Justiça estoica e a indiferença como ética
Por Gisele Leite.
A
influência inegável da filosofia estoica no Direito Romano. Pois o estoicismo
considera todos os seres humanos naturalmente iguais e livres, foi incorporado
ao Direito Romano por meio de dois de seus principais fenômenos: o ius
honorarium e Corpus Iuris Civilis.
O ius
honorarium, ao se tornar o ius civile, mais plástico e humano impediu, que os
romanos transformassem o seu sistema jurídico em um ordenamento mecânico e
rotineiro que apenas servisse para manter os privilégios de casta.
O Corpus
Iuris Civilis, a seu turno, é documento jurídico que apresentou a definição
de justiça do estoicismo e os princípios lastreados nesta corrente filosófica,
de forma a favorecer a ampliação da liberdade dos escravos e dos filhos perante
o poder paterno e a igualdade em termos de direitos e deveres, entre homens e
mulheres do Império Romano.
Justiça,
para os estoicos é a busca do máximo de afirmação possível. Permitir o máximo
de afirmação possível de tudo/todos. Diferente da Lei Tirana que impõe a
limitação, os estoicos procuram a Disposição para o alargamento da vida.
Quem
pratica injustiça comete impiedade. Como a natureza universal constituiu os
viventes racionais uns em vista dos outros, para se ajudarem mutuamente segundo
seu mérito e não se prejudicarem de modo nenhum, quem transgride esse decreto
comete impiedade, evidentemente, perante a mais augusta das divindades” – Marco
Aurélio, Meditações IX, §1º
Ab
initio, a filosofia estoica foi contextualizada e suas principais
característica foram apresentadas. São esclarecidos alguns conceitos do Direito
Romano que facilitaram a melhor compreensão de sua relação com o estoicismo, o
ius civile, o ius honorarium e as compilações justinianeias, as quais
foram concretizadas por meio do Corpus Iuris Civilis.
O
termo "helenismo" designa a influência da cultura grega em toda
região do Mediterrâneo Ocidental e do Oriente Próximo desde as conquistas de
Alexandre (323 a.C.) até a conquista romana do Egito em 30 a.C., a qual passou
a marcar a influência de Roma nessa região. O império de Alexandre foi
significativo não apenas pela hegemonia militar sobre tais terras, mas
igualmente, pela hegemonia cultural e linguística.
O
grego tornou-se uma língua comum e a moeda grega passou a ser aceita por todo o
império. Mas, como Alexandre não deixou descendentes, todo o
território
por ele conquistado foi dividido entre seus principais generais. Apesar disso,
a influência grega permaneceu ainda durante vários séculos da Mesopotâmia ao
Egito.
Filosoficamente,
o helenismo se estendeu ao Império alexandrino até o início da filosofia
medieval, com Santo Agostinho e Boécio, uma vez que a influência de escolas
filosóficas fundadas no início do helenismo permaneceu durante o Império
Romano.
O
helenismo é basicamente marcado por uma preocupação central com a ética, sendo
entendida em sentido prático como o estabelecimento de regras do bem viver. E,
tal preocupação é notada em uma das principais correntes do helenismo: o
estoicismo. Basta ler o Manual de Epicteto, filósofo estoico do período romano.
(950-125).
Com o
término da pólis grega, depois a conquista da Grécia por Alexandre, o
homem grego perdeu sua principal referência ético-política, a vida na
comunidade a que pertencia enquanto cidadão, reduzida muito pela centralização
do poder político.
Enfim,
o homem necessitava, portanto, de uma ética com forte conteúdo prático, que lhe
conferisse as referências quanto às regras de conduta e lhe apontasse o caminho
para a busca da felicidade pessoal, nesse novo contexto pluralista.
A
escola estoica fora fundada em Atenas em 300 a.C., por Zenão de Cítio (332-262)
e, o termo "estoicismo" deriva da stoa poikolé, ou pórtico pintado,
local em Atenas onde os estudiosos da escola se reuniam. E, a doutrina estoica
fora posteriormente desenvolvida por Zenão, Cleantes e Crisipo.
O
estoicismo observa uma estreita relação entre physis e o ethos,
assim o homem é parte do universo e, para ter uma conduta ética que assegure
sua felicidade, suas ações devem estar em consonância com os princípios
naturais e com a harmonia do cosmo, o qual dá equilíbrio a todo o universo,
inclusive ao homem. Há uma espécie de energia, um logos, que determina
como as coisas são, as quais são exatamente como devem ser.
O destino reflete a racionalidade do real e
para que cada ser seja completo e integrado ao universo, precisa viver segundo
a sua específica natureza que, no caso do homem, significa viver racionalmente.
Para
os estoicos, a liberdade difere daquela fixada pelos filósofos gregos até
então. Liberdade não seria a liberdade política, de participar das decisões da
pólis, mas sim, a liberdade de pensamento. Existe no ser humano como algo que é
imune a qualquer poder: a liberdade
interior. De fato, o governante pode estabelecer uma certa ordem constituída,
mas não pode obrigar o homem a pensar de acordo com ela.
Para
os doutrinadores estoicos há um Direito Natural segundo o qual todos os seres
humanos são naturalmente iguais e naturalmente livres. Sendo natural é que o
homem pense livremente.
Mas,
ele também deve poder agir livremente, de modo que, para esses filósofos, a
liberdade do Direito Natural, princípio orientador para homens e deuses, deve
ser garantido por meio do Direito Positivo, estabelecido pelo homem para
regular a vida em sociedade. A escravidão, portanto, não seria natural, como
afirmavam Platão e Aristóteles, mas determinada pelo próprio homem.
Para
os estoicos, o bem é virtude que possui quatro facetas principais, a saber: justiça
(hábito de dar a cada um, o que lhe é devido), sabedoria, coragem[1] e temperança[2]. A felicidade (eudaimonia)
consiste na tranquilidade (ataraxia) ou ausência de perturbação, na qual se
alcança o bem.
