Direito à saúde e o STF
A Constituição Brasileira de 1988, a Constituição Cidadã inovou o ordenamento jurídico pátrio ao fixar o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, dotado de universalidade tanto objetiva como subjetiva. Porém, se questiona se é mesmo possível tal universalidade. Além disso, o regime jurídico de direitos sociais estabelece que sua materialização deverá ser efetuada progressivamente e com aplicação do máximo de recursos disponíveis, o que vem reforçar toda a jurisprudência da Suprema Corte brasileira na interpretação que permita abarcar o conceito de integralidade do direito à saúde.
As
diferentes implicações no direito à saúde, aplicando o princípio da precaução
como mecanismo de gestão de riscos[1]. O antigo provérbio
popular que defende que melhor prevenir do que remediar é tanto aceito pela
sociedade como pela ciência.
Seguindo
Pitágoras, a prudência é o olho de todas as virtudes, caminha ao lado da
cautela. Se, mesmo quando há a possibilidade de se remediar, sugere-se a
prevenção que se torna imperativa quando não se pode desfazer o mal já
deflagrado. Durante a pandemia de Covid-19[2] que já dizimou mais de um
milhão de vidas no mundo e, buscando-se o combate à doença, diante de
incertezas ainda quanto o conhecimento do vírus, e as adequadas tecnologias
adequadas para sua prevenção, redução ou eliminação. E, os riscos[3] envolvidos tanto em
métodos científicos como sanitários.
É
unânime nas ciências naturais e nas ciências humanas que consideram o dano como
algo que deve ser prioritariamente evitado. Eis que é uma obrigação moral
evitar o mal. Em não sendo possível, trata-se então, de prover sua reparação.
E, nesse sentido tanto a medicina como a bioética visam defendem o princípio do
primun non nocere. ou seja, o da não maleficência, que se evita o mal ao
paciente. O direito, por sua vez, permite a tutela jurisdicional inibitória
para impedir a prática de ato ilícito independente da ocorrência do dano
(artigo 497, parágrafo único do CPC).
A
primazia da prevenção sobre a reparação do dano é importante e há diversos
casos concretos onde se torna impossível a restauração do status quo ante,
é o caso de danos ambientais, ou ainda, àqueles que sacrificam a vida ou a
integridade física e até mental de uma pessoa de forma irreversível.
Nesses
casos, o Estado reforça a tutela sobre esses bens jurídicos que além de serem
inerentes à dignidade humana, mostram-se de hercúlea restauração ou até
impossível após sua violação. Deve-se, portanto, evitar a própria violação da
dignidade humana o que foi reforçado pela jurisprudência da Corte
Constitucional alemã, principalmente, após a segunda grande guerra mundial.
A
adoção pelo Estado de laboriosas medidas[4] de proteção dos cidadãos
ou de prevenção em razão do desenvolvimento tecnológico ou técnico relacionado
ao dever de evitar riscos que se trata de ser uma decorrência do princípio da
proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, particularmente,
os sociais.
Os
riscos trazidos pelo grande desenvolvimento tecnológico e por dinâmica
integração entre os povos disseminam-se de forma abstrata e célere e adquirem
indeterminadas proporções. Os riscos civilizatórios contemporâneos escapam à
percepção, fincando suas raízes nas fórmulas físico-químicas, que vai desde as
toxinas nos alimentos até a ameaça nuclear.
Os
riscos têm sua causa na superprodução industrial e, o fato de os riscos serem
imperceptíveis impõem ao Estado atuação maior na prevenção dos próprios riscos
e danos por estes causados.
A
promessa de segurança deve progredir tanto quanto a tecnologia e deve ser
reforçada a segurança na esfera pública. O que] traz maior ênfase aos deveres
de prevenção e precaução, que, ao ingressarem no ordenamento jurídico, ganham
força de autênticos princípios como mecanismos para contrabalançar na medida do
possível e desejável, os riscos inerentes ao desenvolvimento de tecnologias bem
como aos gravames destes decorrentes à saúde pública.
Lembremos
que o progresso tecnológico é indissociável da evolução da sociedade humana e a
prevenção de danos deste decorrentes, e a precaução contra as incertezas de
riscos gerados visam assegurar o aprimoramento das tecnologias existentes e o
surgimento de novas técnicas que revertam apenas para o bem da sociedade, sem
lesar a saúde.
O
princípio da prevenção é aquele segundo o qual se deve buscar com absoluta
prioridade evitar mal à saúde e passível de ser afastado. O desenvolvimento
científico através do tempo e que possibilita a constante identificação de
causas e efeitos entre os agentes nocivos e demais adversidades causadas por
estes contra a saúde humana.
O
princípio da prevenção estabelece que, sendo conhecida a relação de causalidade
entre o agente e o dano, este deve ser sempre que possível evitado pelo
afastamento da própria causa.
Sueli
Dallari sistematizou três formas de aplicação do referido princípio, a saber: a
primária que se ocupa com a eliminação de causas e condições propícias ao
aparecimento de doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas estradas,
saneamento básico e, etc.) ou sobre comportamento individual (exercício e
dieta, por exemplo); a secundária ou prevenção específica, que busca impedir o
aparecimento de doença determinada, por meio da vacinação, dos controles de
saúde, da despistagem; e a terciária, que visa a limitar a prevalência de
incapacidades crônicas ou de recidivas.
O
conhecimento do dano e a certeza da causalidade entre o agente desencadeador e
o próprio dano são, portanto, fatores determinantes para a aplicação do
princípio da prevenção.
O
referido princípio é previsto em nosso texto constitucional e, de fato, o
artigo 196 da Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece que o direito
à saúde é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, eis o que consta no
artigo 2º[5], primeiro parágrafo da Lei
8.080/190. Portanto, é curial reduzir o risco de doenças e demais agravos
significando prevenir a sua ocorrência.
E, a
proteção da saúde refere-se a etapa anterior à sua recuperação, sendo ambas
abarcadas pelo dispositivo legal retrocitado. A proteção, portanto, implica
exatamente em evitar a doença. Eis que a manutenção dos protocolos sanitários
aqui se insere como sendo fundamentais.
Já o
artigo 198, II do mesmo texto constitucional elenca como uma das diretrizes do
SUS o atendimento integral com prioridade para atividades preventivas, sem
prejuízo de serviços assistenciais. E, quanto à saúde do trabalhador, o artigo
7, XXII da Constituição ora vigente impõe o dever de redução de riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e saúde.
E, mesmo no campo privado, a previsão encontra-se prevista no artigo 35-F da Lei 9.656/1996[6] pelo qual o atendimento prestado pelos planos e pelos seguros privados de assistência à saúde, compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde.
Em
verdade, o princípio da prevenção orienta diversas vertentes de ações e de
serviços públicos em saúde, o que reforça seu caráter de diretriz de todo o
direito sanitário. E, a vigilância sanitária e epidemiológica, que é certamente
uma das principais atribuições do Sistema Único de Saúde (artigo 200, II
CF/1988), emerge como a faceta mais visível e concreta do princípio da
prevenção, o que constitui a sua própria essência.
O artigo
6º, primeiro parágrafo da Lei 8.080/1990 definiu a vigilância sanitária como
sendo um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à
saúde e de intervir em problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da
produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde.
A vigilância epidemiológica, por sua feita, é conceituada pelo segundo
parágrafo segundo do mesmo dispositivo legal.
Portanto,
a vigilância epidemiológica é um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento,
a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e
condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar
e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos.
Tais
ações de vigilância sanitária e epidemiológica se guiam sempre pela prevenção
de doenças e agravos à saúde e são das mais diversas compreendendo desde normas
de higiene básica da população até fiscalização de alimentos, medicamentos e
demais produtos em todas as etapas de produção e comercialização que se
relacionem direta ou indiretamente à saúde, de estabelecimentos de saúde e, etc.[7].
E, o
tamanho e amplitude dessas ações envolvem inclusive questões socioeconômicas
atinentes às condições efetivas da população de manter hábitos adequados de
higiene, alimentação e cuidados em geral com o corpo.
Também
os programas de vacinação também aparecem como política concreta de aplicação
do princípio da prevenção no direito sanitário, evitando a propagação de
doenças infectocontagiosas que colocam em risco a saúde geral.
A
pandemia de coronavírus, da Covid-19 se disseminou por todo mundo a partir do
início de 2020 e atingiu severamente nosso país, quando se demonstrou com
clareza e relevância do princípio da prevenção para a manutenção da saúde
individual e coletiva.
E,
segundo os dados oficiais há mais de seiscentos mil óbitos no país e, milhões
de pessoas já foram contaminadas.
Por
esses alarmantes dados é que a Lei 13.979/2020 em seu artigo terceiro autorizou
a Administração a adotar uma série de medidas preventivas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo
coronavírus dentre estas, a saber: a) isolamento; b) quarentena; c)
determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais,
coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas e
tratamentos médicos específicos; d) uso obrigatório de máscaras de proteção
individual; e) restrição excepcional e
temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de entrada e saída do país e de
locomoção interestadual e
intermunicipal.
Enfim,
a prevenção é a regra a ser obedecida também nos programas de saúde do
trabalhador que devem priorizar medidas que evitem acidentes de trabalho e a
ocorrência de doenças ocupacionais, nos termos do artigo 6º, terceiro parágrafo
da Lei 8.080/1990.
Art.
6º (...)
§ 3º
Entende-se por saúde do trabalhador[8], para fins desta lei, um
conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica
e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim
como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos
aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo:
(...) II
– participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), em
estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à
saúde existentes no processo de trabalho;
III –
participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da
normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração,
armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos,
de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador;
(...)
V – informação
ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os
riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os
resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de
admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética
profissional;
(...)
VIII –
a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a
interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo o ambiente de trabalho,
quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos
trabalhadores.
Em
tempo, é conveniente sublinhar que também a saúde do consumidor também é
tutelada pelo princípio da prevenção e, há outras disposições atinentes ao
tema, conforme consta no artigo 6º, I da Lei 8.078/1990 que prevê o direito
básico de proteção da vida e da saúde contra os riscos causados por produtos ou
serviços nocivos ou perigosos.
E, o
artigo 8º do mesmo diploma legal que dispõe que os produtos e serviços
colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos
consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de
sua natureza e fruição.
E,
adiante, o artigo 10 estabelece que o fornecedor não poderá colocar no mercado
de consumo, produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar elevado
(alto) grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou à segurança.
Cabe
ainda mencionar que o constitui crime tipificado no artigo 132 do Código Penal
colocar a simples exposição da vida e da saúde, seja perigo direto e
iminente. Parágrafo único. A pena é
aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a
perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em
estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.
O bem
jurídico protegido é a vida e a saúde da pessoa humana. E, o tipo exige dolo
direto e formal o agente atua com consciência e vontade de lesar integralidade
física de outrem o colocando em perigo direto e iminente.
Noutro
viés, em HC o STJ considerou a não tipicidade do delito de andar de bicicleta
em alta velocidade na calçada, nos termos in litteris:
"Assim, o simples fato de o recorrente supostamente haver trafegado com
sua bicicleta pela calçada, em período noturno e com velocidade inapropriada, é
insuficiente para a configuração do tipo do artigo 132 CP, pois a ausência de
comprovação de lesão ao bem jurídico tutelado impede a sua caracterização e
enseja o reconhecimento da atipicidade da conduta descrita na exordial.
(Recurso em Habeas Corpus 99.124).
Assim,
observa-se que o princípio da prevenção, que imputa impedir o advento de
malefícios à saúde humana a partir de causas certas e que permeia todo o
direito sanitário principalmente na instituição bem como na implementação de
políticas públicas.
E, a
prevenção ganha destaque nas diversas regiões muito pobres que se soman a
elevada densidade populacional e, em localidades distantes de centros urbanos e
que são desassistidas de profissionais e dos estabelecimentos de saúde
necessários aos cuidados da população.
O que
reforça a necessidade de combater as endemias causadas por insetos ou outros
transmissores tais como a dengue, zika, febre amarela, leptospirose, doença de
chagas, malária e, etc., mediante conscientização pública sobre hábitos de
limpeza e higiene e adoção de medidas de saneamento básico, promoção de
campanhas vacinais, de acompanhamento constante de população por programas de
saúde da família, de eficiência em programas de acompanhamento pré-natal, além
de outras medidas.
Compreende-se
que aplicação plena do princípio da prevenção demanda bem mais do que medidas
exclusivamente sanitárias. É preciso que estas estejam integradas aos programas
de ordem assistencial, educacional e econômica que permitam que a população
seja adequadamente instruída sobre regras basilares de higiene, saúde e
cidadania, bem como que tenha condições materiais para que adotem condutas
necessárias aos métodos preventivos.
Destaca-se
também a política de comunicação pública e institucional do Estado que venha
priorizar adequada orientação da população sobre normas de proteção à saúde e
de segurança no trânsito, em vez de dispêndios que muitas vezes que se vê com
propagandas de cunho promocional e pessoal dissonante dos interesses públicos.
Quanto
à eficácia jurídica do princípio da prevenção no direito à saúde,
anteriormente, expresso no artigo 196 e no artigo 198, II da CF/1988,
irradiando seus efeitos nas mais diversas áreas do direito sanitário.
