O debate sobre o novo ensino médio

Por Gisele Leite.

Fonte: Gisele Leite

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Em verdade, a questão do ensino médio corresponde a uma equação dotada de muitas variáveis e, infelizmente, ainda sem a devida solução. Optando-se pela revogação, ou suspensão, ou ainda, a revisão da reforma do ensino médio há muitas questões que transcende ao mero debate técnico, sobre quais as essenciais disciplinas deverão ser cursadas. Envolve, ao fundo, acirrada disputa política em relação aos rumos da educação pátria.

O derradeiro episódio referente ao tema nos reporta a notícia dada pelo atual Ministro da Educação Camilo Santana, a respeito de sua intenção firme em suspender a Portaria 521 e que definiu o calendário das fases de implementação a respeito do novo ensino médio, o que também inclui a adequação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2024.

Apesar da falta de confirmação direta do Ministério da Educação, a notícia galgou grande circulação da mídia e pelo ritmo dos compartilhamentos de mensagem ocorrido no WhatsApp o que gerou grande atribulação e equívocos de interpretação. Tanto que alguns chegaram mesmo a comemorar a revogação do novo ensino médio.

Em seguida, após uma sequência de reuniões inclusive com o Presidente Lula e, muitas dúvidas a respeito do que viria acontecer, o Ministro confirmou a suspensão da indicada Portaria. E, a suspensão do calendário não significa propriamente a suspensão da implementação do novo ensino médio.

Cumpre recordar que a reforma do ensino médio no Brasil fora imposta pela Lei13.415/2017 que fora incorporada à Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (LDB) e, como se sabe, uma portaria não pode se sobrepor à uma lei, então mesmo com a suspensão do calendário de implementação, o novo ensino médio continua em pleno funcionamento nas escolas brasileiras.

O que pode mudar, eventualmente, é que os Estados que são os responsáveis pela oferta do ensino médico não precisam concluir a implementação do novo ensino médico nas três séries em 2024, conforme previa a Portaria. Porém, tal processo está bem avançado em boa parte do Brasil e, como o ano letivo já começou, os gestores não podem, simplesmente, alterar o currículo a ser cumprido.

De fato, a decisão atingiu o Enem de 2023, pois, de acordo com a Portaria 521, o exame precisaria se adaptar ao novo currículo. E, com a suspensão do calendário, tal adaptação não é mais necessária.

E, apesar disso, gera um descompasso que é perigoso já que os estudantes que irão prestar o Enem de 2024 ainda num formato que não corresponde ao que estudaram na escola.

Há dois aspectos cruciais a serem observados, a necessidade de haver debate e negociação. Afinal, a Medida Provisória que originou a dita reforma fora promulgada ainda pelo Presidente Michel Temer em 2016, pouco tempo após ao impeachment de Dilma Rousseff e, meio às ocupações de escolas em várias partes do Brasil por estudantes secundaristas.

Assim, no ano seguinte veio a MP ser convertida em lei. E, a reforma já acenava com notória marca do autoritarismo por isso uma expressa ala defende a revogação, composta de estudantes, professores, sindicatos de professores e diversas entidades científicas.

A implementação fora iniciada ainda em plena pandemia e, em meio à carência de coordenação política e vastos escândalos que marcaram o Ministério da Educação e do governo do anterior Presidente da República. O que afetou os Estados que são os responsáveis legais pela oferta do ensino médio. e, foram estes, que assumiram a dianteira do processo, cada um segundo suas condições e possibilidades.

Frise-se que se requer muito recurso público e trabalho de toda uma cadeia de técnicos e profissionais da educação envolvidos na implementação e, mais uma vez, por conta do contexto, o diálogo e a escuta ativa saíram prejudicados e, porque com as escolas fechadas, ficou ainda mais difícil ouvir e discutir junto aos estudantes e professores.

Com razão, o atual Ministro da Educação afirmou que se faz necessário um grande debate abarcando todos os segmentos para definir de forma democrática e coerente os rumos do ensino médio no Brasil.

A dúvida permanece em saber se os noventa dias previstos para ocorrer a consulta pública serão  suficientes, em verdade, o tempo já caiu para sessenta dias, pois passou a contar em março, se serão suficientes. São inegáveis os argumentos que não negam a existência de problemas no anterior ensino médio e do novo ensino médio proposto. Porém, estes divergem quanto à natureza desses problemas.

Para os defensores das mudanças, os ajustes são necessários e inerentes à implementação de uma reforma de grande porte. Eles concordam que é preciso maiores recursos, repensar os itinerários, contratar mais professores e melhorar a formação docente. Mas, está fora de cogitação descartar o percurso dos últimos anos.

Para quem defende a revogação da reforma do ensino médio, o problema está no desenho do novo ensino médio. O entendimento é que o modelo fragmenta e precariza uma formação que, principalmente, na escola pública, já deixava a desejar antes da reforma.

Além disso, a formatação do novo ensino médio reforça as desigualdades sociais, visto que há muita diferença em termos de infraestrutura, quantidade e tipos de itinerários oferecidos Brasil afora. São discrepâncias entre redes de ensino de diferentes regiões e entre escolas de uma mesma rede, sem contar as clássicas desigualdades entre escolas públicas e particulares.

Essa disputa envolve, no fundo, espelha uma tensão inerente ao governo Lula, que se equilibra entre a lógica de uma frente ampla e uma base de esquerda. E, o atual ministro Camilo Santana parece querer tentar equacionar essa tensão, ora declarando ser contra a revogação, ora anunciando a suspensão da portaria, uma medida que integra a lista de reivindicações dos defensores da revogação e, está sendo interpretada como um possível avanço nessa direção.