E, tal
status somente pode ser galgado por meio de autocontrole, de contenção e
da austeridade, aceitando-se o curso dos acontecimentos estabelecidos pelo
logos. Esse seria um ideal ético, difícil de ser alcançado, mas o homem deverá
almejá-lo e buscá-lo para alcançar a felicidade.
Depois
do século I, o centro do estoicismo desloca-se para Roma, e um de seus
principais representantes fora Sêneca[3], Epitecto e Marco Aurélio imperador
romano após 161. Já o estoicismo latino deu ênfase a filosofia prática e em uma
concepção humanística que valoriza a indiferença (apatheia) e o
autocontrole. E, influenciou muito dois fenômenos do Direito Romano: o ius
honorarium e o Corpus Iuris Civilis.
Importante
salientar que a história do Direito Romano abarca grande número de divisões baseadas
em diferentes critérios. Uma dessas divisões estabelece quatro épocas para a
história externa, correspondentes às formas de governo do povo romano: época
real (até 510 a.C.), época republicana (509 a.C., 27 a.C.), época do Principado
(26 a.C. a 284) e época do Dominato (285-565).
No que
tange à história interna, há aqueles que a dividem em três épocas, o período do
Direito Antigo que vai até a Lei Ebúcia ou Lex Aebutia[4]
que teve suas origens entre 149 a.C., e 126 a.C., o Direito é simples, mecânico,
casuístico, rigoroso e formal, de forma que sua atuação se dá de maneira
uniforme.
Isso
significa que o direito, cuja principal expressão é o ius civile, realiza uma
igualdade puramente mecânica, sem se flexionar para atender à equidade. Já no
período clássico, que termina no reinado de Diocleciano (244-311) no ano de
305, o formalismo entra em decadência e os juristas renunciam às formas
absolutas e passam a aplicar a summa ratio, a razão superior, fundada na
equidade e que atenua os rigores do direito para adequá-lo ao caso concreto por
meio do ius honorarium.
Na
época do direito clássico, a jurisprudência é definida como o conhecimento das
coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto.
No
século IV a. C., inicia-se a secularização da jurisprudência romana e, no
século III a.C., tem início o ensino público do direito. Desde então, os
jurisconsultos passam a desfrutar de imenso prestígio e exercer forte
influência sobre o Direito Romano por meio de três aspectos de sua atividade; cauere,
agere e respondere.
A
expressão “cauere” indica a atuação do jurista na formulação e redação
dos negócios jurídicos para evitar prejuízo à parte interessada, por inobservância
de formalidades. Já a expressão agere corresponde à atividade no que
tange ao processo, semelhante à desenvolvida no cauere, e a expressão respondere
se refere aos pareceres de jurisconsultos sobre as questões de direito
controvertidas.
No
período do direito pós-clássico que vai até a morte de Justiniano (483-565) há
decadência no âmbito do Direito Romano a partir de Constantino, pois as obras
jurídicas passam a ser simples compilações e a legislação passa a ser
caracterizada pela impropriedade técnica. No entanto, no governo de Justiniano,
a jurisprudência volta a ter um papel central e o imperador, reconhecendo a
importância do Direito Romano, empreende um importante trabalho legislativo e
de compilação jurídica chamada Corpus Iuris Civilis.
O ius
civile ou Direito Civil é uma expressão do Direito Romano oriunda de fontes
legislativas e da doutrina dos jurisconsultos e indica o direito efetivamente
aplicado à sociedade romana. Apesar de estar fortemente relacionado à
praticidade e à utilidade, tem caráter excessivamente formalista, antigo, frio,
estrito e causa uma série de problematizações, devido ao fato de a stricto
ratio, razão estrita utilizada, permitir incongruências jurisprudenciais,
como a invalidação de um contrato ligado a uma árvore devido ao fato de, no
plano formal, ter sido declarada a palavra "videira", especificadora
e não a palavra "árvore". Por outro lado, o Direito civil já almejava
atingir um ideal de segurança jurídica, por meio da forma.
‘O ius
civile é plenamente efetivado durante toda a fase do Direito Antigo.
Entretanto, a partir do início do período clássico, o formalismo entra um
processo de decadência. Surgiu, então, o ius honorarium, o Direito do
Honorário, mais novo, plástico, liberal e humano e, menos formalista. Ao
contrário do ius civile, o ius honorarium não se limita às fontes
formais, sendo oriundo do édito, dos magistrados[5].
Anteriormente,
ao surgimento do ius honorarium, o édito dos magistrados já existia, e sua
função era corrigir a aplicação do ius civile, quando este lhe parecesse
iníquo. Contudo, tal faculdade, se estendeu expressivamente após o advento da
Lei Ebúcia que, na metade do século II antes de Cristo, introduziu o processo
formulário, o qual, ao substituir a leges actiones, levou os magistrados a
redigirem os documentos acerca de suas decisões.
Esses
documentos paulatinamente, arrogaram direitos de denegar ações tuteladoras de
direitos provenientes do ius civile e, ainda, de criar ações não previstas no
ius civile que fossem consideradas como dignas de tutela. Ao invés de uso cego do objeto formalista, o
magistrado busca o chamado "verdadeiro" na razão, na compreensão do
que seria o mais adequado ao caso interpretado, e não na aplicação pura do ius
civile. Devido à eficácia atribuída a esse novo poder da magistratura,
percebeu-se o ius honorarium como fonte de direito.
A
partir dessa percepção, os juristas passaram a renunciar à stricto ratio e a
contrapô-la à summa ratio, razão superior, com base na equidade. A equidade é o
instrumento utilizado pelo magistrado para tornar o ius honorarium mais
plástico e humano.
É o
critério mediante o qual para casos iguais se aplicam decisões iguais. Impede,
portanto, que o direito se torne imóvel, pois pela adaptação do ius civile,
frio e genérico, evitava a estagnação em uma forma rígida e objetiva, permitindo,
assim, que o juiz leve em consideração as peculiaridades específicas do caso
concreto quando aplica o texto genérico da lei.
No
entanto, é preciso ressaltar que a aplicação do princípio da equidade, embora
não precise ser cega e materialmente rigorosa, deve ser feito de modo que
precisa a fim de não dar margem a quaisquer incertezas.