E,
rege não somente os atos da Administração Pública, mas também os de
particulares. E, cabe aos cidadãos a adoção das medidas de resguardo
necessárias à preservação da saúde pública, conforme as orientações e as
determinações demandas do Poder Público, especialmente, pela falta de cuidado
próprio muitas vezes repercute na saúde alheia e na coletiva.
O artigo 5º da Lei 13.979/2020 que impõe a
todas as pessoas o dever de colaboração com as autoridades sanitárias mediante
a comunicação imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos da
Covid-19 e de circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação
pelo vírus.
Há
polêmica sobre a vinculação de particulares ao princípio da prevenção quando
será possível a obrigação de submeterem à vacinação compulsória,
principalmente, em situações em que a imunização objetiva, além de impedir o
adoecimento da própria pessoa, obstar também a transmissão comunitária da
doença e protegendo a saúde coletiva.
E,
nesse caso, há de se ponderar e sopesar a liberdade e a integridade física dos
cidadãos com a tutela da saúde pública.
Afinal,
os princípios possuem igualmente consequência normativa, a razão pela qual o
princípio deve ser julgado relevante diante de cada caso concreto. E, lembremos
que o princípio da prevenção não se restringe às regras constitucionais que
tratam das medidas de afastamento de doenças ou outros agravos à saúde.
Posto
que a hermenêutica do direito sanitário deve guiar-se pelo princípio da
prevenção e, obter objetivo profilático, afastando-se por inconstitucionalidade[9] as normas que estão em
contradição ao postulado preventivo.
Afinal
a prevenção e a concretização do direito à saúde é dever do Poder Público
assegurar aos cidadãos condições de vida saudáveis que efetivamente os previnam
de ser atingidos por doenças ou a agravos mediante as condições básicas de
alimentação, saúde, moradia, saneamento básico e educação.
Frise-se
que não se trata de alargamento indevido do princípio em comento, uma vez que a
própria Constituição Federal, ao estabelecer as diretrizes do SUS, arrola o
atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo de serviços assistenciais.
E,
ainda, prevê o artigo 200, dentre as diversas atribuições do sistema público de
saúde, aquelas relacionadas às ações de saneamento básico, às de fiscalização e
inspeção de alimentos e bebidas e à proteção ao meio ambiente. Essa amplitude
do princípio decorre da concepção ampliada do seu objeto de incidência, a
saúde, assim definida pelo artigo 3 da Lei 8.080/1990. In verbis:
Art.
3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo
a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a
moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação,
a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.864, de 2013).
Ressalve-se
que o princípio da prevenção limita, de algum modo, o poder discricionário da
Administração Pública, impondo-lhe um dever de deferência, a critérios e dados
técnico-científicos. E, objetivamente comprovada uma ameaça à saúde pública,
seja qual for a sua causa, é dever e, não opção de o Poder Público inibi-la
sempre que isso seja materialmente possível, tanto mediante a prática de ato
administrativo específico como por meio de implementação de políticas públicas.
E,
habitualmente, a prevenção impõe um dever ao administrador que consiste
exatamente em impedir a ocorrência do fato causador de dano já conhecido.
É
possível cogitar, no entanto, de atos administrativos ou leis inconstitucionais
por afrontar ao princípio da prevenção. E, analisando os casos concretos em que
o STF se valeu do princípio da prevenção para decretar a inconstitucionalidade
da lei, de campanha publicitária do governo federal brasileiro, e a pretensão
de importação de bens que causem prejuízos à saúde pública e ao meio ambiente,
tudo para demonstrar e compatibilizar com os outros princípios constitucionais
quando diante de potencial conflito em casos concretos.
Assim,
a disseminação da pandemia de Covid-19 aqui e no mundo impôs a adoção de sérias
medidas de isolamento social, quarentena, fechamento de estabelecimentos
industriais, comerciais e de prestação de serviços não essenciais (lockdown)
com o fito de prevenir a disseminação demasiada e veloz do vírus, o que pode
colapsar sistemas públicos e privados de saúde diante da demanda insuportável
de internações. Incidência do dever de prevenção é visível e inexorável.
Os
defensores de medidas de distanciamento social, pretendem, em grande maioria, é
paulatino retorno à normalidade conforme os riscos à saúde pública e à
sustentabilidade dos sistemas de saúde diminuam, ainda que o vírus ainda
permaneça em circulação relativamente controlada, equilibrando a necessidade de
controle da pandemia para preservação da saúde dos indivíduos com a necessidade
de salvaguarda mínima da economia para a preservação de empregos e rendas.
Cumpre
ainda transcrever parcialmente a recomendação expedida pela Organização Mundial
da Saúde, de 16 de abril de 2020, in litteris:
“Medidas adicionais de saúde pública e sociais
em larga escala (PHSM), incluindo restrições de movimento, fechamento de
escolas, empresas, quarentena de área geográfica e restrições internacionais de
viagem, foram implementadas por um certo número de países. Estas são algumas
vezes referidas como medidas de “bloqueio” (lockdown) ou “desligamento”
(shutdown).
Uma
avaliação do impacto do PHSM na saúde pública para a Covid-19 ainda não está
disponível, mas é necessária. Essa avaliação precisa levar em conta as
consequências sociais e os custos econômicos de tais medidas, que podem ser
consideráveis. Nesse sentido, uma cuidadosa avaliação de riscos e uma abordagem
por fases são necessárias para equilibrar os benefícios e os possíveis danos no
ajustamento dessas medidas, para não provocar um ressurgimento de casos de
Covid-19 e comprometer a saúde da população.
Até
que intervenções farmacêuticas específicas e eficazes (por exemplo, terapias e
vacinas) estejam disponíveis, os países podem precisar continuar a afrouxar ou
restabelecer medidas durante toda a pandemia.
As
decisões para enrijecer ou afrouxar ou reinstalar o PHSM devem ser tomadas com
base em evidências científicas e experiência do mundo real e levar em
consideração outros fatores críticos, como economia, fatores relacionados à
segurança, direitos humanos, segurança alimentar e sentimento público e adesão
a medidas”.
Torna-se
evidente que a OMS teve clara preocupação de prevenir a disseminação do vírus e
combater a pandemia, mas equilibrando as medidas restritivas para tanto
necessárias com outras destinadas a preservar minimamente as condições
econômicas que garantam à população, sobretudo, aos mais pobres, o acesso ao
emprego, à renda, e, ipso facto, as condições dignas de sobrevivência.
O que
implica na ponderação diante de cada caso concreto do princípio da prevenção
com o princípio da preservação da dignidade humana, especialmente, no que tange
aos direitos fundamentais ao trabalho e à alimentação.
Frise-se
que não se trata de enfraquecer o princípio da prevenção. e, sim, de trazer a
compatibilização dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos.
Cabe
ainda sublinhar que o escopo da precaução é ultrapassar a prevenção. E, não
seria mais preciso que um dano se produzisse, ou se mostrasse iminente, para
que haja ação visando evitar a produção ou repetição desse dano, fosse
legítimo.
Então,
a precaução baseia-se na experiência técnica e científica, trazendo vantagens
que surgem a curto prazo e, são, frequentemente, seguidas de desvantagens a
médio e longo prazo.
De
fato, em doutrina, trabalha-se com a distinção entre o princípio da precaução e
da prevenção, que serve para bem compreendê-los. Faz-se essa diferenciação com
base na relação risco de perigo (precaução) versus risco de dano
(prevenção).
Isso
porque o princípio da precaução deve ser aplicado quando não houver certeza
científica de que a atividade sindicada não oferece risco de dano, e o
princípio da prevenção deve ser aplicado após, ou seja, quando a atividade
sindicada causar danos com prévia comprovação científica.
Pode
ser referido, ainda, que o princípio da prevenção tem a finalidade de se evitar
o perigo concreto (comprovado cientificamente), e o princípio da precaução
objetiva evitar o perigo abstrato (não comprovado cientificamente, mas cuja
ocorrência seja verossímil).
O
princípio da prevenção pode ser aplicado para impedir que sejam praticadas atividades
que já se sabem causadoras de danos, por fontes de informações científicas
reconhecidas.
Já o
princípio da precaução, por sua vez, pode ser aplicado quando os dados
científicos do risco da atividade a ser realizada são insuficientes ou
contraditórios.
O
risco de perigo, nesse caso, pode ser meramente potencial, ou seja,
configura-se com a possibilidade verossímil de nocividade da atividade, embora
não se possa qualificar nem quantificar os efeitos do risco.
Assim,
o princípio da prevenção visa a evitar o risco conhecido, e o princípio da
precaução visa a evitar o risco potencial.
Aliás,
analisando as expressões risco certo e risco incerto, ou ainda, perigo concreto
e perigo abstrato, delineia-se a diferença entre prevenção e precaução.
Conforme Milaré, in litteris:
Com
efeito, há cambiantes semânticos entre essas expressões, ao menos no que se
refere à etimologia. Prevenção é substantivo do verbo prevenir (do latim prae
= antes e venire = vir, chegar), e significa ato ou efeito de
antecipar-se, chegar antes; induz uma conotação de generalidade, simples
antecipação no tempo, é verdade, mas com intuito conhecido.
Precaução
é substantivo do verbo precaver-se (do latim prae = antes e cavere =
tomar cuidado), e sugere cuidados antecipados com o desconhecido, cautela para
que uma atitude ou ação não venha a concretizar-se ou a resultar em efeitos indesejáveis.
De
maneira sintética, podemos dizer que a prevenção trata de riscos ou impactos já
conhecidos pela ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou
impactos desconhecidos. Em outros termos, enquanto a prevenção trabalha com o
risco certo, a precaução vai além e se preocupa com o risco incerto. Ou ainda,
a prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução
envolve perigo abstrato.
Pode-se
tomar o princípio da precaução, tradicionalmente definido, como aquele segundo
o qual a ausência de certeza científica da ocorrência do dano à saúde não é
razão para que se deixe de adotar as medidas necessárias ao afastamento da
suposta causa.
E, não
se trata de presunção da ocorrência de dano, seja absoluta ou seja relativa.
Pela
precaução, não existe necessidade dessa presunção. Bastando a incerteza da
ocorrência do dano para a postula acautelatória seja tomada.
No que
se refere à prevenção da disseminação de Covid-19, a pandemia de acentuada
gravidade que ainda está em curso no país e no mundo. A China[10] retornou a adotar o lockdown
devido as novas cepas do coronavírus.
Não há
controvérsias em relação à transmissão do vírus por meio de gotículas
respiratórias grandes passadas por indivíduos próximos um ao outro, as quais,
uma vez expelidas, acomodam-se rapidamente nas superfícies próximas; bem como
por meio de superfícies contaminadas.
No
entanto, não há até o momento evidências científicas seguras a respeito da
transmissão do vírus pelo ar por meio de gotículas pequenas que ficam
suspensas. A esse respeito, a Organização das Nações Unidas para o Controle de
Infecções chegou a se manifestar no sentido de que a transmissão aérea seria
possível, mas não suportada por evidências sólidas.
A
despeito disso, vários cientistas passaram a apontar evidências de que a
transmissão também poderia ser feita pelo ar, sugerindo à Organização Mundial
da Saúde que passasse a reconhecer essa possibilidade em suas orientações
técnicas e recomendações.
A
possibilidade de transmissão da Covid-19 pelo ar impacta nos meios de proteção
contra o seu contágio. Havendo essa forma de transmissão, o uso de máscaras em
locais fechados reduz as chances de contaminação. Não havendo, a medida seria
inócua na prevenção.
Ainda
que não haja, no momento, provas seguras da possibilidade de transmissão do
vírus por gotículas pequenas suspensas no ar, mas havendo essa possibilidade, a
OMS acabou por posteriormente recomendar o uso de máscaras em locais fechados
em que a transmissão por essa forma pudesse ocorrer.
Aplicou, portanto, o princípio da precaução ao
sugerir a adoção de medidas de segurança mesmo ante a incerteza dos danos.
Antes
de prosseguir na análise do princípio da precaução no direito sanitário
propriamente dito, é importante que se faça um delineamento um pouco mais
preciso de seus contornos.
A
adoção de uma concepção rígida do princípio da precaução fez com que ele fosse
bastante questionado ou mesmo combatido. Entenda-se como concepção rígida
aquela segundo a qual se deve evitar a qualquer custo a ocorrência de um fato
que possa causar danos ao meio ambiente ou à saúde ainda não comprovados
cientificamente.
Por
essa visão, portanto, sempre e somente após a segura comprovação de
inexistência de qualquer dano dela resultante é que uma atividade
potencialmente degradadora do meio ambiente ou prejudicial à saúde poderia ser
desenvolvida.
As
principais críticas que essa leitura do princípio da precaução recebe foram bem
sintetizadas por Tickner, Kriebel e Wright, com tradução:
O
princípio da precaução foi criticado por: sufocar a inovação, causar consequências
não intencionais potencialmente mais graves do que o problema que desencadeou a
ação preventiva em primeiro lugar e criar “falsos positivos” – riscos aparentes
que desperdiçam recursos e distraem os problemas reais.
Insurgiu-se
Cross, fortemente, contra essa abordagem do princípio da precaução, salientando
principalmente os elevados e, no seu entender, desarrazoados custos econômicos
que ela traz. Diz ele que, “quanto mais o governo se esforça para eliminar o
último risco potencial, maior o risco de consequências adversas” (tradução
livre).
