Direito à saúde e o STF

A Constituição Brasileira de 1988, a Constituição Cidadã inovou o ordenamento jurídico pátrio ao fixar o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, dotado de universalidade tanto objetiva como subjetiva. Porém, se questiona se é mesmo possível tal universalidade. Além disso, o regime jurídico de direitos sociais estabelece que sua materialização deverá ser efetuada progressivamente e com aplicação do máximo de recursos disponíveis, o que vem reforçar toda a jurisprudência da Suprema Corte brasileira na interpretação que permita abarcar o conceito de integralidade do direito à saúde.

Fonte: Gisele Leite

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As diferentes implicações no direito à saúde, aplicando o princípio da precaução como mecanismo de gestão de riscos[1]. O antigo provérbio popular que defende que melhor prevenir do que remediar é tanto aceito pela sociedade como pela ciência.

Seguindo Pitágoras, a prudência é o olho de todas as virtudes, caminha ao lado da cautela. Se, mesmo quando há a possibilidade de se remediar, sugere-se a prevenção que se torna imperativa quando não se pode desfazer o mal já deflagrado. Durante a pandemia de Covid-19[2] que já dizimou mais de um milhão de vidas no mundo e, buscando-se o combate à doença, diante de incertezas ainda quanto o conhecimento do vírus, e as adequadas tecnologias adequadas para sua prevenção, redução ou eliminação. E, os riscos[3] envolvidos tanto em métodos científicos como sanitários.

É unânime nas ciências naturais e nas ciências humanas que consideram o dano como algo que deve ser prioritariamente evitado. Eis que é uma obrigação moral evitar o mal. Em não sendo possível, trata-se então, de prover sua reparação. E, nesse sentido tanto a medicina como a bioética visam defendem o princípio do primun non nocere. ou seja, o da não maleficência, que se evita o mal ao paciente. O direito, por sua vez, permite a tutela jurisdicional inibitória para impedir a prática de ato ilícito independente da ocorrência do dano (artigo 497, parágrafo único do CPC).

A primazia da prevenção sobre a reparação do dano é importante e há diversos casos concretos onde se torna impossível a restauração do status quo ante, é o caso de danos ambientais, ou ainda, àqueles que sacrificam a vida ou a integridade física e até mental de uma pessoa de forma irreversível.

Nesses casos, o Estado reforça a tutela sobre esses bens jurídicos que além de serem inerentes à dignidade humana, mostram-se de hercúlea restauração ou até impossível após sua violação. Deve-se, portanto, evitar a própria violação da dignidade humana o que foi reforçado pela jurisprudência da Corte Constitucional alemã, principalmente, após a segunda grande guerra mundial.

A adoção pelo Estado de laboriosas medidas[4] de proteção dos cidadãos ou de prevenção em razão do desenvolvimento tecnológico ou técnico relacionado ao dever de evitar riscos que se trata de ser uma decorrência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, particularmente, os sociais.

Os riscos trazidos pelo grande desenvolvimento tecnológico e por dinâmica integração entre os povos disseminam-se de forma abstrata e célere e adquirem indeterminadas proporções. Os riscos civilizatórios contemporâneos escapam à percepção, fincando suas raízes nas fórmulas físico-químicas, que vai desde as toxinas nos alimentos até a ameaça nuclear.

Os riscos têm sua causa na superprodução industrial e, o fato de os riscos serem imperceptíveis impõem ao Estado atuação maior na prevenção dos próprios riscos e danos por estes causados.

A promessa de segurança deve progredir tanto quanto a tecnologia e deve ser reforçada a segurança na esfera pública. O que] traz maior ênfase aos deveres de prevenção e precaução, que, ao ingressarem no ordenamento jurídico, ganham força de autênticos princípios como mecanismos para contrabalançar na medida do possível e desejável, os riscos inerentes ao desenvolvimento de tecnologias bem como aos gravames destes decorrentes à saúde pública.

Lembremos que o progresso tecnológico é indissociável da evolução da sociedade humana e a prevenção de danos deste decorrentes, e a precaução contra as incertezas de riscos gerados visam assegurar o aprimoramento das tecnologias existentes e o surgimento de novas técnicas que revertam apenas para o bem da sociedade, sem lesar a saúde.

O princípio da prevenção é aquele segundo o qual se deve buscar com absoluta prioridade evitar mal à saúde e passível de ser afastado. O desenvolvimento científico através do tempo e que possibilita a constante identificação de causas e efeitos entre os agentes nocivos e demais adversidades causadas por estes contra a saúde humana.

O princípio da prevenção estabelece que, sendo conhecida a relação de causalidade entre o agente e o dano, este deve ser sempre que possível evitado pelo afastamento da própria causa.

Sueli Dallari sistematizou três formas de aplicação do referido princípio, a saber: a primária que se ocupa com a eliminação de causas e condições propícias ao aparecimento de doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas estradas, saneamento básico e, etc.) ou sobre comportamento individual (exercício e dieta, por exemplo); a secundária ou prevenção específica, que busca impedir o aparecimento de doença determinada, por meio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a terciária, que visa a limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas.

O conhecimento do dano e a certeza da causalidade entre o agente desencadeador e o próprio dano são, portanto, fatores determinantes para a aplicação do princípio da prevenção.

O referido princípio é previsto em nosso texto constitucional e, de fato, o artigo 196 da Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece que o direito à saúde é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, eis o que consta no artigo 2º[5], primeiro parágrafo da Lei 8.080/190. Portanto, é curial reduzir o risco de doenças e demais agravos significando prevenir a sua ocorrência.

E, a proteção da saúde refere-se a etapa anterior à sua recuperação, sendo ambas abarcadas pelo dispositivo legal retrocitado. A proteção, portanto, implica exatamente em evitar a doença. Eis que a manutenção dos protocolos sanitários aqui se insere como sendo fundamentais.

Já o artigo 198, II do mesmo texto constitucional elenca como uma das diretrizes do SUS o atendimento integral com prioridade para atividades preventivas, sem prejuízo de serviços assistenciais. E, quanto à saúde do trabalhador, o artigo 7, XXII da Constituição ora vigente impõe o dever de redução de riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e saúde.

E, mesmo no campo privado, a previsão encontra-se prevista no artigo 35-F da Lei 9.656/1996[6] pelo qual o atendimento prestado pelos planos e pelos seguros privados de assistência à saúde, compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde.

Em verdade, o princípio da prevenção orienta diversas vertentes de ações e de serviços públicos em saúde, o que reforça seu caráter de diretriz de todo o direito sanitário. E, a vigilância sanitária e epidemiológica, que é certamente uma das principais atribuições do Sistema Único de Saúde (artigo 200, II CF/1988), emerge como a faceta mais visível e concreta do princípio da prevenção, o que constitui a sua própria essência.

O artigo 6º, primeiro parágrafo da Lei 8.080/1990 definiu a vigilância sanitária como sendo um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir em problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde. A vigilância epidemiológica, por sua feita, é conceituada pelo segundo parágrafo segundo do mesmo dispositivo legal.

Portanto, a vigilância epidemiológica é um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos.