Não
obstante sua função corretiva e complementar do ius civile, não era sempre que
o ius honorarium entrava em choque com o direito formalista, e em muitos casos,
o magistrado apenas confirmava ou completava o ius civile com seus éditos.
E, por
causa de tal características, é possível perceber por que o ius civile e
o ius honorarium, visivelmente distintos durante o período
clássico, deixam de ser diferenciados no governo do Imperador Justiniano. O
primeiro passo para essa mudança está na Constituição Antonina[6], de 212, a qual
estabelecia que todos os nascidos livres do Império Romano teriam direito à
cidadania romana. Apesar de essa política vise à obtenção de aliados para o
esforço militar expansionista de Roma, ela acabou, indiretamente, propiciando
maior igualdade entre os povos que viviam no território romano imperial.
Em
Justiniano, a jurisprudência recebe um novo impulso, pois os juristas passaram
a estudar as obras dos clássicos sem se limitar a explicar estes, mas tentando
lhe extrair os princípios jurídicos dominantes e, dessa forma, deduzir-lhes as
consequências. Tal situação é proporcionada pelo período de decadência na
criação da jurisprudência ao longo do Dominato[7], no século V, visto que,
mediante as baixas perspectivas de criação relacionada ao Direito, o movimento
do estudo dos juristas clássicos reiniciou-se, e, assim, forneceu ao imperador,
o material necessário à elaboração do Corpus Iuris Civilis.
O Corpus
Iuris Civilis agrupou todo o Direito Romano, inclusive as obras dos
jurisconsultos, em um só corpo, o qual foi publicado entre os anos 529 e 534.
Os glosadores da Escola de Bolonha, no século XII,
utilizaram
esta expressão para diferenciar todo o Direito Romano do Corpus Iuris Canonici,
ou seja, do Direito Canônico. Entretanto, o pertencente à união das compilações
de Justiniano remete-se à união de textos que se referem à lei (lex) em sentido
amplo, como fonte de obrigação que dá nascimento a relações obrigacionais,
tomando-se, como pressuposto, o sentido de fato jurídico para tal fonte.
Quanto
ao conteúdo do Corpus Iuris Civilis, diz-se que é formado, basicamente,
pelo Digesto (533), pelas Institutas (533), pelo Código Novo (534) e pelas
Novelas. Alguns autores consideram o Código Antigo, de 529, como parte de tal
corpo, mas o fato de não se ter resquícios históricos confiáveis para
comprovação de tal fato leva-nos a mencionar apenas os quatro citados.
Já a
obra mais relevante de Justiniano, o Digesto, é uma compilação, uma espécie de
enciclopédias que agrupavam matérias tanto do direito civil quando do direito
honorário. Formado por cinquenta livros distribuídos em sete partes e, tinha,
como fito a consolidação da iura, unívoca, sem mais separações entre a parte
formal e a proveniente da razão do magistrado.
Devido
ao fato de ter sido formulado em apenas três anos, o resultado da compilação
mostrou-se imperfeito, pois a recomendação de se evitar antinomias e
repetições, feita por Justiniano, não foi observada. Entretanto, o Digesto foi
de grande utilidade para o Império Romano do Oriente, e até hoje é visto como
um “rico e precioso repositório” porque possui literatura jurídica de grande
parte dos mais ilustres jurisconsultos romanos.
As Institutas[8],
ou Instituitiones, são um manual elementar de Direito Privado Romano
para o uso de estudantes de direito em Constantinopla. São divididas em quatro livros e tem como
objetivo a exposição didática dos direitos civil e honorário, sem distinção, e,
por isso, não são constituídas por fragmentos ou leis propriamente ditas, como
ocorre no Digesto. Entretanto, além das
pretensões iniciais, acabaram tendo, por ordem de Justiniano, força de lei.
Um ano
após a formulação do Digesto e das Institutas, o Código Novo foi publicado e sua
função era sanar as contradições existentes entre o Digesto[9] e o Código Velho (Novus
Instinianus Codex). E, em resumo, o Código Velho, mas atualizado e
relacionado às novas determinações legais provenientes do aparecimento do
Digesto e das Institutas. O Código Novo, componente do Corpus Iuris Civilis,
divide-se em doze livros e, é o que chegou íntegro até nós.
A
palavra “novelas”, proveniente de novellae, significa novas leis. Assim como seu significado etimológico
pressupõe, as novelas do Corpus Iuris Civilis são a reunião das
constituições promulgadas por Justiniano posteriormente às três compilações
supracitadas e introduziam modificações na legislação até então em vigor, a fim
de atender aos novos casos que surgiam.
Era
intenção de Justiniano reunir as 177 promulgações em corpo distinto, tal como
fora feito com os outros elementos do Corpus Iuris Civilis, mas o
imperador morreu antes de concluir seu projeto.
Embora
não sejam consideradas como elemento-base do Corpus Iuris Civilis, convém
mencionar as Cinquenta Decisões (Quinquagenta Decisiones), feitas para
solucionar controvérsias em jurisconsultos antigos, porque antecedem a
formulação das compilações justinianeias, e é a partir delas que surge a ideia
de se compilar as iura, objetos de determinação do Digesto.
Além
das Quinquagenta Decisiones, há, como posterior suprimento das compilações, as
interpolações, que possibilitavam, por meio de substituições, supressões e
acréscimos aos fragmentos, a aplicação prática dos iura e das leges do Corpus
Iuris Civilis.
Entre
os vários sistemas filosóficos gregos que os romanos conheceram, o estoico foi
o predileto da alta cultura. Os princípios estoicos eram sistematicamente
ensinados nas casas nobres de Roma, de modo que os jovens aprendiam o que era a
virtude com base nas vidas exemplares de Zenão, Cleantes e Epicteto. Isso fez
com que o estoicismo se tornasse “a fonte filosófica sem a qual o Direito
Romano não poderia ter atingido o grau de desenvolvimento que o caracterizou na
época imperial”.