Para
fundamentar suas críticas, elenca vários exemplos de situações concretas em que
o excesso de precaução traria mais prejuízos do que benefícios, tais como: a) a
resistência à incineração de armas químicas militares acondicionadas no Havaí
por receio de poluição atmosférica acabaria trazendo maior risco à ilha em
decorrência da permanência do arsenal, que poderia causar vazamentos químicos
ou explosões; b) a restrição à produção e à comercialização de adoçantes por
conta do receio de conterem substâncias cancerígenas causaria um aumento do
consumo de açúcar pela população, com os malefícios à saúde daí advindos; c) a
substituição de veículos movidos a combustíveis fósseis por veículos elétricos
demandaria maior queima de combustível para gerar a energia elétrica necessária
para abastecer os automóveis.
O doutrinador
elenca ainda hipóteses mais extremas e de comprovação empírica questionável,
como o aumento de acidentes de trânsito proporcionado por restrições de voos
por companhias aéreas em más condições de tempo e os alegados prejuízos ao
tratamento de diversas doenças que a regulação de medicamentos pela FDA
causaria.
Resume
sua posição da seguinte maneira (tradução livre) apud Bruno Henrique Silva
Santos:
O
princípio da precaução repousa na ilusão de que as ações não têm consequências
além dos fins pretendidos. De fato, não existe “almoço grátis”. Os esforços
para eliminar qualquer risco criarão alguns novos riscos, enquanto
possivelmente reduzirão outros riscos relacionados. Se a intenção de alguém é
proteger verdadeiramente a saúde pública e o meio ambiente, todos esses riscos
incidentais devem ser considerados, contrariamente às aplicações prevalecentes
do princípio da precaução.
As
críticas da corrente de entendimento aqui representada por Cross seriam
razoáveis se o princípio da precaução fosse de fato compreendido da maneira
rígida como ele presume em sua premissa.
O
desenvolvimento desse princípio desde que ele foi concebido, entretanto, leva-o
atualmente a uma formatação distinta. Tem-se entendido, majoritariamente, que o
princípio da precaução não impõe necessariamente que se aguarde ou se exija a
cabal comprovação científica de inexistência de qualquer risco causado ao meio
ambiente ou à saúde pública por uma atividade potencialmente danosa para que
ela seja autorizada, ou que os riscos potenciais sejam prévia e integralmente
neutralizados.
Contemporaneamente,
o princípio da precaução vem sendo utilizado como um mecanismo de gestão de
riscos pelo qual são ponderados, de um lado, os potenciais danos que uma
atividade poderia gerar e, de outro, as consequências das mais diversas ordens
que as necessárias medidas de cautela ou o não desenvolvimento da atividade
proporcionariam.
Considerando
que o princípio da precaução foi criado e desenvolvido sobretudo na Europa,
disseminando-se posteriormente, é importante analisar como ele vem sendo lá
tratado.
É
muito interessante, nesse sentido, a “Comunicação da Comissão (da União
Europeia) relativa ao princípio da precaução”, da qual se extraem os seguintes
trechos:
3. O
princípio da precaução não é definido no Tratado, que o prescreve apenas uma
vez – para proteger o ambiente. Mas, na prática, o seu âmbito de aplicação é
muito mais vasto, especificamente quando uma avaliação científica objetiva
preliminar indica que há motivos razoáveis para suspeitar que efeitos
potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou
a proteção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de proteção
escolhido para a Comunidade.
(...)
4.
(...) O princípio da precaução é particularmente relevante no que se refere à
gestão de riscos. (...) O recurso ao princípio da precaução pressupõe que se
identificaram efeitos potencialmente perigosos decorrentes de um fenómeno, de
um produto ou de um processo e que a avaliação científica não permite a
determinação do risco com suficiente segurança.
(...)
5. As
instâncias de decisão devem estar conscientes do grau de incerteza relativo aos
resultados da avaliação dos dados científicos disponíveis. Determinar qual é o
nível de risco “aceitável” para a sociedade é eminentemente uma
responsabilidade política. As instâncias de decisão, quando confrontadas com um
risco inaceitável, uma incerteza científica e as preocupações do público, têm o
dever de encontrar respostas. Contudo, todos estes fatores têm de ser tomados
em consideração.
(...)
6. (...)
uma proibição total nem sempre constitui uma resposta proporcional a um risco
potencial. Contudo, em determinados casos, é a única resposta possível a um
dado risco. (...) Analisar vantagens e encargos implica comparar o custo total
para a Comunidade da atuação e da ausência de atuação, a curto e a longo prazo.
Não se trata simplesmente de uma análise económica custo/benefício: o seu
âmbito é muito mais vasto e inclui considerações não económicas, como a
eficácia das opções possíveis e a sua aceitabilidade pelo público. Ao efetuar
esta análise, devem ter-se em conta o princípio geral e a jurisprudência do
Tribunal, segundo os quais a proteção da saúde tem precedência sobre as
considerações económicas.
(...)
A
análise do princípio da precaução realça dois aspectos, diferentes devido à sua
natureza: (i) a decisão política de actuar ou de não actuar, ligada aos fatores
que desencadeiam a utilização do princípio da precaução; (ii) em caso
afirmativo, como actuar, ou seja, as medidas que resultam dessa utilização do
princípio da precaução.
(...)
A
abordagem de prudência inscreve-se na política de avaliação de riscos que é
determinada antes de qualquer avaliação de riscos e que recorre aos elementos
descritos no ponto 5.1.3. Faz, pois, integralmente parte do parecer científico
emitido pelos avaliadores de riscos.
Em
contrapartida, a aplicação do princípio da precaução insere-se na gestão de
riscos, quando a incerteza científica não permite uma avaliação completa dos
riscos e as instâncias de decisão consideram que pode existir uma ameaça ao
nível escolhido de proteção do ambiente, da saúde das pessoas ou dos animais ou
de proteção vegetal.
A
Comissão considera que as medidas de aplicação do princípio da precaução se
inscrevem no quadro geral da análise de riscos, mais precisamente na gestão de
riscos.
Diversos
aspectos do comunicado parcialmente transcrito acima chamam a atenção. Dentre
eles, três merecem destaque. O primeiro é o fato de que o princípio da
precaução vem sendo tratado, como dito acima, como meio de gestão de riscos.
Ainda
que ele imponha o dever de cautela mesmo à míngua de comprovação científica dos
danos causados por uma determinada atividade, permite, por outro lado, que
sejam levadas em consideração as consequências da vedação ao exercício dessa
atividade ou da implementação das medidas preventivas necessárias ao
afastamento ou à mitigação dos riscos. Considera-se, portanto, o risco total.
O
segundo aspecto digno de nota é o de que a decisão final sobre os riscos –
apurados com o devido rigor científico – aceitáveis, após feitas as ponderações
necessárias, é de natureza política. Assim, cabe à ciência investigar a potencialidade
danosa e os riscos de uma determinada atividade, bem como as consequências
ambientais, econômicas, sanitárias e sociais do seu desempenho, da sua
proibição ou da implementação das medidas de prevenção necessárias. Feita essa
apuração, a decisão sobre a alternativa concreta a ser adotada é de cunho
político, devendo levar em consideração os anseios e os valores aceitos na
comunidade envolvida.
O
terceiro ponto a ser sublinhado é a premissa de que “a proteção da saúde tem
precedência sobre as considerações económicas”. Assim, se o conflito no caso
concreto for entre a preservação do direito à saúde (ainda que o risco de lesão
seja incerto) e interesses exclusivamente econômicos, o princípio da precaução
pende para a proteção da saúde.
A
Comissão Europeia deixou bastante claro no comunicado em epígrafe que há que se
buscar uma proporcionalidade entre a onerosidade das medidas necessárias para a
precaução e o nível de proteção pretendido. Consignou também que não é de se
buscar sempre o “risco zero”, que dificilmente será atingido.
Ainda
assim, são necessários estudos científicos que apontem com a máxima precisão
possível os riscos existentes e as alternativas postas à disposição do agente
decisor, de maneira que a decisão proferida seja qualificada e eficiente.
As
medidas previstas devem permitir atingir o nível de proteção adequado. As
medidas baseadas no princípio da precaução não deveriam ser desproporcionadas
em relação ao nível de proteção pretendido e querer atingir um nível zero de
risco, que raramente existe.
Contudo,
em certos casos, uma estimação incompleta dos riscos pode limitar
consideravelmente o número de opções disponíveis para os gestores de riscos.
Em
certos casos, uma proibição total pode não ser uma resposta proporcional a um
risco potencial. Noutros casos, pode ser a única resposta possível a um
determinado risco.
Essa
concepção do princípio da precaução ecoa na doutrina. Beck reforça a ideia de
que as informações e as conclusões científicas são o material utilizado para
que decisões políticas sejam tomadas segundo os interesses sociais.
Segundo
o doutrinador, “constatações de risco baseiam-se em possibilidades matemáticas
e interesses sociais, mesmo e justamente quando se revestem de certeza
técnica”. Por isso, “racionalidade científica sem racionalidade social fica
vazia, racionalidade social sem racionalidade científica, cega”. Para tanto, é
indispensável que haja uma aproximação entre a comunidade científica e a
sociedade, assegurando que aquela tenha noção dos valores e dos anseios
sociais, e que a população em geral seja munida de conhecimentos científicos
básicos para que possa tomar suas decisões.
Como
bem resumido por Comba, Martuzzi e Botti, várias questões filosóficas,
econômicas e sociais estão subjacentes às decisões que serão tomadas.
Com
efeito, a sociedade está muitas vezes disposta a correr certos riscos, desde
que isso lhe proporcione benefícios que seguramente superem os danos
potenciais.
Tome-se
como exemplo o uso dos meios de transporte individuais e coletivos. Não há
dúvida de que eles oferecem riscos à vida e à saúde das pessoas (acidentes
aéreos ou de trânsito, poluição, etc.). Ainda assim, o proveito trazido é
considerado muito maior do que os riscos gerados, de maneira que sua utilização
é admitida.
Há outras
situações em que a ponderação entre os riscos e os benefícios da adoção de
medidas potencialmente causadoras de danos à saúde é bem mais complexa e
controversa social e politicamente. Um exemplo claro está relacionado ao
combate à Covid-19, causadora da grave pandemia que atinge fortemente todos os
continentes do planeta neste momento.
Medidas
de isolamento social têm sido largamente adotadas nos mais diversos países para
impedir a disseminação do vírus, que se propaga rapidamente e, sobretudo, em
ambientes fechados e com aglomeração de pessoas.
Por
isso, por vários meses, escolas permaneceram ou ainda permanecem fechadas com o
objetivo de evitar que os alunos se contaminem e levem a doença também às
pessoas próximas, fora do ambiente escolar.
Com o passar
do tempo, entretanto, os prejuízos acadêmicos gerados aos alunos, especialmente
às crianças menores, começam a se tornar bastante claros. Além disso, nas
camadas mais pobres da sociedade, a necessidade de os filhos pequenos
permanecerem em casa dificulta ou impede que os pais trabalhem, além de lhes
trazer maiores despesas com cuidados e alimentação dos pequenos.
Por
outro lado, sabe-se atualmente que as crianças são bem menos suscetíveis aos
sintomas graves da doença quando comparadas aos adultos, cogitando-se inclusive
da possibilidade de o contágio em relação a estas ser mais difícil.
Ainda
não se sabe ao certo, todavia, se a transmissão do vírus pelas crianças ocorre
da mesma maneira que pelos adultos, havendo estudos científicos sugerindo que a
chance de uma criança espalhar o vírus é menor do que a de indivíduo adulto,
mas sem resultados aceitos inquestionavelmente pela comunidade científica em
geral, que continua com as pesquisas.
Nesse
cenário, o debate sobre a reabertura das escolas tem sido latente. Há
necessidade de se ponderar, de um lado, o risco à saúde pública que ela pode
causar em razão da disseminação da doença, e, de outro, as consequências
negativas no aprendizado dos alunos, na possibilidade de trabalho pelos pais,
na renda familiar e nos cuidados com as crianças que a manutenção do fechamento
das escolas causa.
Tanto
os riscos da abertura como as consequências do fechamento devem ser
cuidadosamente analisados segundo critérios técnicos confiáveis para que a
sociedade, por meio de seus representantes políticos, decida da melhor maneira
o que deve prevalecer em um dado momento e em um determinado local.
Eis a
amplitude do princípio da precaução, cujo conteúdo Tickner, Kriebel e Wright
explicam com maestria, refutando com argumentos sólidos as críticas que recebeu
por parcela da doutrina. A consistência dos fundamentos justifica a longa
transcrição de suas lições (em tradução ora feita livremente):
O
princípio da precaução incentiva a tomada de decisões usando o maior número
possível de informações e participantes. Não cria proibições rígidas para novas
tecnologias quando há risco de danos. Prova absoluta de segurança é impossível;
o desafio para os formuladores de políticas é encontrar o equilíbrio entre
risco potencial e benefício social na ausência de prova de segurança. O
princípio da precaução fornece orientação nesses dilemas de política
contestada, incentivando a utilização da evidência como um todo, incluindo: a
força da evidência de risco, a incerteza e a ignorância sobre o risco, sua
magnitude potencial e a disponibilidade de alternativas viáveis à tecnologia
proposta.
