Direito & fascismo
A relação do direito fascista é indicativa da continuidade doutrinária quando se supunha ter havido ruptura. Especialmente, o direito privado foi mais susceptível a tal continuidade, promovendo forte resistência e admitir suas conexões com as circunstâncias político-sociais. A história como ciência serve de alerta e promoção de maior conscientização dos perigos do fascismo no mundo.
Sem dúvida, o fascismo e os mais variados tipos de
autoritarismo foram os mais relevantes acontecimentos do século XX, as
concepções políticas conservadoras e os fenômenos tipicamente modernos foram
realocar o Estado no campo da filosofia política.
Passamos de um Estado contratual e liberal, de matriz
inspirada em Hobbes, fundado na alienação voluntária das liberdades individuais
e gerado sob a promessas de garantir a paz e segurança, pois o medo da morte
violeta traduz o afeto-motor de toda sua criação, e, então adentramos ao Estado
forte cujas metas vão superar e condicionar os indivíduos aos propósitos que
lhes superam.
Aliás, tanto na Itália dos anos 1920 quanto na
Alemanha dos idos de 1930, e nos anos que se seguiram, e desaguaram na Segunda Guerra
Mundial, que trouxe algo novo no interior do Estado e suas concepções teóricas
que projetaram nova arquitetura[1].
Nesse esquema, os Tribunais cumprem importantes
papéis, mesmo que tenham sido concebidos na modernidade para a preservação de
privilégios nobiliárquicos e do status
quo, a sua metodologia pacífica na
resolução de conflitos de interesses sociais contribuíram para a formação de
sentimentos como a lealdade, confiança que migraram, progressivamente da
Igreja, da comunidade e da família para o Estado e, cujos elementos basilares
já despontavam na Europa dos séculos XII e XIII, sobretudo na França e na
Inglaterra.
Em verdade, o esboço do liberalismo já começara a
prevalecer nos séculos XIX e XX, onde o Judiciário cumpre, principalmente, na
tradição do common law, papel
contramajoritário da defesa de direitos das minorias e de consolidação da
democracia, na contínua tensão existente na relação com os poderes majoritários
dotados de legitimidade democrática representativa do tipo procedural, iso e,
emanada diretamente da via eleitoral, diferentemente da representatividade
funcional, derivada da Constituição e das leis, que gravaria o Poder
Judiciário.
O papel contramajoritário afirma-se, que se apoiaria
na garantia de independência política de juízes e Tribunais, em sua
imparcialidade, num processo de mutação do conceito de democracia como regra da
maioria pelo conceito de democracia constitucional onde os direitos das
minorias estão garantidos pelos textos constitucionais e velados pelos
tribunais.
Diante desse cenário, o papel do Judiciário tendeu a
expandir-se, mas surgiram três questões fundamentais, a saber: a da
legitimidade, pois na maioria dos países os juízes não são eleitos, não
obstante as potenciais interferências dos julgadores em temas peculiares do
Poder Legislativo e do Executivo; a questão da capacidade, isto é,
questionamentos sobre os recursos e estrutura suficientes dos Tribunais para
levarem a cabo suas crescentes tarefas de forma eficiente e eficaz; e, a
questão da independência dos tribunais (orçamentária) em frente aos demais
poderes constituídos do Estado.
Na face fascista italiana, o sistema de justiça
funcionava como autêntica máquina de guerra do Estado, investida contra seus inimigos,
opositores (especialmente, os comunistas e socialistas) seja na aplicação
rigorosa das sanções penais em defesa do Estado e de seus interesses
totalitários, como por exemplo, os crimes de atividade antinacional do cidadão
no exterior, de associação subversiva, o de propaganda ou apologia subversiva e
os crimes políticos, seja no manejo de medidas de segurança de caráter
preventivo, lastreadas em critérios abstratos de periculosidade, numa atuação
política direcionada a conservação e defesa do regime, foi nessa época que o
surgimento da ideia de segurança do Estado se fortaleceu.
O aparato de exceção, no fascismo, conta com fórmulas
teóricas e práticas, com a firme
contribuição de Alfredo Rocco, o jurista de Mussolini que concebeu o Estado
como sendo um organismo ético-religioso, uma unidade social e étnica
relacionada por vínculos de raça, língua, costumes, tradições, moralidade e
religião, um Estado que domina todas as forças e que a tudo submete à sua
disciplina, correspondendo a ideologia do Estado forte.
Já os Tribunais atuarão tais como correias de
transmissão de violências cometidas pelo Estado fascista, isto é, como uma
forma do agir político voltada a reprimir e suprimir o dissenso, e legitimando
o forte Estado nacional numa relação contraditória, porem, produtiva, entre a
política e a justiça.
