Malícias & milícias

A atual pátria armada[1] fruto da política armamentista conhece há bastante tempo o poder paralelo da milícia que não integra as forças armadas, nem a polícia brasileira. É composta por militares, ex-militares, paramilitares ou civis armados. Segundo a Anistia Internacional, utilizam da força e violência para extorquir a população em determinados territórios urbanos ao redor do mundo.

Fonte: Gisele Leite

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Precisamos entender que milícia[2] significa um eufemismo contemporâneo para máfia[3]. E, são os moradores de áreas controladas por milícias que sentem o poder da máfia formada basicamente por ex-policiais, policiais na ativa, policiais expulsos, carcereiros e leões de chácara[4] em geral que se mostram leais ao sistema e, não reajam quando cortar a cabeça, literalmente, quando for a mando de chefões.

Atualmente, cerca de mais de dois milhões de fluminenses vivem sob esse rígido regime feudal[5]. E, basicamente, o serviço que uma milícia presta é o de segurança. Inicialmente, contra a ação de criminosos comuns. E, num segundo momento, segurança contra a ação da própria milícia. Há fortes indícios de que a morte de Marielle Franco[6] foi promovida pela milícia.

Já outro assassinato, o da juíza Patrícia Acioli, em 2011, não se trata de mera suspeita. A dita julgadora era notabilizada por condenar milicianos fardados, sendo rígida tanto quando condenava os criminosos não fardados, ou, à paisana. Terminou, infelizmente, fuzilada por vinte e um tiros. E, o saldo final foi onze PMs condenados.

A origem[7] das milícias reside nos grupos extermínio compostos de gangues de policiais e ex-policiais que passaram a oferecer e vender serviços de proteção patrimonial privada aos comerciantes ainda na década de 1960. Eram assassinos de aluguel que agiam sob a tolerância da ditadura militar.

Os generais, durante o regime de exceção, usavam tais serviços para capturar os subversivos, ou seja, qualquer pessoa que representasse uma ameaça ao seu poder. O fim da ditadura militar brasileira não acabou com os grupos de extermínio[8]. Tanto que a Chacina da Candelária, em 1992, foi uma realização de um destes. Atiradores dispararam contra sessenta crianças, adolescentes que dormiam do lado de fora da Igreja da Candelária, no centro do Rio, num atentado que terminou com oito óbitos. Três PMs acabaram condenados, todos com penas superiores a duzentos anos.  Mas, ninguém passou muito tempo preso. E, o último destes, deixou a cadeia faz tempo, em 2012.

Já no começo do século XXI, tais grupos sofisticaram sua operação   Em vez de agir meramente como mercenários, tomaram o controle de regiões carentes da cidade. Tornaram-se um Estado paralelo, com exército próprio. Consolidavam-se, assim, como milícias propriamente ditas.

Estas começaram matando e repelindo traficantes. Para demonstrar seu poder, adotaram justamente a estratégia dos antigos grupos de extermínio: largar na rua os corpos daqueles que abatiam. Na prática, deu-se a substituição de um crime organizado por outro.

Na pseudopromoção da paz externa e aparente, em franco contraste com a insegurança crescente nos territórios do tráfico, as milícias conseguiram consolidar seus domínios, particularmente, na zona oeste do Rio de Janeiro. A zona oeste[9] é a região menos densa do Rio de Janeiro.

A região é composta tanto pela região da Barra da Tijuca na sua parte sul, uma das mais ricas da cidade, quanto por zonas industriais, com algumas áreas agrícolas, na sua parte norte, sendo muito acentuada diferença social entre as partes sul e norte da Zona Oeste. Divide-se em duas grandes regiões separadas pelo Maciço da Pedra Branca (maior formação rochosa do Rio, que alcança 1.025 metros de altitude): sudoeste e noroeste.

Como moeda de troca pela segurança patrimonial prestada, os milicianos passaram a cobrar taxas sobre diversos setores da economia carioca, o da energia (botijões de gás), o de entretenimento (gatonet), o de transporte (vans e kombis de lotação), o de imóveis (terrenos e alugueres para lixões clandestinos). Começaram a cobrar dez mil reais por mês de pequenas empresas para que não fossem assaltadas, e para que não tivessem seus empregados atacados, nem seus caminhões.

Enfim, as milícias acabaram formando corporação multimilionária e à margem da lei.  Segundo informações recentes, o que é extorquido de motoristas de lotação nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro, de acordo com o Ministério Público, um total de vinte e sete milhões por mês.

Com o passar do tempo, a linha divisória da milícia e tráfico de drogas foi ficando cada vez mais tênue. Tanto que várias milícias passaram também a oferecer proteção e segurança para traficantes, contra os grupos rivais e, ainda, lucrar também o comércio de drogas.

A facção que mais faz acordos com as milícias é o Terceiro Comando Puro[10], que controla o complexo de Acari, situado na zona norte, a mesma localidade onde a falecida vereadora Marielle Franco denunciava abusos policiais.

O Comando Vermelho[11] também estaria na lista de parceiros. O Jornal "O Dia" relatou que uma milícia tinha vendido o Morro do Jordão, em Jacarepaguá, para o Comando Vermelho ou CV[12]. A facção teria três milhões de reais para instalar seu comércio de entorpecentes. Assim, os paramilitares podem empreender nova forma de negócio. E, tomar as comunidades a fim de negociá-las, como se passassem o ponto comercial.

O perfil atual das milícias do RJ está mudando pois, 42 dos 143 milicianos presos em 2010 eram PMs da ativa. Já em 2016, essa proporção caiu para dez PMs da ativa entre cento e cinquenta e cinco milicianos presos.

Tenório Cavalcanti, precursor das milícias, ficou célebre por resolver os impasses à bala, foi deputado da UDN[13] foi o primeiro político a entrar armado ostensivamente em uma casa legislativa.  Tenório era advogado alagoano, cujo nome completo era Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, foi eleito deputado estadual, deputado federal entre as décadas de cinquenta e sessenta.

Sua biografia abriga o embrião do que atualmente é conhecido milícia no Rio de Janeiro, correspondendo, a um poder paralelo, violento, amparado por uma aparente legalidade que o levava a transitar livremente em gabinetes enquanto atuava à margem da lei em áreas atravessadas por violências, muitas delas perpetradas pelo Estado.