O
enraizamento do estoicismo na mentalidade jurídica latina pode ser demonstrado
por intermédio da semelhança entre o conceito de jurisprudência de autoria do
jurisconsulto Ulpiano (150-228) e a definição de lei atribuída a Crisipo,
presente em um fragmento do Digesto.
Em
ambas as definições, o direito apresenta, simultaneamente, natureza sagrada e humana,
e o estoicismo foi a única corrente filosófica da Antiguidade que concebeu
homens e deuses vivendo sob a mesma legislação. Para Crisipo, “a lei é a rainha
de todas as coisas humanas e divinas, tributária do logos racional que
permeia o universo”, ou seja, ele concebia o conhecimento da ciência do direito
como conhecimento das coisas humanas e divinas.
Além
disso, assim como a lei de Crisipo[10] se dirige aos homens para
lhes mostrar o que é certo e errado, a jurisprudência de Ulpiano não se limita
a ensinar o justo, mas também o injusto, pois, para ambos, se deveria ter um
conhecimento integral da justiça. A lei somente poderia ser compreendida de
modo integral pelos sábios, os quais a cumprem não por medo da sanção negativa,
mas pela convicção acerca de sua necessidade e utilidade para a vida humana.
Segundo
Matos, a jurisprudência romana se apresenta como ciência total, pois caso se
limitasse unicamente ao justo, não iria conhecer de maneira completa o fenômeno
sobre o qual se debruça.
Para
compreendermos o que é lícito, devemos saber também acerca do ilícito. A
exigência de totalidade presente na formulação de Ulpiano remonta à doutrina
estoica, que se define como conhecimento integral do mundo, entrelaçando os
conteúdos da Física, da Lógica e da Ética.
No
Digesto também é possível encontrar um trecho que recomenda aos juízes não se
irritarem contra os maus, nem chorarem devido às lamentações dos infelizes,
pois convém ao julgador manter um comportamento constante e reto de modo a
salvaguardar a sua dignidade.
Em outra
passagem, aconselha-se que o julgador seja acessível às partes, mas evite a
familiaridade, pois da intimidade comum pode nascer o desprezo pela dignidade.
Tais recomendações fundamentam-se na figura do sábio estoico, inabalável diante
das alegrias e das tristezas da vida, as quais não são verdadeiros bens e
males. O único bem é a virtude e o único mal consiste em perdê-la.
A
justiça, para o estoicismo, depende da habitualidade de se praticar o bem, a partir
de uma decisão voluntária do ser racional. A definição de justiça de Ulpiano,
presente no Digesto, foi, portanto, influenciada pela doutrina estoica:
“vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito”. Além disso, os
famosos princípios axideontológicos do Direito Romano – honeste vivere, alterum
non laedere e suum cuique tribuire, elencados por Ulpiano no Corpus Iuris Civilis,
também foram nitidamente extraídos da filosofia estoica.
O
princípio honeste vivere indica que o Direito deve zelar para que as relações
entre os homens se baseiem na honestidade e boa-fé de cada um, de acordo com a
reta razão e com os bons costumes. O princípio do nemine laedere
significa que não lesar é o fundamento da responsabilidade de toda a ordem
jurídica e que o exercício dos direitos encontra limites nos direitos das
demais pessoas inseridas na vida social.
Já o princípio
suum cuique tribuire indica que o Direito deve conferir a cada um o que
lhe é devido, de modo que todos realizem suas potencialidades enquanto seres humanos.
Viver
honestamente, conforme a moral característica do homem médio, é viver em
conformidade com a natureza racional do logos para alcançar a perfeição e a
felicidade, ou seja, segundo a lei moral individual do estoicismo. Não causar
dano significa respeitar os direitos dos homens, dentre os quais se sobressai a
liberdade e sua expressão concreta, a propriedade.
Tal
princípio fundamenta-se no pressuposto estoico de que todos os seres humanos
são igualmente livres, de modo que cabe a todos os indivíduos respeitar tal
liberdade.
A
principal contribuição do estoicismo para o desenvolvimento do Direito Romano,
segundo Arnold, foi a noção de que ele deveria se tornar uma “lei comum” que
garantisse a liberdade e a igualdade do Direito Natural estoico e fosse,
portanto, capaz de impedir os romanos
de
transformarem o seu sistema jurídico em um ordenamento mecânico e rotineiro que
apenas servisse para manter os privilégios de casta. É notória a influência
dessa noção nos preceitos do ius honorarium.
Conscientes
da missão universalizante do Direito, os magistrados da República concebiam-no
como um sistema de princípios aptos a harmonizar as contradições do próprio
ordenamento jurídico, sobressaindo a ideia de equidade. A tarefa da jurística
romana nos parece ser a adaptação dos postulados da razão natural estoica às
condições da vida em sociedade, sendo que tal processo teria se concretizado
nas adequações que o ius honorarium efetivou em relação ao ius civile.
Ao
flexibilizarem as normas estanques do antigo direito civil diante dos inúmeros
casos verificados na realidade concreta, os juristas supriam-no e corrigiam-no
tendo em vista a utilidade pública59. Tal esforço teve sua origem com Scevola e
seu questor Rutilius Rufus (158 a.C-78 a.C), que se opuseram é extorsão
dos publicanos61 nas províncias asiáticas, declarando inválidos todos os
contratos desonrosos, ainda que tivessem sido celebrados conforme as
formalidades do ius civile. A aplicação do princípio da equidade regrediu nos
governos tirânicos dos imperadores Júlio-Claudianos, mas voltou a florescer sob
a direção dos antoninos.
A
ideologia estoica[11], consequentemente,
incrustou-se nas sentenças e nas normas jurídicas do Direito Romano por meio do
ius honorarium, sendo que elas nos chegaram mediante o Corpus Iuris
Civilis. A construção desse corpo jurídico sistemático, coerente e unitário
se deu em função da ação dos jurisconsultos romanos, sendo que muitos deles
estavam comprometidos com a filosofia estoica e empenhados em modificar qualitativamente
o direito positivo em Roma de modo a aproximá-lo, cada vez mais, do Direito
Natural estoico.