Tais ações de vigilância sanitária e epidemiológica se guiam sempre pela prevenção de doenças e agravos à saúde e são das mais diversas compreendendo desde normas de higiene básica da população até fiscalização de alimentos, medicamentos e demais produtos em todas as etapas de produção e comercialização que se relacionem direta ou indiretamente à saúde, de estabelecimentos de saúde e, etc.[7].

E, o tamanho e amplitude dessas ações envolvem inclusive questões socioeconômicas atinentes às condições efetivas da população de manter hábitos adequados de higiene, alimentação e cuidados em geral com o corpo.

Também os programas de vacinação também aparecem como política concreta de aplicação do princípio da prevenção no direito sanitário, evitando a propagação de doenças infectocontagiosas que colocam em risco a saúde geral.

A pandemia de coronavírus, da Covid-19 se disseminou por todo mundo a partir do início de 2020 e atingiu severamente nosso país, quando se demonstrou com clareza e relevância do princípio da prevenção para a manutenção da saúde individual e coletiva.

E, segundo os dados oficiais há mais de seiscentos mil óbitos no país e, milhões de pessoas já foram contaminadas.

Por esses alarmantes dados é que a Lei 13.979/2020 em seu artigo terceiro autorizou a Administração a adotar uma série de medidas preventivas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus dentre estas, a saber: a) isolamento; b) quarentena; c) determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas e tratamentos médicos específicos; d) uso obrigatório de máscaras de proteção individual;  e) restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de entrada e saída do país e de locomoção interestadual  e intermunicipal.

Enfim, a prevenção é a regra a ser obedecida também nos programas de saúde do trabalhador que devem priorizar medidas que evitem acidentes de trabalho e a ocorrência de doenças ocupacionais, nos termos do artigo 6º, terceiro parágrafo da Lei 8.080/1990.

Art. 6º (...)

§ 3º Entende-se por saúde do trabalhador[8], para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo:

(...) II – participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho;

III – participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador;

(...)

V – informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional;

(...)

VIII – a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores.

Em tempo, é conveniente sublinhar que também a saúde do consumidor também é tutelada pelo princípio da prevenção e, há outras disposições atinentes ao tema, conforme consta no artigo 6º, I da Lei 8.078/1990 que prevê o direito básico de proteção da vida e da saúde contra os riscos causados por produtos ou serviços nocivos ou perigosos.

E, o artigo 8º do mesmo diploma legal que dispõe que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição.

E, adiante, o artigo 10 estabelece que o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo, produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar elevado (alto) grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou à segurança.

Cabe ainda mencionar que o constitui crime tipificado no artigo 132 do Código Penal colocar a simples exposição da vida e da saúde, seja perigo direto e iminente.  Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

O bem jurídico protegido é a vida e a saúde da pessoa humana. E, o tipo exige dolo direto e formal o agente atua com consciência e vontade de lesar integralidade física de outrem o colocando em perigo direto e iminente.

Noutro viés, em HC o STJ considerou a não tipicidade do delito de andar de bicicleta em alta velocidade na calçada, nos termos in litteris: "Assim, o simples fato de o recorrente supostamente haver trafegado com sua bicicleta pela calçada, em período noturno e com velocidade inapropriada, é insuficiente para a configuração do tipo do artigo 132 CP, pois a ausência de comprovação de lesão ao bem jurídico tutelado impede a sua caracterização e enseja o reconhecimento da atipicidade da conduta descrita na exordial. (Recurso em Habeas Corpus 99.124).

Assim, observa-se que o princípio da prevenção, que imputa impedir o advento de malefícios à saúde humana a partir de causas certas e que permeia todo o direito sanitário principalmente na instituição bem como na implementação de políticas públicas.

E, a prevenção ganha destaque nas diversas regiões muito pobres que se soman a elevada densidade populacional e, em localidades distantes de centros urbanos e que são desassistidas de profissionais e dos estabelecimentos de saúde necessários aos cuidados da população.

O que reforça a necessidade de combater as endemias causadas por insetos ou outros transmissores tais como a dengue, zika, febre amarela, leptospirose, doença de chagas, malária e, etc., mediante conscientização pública sobre hábitos de limpeza e higiene e adoção de medidas de saneamento básico, promoção de campanhas vacinais, de acompanhamento constante de população por programas de saúde da família, de eficiência em programas de acompanhamento pré-natal, além de outras medidas.

Compreende-se que aplicação plena do princípio da prevenção demanda bem mais do que medidas exclusivamente sanitárias. É preciso que estas estejam integradas aos programas de ordem assistencial, educacional e econômica que permitam que a população seja adequadamente instruída sobre regras basilares de higiene, saúde e cidadania, bem como que tenha condições materiais para que adotem condutas necessárias aos métodos preventivos.

Destaca-se também a política de comunicação pública e institucional do Estado que venha priorizar adequada orientação da população sobre normas de proteção à saúde e de segurança no trânsito, em vez de dispêndios que muitas vezes que se vê com propagandas de cunho promocional e pessoal dissonante dos interesses públicos.

Quanto à eficácia jurídica do princípio da prevenção no direito à saúde, anteriormente, expresso no artigo 196 e no artigo 198, II da CF/1988, irradiando seus efeitos nas mais diversas áreas do direito sanitário.

E, rege não somente os atos da Administração Pública, mas também os de particulares. E, cabe aos cidadãos a adoção das medidas de resguardo necessárias à preservação da saúde pública, conforme as orientações e as determinações demandas do Poder Público, especialmente, pela falta de cuidado próprio muitas vezes repercute na saúde alheia e na coletiva.

 O artigo 5º da Lei 13.979/2020 que impõe a todas as pessoas o dever de colaboração com as autoridades sanitárias mediante a comunicação imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos da Covid-19 e de circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo vírus.

Há polêmica sobre a vinculação de particulares ao princípio da prevenção quando será possível a obrigação de submeterem à vacinação compulsória, principalmente, em situações em que a imunização objetiva, além de impedir o adoecimento da própria pessoa, obstar também a transmissão comunitária da doença e protegendo a saúde coletiva.

E, nesse caso, há de se ponderar e sopesar a liberdade e a integridade física dos cidadãos com a tutela da saúde pública.

Afinal, os princípios possuem igualmente consequência normativa, a razão pela qual o princípio deve ser julgado relevante diante de cada caso concreto. E, lembremos que o princípio da prevenção não se restringe às regras constitucionais que tratam das medidas de afastamento de doenças ou outros agravos à saúde.

Posto que a hermenêutica do direito sanitário deve guiar-se pelo princípio da prevenção e, obter objetivo profilático, afastando-se por inconstitucionalidade[9] as normas que estão em contradição ao postulado preventivo.

Afinal a prevenção e a concretização do direito à saúde é dever do Poder Público assegurar aos cidadãos condições de vida saudáveis que efetivamente os previnam de ser atingidos por doenças ou a agravos mediante as condições básicas de alimentação, saúde, moradia, saneamento básico e educação.

Frise-se que não se trata de alargamento indevido do princípio em comento, uma vez que a própria Constituição Federal, ao estabelecer as diretrizes do SUS, arrola o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo de serviços assistenciais.

