Pandemia de Covid-19 e inadimplência contratual
A recente pandemia de coronavírus impactou os contratos e negócios jurídicos em geral, ora por propiciar a revisão contratual, ora por admitir mitigações na punição do devedor inadimplente
O inadimplemento obrigacional
enseja consequências patrimoniais, em regra, em face do devedor. Mas, em certas
situações, no entanto, os efeitos da inexecução não poderão ser imputáveis ao devedor,
pois, se não concorreu, de qualquer modo para o inadimplemento da obrigação, é
o caso quando ocasionado por caso fortuito e força maior.
A cerca dessas excludentes de
responsabilidade, Pontes de Miranda justificou o tratamento isonômico entre as
categorias, in litteris:
"A distinção entre força
maior e caso fortuito só teria de ser feita, só seria importante, se as regras jurídicas a respeito
daquela e desse fossem diferentes,
então, ter-se-ia de definir força maior e caso fortuito, conforme a comodidade da exposição. Não ocorrendo tal
necessidade, é escusado estarem os
juristas a atribuir significados que não têm base histórica, nem segurança em doutrina. Lamentável é que, em
vez de se fixarem conceitos, se perca
tempo em critério ao sabor pessoal dos escritores (e.g. impossibilidade relativa, o caso fortuito, impossibilidade
absoluta, na fôrça maior, como em A. Colin
e H. Capitant (Cours élémentaire de Droit Civil, II, 4. ed., 10
s.)."
A pandemia de Covid-19 afetou
muitas relações obrigacionais, comprometendo a plena execução destas seja de
forma total ou parcial.
Questiona-se, então, se o devedor
deverá responder patrimonialmente pelos malévolos efeitos do inadimplemento
contratual? A pandemia de covid-19 seria caso fortuito capaz de afastar a
responsabilidade do devedor. E, qual é o entendimento do Código Civil vigente
ante tais situações?
Não é a primeira vez que o
mundo sofre os efeitos de uma pandemia, mas a causada pelo coronavírus
(Covid-19) é a primeira a ocorrer na época de globalização social e econômica.
É, também, a primeira a desafiar a autossuficiência do homem contemporâneo e de
seu sistema capitalista financeiro. Abalando a economia e a estabilidade
política de muitas nações.
Em quais circunstâncias afetam
o destino do contrato em caso de inadimplemento absoluto ou relativo? E, nessas
situações, qual a repercussão para a responsabilidade patrimonial do devedor?
As respostas aos
questionamentos devem estar à luz do vigente ordenamento jurídico pátrio. Em muitos
casos, as partes poderão fazer uso de meios alternativos de solução de
conflitos, tais como a conciliação, a mediação ou a arbitragem.
De fato, as operações
econômicas necessitam de segurança jurídica para sua realização e tal aspecto
foi valorizado e defendido por Enzo Roppo. E soluções balanceadas poderão ser
aplicadas tanto nas obrigações existentes e, ainda, pendentes de adimplemento,
como nas quais que já estivessem em cumprimento, em contratos de execução
instantânea, continuada ou diferida.
Na lição de Roppo, o contrato
é a veste jurídico-formal de operações econômicas e, o que nos faz concluir que
não existe operação econômica, sem que haja também um contrato.
A manutenção do contrato com a
revisão de seus elementos essenciais exige, ainda, o devido preenchimento dos
requisitos previstos pelos artigos 317, 478 e 479 do Código Civil de 2002,
sendo compatível com os contratos de execução continuada ou diferida.
Para que os efeitos da
inexecução constantes no artigo 389 CC e a responsabilidade do devedor pelo cumprimento
da obrigação (artigo 391 CC) sejam afastando, é indispensável demonstrar que I)
O inadimplemento tenha decorrido da pandemia de Covid-19, sendo de rigor a demonstração
da presença do nexo causal entre a pandemia e o inadimplemento;
II) O inadimplemento tenha
sido causado por circunstância objetivamente aferível e atribuída à pandemia de
Covid-19 ou às medidas a esta relativas;
III) O inadimplemento não
tenha sido ocasionado por conduta culposa do devedor;
IV) A causa do inadimplemento
seja superveniente à formação da obrigação e não imputável ao devedor;
V) Não haja recusa voluntária
do devedor quanto ao adimplemento da obrigação;
VI) O devedor não tenha
condições de cumprir a prestação total ou parcialmente pois, se o tiver, não se justifica o inadimplemento,
e sua conduta pode ser configurada como culposa;
VII) O devedor tenha agido com
diligência ordinária e procedido com probidade e boa-fé objetiva e subjetiva.
A teoria do inadimplemento
eficiente vem justificar o inadimplemento proposital do devedor se demonstrar
que economicamente é mais eficiente a quebra do vínculo contratual do que
propriamente seu adimplemento.