A
precaução pode ser uma ferramenta para redirecionar a inovação para práticas
mais seguras e limpas para atender às necessidades humanas.
(...)
A
precaução sufoca a inovação? Algumas tecnologias e substâncias provavelmente
devem ser retardadas ou bloqueadas, após uma análise cuidadosa de seus
benefícios, riscos, alternativas e incertezas gerais.
A
precaução incentiva essa revisão, mas não sufoca indiscriminadamente a
inovação. Pelo contrário, uma busca minuciosa por maneiras alternativas de
alcançar os mesmos objetivos sociais geralmente identifica tecnologias que
devem ser incentivadas.
(...)
Consequências
não intencionais são um risco de decisões políticas. Mas estas podem ser
minimizadas, quando se age de maneira preventiva, ao: explorar e implementar
uma ampla gama de opções preventivas; incluir uma ampla gama de perspectivas
nos processos de tomada de decisão; usar uma perspectiva científica multidisciplinar
de lentes e sistemas para examinar os riscos antes e depois das intervenções; e
desenvolver métodos para monitorar intervenções de saúde pública quando há
sinais precoces de problemas.
(...)
Precaução
não significa apenas pesquisas mais acuradas; significa também vincular a
avaliação de riscos a avaliações alternativas e discussões mais democráticas de
necessidades e objetivos sociais.
(...)
Muitas
crises ambientais recentes surgiram do fracasso em agir rapidamente para evitar
consequências não intencionais de tecnologias aparentemente benéficas, e a
precaução é vista como uma maneira de evitar esses erros em decisões futuras.
Evidentemente,
não existe segurança absoluta, nem certeza absoluta, e regulamentos errados e
falhas de regulamentação ocorrerão. Mas acreditamos que a sociedade ainda não
implementou todo o potencial da política baseada na ciência para evitar danos
aos ecossistemas e à saúde, garantindo progresso em direção a um futuro mais
saudável e economicamente sustentável.
Longe
de ser anticientíficas, políticas de precaução podem estimular inovações em
ciência, medicina e tecnologia para promover a saúde e a segurança do planeta.
Daí se
conclui que o princípio da precaução é um mecanismo de resguardo da saúde que
prima pela qualificação das informações técnicas e científicas que serão
utilizadas para as decisões de cunho político a serem tomadas segundo o
interesse público, permitindo que a política atue com base em evidências
científicas.
No
entanto, não se pode perder de vista que a sua essência é a de impedir que a
ausência de evidência científica dos danos causados por uma atividade dispense
qualquer medida de cautela.
Ainda
que se chegue à conclusão de que não há necessidade de qualquer intervenção
quanto à prática da atividade, isso somente pode ser feito após uma ponderação
detida dos dados científicos especificamente colhidos sobre os riscos
potenciais existentes e sobre as implicações de ordem ambiental, sanitária,
econômica, social e política decorrentes da inação ou da implementação de
medidas preventivas.
Em
decorrência da necessidade de análise científica rigorosa como procedimento
prévio à escolha entre as alternativas postas, é de suma importância que a
decisão proferida seja devidamente fundamentada, permitindo à sociedade como um
todo e aos órgãos de controle uma perfeita compreensão dos dados e das
informações considerados pelo poder público em sua deliberação e das razões que
o levaram a decidir em um determinado sentido. Aliado ao dever de
fundamentação, portanto, está o de publicidade.
Essas
premissas foram de certa maneira positivadas na ordem jurídica interna. O art.
20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº
4.657/42), acrescentado pela Lei nº 13.655/2018, estabelece o seguinte:
Art.
20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com
base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências
práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo
único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou
da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa,
inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de
2018)
Lembremos
que o caput do referido dispositivo legal, ao determinar que as
consequências práticas da decisão sejam consideradas, acaba por exigir que a
autoridade administrativa se certifique, com base em critérios técnicos que
possam tornar objetivas as previsões, dos resultados que dela advirão.
Já o
parágrafo único impõe que o agente decisor leve em consideração as possíveis
alternativas à prática do ato, privilegiando aquela que se demonstre como mais
adequada à solução do caso concreto. Exige, ainda, que a decisão seja
devidamente motivada.
Ainda
que o art. 20 da LINDB tenha sido instituído para normatizar as atividades
decisórias em geral, tanto administrativas como judiciais, suas disposições
encaixam-se perfeitamente ao conteúdo do princípio da precaução.
Essa
abertura para a análise de riscos que o princípio da precaução proporciona leva
alguns doutrinadores, inclusive, a tratá-lo como um método de indução de tomada
de decisões, e não propriamente como uma regra de decisão.
Essa
não parece ser a compreensão mais acertada. Ainda que se adote um conceito
flexível do princípio da precaução, ele é dotado de acentuada carga normativa
ao determinar (e não apenas induzir) que a incerteza científica dos danos
causados por determinada atividade não seja invocada para a dispensa da adoção de
medidas preventivas, ou mesmo, quando o caso impuser, para que a própria
atividade seja vedada.
Diante
da amplitude das análises a serem feitas na aplicação do princípio da precaução
como mecanismo de gestão de riscos, discute-se quais seriam os métodos mais
apropriados para a definição da melhor decisão a ser tomada em cada caso
concreto, seja ela a absoluta vedação do exercício da atividade potencialmente
danosa, seja a sua completa liberação, a opção por meio alternativo (bem como a
melhor alternativa, caso haja mais de uma) ou, ainda, a adoção de medidas de
cautela ou controle da atividade proposta.
A
questão é muito complexa e sua análise detida não cabe nos propósitos deste
estudo. Ainda assim, convém ao menos apontar alguns desses métodos.
O já
referido Comunicado da Comissão (da União Europeia) relativo ao princípio da
precaução dispõe que “a avaliação de riscos consiste em quatro componentes –
designadamente, a identificação do perigo, a caracterização do perigo, a
avaliação da exposição e a caracterização do risco”, de maneira que “os limites
do conhecimento científico podem afetar cada uma destas componentes”.
Além
disso, há que se conjugar a probabilidade dos danos com a sua suposta
gravidade, de forma que sejam avaliados com pesos distintos: a) a alta
probabilidade de ocorrência de danos graves; b) a baixa probabilidade de
ocorrência de danos graves; c) a alta probabilidade de ocorrência de danos
leves; e d) a baixa probabilidade de ocorrência de danos leves. Na situação
“a”, não há maiores dúvidas de que são fortes os fundamentos para que se adotem
as medidas necessárias a evitar os danos em detrimento de outras vantagens que
a prática da atividade pudesse trazer.
Por
outro viés, na situação “d”, há boas razões para que se permita o exercício de
atividades que possam trazer razoável benefício social em detrimento dos danos
causados.
As
situações “b” e “c” encontram-se na zona de penumbra, exigindo maiores cuidados
na ponderação entre os riscos existentes e os aceitáveis. O mesmo ocorre quando
a gravidade dos riscos ou a probabilidade dos danos são desconhecidas.
Gonçalves
divide os métodos de interpretação econômica do princípio da precaução em dois
paradigmas. O primeiro é o racional-instrumental, que “considera a teoria da
escolha em incerteza, que envolve a economia, mas também conceitos da
psicologia e da teoria da decisão estatística”.
Ele se
divide em duas correntes principais: a teoria da utilidade esperada, que é
maximizada a partir dos custos e dos benefícios estimados nas diferentes opções
alternativas; e os modelos designados como “aversão à ambiguidade”, aplicados
“em situações em que existem expectativas divergentes sobre a incerteza por
parte de diferentes indivíduos”.
O
segundo método é o deliberativo constitutivo, o qual “considera os quadros e os
modelos multicritérios, que incluem objetivos múltiplos (ambientais,
econômicos, sociais, etc.) na tomada de decisão e permitem integrar processos
participativos e deliberativos”.
Já os
doutrinadores como Comba, Martuzzi e Botti elencam outros dois métodos para a
gestão dos riscos por meio do princípio da precaução. Pelo critério
bayesiano/utilitarista, privilegiam-se as consequências mais favoráveis para a
maioria dos envolvidos (the most good for the most people).
O
grande busilis deste método é a possibilidade de que um grupo pequeno de
pessoas sofra consequências severas a partir da decisão ao final adotada.
Já o
critério maximin (maximum minimorum) leva em consideração as
piores consequências possíveis para cada alternativa que possa ser adotada,
independentemente de sua probabilidade (better safe than sorry).
Este
segundo método parece ser mais condizente com os propósitos do princípio da
precaução. Os próprios autores chegam à conclusão de que in litteris:
“Ambas
as abordagens se preocupam com o bem-estar social e visam a proteger e melhorar
o estado geral de saúde de uma comunidade, mas a visão utilitarista bayesiana o
identifica como a melhoria do bem-estar total ou médio, enquanto a abordagem
maximin está principalmente preocupada com o bem-estar dos subgrupos
populacionais mais desfavorecidos e resulta na redução da diferença entre
aqueles que estão em melhor situação e os que estão em pior. Essa lacuna não é
necessariamente preocupante na avaliação utilitarista bayesiana. Assim, a
estratégia maximin é considerada mais adequada para lidar com o problema da
justiça distributiva”.
Não se
pretende chegar a uma conclusão a respeito do melhor método de gestão de riscos
e decisão, até porque existem vários outros critérios que não foram aqui
abordados.
Ainda
assim, tudo o que já foi exposto serve para demonstrar com mais precisão o
alcance do princípio da precaução, a multidisciplinariedade das questões por
ele abrangidas e a importância do seu emprego correto para a conciliação da
preservação da saúde humana com o progresso científico, tecnológico e social.
Tema
probatório que é sempre afeto às discussões relacionadas ao princípio da
precaução e objeto de consideráveis divergências doutrinárias é a distribuição
do ônus da prova acerca dos riscos e dos danos relacionados à atividade
potencialmente lesiva à saúde ou ao meio ambiente.
Em
rápida síntese, é preciso definir se o que deve ser comprovado é a existência
ou a inexistência de danos ou riscos causados por uma atividade ou um produto
que em tese podem ter efeitos prejudiciais à saúde. Além disso, há que se
resolver sobre quem pesa o ônus da prova.
A
complexidade da questão é bem sintetizada por Pearce em trecho de artigo aqui
traduzido livremente:
Talvez
o aspecto mais discutível do princípio da precaução seja aquele que transfere o
ônus da prova para os proponentes de uma atividade. Em outras palavras, a
responsabilidade recai sobre os proponentes para provar que uma atividade é segura,
e não sobre seus oponentes para provar que é insegura.
O
segundo é geralmente muito difícil, embora não impossível, mas normalmente só
pode ser feito de maneira reativa após a exposição da população ao risco já ter
ocorrido.
Por
outro viés, provar a segurança completa é geralmente impossível. Alguns
doutrinadores sugeriram que, se aplicado cegamente, alterar o ônus da prova
dessa maneira sufocaria toda inovação (Holm & Harris, 1999; Anonymous,
2000) e criaria riscos “falso-positivos” que desperdiçam recursos e ofuscam os
problemas reais (Graham & Weinder, 1995; Keeney & von Winterfeldt,
2001).
De
fato, a maioria das tomadas de decisões em saúde pública envolve
necessariamente uma abordagem de “equilíbrio de evidências”, em vez de uma
abordagem “inocente até que se prove o contrário” ou “culpado até que se prove
que é inocente”.
Já de
antemão, deve-se afastar a necessidade de comprovação da efetiva existência dos
danos potencialmente gerados pela atividade ou pelo produto que se pretende
desenvolver.
É
justamente a ausência de prova científica dos danos o pressuposto do princípio
da precaução. A primeira questão que surge, então, é se ele impõe, em todos os
casos, que se comprove previamente a ausência de riscos ou de danos
propriamente ditos para o desempenho de uma atividade ou para a fabricação ou a
comercialização de um produto; ou se, pelo contrário, há que se demonstrar ao
menos a existência de riscos potenciais e plausíveis para que somente então se
exija a cabal demonstração da segurança da atividade ou do produto.
A
Comissão da União Europeia, apesar de ter emitido comunicado bastante técnico e
elaborado sobre o princípio da precaução, não adotou uma diretriz objetiva
quanto a esse ponto.
Refere
em um primeiro momento que, na maioria dos casos, os consumidores[11] e as associações que os
representam é que devem demonstrar o perigo associado a um procedimento ou a um
produto colocado no mercado, salvo em relação a medicamentos, pesticidas e
aditivos alimentares.
No
entanto, pondera que, em certas hipóteses, poderá ser exigido que o produtor, o
fabricante ou o importador prove a ausência de perigo. Essa possibilidade teria
de ser examinada caso a caso, não podendo ser alargada de modo generalizado ao
conjunto dos produtos e dos processos colocados no mercado.
É
difícil e não recomendável, de fato, estabelecer uma regra uniforme para uma
variedade tão grande de situações que podem se apresentar no mundo real. Mesmo
assim, alguns critérios minimamente objetivos podem ser previstos.
Há
situações em que os riscos são inerentes às atividades ou aos produtos que se
pretende desenvolver, porquanto já demonstrados cientificamente à saciedade no
decorrer do tempo. São os casos, por exemplo, da instalação de uma usina
nuclear ou do desenvolvimento de novos medicamentos.
