Etiologia da negligência infantil

É perversa a situação dos negligentes que foram negligenciados e abandonados à própria sorte e, que sofrem e fazem sofrer, perfazendo um ciclo cruel e inexorável, gerando desproteção e desumanização crescente. A proteção da família e dos vulneráveis correspondentes às crianças e adolescentes é uma responsabilidade da sociedade e do Estado. A falta de políticas públicas capazes de atender as necessidades sociais revelam também a negligência do Estado com a questão.

Fonte: Gisele Leite

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A negligência infantil produzida no país reflete as questões de gênero e classe social o que podem interferir na interpretação das famílias. Essa negligência é uma das mais recorrentes violências cometidas e, que afronta a proteção integral da infância deferida pela ordem constitucional vigente e pelo ECA bem como pelas demais legislações infraconstitucionais.

Observa-se que as situações nomeadas como negligência são diversas e submetidas as mais diferentes caracterizações, muitas vezes, controversas, por se fulcrarem em meros juízos subjetivos e muitas vezes condenatórios em face de determinados perfis de famílias.

Ora a família é negligente e, ora é negligenciada e, em muitos casos, vivencia-se as duas situações simultaneamente.

A prescrição positivada no ordenamento pátrio sobre a proteção integral durante o período da infância e adolescência reforça a responsabilização do Estado, da sociedade e, ainda, da família. No entanto, muitas famílias acusadas de negligentes são culpabilizadas e, nesse contexto estão as mulheres pobres ou em situação de miséria e, suas respectivas famílias que são as mais criminalizadas.

Sem esquecer que nas áreas da saúde e de proteção aos direitos dos vulneráveis, notadamente, no período da primeira infância, a legislação pátria pune as práticas de ausência ou omissão de cuidados, em geral, em que a violência se comunga com a violação de direitos. Eis que tanto o texto constitucional vigente como também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assim enfatizam.

Lembremos que as mudanças sociais, igualmente, se refletem nas famílias bem como instituições sociais, onde as relações de poder e dominação presentes nos processos de judicialização de suas vidas. E, assim, a família pobre galga novo status a de família negligente.

A família é chamada a proteger em decorrência da visão naturalizada de que esta é sua função primeira, e se assim não ocorre, é taxada de disfuncional, sendo responsável pela a maior vulnerabilidade de seus membros e, sendo considerada como negligente.

Convém destacar a conceituação de negligência que é a ação e omissão de responsáveis quanto aos cuidados básicos na atenção, como a falta de alimentação, escola, cuidados médicos, roupas, recursos materiais e/ou estímulos emocionais, necessários à integridade física e psicossocial da criança e do adolescente, ocasionando prejuízos ao desenvolvimento.

Isto caracteriza o abandono, que pode ser parcial ou total. No parcial coloca a criança e adolescente em situação de risco; no total elas ficam desamparadas e ocorre o afastamento total da família[1].

A negligência ao ser definida demonstra clara preocupação com os danos físicos, sociais e psicológicos das situações vivenciadas na infância, sendo uma das modalidades de violência doméstica. Essas questões familiares são permeadas por questões de gênero e classe social que precisam mesmo ser debatidas para efetivarmos a real proteção social das crianças.

A problematização sobre as próprias condições sociais, estruturais, culturais e, principalmente, econômicas que tanto impactam na oferta e manutenção do que é atribuído como cuidado.

Sendo questionada se a falta ou simples omissão dos mesmos cuidados que é, normalmente, considerada como negligência familiar não seria, em verdade, o reflexo de escassos investimentos nas políticas de proteção aos direitos das crianças e adolescentes e de suas respectivas famílias.

Aliás, diante da realidade brasileira, a negligência dos pais e a terceirização a criação e educação dos filhos também é responsável por evidenciar as desigualdades agudas, na medida em que os recursos necessários para haver um cuidado integral dos vulneráveis não estão disponíveis para todas as camadas sociais. Essa negligência reflete também quando a criança não consegue vaga escolar somente em local distante de sua residência, ou ainda, em local perigoso.