Famoso por ser "homem da capa preta", ficou notabilizado por causa do acessório que usava para esconder a "Lurdinha", que era submetralhadora MP-40 que carregava a tiracolo, que sintetizava a noção da justiça pelas próprias mãos. A biografia de Tenório serviu de inspiração para filmes intitulados como "O Homem da Capa Preta", de 1986, de Sérgio Rezende e o "Amuleto de Ogum[14]", de Nelson Pereira dos Santos. Serviu também como inspiração para batizar até um coletivo de autores de histórias em quadrinhos, a Capa Comics do produtor João Carpalhau, sediado em Duque de Caxias, o município onde Tenório fundamentou sua base eleitoral.

Aliás, Tenório se utilizava, habitualmente, da violência como meio de conter a violência. Propunha uma resolução de conflitos através de jagunços que ele chamava diretamente de Palmeira dos Índios[15], a sua terra natal. Aliás, Tenório colecionava em seu corpo mais de cinquenta cicatrizes de projéteis de diferentes calibres. Assim, a prática de homicídio seja pessoal ou mandando matar quem mandou encomendar sua morte, explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves[16], que estuda a violência da Baixada Fluminense, bem como em outras localidades do Rio de Janeiro.

Tenório Cavalcanti tinha sua personalidade pautada na Lei de Talião, ou seja, “olho por olho, dente por dente” por ter origem que remonta a infância, quando aos dez anos, presenciou seu pai ser assassinado por "mexer com mulher alheia". Mais tarde, vingaria a morte do pai com certeiros golpes de enxada.

Tenório era político e líder identificado com partidos conservadores, tal como a UDN, a União Democrática Nacional e, transitou igualmente para o âmbito progressista, quando fez oposição a Getúlio Vargas e ao genro então Presidente, Amaral Peixoto[17] que foi governador do Rio de Janeiro na década de 1950.

O dito sociólogo alerta que os grupos de formato de milícias se impõem em territórios onde o Estado viola direitos básicos, como o da segurança pública e da preservação da vida como bem máximo de qualquer ser humana. Assim, diante da ausência de garantias de direito à vida e ao mínimo existencial, estabelece-se em sociedade, dentro da lógica de abandono, de não capacidade de preservação da vida. Onde as milícias fazem isso, através do auxílio de jagunços[18].

O sociólogo, ainda, ressalta que a milícia consegue legitimidade por operar dentro do campo legal ou lícito, através de cargos políticos, por exemplo, o que a assemelha a um grupo de extermínio. Infelizmente, a evolução[19] de tais grupos políticos vem se aperfeiçoando, se reconfigurando, às dimensões do crescimento urbano, das estratégias eleitorais, de controle militarizado de áreas.

A grilagem é outro negócio das milícias e, funciona da seguinte forma: os grupos milicianos tomam posse de certas áreas, em sua maioria irregulares, loteiam e comercializam estipulando seus valores de mercado, com documentação falsa. 

A milícia na  Muzema[20] era chefiada por major da PM, suspeito de controlar a construção de imóveis irregulares (Vide G1 Rio, em 12.04.2019, disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/12/milicianos-dominam-construcao-e-venda-de-imoveis-irregulares-na-muzema-onde-predios-desabaram.ghtml   Acesso em 9.5.2021).

Aliás, Tenório Cavalcanti, igualmente, explorou o mercado imobiliário da área que dominava, mas o sociólogo alerta para uma crucial diferença. O político acumulou mais de quarenta imóveis que adquiriu justamente na época da construção da Rodovia Rio-Petrópolis, a partir de investimento pessoal com dinheiro próprio. Com esse patrimônio, ele investe em suas campanhas eleitorais, ajuda a população e cria o mito dele.

As milícias não surgem de patrimônio adquirido, partem da extração de tal acervo com o poder conferido à estas pelo Estado. O Estado oferece respaldo, não investiga além de permitir que tenham acesso às informações privilegiadas, conforme explica o referido sociólogo.

O mesmo estudo conta que quando Tenório chegou a trabalhar como administrador de uma dessas terras, a Fazenda Santa Cruz, de Edgar Soares Pinho, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, foi responsável por organizar um grupo de capatazes que tinha por objetivo defender as terras e combater possíveis invasores. Apadrinhado por gente influente, como o deputado Natalício Camboim de Vasconcelos[21], e tendo herdado relações da própria família Cavalcanti, o tio, o coronel Felino Tenório e um primo policial, Tenório começou a adquirir imóveis.

Uma das principais aquisições latifundiárias dele foi a favela do Mangue, também em Caxias, e que veio a se tornar um dos seus redutos eleitorais por ter sido ali construída a Vila São José, principal obra social a qual o nome do ex-deputado esteve vinculado.

A construção da vila ocorreu após as enchentes que assolaram a cidade em dezembro de 1958, atingindo principalmente os bairros de Gramacho, Saracuruna e Sarapuí. Tenório teria ligado para o então presidente Juscelino Kubistcheck[22] pedindo em caráter de urgência que fossem construídas unidades habitacionais para os desabrigados.

O documentário “Nossos Mortos Têm Voz”, dos diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, retrata justamente esse cenário mais contemporâneo:  chacinas provocadas por agentes de segurança de Estado, em especial a maior já registrada em todo o Rio de Janeiro, conhecida como a Chacina[23] da Baixada, em 31 de março de 2005, quando 29 (vinte e nove) pessoas foram assassinadas.

A motivação da matança foi a insatisfação de policiais militares com a mudança de comando em um batalhão que resultou em prejuízos para seus “negócios”[24].

Segundo o Jornal Extra, de 19.10.2020 a área de atuação da milícia já supera a do tráfico na capital do Rio de Janeiro, conforme demonstra o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro. as três quadrilhas de traficantes, somadas, agem em bairros que perfazem 15,4% da área total da cidade. O estudo é fruto de um convênio entre o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia.

Os bairros em que somente a ação de milicianos foi registrada têm 686,75 quilômetros quadrados de área — o território total do Rio de Janeiro é de aproximadamente 1.200 quilômetros quadrados. Já as três facções do tráfico atuam, cada uma, em 11,4%, 3,7% e 0,3% da área do município.