E, ainda, prevê o artigo 200, dentre as diversas atribuições do sistema público de saúde, aquelas relacionadas às ações de saneamento básico, às de fiscalização e inspeção de alimentos e bebidas e à proteção ao meio ambiente. Essa amplitude do princípio decorre da concepção ampliada do seu objeto de incidência, a saúde, assim definida pelo artigo 3 da Lei 8.080/1990. In verbis:

Art. 3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.864, de 2013).

Ressalve-se que o princípio da prevenção limita, de algum modo, o poder discricionário da Administração Pública, impondo-lhe um dever de deferência, a critérios e dados técnico-científicos. E, objetivamente comprovada uma ameaça à saúde pública, seja qual for a sua causa, é dever e, não opção de o Poder Público inibi-la sempre que isso seja materialmente possível, tanto mediante a prática de ato administrativo específico como por meio de implementação de políticas públicas.

E, habitualmente, a prevenção impõe um dever ao administrador que consiste exatamente em impedir a ocorrência do fato causador de dano já conhecido.

É possível cogitar, no entanto, de atos administrativos ou leis inconstitucionais por afrontar ao princípio da prevenção. E, analisando os casos concretos em que o STF se valeu do princípio da prevenção para decretar a inconstitucionalidade da lei, de campanha publicitária do governo federal brasileiro, e a pretensão de importação de bens que causem prejuízos à saúde pública e ao meio ambiente, tudo para demonstrar e compatibilizar com os outros princípios constitucionais quando diante de potencial conflito em casos concretos.

Assim, a disseminação da pandemia de Covid-19 aqui e no mundo impôs a adoção de sérias medidas de isolamento social, quarentena, fechamento de estabelecimentos industriais, comerciais e de prestação de serviços não essenciais (lockdown) com o fito de prevenir a disseminação demasiada e veloz do vírus, o que pode colapsar sistemas públicos e privados de saúde diante da demanda insuportável de internações. Incidência do dever de prevenção é visível e inexorável.

Os defensores de medidas de distanciamento social, pretendem, em grande maioria, é paulatino retorno à normalidade conforme os riscos à saúde pública e à sustentabilidade dos sistemas de saúde diminuam, ainda que o vírus ainda permaneça em circulação relativamente controlada, equilibrando a necessidade de controle da pandemia para preservação da saúde dos indivíduos com a necessidade de salvaguarda mínima da economia para a preservação de empregos e rendas.

Cumpre ainda transcrever parcialmente a recomendação expedida pela Organização Mundial da Saúde, de 16 de abril de 2020, in litteris:

 “Medidas adicionais de saúde pública e sociais em larga escala (PHSM), incluindo restrições de movimento, fechamento de escolas, empresas, quarentena de área geográfica e restrições internacionais de viagem, foram implementadas por um certo número de países. Estas são algumas vezes referidas como medidas de “bloqueio” (lockdown) ou “desligamento” (shutdown).

Uma avaliação do impacto do PHSM na saúde pública para a Covid-19 ainda não está disponível, mas é necessária. Essa avaliação precisa levar em conta as consequências sociais e os custos econômicos de tais medidas, que podem ser consideráveis. Nesse sentido, uma cuidadosa avaliação de riscos e uma abordagem por fases são necessárias para equilibrar os benefícios e os possíveis danos no ajustamento dessas medidas, para não provocar um ressurgimento de casos de Covid-19 e comprometer a saúde da população.

Até que intervenções farmacêuticas específicas e eficazes (por exemplo, terapias e vacinas) estejam disponíveis, os países podem precisar continuar a afrouxar ou restabelecer medidas durante toda a pandemia.

As decisões para enrijecer ou afrouxar ou reinstalar o PHSM devem ser tomadas com base em evidências científicas e experiência do mundo real e levar em consideração outros fatores críticos, como economia, fatores relacionados à segurança, direitos humanos, segurança alimentar e sentimento público e adesão a medidas”.

Torna-se evidente que a OMS teve clara preocupação de prevenir a disseminação do vírus e combater a pandemia, mas equilibrando as medidas restritivas para tanto necessárias com outras destinadas a preservar minimamente as condições econômicas que garantam à população, sobretudo, aos mais pobres, o acesso ao emprego, à renda, e, ipso facto, as condições dignas de sobrevivência.

O que implica na ponderação diante de cada caso concreto do princípio da prevenção com o princípio da preservação da dignidade humana, especialmente, no que tange aos direitos fundamentais ao trabalho e à alimentação.

Frise-se que não se trata de enfraquecer o princípio da prevenção. e, sim, de trazer a compatibilização dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos.

Cabe ainda sublinhar que o escopo da precaução é ultrapassar a prevenção. E, não seria mais preciso que um dano se produzisse, ou se mostrasse iminente, para que haja ação visando evitar a produção ou repetição desse dano, fosse legítimo.

Então, a precaução baseia-se na experiência técnica e científica, trazendo vantagens que surgem a curto prazo e, são, frequentemente, seguidas de desvantagens a médio e longo prazo.

De fato, em doutrina, trabalha-se com a distinção entre o princípio da precaução e da prevenção, que serve para bem compreendê-los. Faz-se essa diferenciação com base na relação risco de perigo (precaução) versus risco de dano (prevenção).

Isso porque o princípio da precaução deve ser aplicado quando não houver certeza científica de que a atividade sindicada não oferece risco de dano, e o princípio da prevenção deve ser aplicado após, ou seja, quando a atividade sindicada causar danos com prévia comprovação científica.

Pode ser referido, ainda, que o princípio da prevenção tem a finalidade de se evitar o perigo concreto (comprovado cientificamente), e o princípio da precaução objetiva evitar o perigo abstrato (não comprovado cientificamente, mas cuja ocorrência seja verossímil).

O princípio da prevenção pode ser aplicado para impedir que sejam praticadas atividades que já se sabem causadoras de danos, por fontes de informações científicas reconhecidas.

Já o princípio da precaução, por sua vez, pode ser aplicado quando os dados científicos do risco da atividade a ser realizada são insuficientes ou contraditórios.

O risco de perigo, nesse caso, pode ser meramente potencial, ou seja, configura-se com a possibilidade verossímil de nocividade da atividade, embora não se possa qualificar nem quantificar os efeitos do risco.

Assim, o princípio da prevenção visa a evitar o risco conhecido, e o princípio da precaução visa a evitar o risco potencial.

Aliás, analisando as expressões risco certo e risco incerto, ou ainda, perigo concreto e perigo abstrato, delineia-se a diferença entre prevenção e precaução. Conforme Milaré, in litteris:

Com efeito, há cambiantes semânticos entre essas expressões, ao menos no que se refere à etimologia. Prevenção é substantivo do verbo prevenir (do latim prae = antes e venire = vir, chegar), e significa ato ou efeito de antecipar-se, chegar antes; induz uma conotação de generalidade, simples antecipação no tempo, é verdade, mas com intuito conhecido.

Precaução é substantivo do verbo precaver-se (do latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), e sugere cuidados antecipados com o desconhecido, cautela para que uma atitude ou ação não venha a concretizar-se ou a resultar em efeitos indesejáveis.