Outro fenômeno é a feminização da negligência na infância, pois não ocorre como fato atribuível a todos os membros da família, mas sim, em geral atribuída às mulheres posto que sejam reincidentes alvos de discriminação e exclusão social.

Historicamente, as mulheres são responsáveis pelo espaço privado, pois além de gerar e gestar a prole, sua maternidade inclui o cuidado integral com a criança, principalmente, nos primeiros anos de vida. Ainda que na atualidade possam ser constatadas mudanças gradativas nos padrões de masculinidade.

Ainda assim, poucos homens se responsabilizam por seus filhos, especialmente, nos cuidados referentes à alimentação, higiene, segurança, educação e, mesmo, no acompanhamento escolar e de saúde. Ideologicamente, em grande parte, é creditado a manutenção financeira da casa e da família, apesar de estarmos em pleno século XXI.

Aliás, quanto menor for a criança, maior será a responsabilização da mãe e, assim patologiza-se todos os tipos de negligências.

Apesar da conquista pública as mulheres que lhes permitiram maior independência e igualdade em face dos homens, as mulheres ainda possuem maior responsabilidade, apesar de não receberem o devido suporte e reconhecimento de toda a sociedade.

Precisamos atentar para o contexto sociocultural machista (ainda prevalente) e, no que tange ao poder familiar, no ECA, indica-se que deve ser exercido de forma igualitária pelo pai e mãe, e no passado, o vetusto pátrio poder, onde outrora somente o pai era o detentor do poder sobre os filhos, fora substituído pelo poder familiar.

Com o advento do Código Civil brasileiro de 2002, em seu artigo 1.565 observou-se significativa diferença ao afirmar que homens e mulheres assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos de família sendo a direção da sociedade conjugal exercida pelo homem e pela mulher, sempre no fiel interesse do casal e dos filhos.

Deve-se frisar que a negligência na infância é justificativa usada para destituição do poder familiar[2] e, não raramente as crianças são recolhidas em instituições para devido acolhimento, ou com outros cuidadores, em razão de negligência direcionada por seus responsáveis.

As famílias abandonadas também abandonaram e abandonam seus filhos que são vítimas dos mesmos processos de exclusão e alheamento, e que sofrem abusos físicos e psicológicos pois são desassistidas pela sociedade e pelo o Estado.

Por derradeiro, é relevante pautar no debate e elucidação da negligência na infância o lugar da mulher e mãe a fim de desconstruir a ideia de que seja a mãe, a única responsável pelos cuidados com a família e filhos, cuidando de suas obrigações, bem como a visão deturpada do super pai quando o mesmo cuida da própria prole.

Uma questão angustiante se propõe e, ainda, permanece sem resposta: quem cuidará dos negligentes que foram também negligenciados?

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

_______. ECA - Estatuto da Criança e Adolescente. Brasília: Senado Federal, 1990.

MATA, Natália Teixeira. Negligência na Infância: Uma Reflexão sobre (Des) proteção de Crianças e Famílias. Disponível em: http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_45_art_10.pdf Acesso em 24.9.2023

MPSC Ministério Público. Santa Catarina. Quais são os tipos de Negligência? Disponível em: https://www.mpsc.mp.br/combate-a-negligencia-contra-criancas-e-adolescentes/tipos-de-negligencia#:~:text=Inclui%20a%20n%C3%A3o%20presta%C3%A7%C3%A3o%20de,o%20risco%20de%20acidentes%20dom%C3%A9sticos. Acesso em 23.9.2023.

Ministério da Saúde. Metodologias para o Cuidado de Crianças, Adolescentes e suas famílias em Situação de Violências. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/metodologias_cuidado_crianca_situacao_violencia.pdf Acesso em 23.9.2023.

Ministério da Educação. Por que a escola deve notificar às autoridades casos de suspeita ou de ocorrência de violência sexual?  Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/guiaescolar/guiaescolar_p066_071.pdf Acesso em 23.9.2023.

MORESCHI, M. T. (Org.). Violência contra crianças e adolescentes: análise de cenários e propostas de políticas públicas. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, 2018.

PETRUCELLI, Mylena. Entenda Direito: negligência familiar é crime? Disponível em: https://www.tjmt.jus.br/noticias/52934 Acesso em 24.9.2023.