A área total dos bairros onde agem traficantes é de cerca de 185 quilômetros quadrados. Pouco mais de um quarto do território carioca (25,2%) está em disputa entre tráfico e milícia; e em apenas 1,9% não foi constatada a ação de qualquer grupo criminoso.

O levantamento considerou a área total dos bairros. O mapa do crime foi lançado oficialmente em 19.10.2020, na abertura do 1º Seminário da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança e Direitos - Milícias, Grupos Armados e Disputas Territoriais no Rio de Janeiro.

O mencionado trabalho teve a participação do professor de Sociologia da UFF Daniel Hirata, coordenador do Geni. Segundo ele, era previsível um resultado que mostrasse força da milícia, mas não se esperava um domínio tão imponente.

A respeito das chacinas já ocorridas no Rio de Janeiro, temos: uma disputa pelo comando do tráfico de drogas na Vila Vintém, no bairro Padre Miguel, no Rio de Janeiro totalizou dezenove óbitos em julho de 2009.  Em julho de 1993, oito pessoas com idades entre 11 a 19 anos foram executados.

Ainda são desconhecidas as causas sobre a causa da Chacina da Candelária. Em agosto de 1993, cerca vinte e um óbitos na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Em março de 2005, outra chacina ocorreu nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, ambos na Baixada Fluminense, totalizou trinta óbitos. Em junho de 2009, cinco pessoas foram mortas na favela do Barbante, em Inhoaíba, no Rio de Janeiro. Os assassinatos seriam retaliação dos milicianos da Liga da Justiça[25], comandada por Ricardo Teixeira da Cruz, alcunha Batman.

Pesquisa inédita sobre a expansão das organizações criminosas no Rio de Janeiro mostra que as milícias já controlam 25,5% dos bairros do Rio, totalizando 57,5% da superfície territorial da cidade[26]. São 686,75 quilômetros quadrados, equivalente a 57,5% do território da capital, nas mãos da milícia. Unidade de Polícia Pacificadora (UPP[27]) é um projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro que pretende instituir polícias comunitárias em favelas, principalmente na capital do Estado, como forma de desarticular quadrilhas que, antes, controlavam estes territórios como verdadeiros estados paralelos[28].

Com uma diminuição considerável do índice de criminalidade nas proximidades das favelas pacificadas, o fim dos tiroteios é o principal ponto positivo apontado pelos moradores das áreas pacificadas.  Para Luís Eduardo Soares, o fim dos tiroteios e da circulação de armas de fogo na mão de traficantes possui ligação direta com a queda dos índices de violência letal. Também são apontadas as maiores facilidades para entrada de novos serviços prestados à população.

Apesar destes pontos consideravelmente positivos, os críticos lembram que tais melhorias ocorreram principalmente no primeiro momento da instalação das unidades de polícia pacificadora. Tiroteios, inicialmente ausentes nas favelas pacificadas, voltaram a ser rotina principalmente no Complexo do Alemão, Vila Cruzeiro sendo emblemáticos os tiroteios na Corrida pela Paz, do Complexo da Penha ao Complexo do Alemão e a morte da policial Alda Rafael Castilho em confronto no Parque Proletário da Penha.

O ponto culminante para a crítica às unidades de polícia pacificadora foram as manifestações de junho de 2013, quando o caso do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo na Rocinha se tornou um símbolo da crítica ao programa ou mesmo ao reforço militar que as UPPs da Penha e Complexo do Alemão começaram a receber em resposta aos ataques a policiais destas unidades. Este reforço provocou movimentação de organizações e ambos os complexos de favelas, que emitiram um manifesto público sobre a presença militar.

Em termos culturais, as favelas ou comunidades passaram por uma profunda mudança em seus hábitos. A Resolução 13 (que regulamentou o Decreto estadual (RJ) nº 39.355, de 24 de maio de 2006) definiu as Unidades de Polícia Pacificadoras como responsáveis pela autorização de eventos dentro das favelas. Com isso, ficaram prejudicados os bailes funk, mesmo após revogação da resolução. Atualmente, moradores ainda enfrentam dificuldades em realizar eventos em suas comunidades.

Mesmo com as críticas, outros projetos semelhantes têm sido implantados em outros estados brasileiros: o governo do estado da Bahia criou as Bases  Comunitárias de Segurança (BCS) para atender às comunidades de Salvador e doutras cidades do interior; o governo do Paraná criou as Unidades  Paraná Seguro (UPSs) para atender às comunidades de Curitiba; o governo do Maranhão criou as Unidades de Segurança Comunitária (USCs) para atender às comunidades de São Luís; e o governo do Rio Grande do Sul criou os Territórios da Paz (TP). O governo do Rio de Janeiro também lançou o projeto das Companhia Integrada de Segurança Pública (Cisp), que atendem a alguns morros e favelas da cidade, com formato idêntico às UPPs.

Segundo o balanço de indicadores da Polícia de Pacificação que reuniu dados de todas as trinta e oito UPPS, a taxa de letalidade inclui o número de assassinatos e roubos seguidos de morto, voltou a crescer em 2014 a 2015, apesar de estar abaixo do índice outrora verificado antes do início do programa de segurança pública em 2008.

Com a intervenção do Governo Federal na segurança pública no Rio de Janeiro em 2018, decretou-se o fim das UPPs. A UPP surgiu como símbolo do processo de pacificação nas comunidades cariocas e, a primeira UPP apareceu no Morro Dona Marta, em Botafogo, na zona sul. E, a última destas, fora instalada na Vila Kennedy, na zona oeste. Foi considerado um dos mais importantes projetos de segurança pública.

Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal vigente determina que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previsão legal. E, também, considera como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito.

Sempre houve uma tendência cultural e histórica na tolerância institucionalizada aos abusos em prol de política criminal enfocada na punição de criminosos, soando como resposta à sociedade. O Ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ tem razão quando afirma que é preciso reavaliar o alto custo de condenações com lastro em abusos de direito. In:  VITAL, Danilo. País deve reavaliar custo de condenações com lastro em abuso de direitos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-09/entrevista-rogerio-schietti-ministro-stj  Acesso em 10.5.2021.