De maneira sintética, podemos dizer que a prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos. Em outros termos, enquanto a prevenção trabalha com o risco certo, a precaução vai além e se preocupa com o risco incerto. Ou ainda, a prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução envolve perigo abstrato.

Pode-se tomar o princípio da precaução, tradicionalmente definido, como aquele segundo o qual a ausência de certeza científica da ocorrência do dano à saúde não é razão para que se deixe de adotar as medidas necessárias ao afastamento da suposta causa.

E, não se trata de presunção da ocorrência de dano, seja absoluta ou seja relativa.

Pela precaução, não existe necessidade dessa presunção. Bastando a incerteza da ocorrência do dano para a postula acautelatória seja tomada.

No que se refere à prevenção da disseminação de Covid-19, a pandemia de acentuada gravidade que ainda está em curso no país e no mundo. A China[10] retornou a adotar o lockdown devido as novas cepas do coronavírus.

Não há controvérsias em relação à transmissão do vírus por meio de gotículas respiratórias grandes passadas por indivíduos próximos um ao outro, as quais, uma vez expelidas, acomodam-se rapidamente nas superfícies próximas; bem como por meio de superfícies contaminadas.

No entanto, não há até o momento evidências científicas seguras a respeito da transmissão do vírus pelo ar por meio de gotículas pequenas que ficam suspensas. A esse respeito, a Organização das Nações Unidas para o Controle de Infecções chegou a se manifestar no sentido de que a transmissão aérea seria possível, mas não suportada por evidências sólidas.

A despeito disso, vários cientistas passaram a apontar evidências de que a transmissão também poderia ser feita pelo ar, sugerindo à Organização Mundial da Saúde que passasse a reconhecer essa possibilidade em suas orientações técnicas e recomendações.

A possibilidade de transmissão da Covid-19 pelo ar impacta nos meios de proteção contra o seu contágio. Havendo essa forma de transmissão, o uso de máscaras em locais fechados reduz as chances de contaminação. Não havendo, a medida seria inócua na prevenção.

Ainda que não haja, no momento, provas seguras da possibilidade de transmissão do vírus por gotículas pequenas suspensas no ar, mas havendo essa possibilidade, a OMS acabou por posteriormente recomendar o uso de máscaras em locais fechados em que a transmissão por essa forma pudesse ocorrer.

 Aplicou, portanto, o princípio da precaução ao sugerir a adoção de medidas de segurança mesmo ante a incerteza dos danos.

Antes de prosseguir na análise do princípio da precaução no direito sanitário propriamente dito, é importante que se faça um delineamento um pouco mais preciso de seus contornos.

A adoção de uma concepção rígida do princípio da precaução fez com que ele fosse bastante questionado ou mesmo combatido. Entenda-se como concepção rígida aquela segundo a qual se deve evitar a qualquer custo a ocorrência de um fato que possa causar danos ao meio ambiente ou à saúde ainda não comprovados cientificamente.

Por essa visão, portanto, sempre e somente após a segura comprovação de inexistência de qualquer dano dela resultante é que uma atividade potencialmente degradadora do meio ambiente ou prejudicial à saúde poderia ser desenvolvida.

As principais críticas que essa leitura do princípio da precaução recebe foram bem sintetizadas por Tickner, Kriebel e Wright, com tradução:

O princípio da precaução foi criticado por: sufocar a inovação, causar consequências não intencionais potencialmente mais graves do que o problema que desencadeou a ação preventiva em primeiro lugar e criar “falsos positivos” – riscos aparentes que desperdiçam recursos e distraem os problemas reais.

Insurgiu-se Cross, fortemente, contra essa abordagem do princípio da precaução, salientando principalmente os elevados e, no seu entender, desarrazoados custos econômicos que ela traz. Diz ele que, “quanto mais o governo se esforça para eliminar o último risco potencial, maior o risco de consequências adversas” (tradução livre).

Para fundamentar suas críticas, elenca vários exemplos de situações concretas em que o excesso de precaução traria mais prejuízos do que benefícios, tais como: a) a resistência à incineração de armas químicas militares acondicionadas no Havaí por receio de poluição atmosférica acabaria trazendo maior risco à ilha em decorrência da permanência do arsenal, que poderia causar vazamentos químicos ou explosões; b) a restrição à produção e à comercialização de adoçantes por conta do receio de conterem substâncias cancerígenas causaria um aumento do consumo de açúcar pela população, com os malefícios à saúde daí advindos; c) a substituição de veículos movidos a combustíveis fósseis por veículos elétricos demandaria maior queima de combustível para gerar a energia elétrica necessária para abastecer os automóveis.

O doutrinador elenca ainda hipóteses mais extremas e de comprovação empírica questionável, como o aumento de acidentes de trânsito proporcionado por restrições de voos por companhias aéreas em más condições de tempo e os alegados prejuízos ao tratamento de diversas doenças que a regulação de medicamentos pela FDA causaria.

Resume sua posição da seguinte maneira (tradução livre) apud Bruno Henrique Silva Santos:

O princípio da precaução repousa na ilusão de que as ações não têm consequências além dos fins pretendidos. De fato, não existe “almoço grátis”. Os esforços para eliminar qualquer risco criarão alguns novos riscos, enquanto possivelmente reduzirão outros riscos relacionados. Se a intenção de alguém é proteger verdadeiramente a saúde pública e o meio ambiente, todos esses riscos incidentais devem ser considerados, contrariamente às aplicações prevalecentes do princípio da precaução.

As críticas da corrente de entendimento aqui representada por Cross seriam razoáveis se o princípio da precaução fosse de fato compreendido da maneira rígida como ele presume em sua premissa.

O desenvolvimento desse princípio desde que ele foi concebido, entretanto, leva-o atualmente a uma formatação distinta. Tem-se entendido, majoritariamente, que o princípio da precaução não impõe necessariamente que se aguarde ou se exija a cabal comprovação científica de inexistência de qualquer risco causado ao meio ambiente ou à saúde pública por uma atividade potencialmente danosa para que ela seja autorizada, ou que os riscos potenciais sejam prévia e integralmente neutralizados.

Contemporaneamente, o princípio da precaução vem sendo utilizado como um mecanismo de gestão de riscos pelo qual são ponderados, de um lado, os potenciais danos que uma atividade poderia gerar e, de outro, as consequências das mais diversas ordens que as necessárias medidas de cautela ou o não desenvolvimento da atividade proporcionariam.

Considerando que o princípio da precaução foi criado e desenvolvido sobretudo na Europa, disseminando-se posteriormente, é importante analisar como ele vem sendo lá tratado.

É muito interessante, nesse sentido, a “Comunicação da Comissão (da União Europeia) relativa ao princípio da precaução”, da qual se extraem os seguintes trechos:

3. O princípio da precaução não é definido no Tratado, que o prescreve apenas uma vez – para proteger o ambiente. Mas, na prática, o seu âmbito de aplicação é muito mais vasto, especificamente quando uma avaliação científica objetiva preliminar indica que há motivos razoáveis para suspeitar que efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a proteção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de proteção escolhido para a Comunidade.

(...)