PORTAL UOL. DRAUZIO. Negligência é a forma de Violência mais comum contra crianças e adolescentes. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/pediatria/negligencia-e-a-forma-de-violencia-mais-comum-contra-criancas-e-adolescentes/ Acesso em 23.9.2023.

PEKARSKY, Alice.  Considerações gerais sobre abuso e negligência infantil. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/problemas-de-sa%C3%BAde-infantil/abuso-e-neglig%C3%AAncia-infantil/considera%C3%A7%C3%B5es-gerais-sobre-o-abuso-e-neglig%C3%AAncia-infantil Acesso em 23.9.2023.

TUMA, T.; PEREIRA, A. Da negligência aos negligenciados: práticas arbitrárias no acolhimento institucional e o abandono na maioridade. Anais... IV Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luís, MA, 2013.

Notas:


[1] Não há legislação específica que tipifique a negligência ou o abandono afetivo como ilícitos civis passíveis de sanção.  O Código Penal prevê a punição para maus-tratos, com aumento de pena quando o crime é praticado contra menores de 14 (quatorze) anos.  Entretanto, dadas as situações da vida diária que desaguam no Poder Judiciário por meio de litígios, os tribunais vêm  estabelecendo parâmetros que estão repensando essa situação.

[2] A reiterada negligência dos pais nos cuidados com a prole viola os direitos da criança e conduz à situação excepcional de destituição do poder familiar. O Ministério Público ajuizou procedimento de acolhimento institucional cumulado com busca e apreensão e destituição do poder familiar em favor de uma criança de 2 anos de idade que se encontrava em situação de vulnerabilidade, cujos irmãos já haviam sido transferidos para abrigo social pelas mesmas razões. O pleito de destituição do poder familiar foi deferido pelo Juízo sentenciante e a criança foi recebida em família substituta. Os genitores apelaram. Sustentaram que nunca desistiram da filha nem praticaram condutas que justificassem a perda do poder familiar. Ao analisarem o recurso, os Desembargadores consignaram que o poder familiar é o conjunto de direitos e obrigações exercidos pelos pais e está relacionado ao dever de sustento dos filhos, à assistência moral, emocional e educacional por meio do convívio, da interação e da responsabilidade (artigos 227 da Constituição Federal, 1.634 do Código Civil e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente). Destacaram que, de acordo com o relatório do Conselho Tutelar, o núcleo familiar é acompanhado desde 2012 e, no início de 2017, o órgão recebeu denúncias de agressão física e psicológica perpetradas pelos apelantes contra os filhos, uso imoderado de bebida alcoólica na residência, choro constante de criança e menores em idade escolar ainda não matriculados na rede de ensino. Além disso, o Conselho relatou que, no mesmo ano, os recorrentes foram denunciados pela morte de outra filha (de 2 meses de idade) decorrente de intoxicação por paracetamol após queda violenta sem que os pais tivessem providenciado o atendimento médico adequado. O Colegiado entendeu que os fatos narrados demonstram a conduta reiterada dos recorrentes em negligenciar os cuidados com a prole, o que foi corroborado pela instituição acolhedora ao informar que, mesmo após um mês de admissão da criança, os genitores não haviam ido visitá-la. Os Julgadores concluíram que o histórico de maus-tratos, a vulnerabilidade social e a conduta omissa dos apelantes expuseram os menores a situações de risco e violaram direitos fundamentais das crianças, motivo pelo qual não possuem condições de garantir a proteção integral da filha. Nesse contexto, a Turma registrou que a decisão do Juízo a quo baseou-se não apenas na falta de recursos materiais dos genitores, mas em “elementos situacionais e estruturais da família e da indisponibilidade de os pais se organizarem física e mentalmente para assumir responsavelmente os cuidados da filha”, e, assim, negou provimento ao recurso. Acórdão 1255448, 00064398920188070013, Relator Des. JOÃO EGMONT, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 10/6/2020, publicado no PJe: 22/6/2020.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: ECA Constituição Federal Brasileira de 1988 Código Civil de 2002 Negligência Infantil Poder Familiar

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