As milícias são hoje a expressão mais contundente do neoliberalismo autoritário, segundo Lia de Mattos Rocha, em que vivemos, onde a ilegalidade e a criminalidade são condição de possibilidade para a expansão dos mercados e para a repressão dos descontentes e expropriados. Combatê-las não é simples, mas é tarefa prioritária do Estado de Direito.

A Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012, cria mais uma figura penal inserindo-o em nosso Código Penal de 1940, tipificando as ações dos denominados grupos de extermínio e das milícias privadas[29]. Acrescenta, ademais, uma nova majorante ao crime de homicídio (§ 6º), quando praticado pelos referidos grupos. Igualmente, o crime de lesões corporais também é contemplado com majorante similar, nas mesmas circunstâncias, tendo redefinido seu parágrafo sétimo[30].

Importante sublinhar que o crime de constituição de milícia[31] não se confunde com os crimes que eventualmente essa entidade cometer, pois, somente o integrante ou “associado” que concorre, in concreto, isto é, que participa efetivamente da prática deste ou daquele crime responde por ele, e, nessa hipótese, em concurso material com o previsto no art. 288-A. Os demais membros ou integrantes do grupo ou da milícia respondem somente por esse crime (constituição de milícia privada), ou, se for o caso, por aqueles crimes para os quais tenham efetivamente concorrido.

Não é difícil imaginar o porquê do tráfico e milícia se relacionem às práticas evangélicas[32] que ficam imbricadas nas periferias[33]. “A subjugação de moradores é uma demonstração de força e de domínio. Uma atitude que combina crença religiosa com um modo de operação corriqueira do crime. Chama a minha atenção uma narrativa ‘moralizadora’ que vem acompanhando estas ações”, salienta a professora Christina Vital em entrevista concedida por e-mail à IHU On-line. In: SANTOS, João Vitor. A religião como símbolo de dominação das milícias nas periferias. Disponível em: https://contee.org.br/a-religiao-como-simbolo-de-dominacao-das-milicias-nas-periferias-entrevista-especial-com-christina-vital/  Acesso em 10.5.2021.

As milícias têm expressões também em 15 (quinze) Estados do país. “Se você olhar para a estrutura das milícias elas sempre irão atuar na lógica de quem tem grana naquela região. Então, ao se interiorizar, os grupos milicianos estão com o agronegócio, latifundiários, coronéis, grupos mineradores “, descreve José Cláudio. In: RioOnWatch. Milícias e Poder, Parte 2: Alves e Soares refletem sobre as múltiplas faces e fases. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=52019#prettyPhoto  Acesso em 10.5.2021.

Onde o Estado falta, o princípio de legitimidade é evocado e sustentado pela ideia de defesa, de segurança, construído em um lugar específico: o de morador que se liga ao de policial. A legalidade enfraquece-se diante do discurso de justiça pelas próprias mãos. Esse discurso é afetado pela ilusão de pertencimento.

Concluímos que a insegurança produzida pela franca violação dos direitos fundamentais, torna trivial existir na sociedade o culto do medo, onde os comportamentos sociais se adequam a nova realidade vivida pelos brasileiros, o que entristece os futuros juristas do Brasil, que hoje estudam e lutam para garantir direitos que são previstos na atual Carta Magna, se o Estado brasileiro que deveria, entretanto, não cumpre seu papel de dar a devida assistência ao tão questionado artigo 5º da Constituição Cidadã[34].

Enfim, esse efeito de evidência é um sintoma do real da segregação, pois o imaginário de pertencimento, de estar do mesmo lado, dentro, no mesmo espaço de direitos negados, nas mesmas condições de existência, sobretudo, esquecidos pelo Estado, confere à milícia concessão.

Paradoxalmente, a ascensão das milícias corresponde à decadência e omissão do Estado, enquanto instância organizadora e detentora da violência corretiva. Quando a violência se torna linguagem corrente, não corrige e nem inibe a criminalidade, apenas a torna mais cruel e, cada vez mais entranhada no contexto institucional, social e político.

Referências

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BITTENCOURT, Cezar Roberto. Constituição de Milícia Privada. Disponível em: https://cezarbitencourt.jusbrasil.com.br/artigos/121935991/constituicao-de-milicia-privada  Acesso em 10.5.2021.

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DUARTE, Thaís Lemos; RIBEIRO, Ludmila. As milícias fluminenses em tempos de Covid-19: Relatos de medos ambivalentes na imprensa? Disponível em: http://ippesbrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/07/artigo-4-1.pdf  Acesso em 10.5.2021.

FERREIRA, Roberta Miranda Cattermol da Rocha. Milícias: Poder Paralelo e Omissão do Estado. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2011/trabalhos_22011/RobertaMirandaFerreira.pdf  Acesso em 10.5.2021.

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Notas:

[1]  O Presidente Jair Bolsonaro alterou quatro decretos de 2019 que regulam a aquisição de armamento e munição por agentes de segurança e pelos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores). As medidas foram publicadas em edição extra do DOU (Diário Oficial da União) nessa 6ª feira (12.fev.2021). Eis os decretos de números 10.627 (282 KB), 10.628 (98 KB), 10.629 (143 KB) e 10.630 (164 KB). De acordo com o governo, “a medida desburocratiza procedimentos, aumenta clareza sobre regulamentação, reduz discricionariedade de autoridades e dá garantia de contraditório e ampla defesa”. Com esse entendimento, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, concedeu parcialmente liminar para suspender os trechos das normas que descomplicam a posse e porte de armas. A decisão passará por referendo pelo Plenário da corte. A liminar foi concedida no âmbito de uma das três ações diretas de inconstitucionalidades ajuizadas contra os Decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, que foram editados em 12 de fevereiro com previsão de entrada em vigor após 60 dias. A autoria da ADI é do Partido Socialista Brasileiro.

[2] O termo "milícia" na época do Brasil Império não possuía o mesmo sentido empregado que o atual, mas se assemelhava ao significado dicionarizado, no sentido de serem tropas auxiliares de segunda linha. As milícias surgiram, dentro no panorama social contemporâneo, como uma forma de segurança alternativa oferecida, com o intuito de acabar com o domínio exercido pelo tráfico de drogas nas comunidades carentes. A omissão do Poder Público, quando lesiva ao direito de qualquer pessoa, induz à responsabilidade civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de indenizar.