Dada a
grande notoriedade dos riscos e diante da possibilidade da comprovação da
segurança da atividade ou do produto, o princípio da precaução impõe que o
proponente produza as provas da ausência desses riscos ou de danos ou, caso
existentes, de sua natureza e magnitude.
Em
tais hipóteses, o desempenho da atividade ou a pesquisa, a fabricação ou a
comercialização do produto potencialmente danoso depende, via de regra, de
autorização prévia do poder público. Essa autorização é justamente o meio pelo
qual o Estado analisará se a segurança da nova tecnologia está
satisfatoriamente demonstrada.
Em
sentido oposto, outras atividades ou produtos, por sua própria natureza, muito
dificilmente produzirão riscos ou danos ao meio ambiente ou à saúde. Tome-se
como exemplo a fabricação e a venda de roupas de tecido. Em casos tais,
presume-se a inofensividade do produto, dispensando-se o fabricante ou o
comerciante de comprovar cientificamente a sua segurança.
Isso
não afasta, entretanto, a possibilidade de terceiros demonstrarem de maneira
plausível e com base em indícios científicos a potencialidade danosa do produto
ou da atividade.
Havendo
essa demonstração, o princípio da precaução impõe que o desenvolvedor da
atividade ou o fabricante/comerciante do produto comprove a inexistência dos
riscos.
As
situações extremas são de resolução mais fácil. Os problemas surgem quando uma
atividade ou um produto não são notoriamente perigosos, tampouco claramente
inofensivos.
Nesses
casos, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio para definir se caberá ao
proponente comprovar a segurança da atividade ou do produto, ou aos
destinatários comprovar a existência de riscos ou os danos efetivos.
Não há
como fugir da casuística. Em cada situação concreta, deve-se investigar se existem
ao menos indícios factíveis e sérios da potencialidade danosa da
atividade/produto. Havendo, o princípio da precaução impõe ao proponente o ônus
de comprovar a sua segurança.
Não
havendo, a responsabilidade de demonstrar ao menos os riscos recai sobre os
destinatários. Quanto mais graves forem os danos potenciais, menor deve ser o
rigor na análise dos indícios dos riscos. Nessa linha de raciocínio, Schettler
e Raffensperger ensinam que in litteris:
(...)
o ônus da prova é melhor pensado como o ônus da persuasão e da
responsabilidade, que evita a afirmação infrutífera de que a segurança absoluta
nunca pode ser “comprovada”. Ele reconhece que, à medida que aumentam o potencial
de danos graves e irreversíveis e a incerteza científica, o proponente de uma
atividade tem uma obrigação crescente de explicar as suas consequências e de se
responsabilizar pelos efeitos adversos que dela possam resultar.
Evidentemente,
essa proposta de sistematização do ônus da prova está sujeita a regramento
legal diverso. No entanto, eventual normatização específica não poderá subtrair
do princípio da precaução – que tem matriz constitucional, como será visto
adiante – a sua essência.
É o
que ocorreria, por exemplo, se o agente desenvolvedor da atividade ou do
produto fosse eximido de qualquer responsabilidade de comprovar a sua segurança
quando a potencialidade danosa fosse evidente.
Quanto a normatização e aplicação do princípio da precaução no direito à saúde no Brasil[12], o princípio da precaução foi concebido e desenvolvido com mais ênfase nas questões ambientais e de segurança alimentar.
Ainda
assim, seu escopo é, no final das contas, a proteção última da saúde e do
bem-estar das pessoas, consideradas tanto individualmente como em sua
coletividade (saúde pública). Sem colocar em dúvida o valor intrínseco do meio
ambiente, a sua tutela jurídica não se exaure em si mesma. Esta objetiva
assegurar que a humanidade e a natureza que a permeia estejam em perfeita
harmonia em uma relação de respeito mútuo que torne possível o desenvolvimento
sustentável e a garantia de uma vida sadia aos seres humanos. Não há, portanto,
como dissociar o princípio da precaução do direito à saúde.
Cumpre,
portanto, investigar como referido princípio foi incorporado ao ordenamento
jurídico pátrio e quais são as suas implicações no direito sanitário.
Por
dez votos a um, o STF confirmou a decisão que mandou abrir CPI da Covid-19,[13] vide em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/supremo-comeca-a-decidir-hoje-se-mantem-ordem-de-barroso-para-instalacao-da-cpi-da-covid-que-irrita-bolsonaro/
Acesso em 10.04.2022.
A
Constituição Federal brasileira vigente não fez referência expressa ao
princípio da precaução. Contudo, ele pode ser extraído sem maiores dificuldades
a partir de várias de suas disposições.
O art.
196 da Constituição, após assegurar a saúde como direito de todos e dever do
Estado, determina que as políticas públicas que a asseguram tenham como foco,
também, a “redução do risco de doença e de outros agravos”. Note-se bem: não se
trata apenas de prevenção de danos, mas de redução de riscos.
A
norma trabalhou com o conceito de incerteza ao se referir a risco. Além disso,
o que se buscou afastar de qualquer risco não foi apenas a doença, mas também
outros agravos, ou seja, quaisquer prejuízos à saúde humana.
Não é
difícil concluir, então, que o princípio da precaução, que tem como escopo
justamente impedir o desenvolvimento de atividades ou produtos com potencial de
causar danos à saúde, ainda que não comprovados (ou seja, que tragam consigo
riscos), encontra guarida na norma constitucional em foco.
Há que
se referir, também, o art. 225, § 1º, IV e V, da Constituição, que é o
dispositivo comumente mencionado pela doutrina como introdutor do princípio da
precaução no âmbito constitucional.
Eis o
seu teor:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º
Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...) IV
– exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de
Impacto Ambiental, a que se dará publicidade;
V –
controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio
ambiente;
Nos
termos do inciso IV, acima citado, basta que a obra ou a atividade seja
“potencialmente causadora” de significativos danos ao meio ambiente para que se
exija estudo prévio de impacto ambiental, sendo desnecessária a efetiva prova
dos danos.
Já o
inciso V contenta-se com o mero risco para a qualidade de vida para impor o
controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e
substâncias potencialmente danosos.
O
princípio da precaução é, outrossim, um desdobramento do princípio
constitucional da eficiência da Administração (art. 37 da Constituição),
porquanto busca priorizar o impedimento da ocorrência do agravo à saúde, mesmo
quando incerto, ao invés de se contentar em tratá-lo, até porque muitas vezes o
tratamento sequer será possível.
A
precaução também decorre de uma das várias vertentes do princípio da segurança
jurídica. A segurança reside, aqui, na garantia de que o Estado tutela a vida e
a saúde das pessoas da forma mais eficiente possível, ou seja, inclusive agindo
antecipadamente para evitar os riscos à saúde, mesmo quando os danos são ainda
incertos, mas possíveis.
A
segurança, aliás, foi erigida a direito fundamental tanto sob a ótica
individual (caput do art. 5º) como social (caput do art. 6º).
A
legislação infraconstitucional também contempla, inclusive expressamente, o
princípio da precaução.
Além
do Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas (Eco-92) e das Convenções
sobre a Diversidade Biológica (Decreto nº 2.519/98) e sobre a Mudança do Clima
(Decreto nº 2.652/98), já citadas anteriormente, ele foi referido textualmente
pelo art. 1º da Lei nº 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que, ao tratar sobre
normas de segurança relacionadas a organismos geneticamente modificados,
estabeleceu como diretrizes “o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança
e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a
observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”.
O
princípio da precaução atua fortemente na política de assistência farmacêutica
à população, seja a pública, seja a privada.
O art.
16, II, da Lei nº 6.360/76 impõe que, para o registro de drogas, medicamentos,
insumos farmacêuticos e correlatos na Anvisa – o que constitui requisito
indispensável para a comercialização em território nacional, salvo hipóteses
excepcionais –, é necessária a comprovação científica de sua segurança.
Esses
produtos estão dentre aqueles cuja potencialidade lesiva à saúde é notoriamente
alta. Assim, cabe a quem pretende o registro comprovar de antemão que o produto
é seguro para a saúde humana, sem a necessidade de prévios indícios de que haja
algum dano decorrente do seu uso ou mesmo de que haja riscos de danos incertos.
Além
do mais, a mera suspeita de que um daqueles produtos, ainda que já registrado,
possa ter efeitos nocivos à saúde humana já é causa suficiente a autorizar a
suspensão de sua fabricação e sua venda pelo Ministério da Saúde (art. 7º da
Lei nº 6.360/76).
Nessa
mesma linha, o art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90[14] determina que os
medicamentos ou produtos inseridos nos protocolos clínicos e nas diretrizes
terapêuticas do SUS devem ser previamente avaliados quanto à sua segurança.
Já o
art. 19-Q da mesma lei impõe que a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação
de Tecnologias no SUS) avalie, antes da incorporação, as evidências científicas
sobre a segurança da tecnologia analisada. Busca-se com isso evitar que os
tratamentos oferecidos pelo sistema público de saúde causem mal aos pacientes,
ainda que não haja demonstração concreta de potencial prejuízo.
Como
referido anteriormente, contudo, o princípio da precaução não impõe que toda
nova tecnologia a ser introduzida na sociedade possua “risco zero” à saúde da
população.
Por este
se pondera, mediante um procedimento de gestão de riscos, quais os potenciais
benefícios e os possíveis prejuízos advindos da atividade ou do produto
avaliado para que então se decida qual a melhor alternativa a ser adotada (a
permissão da nova tecnologia, sua proibição ou a adoção de medidas de
controle). É exatamente o que ocorre em relação aos medicamentos.
Com
efeito, raramente será encontrado um medicamento que não tenha a possibilidade
de causar efeitos colaterais no usuário. Ainda assim, a sociedade e as
comunidades médicas e científicas assumem tais efeitos quando eles são
notoriamente admissíveis frente aos benefícios que a droga proporcionará à
saúde.
Quanto
maiores forem os benefícios ou mais graves as doenças a serem tratadas, maior a
tolerância em relação aos efeitos adversos. Os tratamentos quimioterápicos para
o câncer são exemplo claro disso. Mesmo causando efeitos colaterais graves à
saúde dos pacientes, admitem-se a sua produção, a sua comercialização e a sua
utilização por conta dos possíveis benefícios.
Trata-se
de típica ponderação de riscos e benefícios realizada pelo princípio da
precaução, portanto. É indispensável, todavia, que os perigos decorrentes da
utilização do medicamento estejam bem delineados e sejam claramente informados
aos profissionais da saúde e aos pacientes.
O
registro, a comercialização e a utilização de agrotóxicos, disciplinados pela
Lei nº 7.802/89 e por diversos atos administrativos, também se dão por
necessária influência do princípio da precaução. A liberação para uso desses
produtos pressupõe prévia autorização do poder público, como ocorre com os
medicamentos.
Os
riscos que oferecem à saúde humana são levantados cientificamente e cotejados
com os benefícios que trazem à produção agrícola e ao incremento da produção
alimentar.
As
provas sobre os danos, os riscos ou os benefícios devem ser produzidas antes do
registro (aqui incidindo a precaução), sem prejuízo do posterior acompanhamento
dos efeitos efetivamente gerados durante sua utilização.
O
programa de saúde do trabalhador instituído no âmbito do SUS também é permeado
de medidas decorrentes do princípio da precaução. Esta tutela aos trabalhadores
sujeitos não apenas aos agravos, mas também aos riscos das condições de
trabalho (art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.080/90).
Abrange,
dentre outras medidas, a “avaliação do impacto que as tecnologias provocam à
saúde” (inciso IV), a “informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade
sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença
profissional e do trabalho” (inciso V) e a “garantia ao sindicato dos
trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor
de serviço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco
iminente para a vida ou a saúde dos trabalhadores”.
A
proteção, como se positivou, é sempre antecipada em tais casos, tutelando a
mera existência de riscos, independentemente dos danos efetivamente
comprovados.
A
saúde do consumidor é outra seara em que o princípio da precaução atua com
forte interferência, trabalhando prioritariamente com o afastamento de riscos e
independentemente da demonstração de danos concretos.
A Lei
nº 8.078/90 é repleta de referências à segurança – que traz ínsita a ideia de
afastamento de riscos – e à saúde dos consumidores. Dentre estas, seu art. 6º
enumera como direitos básicos do consumidor, em primeiro lugar, “a proteção da
vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no
fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos” (inciso
I).
Merece
destaque, ainda, o art. 8º da mesma lei, segundo o qual “os produtos e serviços
colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou à segurança
dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência
de sua natureza e fruição (...)”.
Percebe-se,
mais uma vez, a caracterização do princípio da precaução como um mecanismo de
gestão de riscos, porquanto não afasta a possibilidade de fornecimento de
produtos ou serviços perigosos, desde que sejam aqueles normais e previsíveis
de acordo com suas características e sua forma de utilização.
Os princípios da prevenção e da precaução na
jurisprudência do STF[15] sobre direito à saúde
Bem
vistos os delineamentos dos princípios da prevenção e da precaução na órbita do
direito à saúde, é importante verificar como eles vêm sendo aplicados em casos
concretos. Para isso, é bastante interessante a menção a alguns acórdãos do
Supremo Tribunal Federal que debateram o tema.