Caso venha optar pela revogação, porém, o ministro poderá abrir uma crise com os Estados, que já começaram a implementar as mudanças. Por outro lado, ignorar a campanha pela revogação e propor apenas mudanças periféricas abrirá caminho para uma crise com professores e estudantes, que estão articulados e ganhando espaço no debate. E, o risco maior é uma greve total na educação.

O cenário permanece confuso e não será simples chegar a um consenso, porque nenhum dos lados parece estar disposto a ceder. Cumpre recordar que o debate sobre o ensino médio não começou com a reforma de 2017, afinal,  já vinha desde a virada da década, sem jamais se ter chegado a uma honrosa conclusão.

Em contrapartida, é alentador ver, depois de quatro anos de desmonte das políticas educacionais e falta de interlocução do governo federal com a sociedade, pessoas com visões divergentes se reunindo para debater os problemas da educação. Mas, se faz necessária que além dos debates haja solução.

Só que, enquanto isso, uma geração de jovens convive com um horizonte nebuloso à sua frente. O sonho de entrar na faculdade continua sendo um desejo para a maioria, e as oportunidades entre ricos e pobres, negros e brancos , urbanos ou não, continuam escandalosamente desiguais. O Ministério da Educação  terá de considerar todo esse contexto na hora de decidir.

As três principais críticas ao novo ensino médio são, a saber: Falta de debate com a sociedade; exclusão de disciplinas; Exclusão de disciplinas;  Realidade prática dos itinerários formativos.

No lugar das tradicionais disciplinas (História, Artes, Química, Biologia etc.), o conteúdo é apresentado aos jovens em quatro áreas do conhecimento integradas (Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias).

Previu-se um aumento de 200 (duzentas) horas na carga horária anual obrigatória das escolas, além das 800 (oitocentas) horas já estabelecidas. Para respeitar isso, a mudança ampliou a carga horária diária dos estudantes de quatro para cinco horas.

Somando os três anos previstos para o Ensino Médio, a carga horária completa chega a 3 (três) mil horas. Desse valor, há uma divisão de 60% da carga voltada para uma formação geral básica, pela qual todos os alunos passam, e outros 40% voltados para os chamados “itinerários formativos”, projetados para dar mais flexibilidade ao currículo.

O novo modelo ainda é criticado por ser mais flexível em relação ao EaD. Hoje, é regulamentado que até 20% da carga horária  (ou 30%) no caso das turmas noturnas — seja realizada remotamente. “O ensino remoto emergencial durante a pandemia demonstrou a imensa exclusão digital do Brasil, que impediu milhões de estudantes de acessarem plataformas digitais de aprendizagem”.

Os itinerários formativos eram a “grande promessa” de diferencial para o novo Ensino Médio. Apresentados como aulas optativas a serem cumpridas em 1.200 horas divididas pelos três anos, a proposta é integrar múltiplas áreas do conhecimento em um mesmo planejamento pedagógico, de forma a promover ao jovem uma formação técnica e profissional específica.

Os Estados têm liberdade para desenvolver os itinerários formativos que serão ofertados nas instituições da região a partir do que deveria ser a demanda e o interesse da população. Assim, cada escola poderá escolher quais trilhas de estudo vai oferecer aos seus alunos, sendo obrigatória a disponibilidade de, pelo menos, dois itinerários.

A preocupação em instrumentalizar o Ensino Médio é que as capacitações técnicas exigem a disponibilidade de infraestrutura nas escolas.  Escolas voltadas para atender as populações residentes do campo, bem como os quilombolas e os povos indígenas, muitas vezes sofrem com a escassez de recursos financeiros para o investimento em profissionais e estrutura física.

 Para a escola oferecer, por exemplo, um itinerário com foco em informática, é preciso, no mínimo, ter internet de boa qualidade, um laboratório contendo computadores e um professor apto para ministrar as aulas.

Sublinhe-se que as escolas não são obrigadas a disponibilizar todas as trilhas previstas pela secretaria de Educação de seu estado. Dessa forma, ainda pode acontecer dos alunos enfrentarem problemas de não identificação com as propostas temáticas de sua região.

Em muitos casos, por falta de oportunidade financeira para se locomover para outras áreas, esses jovens podem optar por trilhas que não correspondem aos seus interesses. Isso ainda pode fazer com que se forme na região um mercado saturado de profissionais de mão de obra técnica subqualificada.

Entre os defensores do novo ensino médio afirmam que os alunos terão maior liberdade em construir seu itinerário formativo, sendo orientados a fazerem escolhas de forma responsável e consciente e, assim estudarão com maior afinco e interesse. Mas, olvidam tais adeptos das dificuldades de infraestrutura das escolas públicas em geral.

Lembremos que a etapa mais crítica para a conclusão da educação básica é o primeiro do Ensino Médio. É nessa série que os índices de evasão e repetência são maiores. Especificamente, o primeiro ano do ensino médio mostra-se o mais preocupante.

E, que as principais diferenças entre o novo ensino médio são o aumento da carga horária dos estudantes, a adoção de uma base comum curricular e a escolha dos itinerários formativos por parte do aluno.

Registre-se que no Diário Oficial da União foi publicada  a Portaria n° 627/2023. A medida prevê a suspensão durante 60 (sessenta) dias do Cronograma Nacional de Implementação do novo ensino médio.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Debate Novo Ensino Médio Educação Brasil LDB

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