indenização por lucros cessantes por serviço não prestado
pelo lesado ou falecido que, por previsão normativa, deveria prestá-lo.
O
primeiro dispositivo é, aliás, a fonte do artigo 1.537 do Código Civil
brasileiro de 1916 e, por consequência lógica, do artigo 948 do Código Civil
brasileiro de 2002.
Os
familiares da vítima podem, por outro lado, obter indenização na hipótese de
sofrerem o que Guilherme Henrique Lima Reinig e Rafael Peteffi da Silva
denominam "choque nervoso" (Schockschaden), "casuística
cuja existência e razão de ser se explicam no contexto do regime de
responsabilidade civil adotado pelo BGB, o qual, ao contrário dos Códigos
brasileiro e francês, não dispõe de uma cláusula geral de responsabilidade
civil por ato ilícito”. Procurado uma tradução livre, trata-se do dano (Schaden)
causado pelo choque (Schock).
A
jurisprudência alemã definiu, por exemplo, que o dano causado pela notícia de
acidente fatal de um familiar não justifica pedido de indenização em desfavor
do autor do acidente se o choque não for além dos prejuízos à saúde a que
parentes próximos são expostos em caso de relato de óbito.
No
julgamento do caso BGHZ 56, 163 pelo Bundesgerichtshof — Tribunal
Federal e guardião da lei federal na Alemanha —, realizado em 1971, foi
reformada decisão de primeiro grau (Landgericht) que havia concedido indenização
à viúva de marido falecido em acidente de carro no ano de 1965 em virtude do
dano sofrido com a notícia do óbito.
O
entendimento foi, inicialmente, modificado em parte pelo tribunal de segundo
grau (Oberlandgericht) e, depois, reformado por completo pelo Tribunal
Federal, que, negando o direito à indenização, deixou claro que "o recurso
admitido do então acusado conduz à revisão e remessa dos autos ao tribunal
superior da origem" (Oberlandgericht).
Antes
disso, contudo, no ano de 1940, o Tribunal do Reich decidiu que faria
jus à indenização à mãe que sofrera choque nervoso ao presenciar a morte de sua
filha em acidente de trem (RGZ 162, 321).
Ao que
tudo indica, a jurisprudência alemã tem caminhado no sentido de restringir as
hipóteses de indenização por Schockschaden, talvez em tentativa de
combater a superabundância da responsabilidade civil e a proliferação de novas
espécies de dano, muitas vezes não tão novas assim, tal qual movimento de parte
da doutrina brasileira.
Infelizmente, em nosso país, afinal, assiste-se contemporaneamente a uma "fuga para a responsabilidade civil", assumindo o instituto o descabido papel de agente involuntário de distribuição de renda, o que não representa sua função jurídica nem histórica.
Referências
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Disponível em:
http://civilistica.com/dano-reflexo-ou-por-ricochete-e-lesao-a-saude/.
TARTUCE,
Flávio. Responsabilidade Civil. 5ª edição. Rio de Janeiro: Grupo Gen,
São Paulo: Editora Método, 2023.
___________________.
Teoria do Risco Concorrente na Responsabilidade Objetiva. São Paulo,
2010. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde30042013151055/pt-br.php.
Acesso em 7.12.2023.
Notas:
[1] A administração pública, por seu turno, “pode ser definida objetivamente como a atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve para a consecução dos interesses coletivos e subjetivamente como o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas aos quais a lei atribui o exercício da função administrativa do Estado.” Nessa cepa, percebe-se que o conceito de administração pública não pode ser jungido exclusivamente ao poder de gestão das coisas do Estado – ou de mero planejamento e execução, consoante o singelo conceito de administração acima traçado –, vez que indissociáveis de tal premissa as finalidades que animam a conduta de todo o servidor público, na acepção mais ampla do termo, consubstanciadas no atendimento dos anseios sociais, por intermédio do cumprimento das obrigações prestacionais advindas do ordenamento jurídico, notadamente das normas constitucionais assecuratórias dos Direitos Fundamentais.
Em síntese, o acréscimo do vocábulo público à palavra administração importa no direcionamento da atividade gerencial, que passa a estar relacionada a determinada finalidade, previamente traçada pelo legislador e vocacionada ao atendimento dos interesses sociais.
[2]
Em verdade, afirmou Del Vecchio apud Caio Mário da Silva Pereira que com
a criação do Estado surgiu o permanente e constante conflito entre a soberania
deste e os direitos individuais do cidadão. Somente a partir do século XVIII
que o conceito de Estado de Direito se firmou assentado na separação das
funções (legislativa, executiva e judiciária) atribuídas aos órgãos
independentes e harmônicos entre si, e exercendo controle recíproco.