[3] A palavra “máfia” tem origem etimológica no dialeto siciliano mafia e significa coragem, bravura, excelência e elegância.  Difundida inicialmente como sendo um conjunto de associações sicilianas, regidas por princípios de segredo e silêncio solidário e que estabelecem leis próprias e buscam sobrepor-se ao poder constituído. A máfia mais antiga do mundo é a Cosa Nostra, igualmente conhecida apenas como Máfia, trata-se de sociedade criminosa secreta e que se desenvolveu na primeira metade do século XIX na Sicília, na Itália. Igualmente se desenvolveu no Estados Unidos (EUA).

[4] A origem da expressão é antiga e tem muitas versões. Uma delas é que na Antiguidade, em alguns lugares, a punição para certos crimes era marcar o criminoso a ferro quente, na testa. Criminosos ricos pagavam a certas pessoas para assumirem o crime e serem marcados no lugar deles.  Outra versão é que nas batalhas navais os líderes ficavam lá na popa do seu navio, protegidos, mandando para a proa combatentes que deveriam arrebentar os navios inimigos.

[5] Nos finais do século XV, longe ia o contexto do aparecimento das Ordens Militares, ocorrido na Idade Média Plena, quando os cluniacenses difundiam o ideal de um monarquismo vigoroso, a cavalaria se estabelecia enquanto grupo cristianizado e a Cruzada procurava a libertação dos lugares santos e o afastamento da ameaça islâmica sobre a Cristandade. No quadro peninsular, onde estas milícias se estabeleceram desde o século XII para combater os muçulmanos na Reconquista, conseguimos observar na charneira para a modernidade a sua faceta marcial, nem sempre considerada pela historiografia para esse tempo de transição bélica.

[6] Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco (Rio de Janeiro, 27 de julho de 1979 – Rio de Janeiro, 14 de março de 2018), foi uma socióloga e política brasileira. Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro para a Legislatura 2017-2020, durante a eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. Marielle defendia o feminismo, os direitos humanos, e criticava a intervenção federal no Rio de Janeiro e a Polícia Militar, tendo denunciado vários casos de abuso de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros junto de seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes, no Estácio, Região Central do Rio de Janeiro.

[7] As tropas auxiliares, posteriormente denominadas milícias, foram criadas em 7 de janeiro de 1645 no contexto da restauração do trono português após o período unificação com a Espanha, entre 1580 e 1640. Tinham como atribuições a manutenção da posse territorial, da ordem e da lei. Formavam, junto com as Tropas de Primeira Linha instituídas em 1641 e com as companhias de ordenanças estabelecidas em 1570, as forças militares de Portugal e seus domínios. As milícias brasileiras são herança ideológica do século XVIII.

[8] Scuderie Detetive Le Cocq ou Esquadrão Le Cocq foi uma organização extraoficial criada por policiais no Rio de Janeiro em 1965 e que atuou principalmente nas décadas de 1960, 1970 e 1980, sendo extinta por decisão judicial no início dos anos 2000. Essa organização matou ao menos 1,5 mil pessoas só no Espírito Santo e é considerada o primeiro grupo de extermínio fluminense.  Em 2015, policiais utilizando o nome da organização, sob a denominação Associação Filantrópica Scuderie Detetive Le Cocq, realizaram ação de panfletagem para incentivar a utilização do disque-denúncia. A associação era liderada pelos chamados "Doze Homens de Ouro" (um para cada casa do zodíaco), eram doze famosos policiais escolhidos pelo Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Luís França, para "limpar" a cidade e eliminar criminosos, travestis e moradores de rua.  Integravam o grupo os policiais Aníbal Beckman dos Santos (Cartola), Euclides Nascimento Marinho, Helio Guahyba Nunes, Humberto de Matos, Jaime de Lima, Lincoln Monteiro, Mariel Mariscot, Nelson Duart, Neils Kaufman (Diabo Loiro), José Guilherme Godinho (Sivuca), Vigmar Ribeiro e Elinto Pires.

[9] Bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro: Bangu, Barra da Tijuca, Campo Grande (bairro do Rio de Janeiro), Jacarepaguá, Realengo (Português) Capa comum – 27 junho 2011. Fonte: Wikipedia.

[10] Terceiro Comando Puro, conhecido também pela sigla TCP, é uma organização criminosa carioca, surgida no Rio de Janeiro, no Complexo da Maré no ano de 2002, a partir de uma dissidência do Terceiro Comando, liderada pelos traficantes Facão e Robinho Pinga. Em 1998, o Terceiro Comando (TC) aliou-se à facção Amigos dos Amigos (ADA), ampliando seus domínios. Após 11 de setembro de 2002, quando Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, liderou uma revolta no presídio Bangu I, matando alguns rivais, entre eles Uê, um dos líderes do TC. Celsinho da Vila Vintém, da facção Amigos dos Amigos (ADA), que não foi morto durante a rebelião, sendo acusado de traição, e que somado com desavenças entre Linho (um dos líderes da ADA) e Facão, gerou o rompimento da aliança com a ADA. Assim, os traficantes do então TC aliados de Linho passaram de vez para o lado da ADA, e os aliados de Facão migraram para a nova dissidência, o Terceiro Comando Puro (TCP). Lideradas pelos traficantes Robinho Pinga e Facão, o TCP se instalou em pontos de venda de drogas nas zonas norte e oeste do Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro de Bangu (Vila Aliança), Senador Camará, Complexo de Acari, Dendê, Parada de Lucas, Fumacê e Amarelinho. Há na Zona Norte e Oeste a grande concentração de territórios do TCP como o Complexo de  Acari e Amarelinho, Para-Pedro (Para-Paz), Parada de Lucas e Vigário Geral (Parada Geral), Muquiço, Morro dos Macacos, Cidade Alta,  Complexo do Dendê, Fumacê, Vila Aliança, Senador Camará , Complexo da Serrinha, Pedreira, Morro da Primavera, Brás de Pina, Cordovil, Costa Barros, Favela da Kelson´s, Guacha, São Leopoldo, Barro 3, Mineira, Vila do João, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau,  Morro do Dendê, Muquiço, Caju, Adeus, Lagartixa, Quitanda, Carvão, Morro do 18, Complexo da Alma.