4. (...) O princípio da precaução é particularmente relevante no que se refere à gestão de riscos. (...) O recurso ao princípio da precaução pressupõe que se identificaram efeitos potencialmente perigosos decorrentes de um fenómeno, de um produto ou de um processo e que a avaliação científica não permite a determinação do risco com suficiente segurança.

(...)

5. As instâncias de decisão devem estar conscientes do grau de incerteza relativo aos resultados da avaliação dos dados científicos disponíveis. Determinar qual é o nível de risco “aceitável” para a sociedade é eminentemente uma responsabilidade política. As instâncias de decisão, quando confrontadas com um risco inaceitável, uma incerteza científica e as preocupações do público, têm o dever de encontrar respostas. Contudo, todos estes fatores têm de ser tomados em consideração.

(...)

6. (...) uma proibição total nem sempre constitui uma resposta proporcional a um risco potencial. Contudo, em determinados casos, é a única resposta possível a um dado risco. (...) Analisar vantagens e encargos implica comparar o custo total para a Comunidade da atuação e da ausência de atuação, a curto e a longo prazo. Não se trata simplesmente de uma análise económica custo/benefício: o seu âmbito é muito mais vasto e inclui considerações não económicas, como a eficácia das opções possíveis e a sua aceitabilidade pelo público. Ao efetuar esta análise, devem ter-se em conta o princípio geral e a jurisprudência do Tribunal, segundo os quais a proteção da saúde tem precedência sobre as considerações económicas.

(...)

A análise do princípio da precaução realça dois aspectos, diferentes devido à sua natureza: (i) a decisão política de actuar ou de não actuar, ligada aos fatores que desencadeiam a utilização do princípio da precaução; (ii) em caso afirmativo, como actuar, ou seja, as medidas que resultam dessa utilização do princípio da precaução.

(...)

A abordagem de prudência inscreve-se na política de avaliação de riscos que é determinada antes de qualquer avaliação de riscos e que recorre aos elementos descritos no ponto 5.1.3. Faz, pois, integralmente parte do parecer científico emitido pelos avaliadores de riscos.

Em contrapartida, a aplicação do princípio da precaução insere-se na gestão de riscos, quando a incerteza científica não permite uma avaliação completa dos riscos e as instâncias de decisão consideram que pode existir uma ameaça ao nível escolhido de proteção do ambiente, da saúde das pessoas ou dos animais ou de proteção vegetal.

A Comissão considera que as medidas de aplicação do princípio da precaução se inscrevem no quadro geral da análise de riscos, mais precisamente na gestão de riscos.

Diversos aspectos do comunicado parcialmente transcrito acima chamam a atenção. Dentre eles, três merecem destaque. O primeiro é o fato de que o princípio da precaução vem sendo tratado, como dito acima, como meio de gestão de riscos.

Ainda que ele imponha o dever de cautela mesmo à míngua de comprovação científica dos danos causados por uma determinada atividade, permite, por outro lado, que sejam levadas em consideração as consequências da vedação ao exercício dessa atividade ou da implementação das medidas preventivas necessárias ao afastamento ou à mitigação dos riscos. Considera-se, portanto, o risco total.

O segundo aspecto digno de nota é o de que a decisão final sobre os riscos – apurados com o devido rigor científico – aceitáveis, após feitas as ponderações necessárias, é de natureza política. Assim, cabe à ciência investigar a potencialidade danosa e os riscos de uma determinada atividade, bem como as consequências ambientais, econômicas, sanitárias e sociais do seu desempenho, da sua proibição ou da implementação das medidas de prevenção necessárias. Feita essa apuração, a decisão sobre a alternativa concreta a ser adotada é de cunho político, devendo levar em consideração os anseios e os valores aceitos na comunidade envolvida.

O terceiro ponto a ser sublinhado é a premissa de que “a proteção da saúde tem precedência sobre as considerações económicas”. Assim, se o conflito no caso concreto for entre a preservação do direito à saúde (ainda que o risco de lesão seja incerto) e interesses exclusivamente econômicos, o princípio da precaução pende para a proteção da saúde.

A Comissão Europeia deixou bastante claro no comunicado em epígrafe que há que se buscar uma proporcionalidade entre a onerosidade das medidas necessárias para a precaução e o nível de proteção pretendido. Consignou também que não é de se buscar sempre o “risco zero”, que dificilmente será atingido.

Ainda assim, são necessários estudos científicos que apontem com a máxima precisão possível os riscos existentes e as alternativas postas à disposição do agente decisor, de maneira que a decisão proferida seja qualificada e eficiente.

As medidas previstas devem permitir atingir o nível de proteção adequado. As medidas baseadas no princípio da precaução não deveriam ser desproporcionadas em relação ao nível de proteção pretendido e querer atingir um nível zero de risco, que raramente existe.

Contudo, em certos casos, uma estimação incompleta dos riscos pode limitar consideravelmente o número de opções disponíveis para os gestores de riscos.

Em certos casos, uma proibição total pode não ser uma resposta proporcional a um risco potencial. Noutros casos, pode ser a única resposta possível a um determinado risco.

Essa concepção do princípio da precaução ecoa na doutrina. Beck reforça a ideia de que as informações e as conclusões científicas são o material utilizado para que decisões políticas sejam tomadas segundo os interesses sociais.

Segundo o doutrinador, “constatações de risco baseiam-se em possibilidades matemáticas e interesses sociais, mesmo e justamente quando se revestem de certeza técnica”. Por isso, “racionalidade científica sem racionalidade social fica vazia, racionalidade social sem racionalidade científica, cega”. Para tanto, é indispensável que haja uma aproximação entre a comunidade científica e a sociedade, assegurando que aquela tenha noção dos valores e dos anseios sociais, e que a população em geral seja munida de conhecimentos científicos básicos para que possa tomar suas decisões.

Como bem resumido por Comba, Martuzzi e Botti, várias questões filosóficas, econômicas e sociais estão subjacentes às decisões que serão tomadas.

Com efeito, a sociedade está muitas vezes disposta a correr certos riscos, desde que isso lhe proporcione benefícios que seguramente superem os danos potenciais.

Tome-se como exemplo o uso dos meios de transporte individuais e coletivos. Não há dúvida de que eles oferecem riscos à vida e à saúde das pessoas (acidentes aéreos ou de trânsito, poluição, etc.). Ainda assim, o proveito trazido é considerado muito maior do que os riscos gerados, de maneira que sua utilização é admitida.

Há outras situações em que a ponderação entre os riscos e os benefícios da adoção de medidas potencialmente causadoras de danos à saúde é bem mais complexa e controversa social e politicamente. Um exemplo claro está relacionado ao combate à Covid-19, causadora da grave pandemia que atinge fortemente todos os continentes do planeta neste momento.

Medidas de isolamento social têm sido largamente adotadas nos mais diversos países para impedir a disseminação do vírus, que se propaga rapidamente e, sobretudo, em ambientes fechados e com aglomeração de pessoas.

Por isso, por vários meses, escolas permaneceram ou ainda permanecem fechadas com o objetivo de evitar que os alunos se contaminem e levem a doença também às pessoas próximas, fora do ambiente escolar.