[3] A negligência está caracterizada pela inação, inércia, passividade, conduta omissiva. O imprudente, por sua vez, é aquele que age sem a cautela necessária, e a imperícia, por fim, é falta de observância das normas, por ausência de conhecimentos técnicos necessários para a conduta praticada. A diferença, principalmente entre a negligência e a imprudência, pode parecer tênue. Há doutrinadores que pontuam que a imprudência anda junto com a negligência como “faces da mesma moeda”, como se uma fosse “contrária” à outra. Isso porque tem-se a negligência como uma omissão de conduta e a imprudência como uma conduta sem cautela. A imperícia, por outro lado, consegue se diferenciar melhor dos demais institutos, já que traduz a falta de técnica. Mas isso não quer dizer que seja simples de ser apurada. Existem diversos exemplos que podem trazer controvérsias quanto à imputação de cada um. Já um exemplo de negligência no direito civil, é a falta de cuidados da criança que está sob guarda de um dos genitores. A imprudência fica bem exemplificada nos casos de crimes de trânsito, principalmente quando o condutor dirige em velocidade incompatível com a via em que trafega, sabendo que isso pode causar um acidente. Ou seja, o motorista tem consciência da velocidade correta e, mesmo assim, escolhe trafegar de maneira perigosa e contrária àquela esperada. Quanto à imperícia, por envolver habilidades técnicas, entende-se que não pode ser aplicada em uma situação isolada, é necessário analisar o contexto da conduta para definir o instituto infringido. A legislação não atribui conceitos sobre negligência, imprudência e imperícia. Por isso, a diferenciação de cada uma é determinada pela doutrina. De uma forma simplista, para facilitar o entendimento, devemos lembrar que: Negligência: falta de cautela; Imprudência: excesso na conduta; Imperícia: ausência de técnica.
[4][4]
O dolo é a consciência e a vontade dirigida para a realização da conduta
definida como crime. Assim, se o motorista quer atropelar e matar alguém, o que
só muito excepcionalmente acontece, ocorre homicídio doloso. Já a culpa é o
produto da negligência, da imperícia ou da imprudência.
[5]
Teoria do Risco Administrativo segundo a qual a responsabilidade civil do
Estado é objetiva, sendo suficiente demonstrar o dano decorrente da atuação do
Estado. Há possibilidade de comprovar a culpa da vítima a fim de atenuar ou
excluir a indenização.
Teoria do Risco Social: O foco da responsabilidade
civil é a vítima (e não o autor do dano) e a reparação do dano estaria a cargo
de toda a coletividade, dando ensejo a socialização dos riscos, com o intuito
de que o lesado não deixe de merecer sua justa reparação.
Para Celso Antônio Bandeira
de Melo (2013), a responsabilidade civil do Estado é corolário da noção de
Estado de Direito e de República, na medida em que se reconhece que todas as
pessoas, sejam de direito privado ou de direito público, estão igualmente
sujeitas à ordenação jurídica, respondendo pelos comportamentos violadores de
direito. Todas as autoridades podem ser responsabilizadas em um regime
institucionalizado, inclusive o Estado como sujeito de direito. A teoria do risco administrativo fundamenta a
responsabilidade do ente público na mera relação de causalidade entre o dano e
uma atividade que, embora benéfica socialmente, é considerada perigosa. A noção
mais extremada de risco veio com a teoria do risco integral, bastante criticada
por ser considerada abusiva.
[6] Para Saleilles, o deslocamento da responsabilidade subjetiva para a objetiva envolve a mudança de uma perspectiva individualista para uma perspectiva social, que considera o homem como parte de uma coletividade e percebe suas interações com as individualidades que o circundam. Por essa razão, a teoria do risco de Saleilles18 tem como foco a responsabilidade dos patrões e empresários, procurando romper com a causalidade em prol de uma relação subjetiva de imputação, sob o fundamento de que a assunção voluntária dos negócios e dos seus proveitos tem como consequência necessária a responsabilidade pelos riscos correspondentes. É por essa razão que a sua opinião passou a ser conhecida como “teoria do risco proveito” (risque profit). Já Josserand entendia que a ideia de responsabilidade civil envolve um ideal de justiça distributiva. Daí por que, além de sugerir modificações no próprio conceito de culpa, buscava substituí-la, em determinadas esferas, pela noção de risco, entendendo que deveria responder pelos danos aquele que criou o risco. Daí a sua teoria ser conhecida por risco criado.
[7] De acordo Maria Helena Diniz, na força maior por ser um fato da natureza, pode-se conhecer o motivo ou a causa que deu origem ao acontecimento, como um raio que provoca um incêndio, inundação que danifica produtos ou intercepta as vias de comunicação, impedindo a entrega da mercadoria prometida ou um terremoto que ocasiona grandes prejuízos, etc. Por outro lado, o caso fortuito tem origem em causa desconhecida, como um cabo elétrico aéreo que sem saber o motivo se rompe e cai sobre fios telefônicos causando incêndio explosão de caldeira de usina, provocando morte. Ensinou de Álvaro Villaça Azevedo caso fortuito é o acontecimento provindo da natureza sem que haja interferência da vontade humana em contrapartida a força maior é a própria atuação humana manifestada em fato de terceiro ou do credor.