Sobre a extração e utilização do amianto
crisotila também aplicando o princípio da prevenção no direito à saúde, o
Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade superveniente da Lei
nº 9.055/95, que, em seu art. 2º, autorizou a extração, a industrialização, a
utilização e a comercialização do amianto da variedade crisotila (asbesto
branco) na forma por ela disciplinada. As decisões se deram na ADI 3.937, de
relatoria do Ministro Dias Toffoli,[49] e nas ADIs 3.406 e 3.470, ambas
relatadas pela Ministra Rosa Weber.[50]
O
Supremo Tribunal Federal considerou que a nocividade do amianto crisotila à
saúde humana é atualmente comprovada pela ciência. Conforme constou na ementa
do acórdão da ADI 3.937:
Se,
antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente
ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se, na época da edição da
lei, na possibilidade do uso controlado dessa substância, atualmente, o que se
observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e
da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o
entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade
no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador.
O
consenso científico em torno da natureza altamente cancerígena do amianto
crisotila e a disponibilidade de materiais alternativos à fibra de amianto
levaram o STF a concluir, então, pela superveniente inconstitucionalidade da
Lei nº 9.055/95 por ofensa ao direito à saúde (arts. 6º e 196, CF/88), ao dever
estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de
saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88) e à proteção do meio
ambiente (art. 225, CF/88).
O
sentido das decisões foi impedir um dano à saúde já conhecido e sabidamente
advindo da utilização do amianto crisotila, em prestígio ao princípio da
prevenção.
Sobre
a redução do campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia
elétrica
Ao
julgar o RE 627.189, em que se discutiu a obrigação das concessionárias de
energia elétrica de reduzir a intensidade dos campos eletromagnéticos de torres
de transmissão, por ser a radiação potencialmente cancerígena, o Supremo
Tribunal Federal debruçou-se detidamente sobre o princípio da precaução. Como
pano de fundo do julgamento, estavam os possíveis riscos à saúde humana que
esses campos poderiam trazer.
O voto
do Ministro Dias Toffoli, relator do acórdão, é bastante profícuo e minucioso
na análise do princípio de que se trata. Para melhor compreensão do tema, vale
a pena transcrever a ementa do julgado:
Recurso
extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Direito Constitucional e
Ambiental. Acórdão do tribunal de origem que, além de impor normativa
alienígena, desprezou norma técnica mundialmente aceita. Conteúdo jurídico do
princípio da precaução. Ausência, por ora, de fundamentos fáticos ou jurídicos
a obrigar as concessionárias de energia elétrica a reduzir o campo
eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar
legal. Presunção de constitucionalidade não elidida. Recurso provido. Ações
civis públicas julgadas improcedentes.
1. O
assunto corresponde ao Tema nº 479 da Gestão por Temas da Repercussão Geral do
portal do STF na Internet e trata, à luz dos arts. 5º, caput e inciso
II, e 225 da Constituição Federal, da possibilidade, ou não, de se impor a
concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, por
observância ao princípio da precaução, a obrigação de reduzir o campo
eletromagnético de suas linhas de transmissão, de acordo com padrões
internacionais de segurança, em face de eventuais efeitos nocivos à saúde da
população.
2. O
princípio da precaução é um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre
que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto,
evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos
cidadãos, o que exige que o Estado analise os riscos, avalie os custos das
medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão
decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e
proporcionais.
3. Não
há vedação para o controle jurisdicional das políticas públicas sobre a
aplicação do princípio da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste
da análise formal dos limites desses parâmetros e privilegie a opção
democrática das escolhas discricionárias feitas pelo legislador e pela
Administração Pública.
4. Por
ora, não existem fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias
de energia elétrica a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão
de energia elétrica abaixo do patamar legal fixado.
5. Por
força da repercussão geral, é fixada a seguinte tese: no atual estágio do
conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos
da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos
e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem
impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela
Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei nº 11.934/2009. 6. Recurso
extraordinário provido para o fim de julgar improcedentes ambas as ações civis
públicas, sem a fixação de verbas de sucumbência. (RE 627.189, relator Min.
Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 08.06.2016, acórdão eletrônico,
repercussão geral – mérito, DJe-066, divulg. 31.03.2017, public. 03.04.2017)
Invocando
o princípio da precaução, a parte-autora da ação objetivava que o campo
eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica fosse reduzido a
limites inferiores aos máximos previstos na legislação pátria e recomendados
pela OMS, mas de acordo com padrões internacionais, especificamente da Suíça.
O que
chama a atenção no acórdão em epígrafe é a consideração do princípio da
precaução como mecanismo de gestão de riscos, conforme exposto anteriormente.
Com
efeito, o Supremo Tribunal Federal não exigiu que fosse demonstrado
cientificamente um “risco zero” de danos à saúde com a adoção, pelo ordenamento
jurídico pátrio, dos limites do campo eletromagnético recomendados pela OMS,
que são superiores ao da Suíça. Bastava, segundo o entendimento adotado, que os
riscos e as consequências da manutenção ou da redução dos limites fossem
previamente apreciados mediante critérios científicos confiáveis para então
serem sopesados e considerados na decisão a ser tomada. Os seguintes trechos do
voto do ministro relator são bastante elucidativos quanto ao ponto:
Com o
devido respeito, não se mostra correta a afirmativa de que esse princípio (o da
precaução) deva ser aplicado quando não comprovado o afastamento total dos
riscos efetivos ou potenciais. Isso porque dificilmente existirá um produto ou
serviço que possa estar livre de qualquer margem de risco à saúde ou, conforme
o caso, ao meio ambiente.
(...) A
legislação brasileira, rememoro, instituiu 83,33 μT (microteslas) como o limite
máximo de emissão de campos magnéticos, detectável a um metro e meio do solo.
A
discussão sobre a segurança desse limite para a saúde do ser humano não é nova
em nosso país, tendo-se iniciado em 2007. Em 2009, após amplo debate, os
Poderes Executivo e Legislativo optaram por acatar os parâmetros propostos pela
Organização Mundial da Saúde, e o país acabou por aprovar a Lei nº 11.934/09.
(...) Como
reiteradamente se manifestaram as partes durante o feito, bem como os
especialistas, a caracterização do que é seguro ou não seguro depende do avanço
do conhecimento científico.
Entretanto,
não me parece que existem provas ou mesmo indícios de que o avanço científico
na Suíça ou em outros países que não adotam os padrões da OMS esteja além do da
maioria dos países que compõem a União Europeia ou do de outros países do mundo
que estão a adotar os limites estabelecidos pela OMS e pela ICNIRP.
Acentuo,
ainda, que esses limites acabaram sendo aceitos em nosso país, inclusive pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como se verifica na edição da
NBR nº 15.415, publicada em 20 de outubro de 2006.
(...) Portanto,
tendo sido adotadas pelo Estado brasileiro as necessárias cautelas, pautadas
pelo princípio constitucional da precaução, e tendo em vista que nosso regime
jurídico se encontra pautado de acordo com os parâmetros de segurança
reconhecidos internacionalmente, não há razão suficiente que justifique a
manutenção da decisão objurgada.
É
evidente que, no futuro, caso surjam efetivas e reais razões científicas e/ou
políticas para a revisão do que se deliberou no âmbito normativo, o espaço para
esses debates e a tomada de novas decisões há de ser respeitado.
É
interessante observar que o julgamento foi precedido de audiência pública em
que foram ouvidos representantes do Ministério da Saúde, da Aneel, do Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor e do Ministério de Minas e Energia, além de
entidades representativas de profissionais da saúde, universidades, centros de
pesquisa e especialistas na área.
O
procedimento segue a ideia de pluralização do debate, que, como já demonstrado
anteriormente, exorbita as questões eminentemente técnicas, de forma que os
dados científicos solidamente colhidos servem para uma posterior decisão que
muitas vezes terá cunho político, observando-se, evidentemente, a primazia que
o direito à vida e à saúde tem em relação aos demais.
No
julgamento da ADI 5.592/DF, o Supremo Tribunal Federal apreciou a
constitucionalidade da norma do art. 1º, § 3º, IV, da Lei nº 13.301/16, que
trata de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão por aeronaves
para o combate ao mosquito transmissor da dengue, do vírus chikungunya e
do vírus da zika.
Em
síntese, seria a pulverização de veneno contra o mosquito. A Procuradoria-Geral
da República afirmava que, além de carecer de provas científicas de sua
efetividade, a medida poderia causar prejuízos à saúde e ao meio ambiente.
A
relevância do julgamento reside no entendimento do STF de que, em prestígio ao
princípio da precaução, não basta que a medida seja previamente autorizada pela
autoridade sanitária competente. É necessário, mais do que isso, que a
autorização ocorra com base em estudos científicos consistentes que demonstrem
a sua segurança para a saúde humana e a eficácia do método.
É
interessante observar que o controle vetorial a que se refere a Lei nº
13.301/16 destina-se justamente à prevenção das doenças transmitidas pelo
mosquito. Significa dizer que estavam em cotejo dois cenários em que a saúde
pública demandava atenção, seja pelos danos causados pelas doenças, seja pelos
riscos trazidos pelas medidas de combate.
No
caso, prevaleceu o entendimento de que o princípio da precaução impunha que se
obtivessem evidências científicas seguras acerca do método de controle do vetor
antes de sua implementação. É o que se depreende do voto do Ministro Edson
Fachin, relator para o acórdão:
De
fato, apesar de a lei condicionar a utilização de dispersão de substâncias
químicas por aeronaves para combate ao mosquito transmissor do vírus da dengue,
do vírus chikungunya e do vírus da zika à autorização da autoridade sanitária e
à demonstração da eficácia do método, é mister asseverar que, em se tratando de
procedimento que acarreta riscos indubitáveis à saúde humana e ao equilíbrio da
fauna e da flora da região na qual eventualmente se dispersarão os venenos,
mostra-se inafastável a incidência do princípio da precaução, a orientar o agir
do Estado, ainda que se trate de grave epidemia a acometer o país.
Apesar
de submeter a incorporação dessa medida à autorização da autoridade sanitária e
à comprovação de eficácia da prática no combate ao mosquito, entendo que o
legislador assume a positivação do instrumento sem a realização prévia desses
estudos, o que pode levar à violação à sistemática de proteção ambiental
contida no artigo 225 da Constituição Federal.
(...) Portanto,
para o atendimento do princípio da precaução ambiental – que condiz com a
própria manutenção da vida no planeta –, não basta a previsão legal autorizando
a medida, ainda que com condicionantes; é imperiosa a garantia da segurança e
da eficácia da utilização da técnica, com estudos científicos prévios à própria
inclusão na legislação, a fim de que o Estado-legislador corretamente demonstre
a inexistência ou a mitigação eficiente dos riscos envolvidos antes de sua
positivação.
(...) Nada
obstante, é evidente que não existiu a devida perquirição científica prévia
acerca da segurança e da eficácia dessa modalidade de controle da epidemia de
doenças causadas pelo mosquito Aedes aegypti.
(...) Ao
contrário, os estudos citados pela Procuradoria-Geral da República e as notas
técnicas juntadas à petição inicial, emitidas pelo Ministério da Saúde e pelo
Ministério do Meio Ambiente, demonstram haver incerteza científica no tocante à
efetiva segurança da utilização da dispersão aérea de substâncias químicas para
o combate ao mosquito Aedes aegypti.
A
conclusão do Supremo Tribunal Federal foi, então, a de conferir interpretação
conforme ao art. 1º, § 3º, IV, da Lei 13.301/2016, de maneira que a dispersão
aérea de veneno só seja feita após prévia comprovação científica de sua
eficácia e da ausência de danos à saúde e ao meio ambiente.
A
Portaria nº 43/2020 do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento/Secretaria de Defesa Agropecuária, nos itens 64 a 68 da Tabela 1
de seu artigo 2º, estabeleceu prazo de 180 dias para a manifestação da
autoridade competente sobre o registro de fertilizantes e de 60 dias para
agrotóxicos. Na ausência de manifestação conclusiva da Secretaria de Defesa
Agropecuária sobre a liberação, considera-se que houve aprovação tácita.
Essas
regras foram impugnadas por meio das ADPFs 656 e 658, ambas relatadas pelo
Ministro Ricardo Levandowski, cujos acórdãos não foram publicados até a data da
conclusão deste trabalho. Ainda assim, as informações extraídas de notícia
divulgada pelo Supremo Tribunal Federal foram de que a Corte se valeu do
princípio da precaução, diante dos sabidos efeitos nocivos dos agrotóxicos para
a saúde e o meio ambiente, para suspender os dispositivos normativos
impugnados.
De
fato, conforme visto anteriormente, o controle sanitário de medicamentos e
agrotóxicos é uma das áreas da saúde pública em que o princípio da precaução
mais se faz presente. Dados os notórios riscos que esses produtos oferecem à
saúde, a sua liberação para uso pressupõe minuciosa análise técnica e
científica acerca dos potenciais danos, o que é evidentemente incompatível com
a aprovação tácita.
A
pandemia da Covid-19 trouxe à tona inúmeras discussões relacionadas à aplicação
dos princípios da precaução e da prevenção no âmbito do direito à saúde.
Um
caso interessante em que a questão foi abordada é o da STP 393, apreciada pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli.
O
Município de Bom Jesus do Galho/MG apud Silva e Santos requisitou um hospital
privado desativado para tratamento de portadores da Covid-19, nos termos do
art. 3º, VII, da Lei 13.979/2020, que prevê tal forma de requisição. Havia até
então um único caso da doença confirmado na cidade.