No que
tange à escravidão, a doutrina dos jurisconsultos foi revolucionária, uma vez
que eles se opuseram frontalmente ao direito positivo da época ao aceitarem a
lição estoica da igualdade natural entre os homens, posição ideológica
claramente divergente de Platão e Aristóteles.
Apesar
de terem que se subordinar às instituições estabelecidas pelo direito civil de
Roma, tal fato não os impediu de criar normas protetivas destinadas aos
escravos.
As
condições de vida dos escravos melhoraram de maneira gradativa ao longo do
Império Romano, quando lhes foi permitido casar e obter reparação em caso de
tratamento brutal. Para os jurisconsultos, portanto, o escravo deveria se
aproximar à categoria de pessoa (persona) ao invés do campo da coisa (res).
O
preceito alterum non laedere também foi sendo aplicado aos escravos com
o passar do tempo devido ao constante labor da jurisprudência romana. Tal se
realizou mediante quatro princípios, de clara influência estoica.
Laferrière
os lista, sendo que esses princípios podem ser encontrados no Corpus Iuris
Civilis:
1. Se
a liberdade é dada tendo em vista condições alternativas, deve-se realizar a
mais fácil.
2. Na
dúvida, deve-se privilegiar a interpretação que realiza a liberdade.
3.
Muitas coisas são constituídas contra o rigor do direito e em favor da
liberdade.
4. A
sentença a favor da liberdade é irretratável.
Tais
princípios, o Imperador Antonino Pio (86-161), por exemplo, vetou aos cidadãos
romanos e a todos que se encontrassem no Império o uso de violência excessiva e
desmotivada contra os cativos, estatuindo que aquele que matasse o seu escravo
receberia a punição como se tivesse assassinado escravo alheio.
Já o
Imperador Marco Aurélio, por meio de uma Constituição Imperial, garantiu
àqueles que fossem libertados por testamento o gozo de tal privilégio ainda que
o herdeiro principal não quisesse ou não pudesse aceitar a sucessão.
O
pátrio poder também foi sendo gradualmente limitado pela jurisprudência com
base nos referidos princípios, uma vez que o poder de vida e morte de que o pai
gozava sobre os filhos no tempo das XII Tábuas ofendia o princípio básico da
dignidade da pessoa humana e a liberdade.
Para
os estoicos, o poder deve estar na autoridade moral do sábio, e não na força e
na ameaça. Uma Constituição Imperial de Alexandre Severo (209-235) retirou do
pai de família o poder de vida e morte sobre os seus familiares, substituindo-o
por um poder de correção.
Caso fossem
necessárias medidas mais rigorosas, um magistrado deveria pronunciar sua sentença
tendo em vista o direito. ressaltar que os quatro princípios do Corpus Iuris
Civilis, elaborados a partir dos princípios de liberdade e igualdade, representaram
uma progressiva equalização entre homens e mulheres. Desde tempos imemoriais,
as mulheres romanas eram tuteladas pelo pai ou pelo marido, não importando a
idade ou a condição social.
A
jurisprudência foi sendo cada vez mais contrária a esse preceito, até que o
Imperador Cláudio (10 a.C.-54) estabeleceu que aos 12 anos completos a mulher
romana não precisava de tutores. Além disso, a Lex Iulia de Adulteriis
(18 d.C.), que punia o adultério como um crime gravíssimo e que vinha sendo
usada somente para proteger os interesses do cônjuge varão, começou a ser
empregada para punir não somente a esposa adúltera, mas também o marido que
incorresse no delito.
A
filosofia estoica[12], inicialmente ensinada
nas casas nobres de Roma, foi, portanto, aumentando gradativamente sua
influência sobre o Direito Romano. Tal influência começa a se manifestar de
maneira significativa no ius honorarium, quando os magistrados suprem as insuficiências
do ius civile tendo como referência o princípio da equidade, e culmina com
o Corpus Iuris Civilis, no qual se encontram trechos fundamentados no ideal
de liberdade do estoicismo e que foram utilizados na aplicação do direito para
garantir uma liberdade efetiva àqueles que viviam sob a jurisdição do Império
Romano.
O
império de Alexandre, mesmo após sua dissolução, influenciou o desenvolvimento
do Direito Romano tal como é estudado atualmente. A filosofia do helenismo é
fundamentalmente marcada por uma
preocupação
central com a ética, sendo esta entendida em um sentido prático ao estabelecer
regras do bem viver. Com o fim da polis grega, após a conquista da Grécia por
Alexandre, o homem grego perdeu sua principal referência ético-política: a vida
na comunidade a que pertencia enquanto cidadão, reduzida fortemente pela
centralização do poder político.
A
necessidade de buscar uma razão prática para retomar uma referência de como
viver em comunidade influenciou o surgimento da filosofia estoica, fundamentada
no princípio de que todos os homens são naturalmente iguais e naturalmente
livres. Essas ideias permearam o Direito Romano[13] principalmente por meio
de dois fenômenos jurídicos: o ius honorarium e o Corpus Juris
Civilis.
O ius
honorarium flexibilizava as normas do ius civile, adequando-o ao caso
concreto e harmonizando as contradições presentes no próprio ordenamento
jurídico, de modo a trazer para a sociedade romana a liberdade e a igualdade do
Direito Natural estoico.
Conscientes
da missão universalizante do direito, os magistrados da República concebiam-no como
um sistema de princípios aptos a harmonizar as contradições do próprio ordenamento
jurídico, sobressaindo a ideia de equidade no ius honorarium.
Somente
com a manifestação significativa do ius honorarium foi possível o fortalecimento
dos magistrados e, assim, a formulação aperfeiçoada do Digesto, das Institutas,
do Código Novo e das Novelas, que culminou, por fim, no agrupamento do Corpus
Iuris Civilis, utilizado até hoje como referência legislativa.