Com o passar do tempo, entretanto, os prejuízos acadêmicos gerados aos alunos, especialmente às crianças menores, começam a se tornar bastante claros. Além disso, nas camadas mais pobres da sociedade, a necessidade de os filhos pequenos permanecerem em casa dificulta ou impede que os pais trabalhem, além de lhes trazer maiores despesas com cuidados e alimentação dos pequenos.

Por outro lado, sabe-se atualmente que as crianças são bem menos suscetíveis aos sintomas graves da doença quando comparadas aos adultos, cogitando-se inclusive da possibilidade de o contágio em relação a estas ser mais difícil.

Ainda não se sabe ao certo, todavia, se a transmissão do vírus pelas crianças ocorre da mesma maneira que pelos adultos, havendo estudos científicos sugerindo que a chance de uma criança espalhar o vírus é menor do que a de indivíduo adulto, mas sem resultados aceitos inquestionavelmente pela comunidade científica em geral, que continua com as pesquisas.

Nesse cenário, o debate sobre a reabertura das escolas tem sido latente. Há necessidade de se ponderar, de um lado, o risco à saúde pública que ela pode causar em razão da disseminação da doença, e, de outro, as consequências negativas no aprendizado dos alunos, na possibilidade de trabalho pelos pais, na renda familiar e nos cuidados com as crianças que a manutenção do fechamento das escolas causa.

Tanto os riscos da abertura como as consequências do fechamento devem ser cuidadosamente analisados segundo critérios técnicos confiáveis para que a sociedade, por meio de seus representantes políticos, decida da melhor maneira o que deve prevalecer em um dado momento e em um determinado local.

Eis a amplitude do princípio da precaução, cujo conteúdo Tickner, Kriebel e Wright explicam com maestria, refutando com argumentos sólidos as críticas que recebeu por parcela da doutrina. A consistência dos fundamentos justifica a longa transcrição de suas lições (em tradução ora feita livremente):

O princípio da precaução incentiva a tomada de decisões usando o maior número possível de informações e participantes. Não cria proibições rígidas para novas tecnologias quando há risco de danos. Prova absoluta de segurança é impossível; o desafio para os formuladores de políticas é encontrar o equilíbrio entre risco potencial e benefício social na ausência de prova de segurança. O princípio da precaução fornece orientação nesses dilemas de política contestada, incentivando a utilização da evidência como um todo, incluindo: a força da evidência de risco, a incerteza e a ignorância sobre o risco, sua magnitude potencial e a disponibilidade de alternativas viáveis à tecnologia proposta.

A precaução pode ser uma ferramenta para redirecionar a inovação para práticas mais seguras e limpas para atender às necessidades humanas.

(...)

A precaução sufoca a inovação? Algumas tecnologias e substâncias provavelmente devem ser retardadas ou bloqueadas, após uma análise cuidadosa de seus benefícios, riscos, alternativas e incertezas gerais.

A precaução incentiva essa revisão, mas não sufoca indiscriminadamente a inovação. Pelo contrário, uma busca minuciosa por maneiras alternativas de alcançar os mesmos objetivos sociais geralmente identifica tecnologias que devem ser incentivadas.

(...)

Consequências não intencionais são um risco de decisões políticas. Mas estas podem ser minimizadas, quando se age de maneira preventiva, ao: explorar e implementar uma ampla gama de opções preventivas; incluir uma ampla gama de perspectivas nos processos de tomada de decisão; usar uma perspectiva científica multidisciplinar de lentes e sistemas para examinar os riscos antes e depois das intervenções; e desenvolver métodos para monitorar intervenções de saúde pública quando há sinais precoces de problemas.

(...)

Precaução não significa apenas pesquisas mais acuradas; significa também vincular a avaliação de riscos a avaliações alternativas e discussões mais democráticas de necessidades e objetivos sociais.

(...)

Muitas crises ambientais recentes surgiram do fracasso em agir rapidamente para evitar consequências não intencionais de tecnologias aparentemente benéficas, e a precaução é vista como uma maneira de evitar esses erros em decisões futuras.

Evidentemente, não existe segurança absoluta, nem certeza absoluta, e regulamentos errados e falhas de regulamentação ocorrerão. Mas acreditamos que a sociedade ainda não implementou todo o potencial da política baseada na ciência para evitar danos aos ecossistemas e à saúde, garantindo progresso em direção a um futuro mais saudável e economicamente sustentável.

Longe de ser anticientíficas, políticas de precaução podem estimular inovações em ciência, medicina e tecnologia para promover a saúde e a segurança do planeta.

Daí se conclui que o princípio da precaução é um mecanismo de resguardo da saúde que prima pela qualificação das informações técnicas e científicas que serão utilizadas para as decisões de cunho político a serem tomadas segundo o interesse público, permitindo que a política atue com base em evidências científicas.

No entanto, não se pode perder de vista que a sua essência é a de impedir que a ausência de evidência científica dos danos causados por uma atividade dispense qualquer medida de cautela.

Ainda que se chegue à conclusão de que não há necessidade de qualquer intervenção quanto à prática da atividade, isso somente pode ser feito após uma ponderação detida dos dados científicos especificamente colhidos sobre os riscos potenciais existentes e sobre as implicações de ordem ambiental, sanitária, econômica, social e política decorrentes da inação ou da implementação de medidas preventivas.

Em decorrência da necessidade de análise científica rigorosa como procedimento prévio à escolha entre as alternativas postas, é de suma importância que a decisão proferida seja devidamente fundamentada, permitindo à sociedade como um todo e aos órgãos de controle uma perfeita compreensão dos dados e das informações considerados pelo poder público em sua deliberação e das razões que o levaram a decidir em um determinado sentido. Aliado ao dever de fundamentação, portanto, está o de publicidade.

Essas premissas foram de certa maneira positivadas na ordem jurídica interna. O art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), acrescentado pela Lei nº 13.655/2018, estabelece o seguinte:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Lembremos que o caput do referido dispositivo legal, ao determinar que as consequências práticas da decisão sejam consideradas, acaba por exigir que a autoridade administrativa se certifique, com base em critérios técnicos que possam tornar objetivas as previsões, dos resultados que dela advirão.

Já o parágrafo único impõe que o agente decisor leve em consideração as possíveis alternativas à prática do ato, privilegiando aquela que se demonstre como mais adequada à solução do caso concreto. Exige, ainda, que a decisão seja devidamente motivada.

Ainda que o art. 20 da LINDB tenha sido instituído para normatizar as atividades decisórias em geral, tanto administrativas como judiciais, suas disposições encaixam-se perfeitamente ao conteúdo do princípio da precaução.

Essa abertura para a análise de riscos que o princípio da precaução proporciona leva alguns doutrinadores, inclusive, a tratá-lo como um método de indução de tomada de decisões, e não propriamente como uma regra de decisão.

Essa não parece ser a compreensão mais acertada. Ainda que se adote um conceito flexível do princípio da precaução, ele é dotado de acentuada carga normativa ao determinar (e não apenas induzir) que a incerteza científica dos danos causados por determinada atividade não seja invocada para a dispensa da adoção de medidas preventivas, ou mesmo, quando o caso impuser, para que a própria atividade seja vedada.