Impugnada
a medida, o STF, por meio de seu presidente, utilizou o princípio da precaução
para mantê-la hígida mesmo diante das incertezas a respeito da forma de
propagação do vírus no município, que poderia ou não tornar necessária a
utilização dos leitos do hospital requisitado.
Vale
citar, em relação ao ponto, os seguintes trechos da decisão:
(...)
a forma como sua disseminação tem ocorrido velozmente país afora e tem
acarretado dramáticas situações na rede pública hospitalar de saúde de diversos
municípios demonstra que não parece prudente aguardar uma piora do quadro para
a tomada de medidas concretas.
Por
outro lado, a forma absolutamente imprevisível como ocorreu o início e a
propagação dessa pandemia torna de todo desarrazoado exigir-se, com exacerbado
rigor, que medidas emergenciais na área de saúde pública sejam tomadas com base
em sólidas evidências científicas ou estratégicas de informações em saúde.
(...)
E o
acerto de referida medida administrativa também pode ser referendado pela
aplicação, ao caso, do princípio da precaução, o qual, muito embora não se
refira, diretamente, à hipótese fática em discussão nestes autos, visto que
mais comumente ligado a situações ocorridas em matéria tecnológica e ambiental,
impõe que o julgador, em matéria de saúde pública e em face de dúvida sobre
qual a melhor solução a tomar, sempre opte por aquela que mais adequadamente
atenda aos interesses da saúde pública.
Com a campanha, o Brasil não pode parar, preocupada
com os efeitos econômicos que o isolamento social traria e na contramão das
recomendações das autoridades de saúde pública, o governo federal estimulava a
manutenção das atividades cotidianas dos cidadãos e das empresas.
A
campanha publicitária foi então impugnada na ADPF 668,[54] sob a relatoria do
Ministro Roberto Barroso. Em uma primorosa decisão cautelar, o ministro
considerou que a campanha caminhava em sentido contrário às recomendações da
OMS, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina, da Sociedade
Brasileira de Infectologia, além de outras instituições nacionais e
internacionais, todas propugnando pelo distanciamento social.
Aplicou
ao caso os princípios da prevenção e da precaução, “que determinam, na forma da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, na dúvida quanto à adoção de
uma medida sanitária, deve prevalecer a escolha que ofereça proteção mais ampla
à saúde”.
O
ministro assim detalhou seu raciocínio:
“Ainda que assim não fosse, que não houvesse
uma quase unanimidade técnico-científica acerca da importância das medidas de
distanciamento social e mesmo que não tivéssemos a agravante de reunirmos
grupos vulneráveis em situações de baixa renda, o Supremo Tribunal Federal tem
jurisprudência consolidada no sentido de que, em matéria de tutela ao meio
ambiente e à saúde pública, devem-se observar os princípios da precaução e da
prevenção. Portanto, havendo qualquer dúvida científica acerca da adoção da
medida sanitária de distanciamento social – o que, vale reiterar, não parece
estar presente –, a questão deve ser solucionada em favor do bem saúde da
população”.
Após o
deferimento da medida cautelar, o próprio governo federal entendeu por bem não
levar a campanha adiante, fazendo com que a ADPF perdesse seu objeto e fosse
extinta.
O que
é digno de nota e atenção no caso ora indicado é que os princípios da precaução
e da prevenção foram utilizados como parâmetro de controle de uma política
pública como um todo que buscava induzir a população a não seguir as
orientações de isolamento social preconizadas pelas autoridades sanitárias.
Diante
de tantas incertezas científicas relacionadas à pandemia da Covid-19, das
graves repercussões sanitárias e econômicas que ela trouxe, da necessidade de
compatibilização da saúde pública com a economia e das implicações da urgência
nas tomadas de providências administrativas das mais diversas ordens para se
lidar com o vírus, veio a lume a Medida Provisória nº 966/2020, que “dispõe
sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos
relacionados com a pandemia da Covid-19”.
De
acordo com seu art. 1º, a responsabilização dos agentes públicos nas esferas
civil e administrativa por decisões concernentes à pandemia depende de ação ou
omissão mediante dolo ou erro grosseiro.
Já o
art. 2º, que foi objeto de impugnação por meio da ADI 6.421, dispõe:
“considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado
com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de
negligência, imprudência ou imperícia”.
Parcela
dos meios jurídico e político considerou que a medida provisória em questão
poderia servir como álibi para a não responsabilização de agentes públicos por
decisões descoladas de critérios técnicos, o que levou ao questionamento de seu
art. 2º no Supremo Tribunal Federal por meio da referida ADI 6.421.
O
plenário do STF, acompanhando os termos do Ministro Roberto Barroso, fixou
então as seguintes teses:
1.
Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à
vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia,
por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii)
dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A
autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que
baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e dos critérios
científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por
organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da
observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob
pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
A um
só tempo, o Supremo Tribunal Federal reforçou o status constitucional
dos princípios da prevenção e da precaução e os vinculou às normas e aos
critérios técnico-científicos como parâmetros decisórios fora dos quais os
agentes públicos podem ser responsabilizados.
Além disso,
frisou que esses critérios sejam estabelecidos por “organizações e entidades
internacional e nacionalmente reconhecidas”, tudo a confirmar que os princípios
da prevenção e da precaução devem sempre caminhar ao lado da ciência.
Com
efeito, tratando-se de princípios constitucionais, a prevenção e a precaução
devem balizar a atuação dos agentes públicos, tornando ilícitas as condutas que
não os seguem.
Caso
emblemático em que a não observância do princípio da precaução causou prejuízos
gravíssimos à saúde de muitos cidadãos, ensejando o reconhecimento pelo próprio
Estado do dever de indenização, foi o da talidomida[16].
A
droga foi lançada na década de 1950 do século passado como antigripal e
sedativa. Sem estudos prévios e de longo prazo suficientes em relação à
segurança para a saúde humana, atingiu sucesso mundial sob a propaganda
agressiva de ser um medicamento seguro e eficaz.
Pouco
tempo após o início do uso generalizado, ainda no final dos anos 1950 e início
dos anos 1960, começaram a aparecer os primeiros relatos de efeitos colaterais
graves, culminando na constatação de malformações congênitas.
Como
detalhado por Moro e Invernizzi:
“Entre
as anormalidades ocasionadas pela talidomida estão: perda de audição,
alterações oculares, surdez, paralisia facial; malformações na laringe, na
traqueia, nos pulmões e no coração; e retardo mental em 6,6% dos indivíduos
afetados.
A taxa
de mortalidade entre as vítimas variou entre 40% e 45%. Entre dez e quinze mil
crianças nasceram com as malformações típicas associadas à talidomida no mundo,
e 40% destas morreram no primeiro ano de vida (Vianna, Sanseverino, Faccini,
2014)”.
No
Brasil, a talidomida[17] começou a ser
comercializada quando já havia notificação de efeitos adversos na Alemanha. A
retirada da droga do mercado ocorreu em 1965, quatro anos depois do país
europeu. A tragédia causada na saúde pública foi tamanha que a Lei nº 7.070/82
instituiu pensão especial para as vítimas do medicamento.
Já a
Lei nº 12.190/2010 concedeu indenização por danos morais para as mesmas
vítimas, em um reconhecimento claro da responsabilidade do Estado em razão da
não observância dos princípios da prevenção e da precaução quando da liberação
da droga para uso em território nacional e da sua suspensão tardia.
A
prudência é uma virtude que deve acompanhar todas as ações humanas. Esta é,
especialmente, importante no trato da vida e da saúde das pessoas, que são os
bens jurídicos mais caros que possuem.
O
desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo que viabiliza o
progresso socioeconômico, permite antever consequências negativas ou ao menos
vislumbrar riscos de danos decorrentes de certas práticas e acontecimentos. Por
outro viés, as próprias inovações tecnológicas podem oferecer riscos à saúde
enquanto seus efeitos, sobretudo a longo prazo, não são perfeitamente
conhecidos.
Nesse contexto,
tanto o impedimento de danos certos quanto o afastamento dos riscos de danos
incertos ganham especial importância na proteção à vida e à saúde pública.
O
princípio da prevenção tem como objetivo evitar a ocorrência de danos conhecidos
à saúde. Está previsto expressamente em normas constitucionais e
infraconstitucionais relacionadas ao direito à saúde, permeando as mais
variadas vertentes do SUS e da saúde suplementar.
Encontra-se
especialmente presente nas políticas de vigilância sanitária e epidemiológica,
de vacinação, de saúde do trabalhador e do consumidor.
Na
condição de princípio jurídico, impõe padrões de conduta ao Estado e aos
particulares. Por outro viés, deve ser harmonizado com outros princípios,
observando-se a primazia que o direito à vida e à saúde tem sobre os demais.
Já o
princípio da precaução trata com os danos desconhecidos ou incertos de uma
atividade ou um produto. Busca afastar os simples riscos, impondo que a mera
inexistência de comprovação dos danos ou de sua extensão não sirva como
justificativa para a permissão do livre desenvolvimento da atividade ou da
comercialização do produto.
Partindo
dos pressupostos de que dificilmente será possível chegar-se ao desenvolvimento
e à comprovação de atividades com “risco zero” à saúde e de que muitas vezes os
benefícios destas advindos podem superar os riscos oferecidos, o princípio da
precaução passou a ser largamente utilizado como mecanismo de gestão de riscos.
Para
que seja adequadamente empregado e atinja os seus reais propósitos, é
necessário que esteja sempre pautado por critérios técnicos e científicos
rigorosos para a apuração dos riscos, dos potenciais danos (considerados em
relação à sua gravidade, à sua probabilidade e à sua extensão) e, por outro
lado, dos proveitos que se almeja obter com a nova tecnologia.
A
distribuição do ônus da prova quanto à existência dos riscos e à sua extensão
na aplicação do princípio da precaução é um tema que enseja intensos debates.
Pela própria essência do princípio, não há que se exigir a prova de existência
de lesividade de uma tecnologia para que se impeça o seu desenvolvimento.
Quando
há razoáveis indicativos de que ela pode ser perigosa à saúde, cabe ao
proponente produzir provas em sentido contrário. Por outro lado, não havendo
nenhum indício de riscos, a sua demonstração é de incumbência dos terceiros
interessados. Havendo tal demonstração, aí sim se exige do proponente que os
afaste.
Quanto
mais graves ou extensos os possíveis danos, menor deve ser o rigor na apuração
dos indícios que farão com que o ônus da prova da inexistência dos danos se
volte contra o proponente. A análise é inevitavelmente casuística.
O
princípio da precaução encontra guarida nas mais diversas facetas do direito
sanitário, já que todo ele é pautado pela busca de “redução do risco de doença
e de outros agravos”, nos termos do art. 196 da Constituição.
É de
visibilidade mais nítida e límpida na regulação de medicamentos e agrotóxicos e
na política de assistência farmacêutica do SUS, apesar de também estar
presente, por exemplo, nos programas de proteção à saúde do trabalhador e do
consumidor.
A
jurisprudência pátria[18] tem se deparado com
inúmeras situações concretas em que os princípios da prevenção e da precaução
são diretamente aplicados na interpretação do direito à saúde.
O
Supremo Tribunal Federal[19] conta com diversas
decisões e acórdãos emblemáticos sobre o tema, conforme citados e elencados, em
razão de sua relevância como paradigmas a serem observados.
Em conclusão, buscou-se demonstrar a relevância que os princípios da precaução e da prevenção possuem também no direito sanitário, visto que eles são costumeiramente abordados no direito ambiental.
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Notas:
[1]
A gestão de risco é o conjunto de atividades coordenadas que têm o objetivo de
gerenciar e controlar uma organização em relação a potenciais ameaças, seja
qual for a sua manifestação. Isso implica no planejamento e uso dos recursos
humanos e materiais para minimizar os riscos ou, então, tratá-los. É uma
estratégia que envolve um trabalho preventivo de se antecipar a possíveis
situações e considerar a prática como parte dos processos da empresa. Mas
inclui também atuar de maneira prescritiva, isto é, quando o risco se manifesta
sem ter sido previsto.
[2]
A Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que a hidroxicloroquina não
funciona no tratamento contra a Covid-19 e alertou ainda que seu uso pode
causar efeitos adversos. O medicamento passou por uma análise de um grupo de
especialistas e pacientes e recebeu “forte recomendação” contra o uso no
combate ao coronavírus. O grupo de 32 debatedores da OMS classificou a
ineficiência da droga para tratamento de Covid-19 como de “alta certeza”. Eles
sugeriram ainda que “os financiadores e pesquisadores devem reconsiderar o
início ou continuação dessas experiências”. O documento foi publicado pela
revista científica The BJM. Portanto, recomendar o uso de tais medicamento
constitui um atentado ao direito à saúde.
[3]
Gonçalves assevera que “as autoridades
públicas terão de intervir para estabelecer os níveis de risco socialmente
aceitáveis para uma dada classe de perigos, com base em procedimentos de
pesquisa técnica e científica e de debates públicos” (GONÇALVES, Vasco Barroso.
O princípio da precaução e a gestão dos riscos ambientais: contribuições e
limitações dos modelos econômicos. Ambient. Soc., São Paulo, v. 16, n. 4, p.
121-138, dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2013000400008&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 16.03 2022.