A
liberdade estoica influenciou os famosos princípios axideontológicos do Direito
Romano – honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuire,
elencados por Ulpiano no Corpus Iuris Civilis. Tais princípios têm como
fundamento inicial a necessidade de o ser humano viver segundo sua natureza,
que reflete a racionalidade do real, a equidade e a valorização do
autocontrole. Não apenas a orientação de se viver com honestidade e boa-fé, mas
também a própria sistematização usada no Corpus Iuris Civilis, são
inerentes ao Direito Natural estoico de liberdade.
Os
efeitos da influência do estoicismo no Direito Romano foram amplos, permitindo,
inclusive, que a aplicação das normas jurídicas vigentes tornasse a sociedade
mais livre e igual.
Ampliou-se
a interpretação de determinadas leis, como a Lex Iulia de Adulteriis[14],
que deixou de punir apenas o adultério praticado pelas mulheres e passou a
punir também o adultério praticado pelos homens. Além disso, os escravos
passaram a se aproximar da categoria de pessoa em detrimento da de coisa, podendo,
inclusive, casar e obter reparação em caso de tratamento brutal.
A Lex
Julia sobre o adultério era prevista (Institutas 4, 18, 2-3) Os processos
públicos são os seguintes. a Lex Julia para a supressão do adultério pune com a
morte não apenas aqueles
que
desonram o leito conjugal de outra pessoa, mas também aqueles que se entregam a
indescritível luxúria com homens.
A
mesma Lex Julia também pune o delito de sedução, quando uma pessoa, sem
o uso da força, deflora uma virgem ou seduz uma viúva respeitável. A pena
imposta pelo estatuto a tais infratores é o confisco de metade de seus bens se
forem de condição respeitável, castigos corporais e banimento no caso de
pessoas de classes inferiores.
Mas no que diz respeito às disposições da Lex Julia um homem que confessa ter cometido o delito [isto é, adultério] não tem o direito de pedir a remissão da pena com base no fato de ter sido menor de idade; nem, como eu disse, qualquer remissão será permitida se ele cometer qualquer uma daquelas ofensas que o estatuto pune da mesma forma que o adultério; como, por exemplo, se ele se casar com uma mulher que foi flagrada em adultério e se recusar a divorciar-se dela, ou quando lucra com o adultério dela, ou aceita suborno para ocultar relações ilícitas que detecta, ou empresta sua casa para o cometimento de adultério ou relações sexuais ilícitas dentro dele; a juventude, como eu disse, não é desculpa em face de decretos claros, quando um homem que, embora apele para a lei, ele mesmo a transgride.
O
estoicismo, portanto, começou a se manifestar de maneira significativa no ius
honorarium, quando os magistrados supriam as insuficiências do ius civile a
partir do princípio da equidade, e culminou com o Corpus Iuris Civilis,
no qual se encontram trechos fundamentados no ideal de liberdade do estoicismo
e que foram utilizados na aplicação do direito para garantir uma liberdade
efetiva àqueles que viviam sob a jurisdição do Império Romano.
Dentro do sistema filosófico estoico, há uma subdivisão da doutrina em três campos, são eles a física, a lógica e a ética, no qual todas as partes estão integradas, dando corpo e significado ao como nos demostra Diógenes: “E nenhuma parte é separada das outras, [...], mas ao contrário todas estão estreitamente unidas entre si. Seu próprio ensino fazia-se conjuntamente.
Vários dos elementos das concepções estoicas integraram-se à visão de mundo e a conceitos da tradição romana, demostrando sua capacidade de adequação a diversidade social e cultural, o que favoreceu sua difusão, consolidando assim seu aspecto cosmopolita.
No
período imperial, o Estoicismo preocupa-se sobretudo com as questões éticas. A
filosofia do Pórtico está dividida entre a física, a lógica e a ética, que
devem ser estudadas em conjunto, não havendo uma separação ou hierarquia entre
as “partes” que a compõe.
As
metáforas ilustrativas do pensamento estoico facilitam sua compreensão ao mesmo
tempo em que, apesar de ser possível se fazer uma divisão eles, apresentam cum
todo organizado em que as partes se complementam entre si, não sendo possível a
recusa de uma das partes, o que levaria a incompreensão de toda a teoria.
Portanto não podemos conceber uma separação das “partes”, pois todas estão
interligadas entre si.
Os
estoicos subdividem os indiferentes em três tipos distintos: No primeiro tipo
temos os que eles consideram que estão de acordo com a natureza e são,
portanto, preferíveis, como, por exemplo, viver de acordo com nossa racionalidade.
No
segundo momento, temos o que eles chamam de absolutamente indiferentes, porque
não estão nem contra nem a favor da natureza (se o número de cabelos é par ou
ímpar, como exemplificado por Diógenes Laércio). No terceiro e último caso, nos apresentam os
indiferentes que devem ser rejeitados por não estarem de acordo com a natureza.
Para
obtermos a reta compreensão das coisas e, assim, evitar as falsas opiniões e o domínio
das paixões sobre nossas ações, devemos constantemente estar vigilantes quanto ao
modo como devemos agir. Para isso é necessária uma revisão de nossos
julgamentos[15].
Portanto,
o exercício ético se dá nesse processo de revisão dos julgamentos, e a ação
passa pelo crivo da racionalidade, possibilitando o que os estoicos chamam de
representação compreensiva (phantasía kataleptiké).
É
necessário ainda que nossos sentidos sejam saudáveis e que não haja nenhum
obstáculo que possa interferir no processo de compreensão cataléptica, quando
há o assentimento racional o ser humano passa a agir integrado segundo a razão
universal.
A ética, fruto desse saber-agir em coerência com a natureza, não é tarefa fácil. Temos a razão como ferramenta no processo de juízo e escolha, sendo ela o nosso maior bem. Devemos pautar nossas escolhas a partir de nossa racionalidade, sendo criteriosos quanto às nossas próprias ações, pois é a razão que nos ensina e define aquilo que devemos fazer e evitar.
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Aldo. Ius: l’invenzione del diritto in Occidente. Torino: Giulio
Einaudi Editore, 2005.