Diante da amplitude das análises a serem feitas na aplicação do princípio da precaução como mecanismo de gestão de riscos, discute-se quais seriam os métodos mais apropriados para a definição da melhor decisão a ser tomada em cada caso concreto, seja ela a absoluta vedação do exercício da atividade potencialmente danosa, seja a sua completa liberação, a opção por meio alternativo (bem como a melhor alternativa, caso haja mais de uma) ou, ainda, a adoção de medidas de cautela ou controle da atividade proposta.

A questão é muito complexa e sua análise detida não cabe nos propósitos deste estudo. Ainda assim, convém ao menos apontar alguns desses métodos.

O já referido Comunicado da Comissão (da União Europeia) relativo ao princípio da precaução dispõe que “a avaliação de riscos consiste em quatro componentes – designadamente, a identificação do perigo, a caracterização do perigo, a avaliação da exposição e a caracterização do risco”, de maneira que “os limites do conhecimento científico podem afetar cada uma destas componentes”.

Além disso, há que se conjugar a probabilidade dos danos com a sua suposta gravidade, de forma que sejam avaliados com pesos distintos: a) a alta probabilidade de ocorrência de danos graves; b) a baixa probabilidade de ocorrência de danos graves; c) a alta probabilidade de ocorrência de danos leves; e d) a baixa probabilidade de ocorrência de danos leves. Na situação “a”, não há maiores dúvidas de que são fortes os fundamentos para que se adotem as medidas necessárias a evitar os danos em detrimento de outras vantagens que a prática da atividade pudesse trazer.

Por outro viés, na situação “d”, há boas razões para que se permita o exercício de atividades que possam trazer razoável benefício social em detrimento dos danos causados.

As situações “b” e “c” encontram-se na zona de penumbra, exigindo maiores cuidados na ponderação entre os riscos existentes e os aceitáveis. O mesmo ocorre quando a gravidade dos riscos ou a probabilidade dos danos são desconhecidas.

Gonçalves divide os métodos de interpretação econômica do princípio da precaução em dois paradigmas. O primeiro é o racional-instrumental, que “considera a teoria da escolha em incerteza, que envolve a economia, mas também conceitos da psicologia e da teoria da decisão estatística”.

Ele se divide em duas correntes principais: a teoria da utilidade esperada, que é maximizada a partir dos custos e dos benefícios estimados nas diferentes opções alternativas; e os modelos designados como “aversão à ambiguidade”, aplicados “em situações em que existem expectativas divergentes sobre a incerteza por parte de diferentes indivíduos”.

O segundo método é o deliberativo constitutivo, o qual “considera os quadros e os modelos multicritérios, que incluem objetivos múltiplos (ambientais, econômicos, sociais, etc.) na tomada de decisão e permitem integrar processos participativos e deliberativos”.

Já os doutrinadores como Comba, Martuzzi e Botti elencam outros dois métodos para a gestão dos riscos por meio do princípio da precaução. Pelo critério bayesiano/utilitarista, privilegiam-se as consequências mais favoráveis para a maioria dos envolvidos (the most good for the most people).

O grande busilis deste método é a possibilidade de que um grupo pequeno de pessoas sofra consequências severas a partir da decisão ao final adotada.

Já o critério maximin (maximum minimorum) leva em consideração as piores consequências possíveis para cada alternativa que possa ser adotada, independentemente de sua probabilidade (better safe than sorry).

Este segundo método parece ser mais condizente com os propósitos do princípio da precaução. Os próprios autores chegam à conclusão de que in litteris:

“Ambas as abordagens se preocupam com o bem-estar social e visam a proteger e melhorar o estado geral de saúde de uma comunidade, mas a visão utilitarista bayesiana o identifica como a melhoria do bem-estar total ou médio, enquanto a abordagem maximin está principalmente preocupada com o bem-estar dos subgrupos populacionais mais desfavorecidos e resulta na redução da diferença entre aqueles que estão em melhor situação e os que estão em pior. Essa lacuna não é necessariamente preocupante na avaliação utilitarista bayesiana. Assim, a estratégia maximin é considerada mais adequada para lidar com o problema da justiça distributiva”.

Não se pretende chegar a uma conclusão a respeito do melhor método de gestão de riscos e decisão, até porque existem vários outros critérios que não foram aqui abordados.

Ainda assim, tudo o que já foi exposto serve para demonstrar com mais precisão o alcance do princípio da precaução, a multidisciplinariedade das questões por ele abrangidas e a importância do seu emprego correto para a conciliação da preservação da saúde humana com o progresso científico, tecnológico e social.

Tema probatório que é sempre afeto às discussões relacionadas ao princípio da precaução e objeto de consideráveis divergências doutrinárias é a distribuição do ônus da prova acerca dos riscos e dos danos relacionados à atividade potencialmente lesiva à saúde ou ao meio ambiente.

Em rápida síntese, é preciso definir se o que deve ser comprovado é a existência ou a inexistência de danos ou riscos causados por uma atividade ou um produto que em tese podem ter efeitos prejudiciais à saúde. Além disso, há que se resolver sobre quem pesa o ônus da prova.

A complexidade da questão é bem sintetizada por Pearce em trecho de artigo aqui traduzido livremente:

Talvez o aspecto mais discutível do princípio da precaução seja aquele que transfere o ônus da prova para os proponentes de uma atividade. Em outras palavras, a responsabilidade recai sobre os proponentes para provar que uma atividade é segura, e não sobre seus oponentes para provar que é insegura.

O segundo é geralmente muito difícil, embora não impossível, mas normalmente só pode ser feito de maneira reativa após a exposição da população ao risco já ter ocorrido.

Por outro viés, provar a segurança completa é geralmente impossível. Alguns doutrinadores sugeriram que, se aplicado cegamente, alterar o ônus da prova dessa maneira sufocaria toda inovação (Holm & Harris, 1999; Anonymous, 2000) e criaria riscos “falso-positivos” que desperdiçam recursos e ofuscam os problemas reais (Graham & Weinder, 1995; Keeney & von Winterfeldt, 2001).

De fato, a maioria das tomadas de decisões em saúde pública envolve necessariamente uma abordagem de “equilíbrio de evidências”, em vez de uma abordagem “inocente até que se prove o contrário” ou “culpado até que se prove que é inocente”.

Já de antemão, deve-se afastar a necessidade de comprovação da efetiva existência dos danos potencialmente gerados pela atividade ou pelo produto que se pretende desenvolver.

É justamente a ausência de prova científica dos danos o pressuposto do princípio da precaução. A primeira questão que surge, então, é se ele impõe, em todos os casos, que se comprove previamente a ausência de riscos ou de danos propriamente ditos para o desempenho de uma atividade ou para a fabricação ou a comercialização de um produto; ou se, pelo contrário, há que se demonstrar ao menos a existência de riscos potenciais e plausíveis para que somente então se exija a cabal demonstração da segurança da atividade ou do produto.

A Comissão da União Europeia, apesar de ter emitido comunicado bastante técnico e elaborado sobre o princípio da precaução, não adotou uma diretriz objetiva quanto a esse ponto.