Principalmente, se vislumbra tal estratégia através de
decisões arbitrárias do Tribunal Especial na Defesa do Estado (1926-1943), um
órgão administrado segundo o modelo militar, porém, de natureza política,
talvez seja a mais relevante máquina de guerra judiciária mobilizada pelo
regime fascista.
Existem sérias repercussões desse esquema judiciário
do Estado fascista italiano seja no pensamento e atuação política de Francisco
Campos (1891-1968), que foi político proeminente e principal ideólogo do Estado
Novo.
Onde o Estado deve ser forte e promover a ordem, sendo
animado de um espírito de vontade, unificado em torno de um líder, guia e condutor.
Estado forte que orbita em torno da persona que decide e que ocupa o centro das
decisões e da vontade e, da responsabilidade política. Líder que se mostra como
arquiteto e construtor da nação, sendo protetor e justiceiro[2].
O fascismo[3] apesar de reconhecer a
potência da multidão e a superioridade do múltiplo, porém, retira-lhe a
qualidade de sujeito político e suga toda sua potência ao Duce, forjando
um Estado de unidade anônima.
Por isso, o conceito de povo veio a substituir o
conceito de multidão e que o fascismo utilizando de forma frequente, cumprindo
uma missão de unificação do homem à soberania do Estado-nação, tornando-se
assim, o cidadão e o povo as partes do Estado forte e unitário.
O direito então torna-se poderosa ferramenta de
contenção dos movimentos da multidão, principalmente, através de sua face
criminal, repressiva e muito dotado a perseguição e severa punição aos
sediosos, o que nos reme a missão do Judiciário no fascismo.
A racionalização da violência encontrou no Tribunal
Especial para Defesa do Estado uma refinada estratégia construída onde as
tensões oriundas do fascismo já se mostravam algo incontroláveis, tanto que em
junho de 1924, o deputado socialista Giácomo Matteori fora sequestrado e
assassinado, crime que Mussolini, em janeiro de 1925 assumiu publicamente.
Em novembro de 1926, mais de 124 deputados de oposição
na Itália foram cassados (Gramsci entre eles); entre 1925 e 1926 foram
aprovadas as leis ultrafascistas (leggi fascistissime), que, dentre
outras medidas, impunham controles policiais sobre todos os órgãos coletivos
(associações, institutos), obrigados a exibirem ao governo os seus estatutos,
contratos sociais, regulamentos internos, listas de membros e administradores;
cassavam os funcionários públicos que se recusassem a prestar juramento de
fidelidade ao Duce; estabeleciam a irresponsabilidade do chefe do
governo perante o parlamento; outorgavam ao poder executivo o poder de editar
decretos sem a necessidade do legislativo; proibiam as greves e estabeleciam o
monopólio dos sindicatos fascistas para a negociação de acordos coletivos;
ordenavam a dissolução de todos os partidos, associações e organizações que
praticassem ações contra o regime, mantendo apenas o Partido Nacional Fascista;
instituíam a sanção de pena de morte para situações de ataques dirigidos ao Rei
e ao Primeiro-Ministro, criminalizando também a instigação do ataque através da
imprensa e a divulgação de "boatos ou notícias falsas, exageradas ou
tendenciosas sobre as condições internas do Estado".
Em 1930, o mesmo que se verificava na Itália,
fervilhou por aqui, nas terras Brasilis, impactada por muitos fatores,
pela crise econômica de 1929 que gerou desemprego no campo e na cidade e a
falência dos produtores brasileiros do café, destacou Darcy Ribeiro.
Prosseguiu Ribeiro elucidando que a Revolução de 1930[4] onde Getúlio Vargas fora
um de seus protagonistas, foi um movimento apoiado pela ala direitista do tenentismo
e que atendia aos interesses do senhorio agrário e do patronato urbano,
instituindo um capitalismo de Estado nacionaliza e paternalista, mesmo assim,
ocorreram progressos significativos no âmbito dos direitos sociais.
A história é uma ciência mestra que estuda a vida do
homem através do tempo e, investiga o que os homens fizeram, pensaram e
sentirem enquanto sujeitos sociais e, protagonistas do seu próprio destino.
A poetisa polonesa Wislawa Szymborska[5] que escreveu: "Depois
de cada guerra, alguém tem que fazer a faxina". Ao final da Segunda Guerra
Mundial, diversos países europeus adotaram políticas econômicas de índole
social-democrática, o que promoveu maior afeição as intervenções do Estado no
âmbito econômico privado. Diante disso,
surgiram os ímpetos neoliberais que se confundem com o fascismo.