[11] Comando Vermelho Rogério Lemgruber, mais conhecido como Comando Vermelho e pelas siglas CV e CVRL, é uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Entre os membros fundadores da facção, que se tornaram notórios depois de suas prisões, estão os líderes Rogério Lemgruber, Fernandinho Beira-Mar, Marcinho VP, Mineiro da Cidade Alta, Elias Maluco, Fabiano Atanazio (FB) e José Antônio de Freitas mais conhecido como Toninho do pó de Santa Rita de Jacutinga. O CV já possui ramificações em outros estados brasileiros como Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Espírito Santo, Acre, Pará, Maranhão, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Amazonas, Santa Catarina e algumas partes de Minas Gerais, Piauí, Paraíba, Pernambuco e da Bahia. Nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rondônia, Mato Grosso, Acre, Ceará e Tocantins o CV é maioria no sistema penitenciário.

[12] Em 1994, surge uma nova facção criminosa denominada de Terceiro Comando, formada da dissidência do Comando Vermelho e por policiais que passaram a integrar a organização. Depois, travou-se uma batalha entre as duas facções rivais pelo domínio dos pontos de venda de drogas nas favelas do Rio de Janeiro e o Terceiro Comando passou a dominar as comunidades localizadas nas zonas oeste e norte, áreas mais periféricas da cidade. Já em 1998, o Terceiro Comando aliou-se à outra organização criminosa, denominada Amigos dos Amigos (ADA), o que resultou no fortalecimento e ampliação daquela facção. Entretanto, em 2002, ocorre uma dissidência e surge o Terceiro Comando Puro.

[13] A União Democrática Nacional, fundada a 7 de abril de 1945 como uma “associação de partidos estaduais e correntes de opinião” contra a ditadura estadonovista, caracterizou-se essencialmente pela oposição constante a Getúlio Vargas e ao getulismo. Embora tenha surgido como uma frente, a UDN organizou-se em partido político nacional, participando de todas as eleições, majoritárias e proporcionais, até 1965. Seu principal adversário das urnas era o Partido Social Democrático (PSD), de representação majoritária no Congresso. Na Câmara dos Deputados a UDN manteve o segundo lugar até 1962, quando perdeu para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Elegeu governadores, especialmente no Nordeste, e integrou vários ministérios, inclusive no governo Vargas. Perdeu três eleições presidenciais consecutivas (1945, 1950 e 1955) e apoiou a candidatura vitoriosa de Jânio Quadros em 1960 e o movimento político-militar de 1964. In: União Democrática Nacional (UDN) FGV CPDOC. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/uniao-democratica-nacional-udn  Acesso em 9.5.2021.

[14] Sinopse: Violeiro cego conta (canta) a história de um menino cujo pai e irmão foram assassinados e que, a pedido da mãe, vai a um terreiro de umbanda para "fechar o corpo" (proteger-se pelos espíritos). Crescido, envolve-se com o crime e a contravenção na Baixada Fluminense, até que se envolve com amante do bicheiro e é jurado de morte — mas conta com a proteção do amuleto de Ogum.

[15] Palmeira dos Índios ocupa terras que um dia foram aldeias dos índios Xucurus. Foi criada como freguesia em 1798 e transformada em vila em 1835. Na década de 1840, uma disputa política brutal entre famílias, causa de dezenas de assassinatos, provocou o êxodo que praticamente esvaziou a vila. Anexada então a Anadia, Palmeira dos Índios só recuperou a autonomia anos mais tarde. Em 1889 foi elevada a cidade. Entre 1928 e 1930 a prefeitura foi exercida pelo escritor Graciliano Ramos (nascido na cidade de Quebrangulo, em Alagoas), que incluiu fatos do cotidiano da cidade em seu primeiro romance, Caetés (1933).

[16] O sociólogo tem obra interessante intitulada "Dos Barões Ao Extermínio Uma História Da Violência na Baixada Fluminense”. Muito oportuna e indispensável é a reedição, agora aumentada de um impressionante relato atualizador, na forma de Prefácio, do mais importante estudo sobre a violência na Baixada Fluminense já escrito até hoje. O seu autor, já o havia defendido como tese de doutorado na USP no final dos anos 90. Publicada a primeira edição em 2003, o livro rapidamente transformou-se em referência para os estudiosos. Mais que uma história da violência na Baixada Fluminense, como diz o seu subtítulo, o livro expressa pesquisa e militância, reflexão apaixonada e insights originais, além de narrar o terror cotidiano vivido por moradores e trabalhadores dos municípios da região. No livro de José Cláudio Souza Alves “Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense” está descrita a vinculação dos grupos de extermínio com a polícia e com a política.

[17] Ernâni Amaral Peixoto nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 14 de julho de 1905, filho de Augusto Amaral Peixoto e de Alice Monteiro Amaral Peixoto. Seu pai combateu a Revolta da Armada — levante de oposição ao presidente Floriano Peixoto que envolveu a esquadra fundeada na baía de Guanabara de setembro de 1893 a março de 1894 sob a chefia do almirante Custódio de Melo e mais tarde do almirante Luís Filipe Saldanha da Gama —, atuando no serviço médico da Brigada Policial do Rio de Janeiro. Dedicando-se depois à clínica médica, empregou em seu consultório o então acadêmico Pedro Ernesto Batista, vindo mais tarde a trabalhar na casa de saúde construída por este. Quando Pedro Ernesto se tornou prefeito do Distrito Federal, foi seu chefe de gabinete, chegando a substituí-lo interinamente entre 1934 e 1935. Seu avô paterno, comerciante de café, foi presidente da Câmara Municipal de Parati (RJ). Seu avô do lado materno, comerciante e empreiteiro de obras públicas arruinado com a reforma econômica de Rui Barbosa — que desencadeou o chamado “encilhamento”, política caracterizada por grande especulação financeira e criação de inúmeras empresas fictícias —, alcançou o cargo de diretor de câmbio do Banco do Brasil na gestão de João Alfredo Correia de Oliveira (1911-1914). Seu irmão, Augusto Amaral Peixoto Júnior, foi revolucionário em 1924 e 1930, constituinte em 1934 e deputado federal pelo Distrito Federal de 1935 a 1937 e de 1953 a 1955.