Será eficiente caso o
descumprimento possibilitar maior lucro para o devedor e, se ainda, indenizar
cabalmente ao credor como se houvesse autorização tácita a depender do
resultado econômico no contexto para as partes. Essa teoria é manifestação da
denominada análise econômica do direito e, tem aplicação nos países da common
law, desde que se indenize integralmente a outra parte.
Há exemplos de leis que
demonstram a influência da análise econômica do direito. A Lei de liberdade
Econômica, a Lei 1.784/2019, sendo destacável que o artigo 421-A, II que cuida
da função social dos contratos e ainda preconiza a alocação de riscos definida
pelas partes que deverá ser respeitada.
A outra lei é a de Introdução
às Normas do Direito brasileiro, alterada pela Lei 13.655/2018 e se relaciona
com o direito público. E, os artigos 20 e 21 da novel legislação impõem aos órgãos decisórios,
administrativos e judiciais, que considerem expressamente nas respectivas decisões que
envolvam o interesse público as consequências práticas para a sociedade,
proibindo-se referências e juízos que morem no plano das divagações abstratas. É o valor do
consequencialismo sendo trazido para o direito positivo brasileiro.
Noutra aproximação com o
common law é presente no atual e vigente Código de Processo Civil brasileiro de
2015 que adotou sistema de precedentes judiciais e instrumentos como o
Incidente de Assunção de Competência e o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas na busca de maior previsibilidade e segurança jurídica na
distribuição de justiça, o que também se relaciona com a análise econômica do
direito.
É sabido que a força maior e
caso fortuito são institutos que quando inseridos no universo contratual e que
podem estar presentes em qualquer economia orientada pelo princípio da livre iniciativa
tal como a nossa e trazem consequências impactantes.
Com relação aos contratos
civis e comerciais, a disciplina da força maior e do caso fortuito está atualmente
prevista na legislação brasileira nos artigos 393 e 399 do Código Civil (CC), o
primeiro deles que estabelece, em seu parágrafo único, que ambos1 se verificam
no fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir2.
Quando, portanto, as partes se
veem diante de circunstâncias necessárias e inevitáveis, a lei brasileira diz
que se tais circunstâncias levarem ao descumprimento pelo devedor em uma dada
relação contratual, este não responderá, em regra, por eventuais prejuízos
sofridos pelo credor.
Concretamente, a força maior
ou o caso fortuito será, portanto, o
fato com esta característica de força para além daquelas controláveis pelas
partes e que impede a devedora, ou seja, que tem algo a pagar ou cumprir, uma
prestação a entregar, de desempenhar adequadamente aquilo a que se comprometeu,
no todo ou em parte, de forma temporária ou definitiva.
Dependendo da extensão e da relevância
do descumprimento obrigacional para a relação jurídica, para a estrutura
contratual que foi estabelecido pelas partes, ele pode se caracterizar como um
inadimplemento relativo, também conhecido como mora (palavra cuja origem é a
mesma da expressão “demora”, que remete ao atraso, mas que juridicamente se
conecta não apenas com a imperfeição do cumprimento quanto ao tempo, mas também
ao modo ou ao lugar de execução) ou como um inadimplemento absoluto.
É conveniente elucidar que a
diferença entre os dois tipos de inadimplência é relevante apenas no segundo
caso, o absoluto, no qual resta caracterizado que o credor deixou de ter
interesse útil na prestação avençada que tinha a receber, sendo que pode
recursar a receber a entrega ou o pagamento em atraso, ou de outra forma, ou em
outro lugar, assim, poderá desfazer a relação obrigacional que tinha com
devedor por meio de resolução contratual ex vi artigo 395 CC.
O devedor só terá a
prerrogativa de se desfazer da relação, desobrigando-se dos compromissos
assumidos, em circunstâncias muito específicas, amparadas por outro instituto
do direito de obrigações, a saber, a onerosidade excessiva, conforme prevista
nos artigos 478 e seguintes do Código Civil brasileiro.
Realmente, para o devedor se
desobrigar diante de eventual situação de impossibilidade de cumprimento do que
lhe compete, há pressupostos que devem ser preenchidos: o contrato deve ser de
execução continuada ou diferida, e, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, a prestação deve ter se tornado excessivamente
onerosa, com a parte credora ficando em posição de extrema vantagem.
A força maior e o caso
fortuito são, portanto, institutos de direito previstos para utilização
justamente em situações de crise, e que podem ser invocados pelo devedor em sua
defesa desde que concretamente verificáveis como fator externo ao devedor e impeditivo
ao regular cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, com disciplina
legal estabelecida há tempos no direito brasileiro, inclusive sobre as exceções
cabíveis.
A pandemia de coronavírus causou muitos efeitos e trouxe tanto para a saúde do povo brasileiro como para o funcionamento dos contratos e negócios jurídicos que devem ser revistos de forma a viabilizar a melhor composição[1] dos conflitos de interesses.
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Nota: