Mais um filtro recursal em andamento, para os recursos especiais

A inserção de mais um filtro recursal baseado em questão de relevância para os recursos especiais erige-se num critério profundamente subjetivo e afronta a segurança jurídica e incide em restrição obtusa do acesso à justiça.

Fonte: Gisele Leite

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Em 03 de novembro de 2021, o Plenário do Senado brasileiro aprovou Emenda Constitucional que criou novos requisitos para admissão de recursos especiais a serem apreciados e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como deu-se modificação, o texto retornará para nova análise da Câmara dos Deputados Federais.

Já denominada de PEC da Relevância busca descongestionar o Judiciário pátrio e reduzir sensivelmente o número de recursos especiais, e finalmente, garantir maior celeridade processual no STJ.

A referida PEC surgiu ainda em 2012, sendo aprovada em 2017 e, esse texto previa que o recorrente deve demonstrar a relevância de questões de direito federal e infraconstitucional no caso concreto.

Se não houver a relevância, bastará o voto de dois terços dos magistrados do STJ para não admitir o recurso. Sendo que tal critério passaria ser exigido somente para os recursos especiais posteriores à promulgação da Emenda Constitucional.

Elencou-se dentre as possíveis relevâncias a serem consideradas estão as ações penais, as de improbidade administrativa, causas de valor superior a quinhentos salários-mínimos, ações que possam acarretar inelegibilidade e, casos de possível contrariedade à jurisprudência prevalente do STJ.

Com esse filtro de relevância estima-se haver possível redução de volume de recurso em cinquenta por cento. Segundo o atual presidente do STJ, Ministro Humberto Martins a PEC visa corrigir distorção do sistema processual que admite que o STJ concentre missão em uniformizar a interpretação da legislação federal. Visa que deixe de atuar como sendo terceira instância, revisando decisões em processos judiciais onde o interesse é restrito aos jurisdicionados e, assim, venha a exercer efetivo papel constitucional.

A PEC conta com o apoio de diversos integrantes do Judiciário e, até o falecido Ministro Teori Zavascki, do STF colaborou para sua elaboração. Lembrando-se que o STF já possui um filtro recursal similar de repercussão geral, para a análise dos recursos extraordinários e, foi criado pela Emenda Constitucional 45 de 2004, o que colaborou em desafogar a Suprema Corte e reduzir o fluxo de recursos admissíveis.

No caso da repercussão geral[1] é mister que a questão controvertida tenha relevância "do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo" (art. 1035 § 1º CPC). Se aplicado ao recurso especial um filtro tão rigoroso, teremos, por exemplo, normas do novo CPC, merecedoras de pacificação, e que não alcançarão o STJ, eis que não detentoras de tal relevância.

Ou, em outro exemplo, poderemos ter cobranças bancárias novas e ilícitas, mas que por conterem menor importância econômica, deixarão de ser examinadas pela Corte.

Em verdade, a ausência do filtro de relevância faz com que o STJ funcione como mera instância de revisão de julgados dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, o que esmaece sua missão constitucional na apreciação de questões jurídicas de maior densidade e que não afetem a uniformização da jurisprudência.

De qualquer modo, tanto o STF como o STJ jamais poderá admitir que diante qualquer distorção cometida no uso dos filtros recursais deverá sempre haver remédio jurídico adequado, pois não é possível que se aceite de forma resignada que silenciosamente os tribunais de segunda instância se transformem em autênticos tribunais superiores.

É sabido que o STJ não julga, precipuamente causas sob aspecto subjetivo. Competindo-lhe a análise de recursos especiais, assim, decide sobre temas jurídicos que tragam segurança jurídica e uniformização do Direito.

De fato, tal filtro já é realizado pelos pressupostos rígidos de admissibilidade trazidos pela legislação constitucional vigente, tal como do prequestionamento e da impossibilidade de discutir-se matéria fática (conforme as súmulas 05, 07 e 211 do STJ).

Caso seja imposto tal filtro para os recursos especiais, deverá ser menos rigoroso do que a repercussão geral aplicada pelo STF, de forma que a lei que o regulamentar, deverá admitir que temas com potencial possa gerar inúmeras causas, ainda que tenham destaque político, jurídico, econômico ou social, mas que sejam entendidos como relevantes para a admissão do recurso especial.