[18] Jagunço ou capanga era, no nordeste brasileiro, o indivíduo que se prestava ao trabalho paramilitar de proteção e segurança às lideranças políticas. O termo deriva do quimbundo, junguzu, ou do iorubá, jagun-jagun, ambos originados das palavras para "soldado". Segundo o Professor Gabriel Perissé, da Universidade de São Paulo (USP) em suas "Considerações Etimológicas" no livro Palavras e Origens, discorrendo sobre a considerável lista de palavras que não provêm do mundo greco-latino, após citar várias da herança tupi-guarani, que se incorporaram à nossa língua, e sobre a presença afronegra no português falado no Brasil, nos diz: “A presença afronegra na cultura brasileira, do ponto de vista da linguagem, é igualmente expressiva em particular mediante duas línguas, o quimbundo e o quicongo. Do quimbundo temos: "moleque"...A exclamação "babau"...e "jagunço" que é soldado. In: Jagunço. Wikipedia. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Jagun%C3%A7o . Acesso em: 9.5.2021.

[19] Com novas configurações e mudanças nos métodos de atuação, a milícia avança no Rio de Janeiro e expande suas influências para prefeituras e câmaras de vereadores, além de buscarem formas de “legalizar” suas ações. Para se ter uma ideia, os criminosos chegaram a criar uma associação de moradores para acionar a Defensoria Pública da União e assegurar o acesso de moradores de comunidades a habitações do programa Minha Casa Minha Vida.

[20] Muzema é uma favela não oficial, geograficamente é parte do Itanhangá, no Rio de Janeiro, Brasil. Por vezes é descrito como uma favela. A Muzema engloba outras comunidades menores, tais como Muzema propriamente, Angu Duro, Morro do Sossego, Regata e Cambalacho. A Muzema já era descrita na obra ficcional de Stanislaw Ponte Preta, Febeapá (O Festival de Besteira que Assola o País), como "um bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca", e pertencente à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital. Em 1983, foi criada a primeira associação de moradores, na área da Muzema propriamente dita, com apoio da Igreja Católica.  Em 2016, uma reportagem do jornal O Globo já denunciava uma série de construções irregulares no bairro, notadamente algumas até mesmo em áreas de proteção ambiental. A comunidade é uma área dominada pela milícia e ficou conhecida por graves desabamentos de dois prédios, ocorridos em 12 de abril de 2019, que deixaram vários mortos e feridos.

[21] Natalício Camboim de Mendonça Vasconcelos (1872-1956) foi um político e industrial brasileiro. Era filho do coronel João Carlos de Mendonça Vasconcellos e de Ana de Siqueira Cavalcanti Camboim (filha de Ana Olímpia de Siqueira Cavalcanti e Francisco Alves Cavalcanti Camboim, 1º e único Barão de Buíque). Empossado na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, seria sucessivamente reeleito em 1912, 1915, 1918, 1921 e 1924. De início, integrou a bancada liderada pelo líder republicano e senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado. Foi membro da Comissão de Diplomacia e Tratados da Câmara e um dos signatários, em 1915, do parecer favorável à aprovação do tratado denominado ABC, de arbitragem ampla entre Argentina, Brasil e Chile. Insinua-se que era contrário à transferência do terminal da estrada de ferro de Quebrangulo para Palmeira dos Índios, em Alagoas, por ter na primeira, terra de sua mulher, seu mais expressivo colégio eleitoral. Permaneceu na Câmara até dezembro de 1926, quando se encerrou seu último mandato e a legislatura. Natalício era padrinho de Tenório Cavalcante, o homem da capa preta, que foi batizado como Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque em homenagem ao deputado alagoano.

[22] O ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira morreu em 22.8.1976 calcinado sob as ferragens do automóvel em que viajava para o Rio de Janeiro, depois de um encontro com o ex-Presidente Jânio Quadros. O acidente ocorreu na altura do quilômetro 165 da Rodovia Presidente Dutra, próximo à localidade de Engenheiro Passos. O local do acidente ficou conhecido como "Curva do JK", antes conhecido como "Curva do Açougue". Mais de trezentas mil pessoas assistiram ao seu funeral em Brasília, onde a multidão cantou a música que o identificava: Peixe Vivo. Seus restos mortais repousam no Memorial JK, construído em 1981, na capital federal do Brasil, Brasília, por ele fundada.

[23] O fim da ditadura não acabou com os grupos de extermínio. Tanto que a Chacina da Candelária, em 1993, foi obra de um deles.  Atiradores dispararam contra 60 crianças e adolescentes que dormiam do lado da Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro.

[24] GOULART, Gustavo. Milícia invade apartamentos e vende imóveis em condomínio na Praça Seca, denunciam moradores. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/milicia-invade-apartamentos-vende-imoveis-de-condominio-na-praca-seca-denunciam-moradores-24699498.html Acesso em 9.5.2021.

[25] O vereador Jerônimo Guimarães (PMDB), da milícia chamada “Liga da Justiça”, e o deputado estadual Natalino Guimarães (ex-DEM), atuante na comunidade Rio das Pedras no Rio de Janeiro, condenados a dez anos de prisão por formação de quadrilha. Apesar do resultado expressivo da CPI das Milícias, com mais de 1.100 pessoas presas – até 2008, foram 219 policiais militares, deputado estadual e 791 civis -, a fonte de renda das milícias ainda não foi extinguida e, assim, continuam a existir.

[26] As áreas dominadas pela milícia na Zona Norte servem como locais operativos para convocar homens a qualquer momento com o objetivo de disputar territórios com o tráfico de drogas. Em geral, as milícias, aliados a outras facções como o Terceiro Comando Puro, entram em conflito com a facção Comando Vermelho. As milícias são formadas geralmente por quadros das Polícias Militar e Civil e dos Bombeiros e dominam cerca de 25,5% dos bairros, totalizando 57,5% do território da capital fluminense—segundo pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), Fogo Cruzado, Núcleo de Estudos da Violência da USP, Pista News e o Disque-Denúncia—além de dominar territórios e cidades da Região Metropolitana.