Nenhuma crítica seja ao liberalismo ou a
socialdemocracia não é indevida e mesmo ao marxismo. Precisamos renovar
constantemente a reflexão do método de pensar, e aprimorar a consciência do
proposito de construir uma ordem jurídica que auxilia a construção da sociedade
livre e justa.
Referências
ALVES, Rogério Pacheco. OS TRIBUNAIS COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO ESTADO FASCISTA ITALIANO EM ALFREDO ROCCO E SUAS REPERCUSSÕES NO PENSAMENTO E NA ATUAÇÃO POLÍTICA DE FRANCISCO CAMPOS, O JURISTA DO ESTADO NOVO. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/os-tribunais-como-maquinas-de-guerra-do-estado-fascista-italiano-em-alfredo-rocco-e-suas-repercussoes-no-pensamento-e-na-atuacao-politica-de-francisco-campos-o-jurista-do-estado-novo Acesso em 05.12.2022.
CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão judicial no
Estado Novo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder
de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de Alex Marins, São Paulo:
Martin Claret, 2002.
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. 2ª
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LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New
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MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio. Tradução de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007
________ . O Príncipe. Tradução de Hingo Weber.
Petrópolis: Vozes, 2011.
MEZZETTI, Nazareno. Alfredo Rocco, il giurista
di Mussolini. Roma: Edizioni dela Lanterna, 2012.
MUSSOLINI, Benito. The doctrine of Fascism.
Political and social doctrine. In: Essays on facism.
London: Sanctuary Press Ltd, 2019.
RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o
Brasil deu no que deu. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1985.
SZYMBORSKA, W. Um
amor feliz. Tradução de Regina Przbycien. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
____________. Poemas.
Tradução de Regina Przbycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Notas:
[1] Sobre a “influência” do BGB, a respeito da resistência do regime hitlerista ao código alemão. Essa aversão também se justificava pelo código genético romanístico do BGB. O Partido Nacional Socialista, no item 19 de seu programa, estabeleceu como meta a abolição do Direito Romano, que é subserviente a uma visão de mundo materialista, e sua substituição por um Direito comum alemão. É notável que essa qualificação haja sido transposta para o Código Civil brasileiro de 1916 em muitas obras doutrinárias, teses e dissertações nacionais. De uma crítica nazista ao BGB, reproduzida ironicamente por Franz Wieacker, um professor da escola-modelo da universidade hitlerista, chegou-se ao respeitável Código Bevilaqua. São realmente curiosos os efeitos de certa recepção do Direito estrangeiro no Brasil.
[2] O guardião da constituição (Der Hüter der Verfassung), sem admitir o empréstimo tomado da língua italiana. Atribuía a colocação a um dos escritos de Ernst Jünger, alemão que ficou famoso como autor de romances de guerra. Este, inspirado na mobilização social para o tempo de guerra, defendera em um de seus textos políticos de inclinação à extrema direita nazista, uma “mobilização total” (totale mobilmachung) da sociedade. A constância desses sentidos é a da visão da sociedade como extensão do Estado. Isso consta dos esforços mais claros de definição dos termos, como nas falas de Ernst Forsthoff, discípulo de Schmitt e autor da obra O Estado total (Der totale Staat) ou nos textos de Giovanni Gentile, ideólogo do fascismo italiano. Nestas falas da época, o “totalitário” será definido em oposição ao “fragmentário.
[3] Dessa forma, o fascismo clássico apresenta cinco características: é chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista e antioperário. Ainda assim, formas do neofascismo podem se apresentar como economicamente liberais. Além da Itália e Alemanha, registraram-se movimentos fascistas de destaque na Áustria, Bélgica, Grã-Bretanha, Finlândia, Hungria, Romênia, Espanha bem como na África do Sul e Brasil.
[4] A Revolução de 1930 foi o movimento armado liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que culminou com um golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes, candidato governista que bateu Getúlio Vargas. A Revolução de 1930 marcou o fim da República Velha e desde o seu início, com a instalação de um governo provisório (1930-1934), sucedido pelo governo constitucional (1934-1937), Vargas já exercia o protagonismo.
[5] A poesia de Wislawa Szymborska é feita de perguntas – pequenas, grandes, surpreendentes. Em uma obra relativamente enxuta – são apenas 13 livros publicados, dos quais um póstumo, em pouco mais de cinco décadas de produção literária –, os poemas da ganhadora do Nobel de Literatura de 1996 são como hastes de interrogação cravadas em território lunar: eles estão ali, perplexos e incisivos diante do cosmos, sem nenhuma esperança de resposta, mas insistentes em sua capacidade de nos assombrar.