[8] A crise sanitária, ocasionada pela Covid-19, desencadeou uma atividade normativa inaudita. O legislador resignou-se a habilitar o Poder Público a adotar medidas de urgência para enfrentar as consequências da pandemia calcadas em uma expressiva produção de Leis, Medidas Provisórias, Decretos e Portarias, nem sempre imunes a críticas. Apesar de a Lei 14.010/20, que cria regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado, regular efeitos da pandemia nos contratos, deixou-se de tratar dos impactos na responsabilidade civil extracontratual em geral.
[9]
A jurisprudência do STJ e do STF também aponta nesse sentido. O primeiro acolhe
a teoria do risco integral nos casos de danos ambientais e atômicos, mas, em
certos casos, a mitiga, aceitando a configuração de excludentes que fogem da
linha normal de ocorrência do fato. O segundo, apesar de, em regra, afastar
teoria do risco integral, a admite em casos excepcionais, que envolvem grave
risco e relevante interesse público, desde que haja previsão legal. Com efeito,
os danos atômicos, ecológicos e os decorrentes de atentados terroristas, atos
de guerra ou eventos correlatos são multifacetários e incertos no tempo e no
espaço, sendo que suas consequências se espraiam do indivíduo isolado à
coletividade e às gerações futuras. Por isso, exigem a adoção da teoria do
risco integral, mais condizente com as suas peculiaridades. Contudo, a jurisprudência a tem aplicado de
maneira temperada ou mitigada, com vistas a impedir a responsabilização
desenfreada e abusiva do Estado.
[10] Ainda não temos jurisprudência a respeito do reconhecimento da pandemia de 2020 como caso fortuito e força maior para relativizar o cumprimento dos contratos; contudo, decisões judiciais já foram proferidas nesse sentido. A decisão recente da 8ª Vara Cível de São Bernardo do Campo suspendeu o pagamento créditos devidos por uma empresa que se encontra em recuperação judicial com o esteio do Ministério Público e do administrador judicial que deram parecer favorável para tanto. Na oportunidade, o juízo salientou que todas as obrigações pactuadas no plano de recuperação judicial estavam sendo regularmente cumpridas e destacou: A Covid-19 constitui evento extraordinário, de amplitude global, inevitável e imprevisível, que repercute, seriamente, na subsistência de empresas e das famílias. As medidas de enfrentamento da pandemia, como bem ressaltado pelo administrador judicial, reverberaram no plano normativo.” Nesse mesmo sentido, uma decisão da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná concedeu liminarmente autorização para que empresas com contrato de locação vigente com o Park Shopping Barigui suspendesse o adimplemento do aluguel pelo prazo de 90 dias.
[11]
Na aferição do quantum indenizatório ou compensatório deve-se buscar o
equilíbrio para se evitar o enriquecimento de uma parte em detrimento do
empobrecimento de outra, principalmente, quando o dano por ricochete em função
da morte de uma pessoa, o magistrado não poderá esquecer de considerar as
especificidades do caso concreto e a intensidade da dor humana.
[12]
O prejuízo de afeição (préjudice d'affection) é modalidade de dano extrapatrimonial
que atinge as vítimas por ricochete, ou seja, os parentes da vítima direta,
buscando reparar a dor ensejada pela morte do cônjuge, do pai, do filho.
Segundo Cavalieri, em sentido estrito, o dano moral representa a violação do
direito a dignidade. A dignidade é um valor que não se precifica e é
insubstituível, é uma qualidade inerente ao ser humano. E é com esse
entendimento que doutrina mais moderna defende que estará configurado o dano
moral quando se tem na causa a agressão à dignidade e na consequência a dor, o
sofrimento, a humilhação. Ainda para Cavalieri, em sentido amplo o dano moral
representa a violação de um atributo da personalidade. Os direitos da
personalidade também são inerentes ao ser humano, como: imagem, nome,
reputação, trabalho e outros. Assim, essa violação pode apresentar diferentes
graus, no individuo individualmente e em sociedade, aptos a compensação. Dessa
forma, em havendo agressões a dignidade do homem ou a algum atributo da sua
personalidade, configurado está o dano moral, apto a ensejar a devida
compensação, uma vez que esse tipo de dano não é indenizável, mas compensado. A
indenização pressupõe uma reparação, que nem sempre é possível em se tratando
de danos morais.
[13]
O Fatal Accidents Act 1976 é uma lei do Parlamento do Reino Unido, que permite
que parentes de pessoas mortas por delitos de outros recuperem danos. A Lei de
Acidentes Fatais de 1846 permitiu pedidos de indenização por parentes de
pessoas falecidas pela primeira vez. A Lei de 1976 modernizou o processo e
revogou a legislação anterior. A lei permite reivindicações conforme estipulado
nº s. 1:
“Se a morte for causada por
qualquer acto ilícito, negligência ou incumprimento que seja tal que (se a
morte não tivesse ocorrido) teria dado à pessoa lesada o direito de manter uma
acção e de recuperar uma indemnização em relação a essa mesma, a pessoa que
teria sido responsável se a morte não tivesse ocorrido é responsável por uma
acção de indemnização, não obstante a morte da pessoa ferida”.