[4]
STF mantém restrição temporária de atividades religiosas presenciais no Estado
de São Paulo em 08.04.2021 Por maioria dos votos (9x2), o Supremo Tribunal
Federal (STF) decidiu, nesta quinta-feira (8), manter a restrição temporária da
realização de atividades religiosas coletivas presenciais, no Estado de São
Paulo, como medida de enfrentamento da pandemia de Covid-19. A Corte entendeu
que tal proibição não fere o núcleo essencial da liberdade religiosa e que a
prioridade do atual momento é a proteção à vida. O Tribunal considerou
constitucional o dispositivo do Decreto estadual 65.563/2021 que, em caráter
emergencial, vedou excepcional e temporariamente a realização de cultos, missas
e outras cerimônias religiosas a fim de conter a disseminação do novo
coronavírus. O Tribunal decidiu já julgar no mérito a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 811, ajuizada pelo Partido Social
Democrático (PSD). O exame da matéria teve início na sessão plenária de ontem
(7.04.2021), com a apresentação dos argumentos das partes, dos terceiros
interessados, bem como com o relatório e o voto do ministro Gilmar Mendes.
[5]
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover
as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de
garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e
sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no
estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às
ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
[6]
A assistência a que alude o art. 1º desta Lei compreende todas as ações
necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da
saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.
[7]
Nos anos 80, a política de saúde no Brasil seguiu trajetória paradoxal: de um
lado, a concepção universalizante; de outro, obedecendo às tendências
estruturais organizadas pelo projeto neoliberal, concretizaram-se práticas
caracterizadas pela exclusão social e redução de investimentos públicos. Em
função dos baixos investimentos em saúde e consequente queda da qualidade dos
serviços, ocorreu uma progressiva migração dos setores de “classe média” para
os planos e seguros privados. A expansão da saúde suplementar nas últimas
décadas foi significativa. O Estado tem atuado no campo da saúde no Brasil,
tanto como prestador de serviços, fornecendo cuidados à saúde, como regulador
do mercado, fixando normas, padrões de qualidade, preços, tornando-se complexo
o debate das relações público/privadas.
[8]
Em julgamento virtual finalizado em 22 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal
Federal (STF) decidiu, à unanimidade, que é constitucional dispositivo legal
que permite a concessão de auxílio por incapacidade temporária mediante
apresentação de atestado médico durante a pandemia de covid-19 (ADI 6928). O
art. 6º da Lei nº 14.131/2021 (oriunda da Medida Provisória nº 1.006/2020)
autoriza que, até 31 de dezembro de 2021, o INSS conceda auxílio por
incapacidade temporária (auxílio-doença) por meio da apresentação de atestado
médico e de documentos complementares que comprovem a doença. Na ADI, a
Associação Nacional dos Peritos Médicos Federais (ANMP) argumentou que (i) se
trata de matéria inserida por emenda parlamentar, estranha ao objeto original
da medida provisória da qual se originou (MP nº 1.006/20, a qual originalmente
aumentava a margem de crédito consignado aos aposentados); (ii) viola o direito
fundamental social à previdência e precariza o sistema de verificação de
incapacidade laborativa; e (iii) não observa os critérios de preservação do
equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social. Contudo, para a
relatora do processo, Ministra Cármen Lúcia, (i) o tema tratado no referido
dispositivo não está dissociado da MP original; (ii) o dispositivo, além de ir
de encontro ao direito dos segurados incapacitados à previdência, importa em
eficiência do serviço público e na redução de prejuízos financeiros ocasionados
pela covid-19 aos segurados (mormente em razão do fechamento das agências do
INSS, o que impossibilitou a realização de perícia médica para a concessão do referido
benefício); (iii) a verificação de ocorrência de fraudes pela concessão de
benefício sem perícia médica cabe aos instrumentos de investigação e jurisdição
ordinária; (iv) a Portaria Conjunta nº 32/2021 da então Secretaria Especial de
Previdência e Trabalho elenca casos de dispensa de perícia e mantem a autonomia
do perito, que, após analisar documentos médicos, pode concluir que determinado
segurado preenche ou não requisitos para a concessão do benefício; e (iv) não
há que se falar em aumento de despesa, nem em desequilíbrio financeiro e
atuarial do sistema previdenciário, pois não há extensão da concessão das
hipóteses de auxílio por incapacidade temporária.
[9]
Campanha publicitária “O Brasil não pode parar” também em questão relacionada à
pandemia da Covid-19, o Supremo Tribunal Federal foi provocado para se
manifestar sobre a campanha publicitária proposta pelo governo federal com o
lema “O Brasil não pode parar”. A campanha seria lançada em um momento em que
praticamente todas as autoridades sanitárias nacionais e internacionais,
inclusive a OMS, recomendavam o isolamento social como medida destinada a
amenizar a disseminação descontrolada do vírus, que até o presente momento não
pode ser curado por medicamentos nem conta com vacina que o previna.
[10]
Novo lockdown na China pode impactar a economia mundial. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2022/04/como-novo-lockdown-na-china-pode-impactar-economia-mundial-ouca-podcast.shtml Acesso em 10.04.2022. China volta a ter lockdown,
mas analistas veem impacto limitado em exportações brasileiras Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/china-volta-a-fechar-mas-analistas-veem-impacto-limitado-em-exportacoes-brasileiras/
Acesso em 10.04.2022.
[11]
STF decide por inconstitucionalidade da concessão de desconto geral em
mensalidade de universidade por motivo de pandemia. Em 09.12.2021 Então, o CRUB
(Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras) e a ANUP (Associação
Nacional das Universidades Particulares), interpuseram Arguições de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF’s 706 E 713) alegando que haveria
sido retirado das universidades privadas o poder de negociar individualmente
com os pais ou alunos, beneficiando até mesmo quem não teve a renda afetada.
Sendo assim, no dia 18 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal, decidiu, por 9 votos a 1, julgar inconstitucionais as decisões judiciais que concederam descontos lineares nas mensalidades de faculdades durante a pandemia da COVID-19. Tendo como relatora a ministra Rosa Weber, as ADPFs declararam inconstitucionais tais decisões por ferirem os princípios constitucionais da livre iniciativa e da isonomia, além da autonomia universitária. Os fundamentos apresentados foram os de que os descontos nas mensalidades eram lineares, portanto, se aplicavam a todos os alunos, independentemente de fatores externos, como a renda do aluno, os efeitos econômicos para as instituições e etc., o que, para a Ilustre Relatora, era um erro. Rosa Weber destacou uma série de exigências imprescindíveis para a caracterização da vulnerabilidade econômica e da onerosidade excessiva em contratos de prestação de serviços educacionais, para que pudessem ser concedidos os devidos descontos, o que deveria ser levado em conta pelos juízes. Portanto, com a decisão, o colegiado afastou as decisões judiciais que concedam o desconto apenas com o fundamento de eclosão da pandemia e virtualização das aulas. Para que sejam concedidos os descontos, deverão ser analisadas as situações do caso concreto, para avaliar se há a onerosidade excessiva, falta de contraprestação adequada ou lesão às normas do Código de Defesa do Consumidor.
[12]
Historicamente, o Brasil vem utilizando mecanismos diversos para controle e
manutenção da regulamentação do setor de saúde. Para isto, em 28 de janeiro de
2000 foi decretada e sancionada a Lei nº 9.961 que criou a Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS); autarquia sob o regime especial, vinculada ao
Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro – RJ, prazo de
duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de
regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a
assistência suplementar à saúde. Possui natureza de autarquia especial
caracterizada por autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão
de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de
seus dirigentes.
[13]
Ao todo, foram 15 macro assuntos principais investigados ao longo da CPI da
Covid, são eles: Gabinete paralelo
Imunidade de rebanho; Tratamento precoce; Oposição às medidas não
farmacológicas; A falsa alegação de supernotificação por Covid-19; Recusa e
atraso na aquisição das vacinas; Crise do estado do Amazonas e a falta de
coordenação do Governo Federal; O caso Covaxin; Hospitais federais do Rio de
Janeiro; Caso VTC Operadora Logística LTDA – VTCLOG; Análise orçamentária da
pandemia no Brasil; Indígenas; Impactos da pandemia sobre as mulheres, a
população negra e os quilombolas; Desinformação na pandemia (Fake news);
Prevent Senior. Além disso, mais de 20 crimes foram identificados em todo o
relatório, atribuídos aos indiciados, quais foram: Homicídio; Crime de perigo
para a vida ou saúde de outrem; Crime de epidemia; Crime de infração de medida
sanitária preventiva; Omissão de notificação da doença; Charlatanismo;
Incitação ao crime; Falsificação de documento particular; Falsidade ideológica;
Uso de documento falso; Emprego irregular de verbas ou rendas públicas;
Corrupção passiva e ativa; Prevaricação; Advocacia administrativa; Usurpação de
função pública; Fraude ao contrato (Dispensa de licitação); Organização
criminosa; Comunicação falsa de crime; Fraude processual; Crimes de
responsabilidade; Improbidade administrativa e lei anticorrupção; Crime contra
a humanidade.
[14]
A Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como Lei Orgânica de Saúde,
disciplina sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde,
organização e funcionamento dos serviços públicos de saúde. O SUS presta os
serviços públicos de assistência à saúde pelo qual toda a população tem acesso
à assistência pública, integral e gratuita, financiada pelo Estado. Na prática
isto não ocorre de forma a garantir o direito à saúde, pois o Estado não tem
conseguido cumprir seu dever, deixando a desejar o que tem levado a população,
preocupada por não ter seu direito constitucional garantido pelo poder público,
a recorrer à iniciativa privada para tal satisfação. Desta feita, em 03 de
junho de 1998 foi decretada e sancionada a lei nº 9.656 que dispõe sobre os
planos e seguros privados de assistência à saúde.
[15]
O Supremo Tribunal Federal (STF) referendou, nesta quarta-feira (15/4/2020), a
liminar do ministro Marco Aurélio para explicitar a competência de Estados e
municípios de tomar medidas com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus.
Desta forma, estes entes da federação podem determinar quarentenas, isolamento,
restrição de atividades, sem que a União possa interferir no assunto. A ação em
julgamento questiona a Medida Provisória 926, sobre procedimentos para
aquisição de bens, serviços e insumos. Foi o primeiro caso apreciado pelo
plenário da Corte no formato de julgamento por videoconferência. A decisão, unânime, foi proferida no âmbito
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341. Na ação, o PDT pede a
declaração de inconstitucionalidade da MP 926, editada pelo presidente Jair
Bolsonaro em 20 de março, por entender que a norma desrespeita o preceito
constitucional da autonomia dos entes federativos e foi editada com a
finalidade política de atingir os governadores.
[16]
A tragédia da talidomida, no final dos anos 1950, foi um divisor de águas na
regulação de medicamentos. Ela foi descoberta na Alemanha em 1953 para ser
agregada a antibióticos, mas foi reconhecida mundialmente após 1957 como
sedativo e hipnótico.
[17]
Hoje, a talidomida ainda é utilizada para tratar a hanseníase (lepra) e o
mieloma múltiplo (um tipo de câncer). No Brasil - segundo país do mundo em
casos de hanseníase, superado apenas pela Índia - milhões de comprimidos da
droga são consumidos por milhares de pacientes.
[18]
Judicialização da saúde no STF Tema 006 – RE 566.471 O STF irá definir tese
sobre o parecer seguinte tema: “Dever do Estado de fornecer medicamento de alto
custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras de
comprá-lo” (vide tema 106 do STJ). Tema 262 – RE 605.533 O Ministério Público é
parte legítima para ajuizamento de ação civil pública que vise o fornecimento
de remédios a portadores de certa doença. Tema 345 – RE 597.064 É
constitucional o ressarcimento previsto no artigo 32 da Lei 9.656/1998, o qual
é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados
pelo SUS e posteriores a 04/06/1998, assegurados o contraditório e a ampla
defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos. Tema 500 – RE
657.718 1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos
experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o
fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível,
excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário,
em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao
previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a
existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de
medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de
registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii)
a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações
que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão
necessariamente ser propostas em face da União. Tema 579 – RE 581.488 É
constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de Saúde, a
internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por
médico do próprio Sistema Único de Saúde, ou por médico conveniado, mediante o
pagamento da diferença dos valores correspondentes. Tema 793 – RE 855.178 Os
entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente
responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos
critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à
autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição
de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Tema 1033 – RE 666.094 / Recurso Extraordinário O ressarcimento de serviços de
saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de
Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo
que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços
prestados a beneficiários de planos de saúde. AgRgAI 486.816 Obrigação do
Estado de fornecer medicamentos a pessoas carentes. AgRgAI 553.712
Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito
de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes.
[19]
Há responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar
assistência à saúde. Decisão na STA nº 175, de 2009, reiterada no julgamento do
RE 855178. É vedado tratamento
diferenciado a título de acomodação hospitalar ou escolha de médico no SUS. RE
nº 581488. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos
experimentais. RE 657718. A ausência de
registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por
decisão judicial. RE 657718. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial
de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em
apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando
preenchidos os requisitos da existência de pedido de registro do medicamento no
Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
da existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no
exterior; e da inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
O Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de
alto custo pleiteados judicialmente quando não constarem das relações oficiais
de medicamentos do SUS. RE 566471.