Notas:
[1]
A Coragem ou Fortitude – como virtude estoica primária – abarca um conjunto de
forças de caráter em que confiamos para nos elevarmos acima de coisas que, de
outra forma, poderiam nos arrastar para baixo! Agir com Coragem é realizar um
compromisso com nossas vontades com o que precisa ser feito, para tratar os
assuntos com confiança, para distinguir entre o que seria ou não racional
temer, e até mesmo para procurar voluntariamente o que é difícil e árduo por
escolha.
[2] "Você tem poder sobre sua mente - não
sobre os eventos de fora. Perceba isso e você encontrará força.” - Marco
Aurélio Temperança, também conhecida como autocontrole, é a capacidade de
dominar as emoções e desejos, agindo de acordo com a razão e a virtude. Para os
estoicos, a temperança é uma virtude essencial que nos permite viver de acordo
com a natureza e alcançar a paz interior.
[3]
Sêneca (4 a. C. - 65) foi um filósofo, escritor e político romano. Mestre da
retórica foi o principal representante do Estoicismo durante o Império Romano. Lucius
Annaeus Sêneca, conhecido como Sêneca o Jovem, nasceu em Córdoba, Espanha,
por volta do ano 04 a. C., durante o Império Romano. Filho do célebre orador Lucius
Annaeus Séneca (o Velho), ainda criança, foi enviado a Roma para estudar
oratória e filosofia. Em 41, com o assassinato de Calígula, sobe ao poder o
imperador Cláudio. Nesse mesmo ano, Sêneca é acusado de adultério com a
princesa Julia Livilla, sobrinha do imperador. É então exilado na ilha de
Córsega, onde viveu oito anos.
[4]
Com a Lex Aebutia, fórmulas escritas da lei, as regras de procedimento
já não são tão rígidas e são mais adaptadas as reclamações da comunidade. Os
inflexíveis esquemas das ações da lei são substituídos pelo processo per
formulas. A fórmula correspondia ao esquema abstrato contido no edito do
pretor, no qual eram feitos os ajustes necessários e era redigido um documento (iudicium)
pelo magistrado fixando o objeto da demanda que devia ser julgada pelo iudex
popular.
[5]
Para se compreender adequadamente o sistema de fontes do direito romano é
preciso avaliá-las de uma perspectiva dinâmica – e, portanto, não dogmática,
mas histórica. O capítulo seguinte propõe duas premissas teóricas para uma
abordagem desse tipo, que pretende contribuir para uma compreensão adequada do
processo histórico de estabelecimento das regras de disciplinamento social na
sociedade romana antiga: o reconhecimento da ideia de “fontes do direito” como
metáfora, e o seu reconhecimento como campo de disputa política.
[6]
A Constituição Antonina (em latim Constitutio Antoniniana de Civitate),
popularmente conhecida como Édito de Caracala, ou ainda como Édito de 212, foi
uma legislação do Império Romano. A cidadania romana era restrita nos primeiros
tempos de Roma, no tempo da Monarquia e também durante a República. Por esse
diploma, no ano de 212 d.C., o imperador Caracala (186 d.C.–217 d.C.),
popularmente conhecido como Caracala, concedeu a cidadania romana a todos os
súditos do império: “Poder satisfazer a majestade dos deuses imortais de
introduzir, no culto dos deuses, os peregrinos, sendo que concedo a todos os
peregrinos que vivem no território a cidadania romana, salvaguardando os
direitos das cidades, com excepção dos Bárbaros vencidos. Assim, este édito
aumentará a majestade do povo romano.
[7]
No Dominato (285 d.C. – 565 d.C.) o poder de produção normativa é integralmente
concentrado nas mãos do imperador, cuja vontade se torna a única fonte de
direito. Essa vontade é expressa por meio das constituições imperiais, que
limitam o recurso ao costume e à doutrina (especialmente após a Lei das
Citações de 426). A proliferação legislativa acaba conduzindo às compilações e
à codificação do direito romano no Corpus Iuris Civilis, dando origem ao
período bizantino.
[8]
As Instituições foram escritas em meados do século II d.C., quando o imperador
começava a concentrar poder político e jurídico em torno de si, excluindo
progressivamente a nobreza tradicional de quaisquer possibilidades de exercício
efetivo de poder político – inclusive a produção do direito. Como explica
Schiavone (2005), nesse período a jurisprudência se encontrava diante de uma
nova realidade na produção do direito: de um lado o exaurimento do ius
honorarium, já codificado em um texto imutável (o edito perpétuo); de
outro, a oficialização das respostas dos jurisconsultos pela
institucionalização do ius respondendi, por meio do qual o imperador colonizava
politicamente as respostas proferidas por juristas de sua confiança. A conjuntura permite uma presença cada vez
maior de provimentos do príncipe (constituições imperiais), fixando regras que
não podem ser ignoradas e que acabam assumindo uma função preponderante em
relação às demais fontes existentes.
[9] O Digesto, também chamado de Pandectas, foi o
documento em que Justiniano reuniu 50 livros, onde se encontrava a definição de
direito para os romanos, e os pareceres e escritos dos jurisconsultos, com
Triboniano encarregado pela compilação. Os números do Digesto são superlativos:
2.000 livros empregados; 3 milhões de linhas de texto lidas; 3 anos de trabalho
da comissão de 17 membros; 50 livros divididos em 432 títulos na versão final
(um total de 150.000 linhas com 9.132 textos); 92 juristas com ideias
referidas; 39 juristas com obras diretamente empregadas; síntese de quase 1.300
anos de evolução do direito romano; quase 1.500 de vigência. Mas o Digesto não
é só uma sequência de números. É um símbolo de estabilidade, que mostra que a
natureza-essência humana (por questão divina ou não) é sempre a mesma.
[10]
Crisipo foi um dos maiores expoentes do estoicismo e discípulo de Cleanto de
Assos. Teve fama de sutil e apurado dialético. Não foi apenas um filósofo
estoico como também partidário do estoicismo, atacando ardorosamente os
inimigos da doutrina do Pórtico (o alvo preferido eram os filósofos
acadêmicos). Assumiu a direção da Estoa em 232 a.C., com a morte de Cleanto.