Convém recordar a advertência do saudoso Barbosa Moreira sobre o temário mito da rapidez acima de tudo. Aconselha-se que a inserção de mais um rigoroso filtro recursal como óbice de interposição de recurso especial ao STJ deve, ser precedido de prévia e detida análise dos impactos e, não apenas da eficiência quantitativa do Judiciário e, não apenas da perspectiva qualitativa e, sim, em cotejo da garantia do devido processo constitucional, e da necessária coerência na uniformização decisória e da possibilidade de abarcar o acesso à justiça de forma democrática.

A tendência contemporânea de impor filtros recursais apresenta nítida restrição de acesso à jurisdição bem como afronta a segurança jurídica por faltar previsibilidade das decisões, pois poderá ocorrer diversas interpretações divergentes sobre um mesmo dispositivo legal contido em lei federal infraconstitucional que certamente não serão analisadas pelo STJ e, portanto, não galgarão provimentos vinculantes, em razão do filtro da relevante questão de direito exigido.

Os defensores da implementação dos filtros afirmam que deve existirem estudos empíricos feitos pelo CNJ apontando que os dez maiores litigantes do Brasil são, a saber: o setor público federal, os bancos, setor público municipal, setor público estadual, telefonia, comércio, seguros e previdência, indústria, serviços e conselhos profissionais.

E, se o repetitivos jurisdicionados que tanto congestionam o Judiciário, normalmente, tratando de questões de direito tão similares, o julgamento de recursos repetitivos ou julgamento por amostragem, com vinculação decisória, apresentam-se como sendo os mais adequados, do que simplesmente criar novos filtros restritivos, de forma indiscriminada com a única função de impedir a interposição de recurso especial.

Enfim, a criação sucessiva de novos filtros renega as garantias constitucionais além de focar numa perspectiva limitada em razão de mera eficiência quantitativa, a fim de reduzir as altas taxas de congestionamento de processos no STJ.

Há doutrinadores que entendem que a arguição de relevância muito se assemelha ao instituto alemão da grundsazliche bedeuting der rechsache.

E, conforme aduziu Arruda Alvim, em face da Repercussão Geral, este sistema de filtragem recursal encontra institutos análogos na Alemanha, nos EUA (writ of certiorari previsto na Rules of the Supreme Court of United States), na Argentina (gravidade institucional), no Japão (instituto análogo ao writ of certiorari norte-americano) e até mesmo no Brasil, quanto menciona a relevância da questão federal no recurso extraordinário. E, ainda, no Direito Processual do Trabalho, instituto denominado transcendência, um requisito político de exame prévio de recurso de revista e, que é previsto no artigo 896-A da CLT.

A OAB desde 2012 tem se manifestado contrária à proposta de filtro recursal e, mesmo quanto a repercussão geral já apresenta um nítido óbice à admissão do recurso especial, pois que apenas as matérias de relevância poderão ser admitidas e apreciadas.

Não esqueçamos que aferição e mensura dessa relevância ainda dependerá de critérios meramente subjetivos e, deverão ser pacificados em níveis estaduais.

Referências:

ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de. O recurso especial na Constituição Federal de 1988 e suas origens. Aspectos polêmicos e atuais do recurso especial e do recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1997.

_________________________________. Recurso Especial - fundamentação vinculada. Direito Processual Civil volume 2. São Paulo: RT, 2002.

COUY, Giselle. A tendência de ampliação dos filtros restritivos de recurso especial ao STJ e os seus riscos. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-tendencia-de-ampliacao-dos-filtros-restritivos-derecurso-especial-ao-stj-e-os-seus-riscos   Acesso em 03.11.2021.

MONTA, Vanessa Ferraz; MIRANDA, Rebeca Cristina. Repercussão Geral: o que é e sua importância para funcionamento do STF. Disponível em: https://www.politize.com.br/repercussao-geral-stf/ Acesso em 03.11.2021.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

NOGUEIRA, Luís Fernando Valadão. O pretenso filtro recursal da PEC 209/12. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/252098/o-pretenso-filtro-ao-recurso-especial-e-a-pec-209-12 Acesso em 03.11.2021.

ONODERA, Marcus Vinicius K.; DE FILIPPO, Thiago Baldani Gomes. (Coordenadores) Brasil e EUA: Temas de Direito Comparado. Vários autores. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2017.

ROMANO, Rogério Tadeu. A importante arguição de relevância. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87108/a-importante-arguicao-de-relevancia Acesso em 03.11.2021.

STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto - O precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

Notas:


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: PEC da Relevância Recursos Especiais STJ Questão de Relevância Filtros Recursais CPC/2015

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