[27] O idealizador das UPPs no Rio de Janeiro, José Mariano Beltrano em 11.10.2016 pediu demissão do cargo. Segundo ele, a UPP foi uma anestesia que se deu num paciente que precisava de uma grande cirurgia. Essa cirurgia ou não foi feita ou foi malfeita, ou foi feita aos pedaços. Mas o desafio está ali, é possível, tem um rumo, há um norte para mitigar os problemas. O projeto de UPPs não está dando certo porque é débil em sua implementação, a retomada do território veio desacompanhada de outras medidas para dar conta das enormes lacunas sociais que caracterizam a cidade e estado do Rio de Janeiro”, afirma André Mendes, da FGV Rio.

[28] Há certo consenso entre os estudiosos de que a difusão das milícias é efeito de sua dominação política (CANO e DUARTE, 2012; WERNECK, 2015; COUTO e BEATO, 2019; ARAUJO, 2019). Alguns programas sociais levados a territórios de pobreza geram serviços urbanos e infraestrutura que animam as instituições locais — como uma associação de moradores controlada por milicianos — a realizar parcerias com o poder público. Quanto mais se expande em uma área, mais a milícia se introjeta na estrutura estatal (COUTO e BEATO, 2019), praticando ações ambíguas do ponto de vista legal. Cano e Duarte (2012) assinalaram que nas comunidades em que a milícia consegue uma forte implantação, a liderança local acaba por regular a totalidade das práticas de conduta e transações locais, independentemente de seu caráter lícito ou ilícito. In: DUARTE, Thaís Lemos; RIBEIRO, Ludmila. As milícias fluminenses em tempos de Covid-19: Relatos de medos ambivalentes na imprensa? Disponível em: http://ippesbrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/07/artigo-4-1.pdf Acesso em 10.5.2021.

[29] A novel infração chamada de constituição de milícia privada, a situação não é muito diferente, embora, pela estrutura da formação desse “novo” modelo de associação, possa produzir, in concreto, maior repercussão, mas pelos crimes que poderá cometer, normalmente, mais violentos e sanguinários, como veremos. No entanto, nesse caso, os crimes que o “grupo” praticar terão como objetos de tutela outros bens jurídicos, que não se confundem com o crime associativo em si, como pontificava Magalhães Noronha, examinando a figura da incitação ao crime (art. 286): “Diverso, consequentemente, é o bem jurídico, aqui contemplado, daquele que é ofendido pelo crime objeto da instigação, v. G., linchamento, assalto etc.”.

[30] A Lei 12.720/12 criou nova modalidade de reunião de pessoas para delinquir, que não se confunde com o concurso eventual, e tampouco com a formação de quadrilha ou bando, sem cogitar no concurso para ao tráfico de drogas ilícitas (art. 35 da Lei 11.343/06). Naquele há uma associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados; nesta, a associação para delinquir é duradoura, permanente e estável, com o objetivo de praticar, indiscriminadamente, crimes indeterminados. No concurso eventual de pessoas exige-se no mínimo dois participantes para formar o concurso (art. 29), embora o texto legal nada diga a respeito. Concurso eventual de pessoas é a consciente e voluntaria participação de duas ou pessoas na prática de uma mesma infração penal; na quadrilha ou bando a exigência mínima é mais de três associados (art. 288). Em outros termos, configura-se a quadrilha ou bando quando mais de três pessoas formam uma associação organizada, estável e permanente, com programas previamente preparados para a prática de crimes, indeterminados. Associação de forma estável e permanente, com a finalidade de praticar crimes, indiscriminadamente, é o que distingue a formação de quadrilha do concurso eventual de pessoas. Assim, a simples organização ou acordo prévio para a prática de crimes previamente determinados está mais para o concurso eventual de pessoas do que para formação de quadrilha, ao contrário do que se tem apregoado indevidamente.

[31] A paz social como bem jurídico tutelado não significa a defesa da “segurança social” propriamente. A rigor, bem jurídico tutelado imediato é a sensação ou o sentimento da população em relação a segurança social, ou seja, aquela sensação de bem-estar, de proteção e segurança geral, que não deixa de ser, em outros termos, uma espécie de reforço a mais da própria segurança ou confiança, qual seja, o de sentir-se seguro e protegido. Já se sustentava, nesse sentido, que “bem jurídico objeto desses crimes é o sentimento coletivo de segurança de um desenvolvimento regular da vida social, de acordo com as leis”. E, a nosso juízo, essa doutrina continua atualizada e vigente em nosso sistema jurídico.

[32] Um complexo de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro é conhecido como “Complexo de Israel”, local onde impera a ação de milícias e o tráfico de drogas, mas também muito próximos da prática evangélica. Traficantes e milicianos se anunciam como evangélicos e têm grande penetrabilidade nessas comunidades confessionais.

[33] Em entrevista à DW Brasil, o pesquisador Bruno Paes Manso, que é jornalista, economista e cientista político, autor do livro "A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, em parceria com a socióloga Camila Nunes Dias, cogitam sobre o discurso armamentista do presidente, a morte da vereadora Marielle Franco, e a ligação da família Bolsonaro com as milícias, que, segundo ele, é ideológica. "Bolsonaro sempre representou e defendeu uma ideia de milicianismo, essa ideia de que as leis muitas vezes atrapalham."

[34]  Há certa polaridade nos relatos da imprensa sobre as milícias em contexto de Covid-19, iluminando as contradições e ambiguidades em torno do assunto. Em alguma medida, este dado vai ao encontro de pesquisas sobre o tema (COUTO e BEATO, 2019; DUARTE, 2019; ARAUJO, 2017). Cano e Duarte (2012) pontuaram que o grau de adesão aos milicianos costuma ser variável nas áreas sob sua influência. Algumas pessoas os apoiam, outras os repudiam, ao passo que há aquelas sem uma opinião definida. Inclusive, um mesmo indivíduo que parece aderir às milícias em determinado momento pode, em outro, adotar postura diametralmente contrária. Um ponto comum nessas distintas narrativas é o medo. O sentimento parece imperar entre os moradores e os trabalhadores de áreas de milícias, mesmo quando alguns deles dizem enfaticamente que esses grupos criminais não impõem temor nas rotinas comunitárias.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Segurança Pública CF/88 Milícias Milicianos Poder Paralelo Chacinas CP

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