Sua atividade como escolarca logo o fez alcançar uma reputação comparável com a
de Zenão de Cítio, fundador do estoicismo. Crisipo foi o responsável pela
sistematização e divulgação das doutrinas da escola. Alguns afirmam que
escreveu mais de setecentos livros. Deste total, sobreviveram só alguns
fragmentos. Seu sistema era uma espécie de panteísmo naturalizado: a liberdade
desaparece em um mundo onde predomina a lei da fatalidade. Sua moral é pura e
elevada e a razão deve governar a vida, colocando o sábio acima das paixões. A
felicidade reside na independência do sábio. Crisipo foi divulgador da técnica
estoica do "premeditatio malorum". Premeditação da
adversidade. Ele recomendava imaginar que perdemos as coisas que valorizamos,
para assim continuar a valorizá-las. Além disso, supostamente morreu de tanto
rir de uma de suas próprias piadas.
[11]
O estoicismo está dividido em três períodos, a saber: Estoicismo Antigo (stoá
antiga): período mais focado na doutrina ética. Os maiores representantes do
período foram os filósofos Zênon de Cítio, Cleantes de Assos e Crisipo de Soli;
Estoicismo Helenístico Romano (stoá média): período mais eclético, donde se
destacaram os filósofos Panécio de Rodes, Posidônio de Apameia e Cícero;
Estoicismo Imperial Romano (stoá nova): de cunho mais religioso, sendo seus
principais representantes os filósofos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
[12]
Para os estoicos, a perfeição humana estava fundamentada na ideia de que os
seres humanos estão ligados à natureza. Assim, devem negar seus desejos para a
realização de uma vontade guiada pela razão em conformidade com essa natureza.
Ou seja, uma corrente filosófica onde a "virtude" depende da vontade
subordinada à razão, sendo considerada a base para se atingir a felicidade.
Além disso, a escola estoica influenciou o desenvolvimento do Cristianismo a
partir do conceito de providência. Para ambos, há uma razão universal divina
que regula tudo o que existe.
[13]
A justiça romana passa por um processo de secularização, provocada por alguns
aspectos como: a) pela Lei das XII tábuas, consolidando o direito
consuetudinário antigo; b) pela bipartição do procedimento; c) pela criação do
pretor urbano em 367 a.C.; d) por dois personagens: Appio Cláudio, o Cego
(cônsul em 307 e 296 a.C.) e seu escriba Gneo Flavio, que tornou público aos
cidadãos o formulário das ações da lei, antes detidos pelos pontífices e pelo
rex, únicos conhecedores das palavras sacramentais de cada actio.
[14]
Lex Julia de Adulteriis et de Pudicitia. Esta lei é um dos indícios mais
evidentes da política de Augusto. Lei rogada, votada sob Augusto entre 18 e 16
d.C, possivelmente no ano 18 d.C. reprimia o adultério (relações sexuais com
mulher casada) e o stuprum (relações sexuais com mulher honesta, núbil
ou viúva). Lex Julia de ambitu (18 a.C): Penalização do suborno na
aquisição de cargos políticos;
Lex Julia de maritandis
ordinibus (18 a.C): Exigindo (provavelmente) que todos os cidadãos se
casassem. Também limitando o casamento além dos limites de classe social (e,
portanto, visto como um fundamento indireto do concubinato, posteriormente
regulamentado por Justiniano);
Lex Julia de adulteriis
coercendis (17 a.C): Esta lei punia o adultério com banimento. Os dois
culpados foram enviados para ilhas diferentes ("dummodo in diversas
insulas relegentur"), tendo sido confiscados parte dos seus bens. Pais foram autorizados a matar filhas e seus
parceiros em adultério. Os maridos
podiam matar as parceiras sob certas circunstâncias e eram obrigados a se
divorciar das esposas adúlteras. O próprio Augusto foi obrigado a invocar a lei
contra sua própria filha, Júlia (relegada à ilha de Pandateria) e contra sua
filha mais velha (Júlia, a Jovem). Tácito acrescenta a censura de que Augusto
era mais rigoroso com seus próprios parentes do que a lei realmente exigia (Anais
III 24);
Lex Julia de vicesima
hereditatum (AD 5): (sobre o imposto sobre herança) instituiu um imposto de
5% sobre heranças testamentárias, isentando parentes próximos;
Lex Papia Poppaea (9
d.C): (para encorajar e fortalecer o casamento) é geralmente visto como parte
integrante das Leis Julianas de Augusto. A Lex Papia Poppaea também promoveu
explicitamente a descendência (dentro do casamento legal), assim também
discriminando o celibato.
Lex Julia peculatus:
sobre o peculato de propriedade pública e sacrilégio para julgamento por um
quaestio.
[15]
Cumpre observar essas duas correntes filosóficas, fica claro que elas se
diferem em alguns aspectos. O Estoicismo, baseado numa ética rigorosa de acordo
com as leis da natureza, assegurava que o universo era governado por uma razão
universal divina (Logos Divino). Dessa forma, para os estoicos, a
felicidade era encontrada na dominação do homem ante suas paixões (considerada
um vício da alma) em detrimento da razão. Os estoicos cultivavam a perfeição
moral e intelectual inspirada no conceito de “Apathea”, que significa a
indiferença em relação a tudo que é externo ao ser. Por sua vez, o Epicurismo,
fundado pelo filósofo grego Epicuro (341 a.C.-270 a.C.) possui uma vertente
relacionada ao Hedonismo, portanto à busca dos prazeres terrenos, desde a
amizade, o amor, o sexo e os bens materiais. Para os epicuristas, diferente dos
estoicos, os homens eram movidos por interesses individuais e o dever de cada
um estava em buscar nos prazeres a felicidade. Para os estoicos, a alma deveria
ser cultivada, enquanto os epicuristas não acreditavam na reencarnação. Por
fim, para os estoicos a virtude representava o único bem do homem, o mais
importante, enquanto o epicurismo estava apoiado nos prazeres.