Refere em um primeiro momento que, na maioria dos casos, os consumidores[11] e as associações que os representam é que devem demonstrar o perigo associado a um procedimento ou a um produto colocado no mercado, salvo em relação a medicamentos, pesticidas e aditivos alimentares.

No entanto, pondera que, em certas hipóteses, poderá ser exigido que o produtor, o fabricante ou o importador prove a ausência de perigo. Essa possibilidade teria de ser examinada caso a caso, não podendo ser alargada de modo generalizado ao conjunto dos produtos e dos processos colocados no mercado.

É difícil e não recomendável, de fato, estabelecer uma regra uniforme para uma variedade tão grande de situações que podem se apresentar no mundo real. Mesmo assim, alguns critérios minimamente objetivos podem ser previstos.

Há situações em que os riscos são inerentes às atividades ou aos produtos que se pretende desenvolver, porquanto já demonstrados cientificamente à saciedade no decorrer do tempo. São os casos, por exemplo, da instalação de uma usina nuclear ou do desenvolvimento de novos medicamentos.

Dada a grande notoriedade dos riscos e diante da possibilidade da comprovação da segurança da atividade ou do produto, o princípio da precaução impõe que o proponente produza as provas da ausência desses riscos ou de danos ou, caso existentes, de sua natureza e magnitude.

Em tais hipóteses, o desempenho da atividade ou a pesquisa, a fabricação ou a comercialização do produto potencialmente danoso depende, via de regra, de autorização prévia do poder público. Essa autorização é justamente o meio pelo qual o Estado analisará se a segurança da nova tecnologia está satisfatoriamente demonstrada.

Em sentido oposto, outras atividades ou produtos, por sua própria natureza, muito dificilmente produzirão riscos ou danos ao meio ambiente ou à saúde. Tome-se como exemplo a fabricação e a venda de roupas de tecido. Em casos tais, presume-se a inofensividade do produto, dispensando-se o fabricante ou o comerciante de comprovar cientificamente a sua segurança.

Isso não afasta, entretanto, a possibilidade de terceiros demonstrarem de maneira plausível e com base em indícios científicos a potencialidade danosa do produto ou da atividade.

Havendo essa demonstração, o princípio da precaução impõe que o desenvolvedor da atividade ou o fabricante/comerciante do produto comprove a inexistência dos riscos.

As situações extremas são de resolução mais fácil. Os problemas surgem quando uma atividade ou um produto não são notoriamente perigosos, tampouco claramente inofensivos.

Nesses casos, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio para definir se caberá ao proponente comprovar a segurança da atividade ou do produto, ou aos destinatários comprovar a existência de riscos ou os danos efetivos.

Não há como fugir da casuística. Em cada situação concreta, deve-se investigar se existem ao menos indícios factíveis e sérios da potencialidade danosa da atividade/produto. Havendo, o princípio da precaução impõe ao proponente o ônus de comprovar a sua segurança.

Não havendo, a responsabilidade de demonstrar ao menos os riscos recai sobre os destinatários. Quanto mais graves forem os danos potenciais, menor deve ser o rigor na análise dos indícios dos riscos. Nessa linha de raciocínio, Schettler e Raffensperger ensinam que in litteris:

(...) o ônus da prova é melhor pensado como o ônus da persuasão e da responsabilidade, que evita a afirmação infrutífera de que a segurança absoluta nunca pode ser “comprovada”. Ele reconhece que, à medida que aumentam o potencial de danos graves e irreversíveis e a incerteza científica, o proponente de uma atividade tem uma obrigação crescente de explicar as suas consequências e de se responsabilizar pelos efeitos adversos que dela possam resultar.

Evidentemente, essa proposta de sistematização do ônus da prova está sujeita a regramento legal diverso. No entanto, eventual normatização específica não poderá subtrair do princípio da precaução – que tem matriz constitucional, como será visto adiante – a sua essência.

É o que ocorreria, por exemplo, se o agente desenvolvedor da atividade ou do produto fosse eximido de qualquer responsabilidade de comprovar a sua segurança quando a potencialidade danosa fosse evidente.

Quanto a normatização e aplicação do princípio da precaução no direito à saúde no Brasil[12], o princípio da precaução foi concebido e desenvolvido com mais ênfase nas questões ambientais e de segurança alimentar.

Ainda assim, seu escopo é, no final das contas, a proteção última da saúde e do bem-estar das pessoas, consideradas tanto individualmente como em sua coletividade (saúde pública). Sem colocar em dúvida o valor intrínseco do meio ambiente, a sua tutela jurídica não se exaure em si mesma. Esta objetiva assegurar que a humanidade e a natureza que a permeia estejam em perfeita harmonia em uma relação de respeito mútuo que torne possível o desenvolvimento sustentável e a garantia de uma vida sadia aos seres humanos. Não há, portanto, como dissociar o princípio da precaução do direito à saúde.

Cumpre, portanto, investigar como referido princípio foi incorporado ao ordenamento jurídico pátrio e quais são as suas implicações no direito sanitário.

Por dez votos a um, o STF confirmou a decisão que mandou abrir CPI da Covid-19,[13] vide em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/supremo-comeca-a-decidir-hoje-se-mantem-ordem-de-barroso-para-instalacao-da-cpi-da-covid-que-irrita-bolsonaro/ Acesso em 10.04.2022.

A Constituição Federal brasileira vigente não fez referência expressa ao princípio da precaução. Contudo, ele pode ser extraído sem maiores dificuldades a partir de várias de suas disposições.

O art. 196 da Constituição, após assegurar a saúde como direito de todos e dever do Estado, determina que as políticas públicas que a asseguram tenham como foco, também, a “redução do risco de doença e de outros agravos”. Note-se bem: não se trata apenas de prevenção de danos, mas de redução de riscos.

A norma trabalhou com o conceito de incerteza ao se referir a risco. Além disso, o que se buscou afastar de qualquer risco não foi apenas a doença, mas também outros agravos, ou seja, quaisquer prejuízos à saúde humana.

Não é difícil concluir, então, que o princípio da precaução, que tem como escopo justamente impedir o desenvolvimento de atividades ou produtos com potencial de causar danos à saúde, ainda que não comprovados (ou seja, que tragam consigo riscos), encontra guarida na norma constitucional em foco.

Há que se referir, também, o art. 225, § 1º, IV e V, da Constituição, que é o dispositivo comumente mencionado pela doutrina como introdutor do princípio da precaução no âmbito constitucional.

Eis o seu teor:

   Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...) IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

Nos termos do inciso IV, acima citado, basta que a obra ou a atividade seja “potencialmente causadora” de significativos danos ao meio ambiente para que se exija estudo prévio de impacto ambiental, sendo desnecessária a efetiva prova dos danos.

Já o inciso V contenta-se com o mero risco para a qualidade de vida para impor o controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias potencialmente danosos.

O princípio da precaução é, outrossim, um desdobramento do princípio constitucional da eficiência da Administração (art. 37 da Constituição), porquanto busca priorizar o impedimento da ocorrência do agravo à saúde, mesmo quando incerto, ao invés de se contentar em tratá-lo, até porque muitas vezes o tratamento sequer será possível.

A precaução também decorre de uma das várias vertentes do princípio da segurança jurídica. A segurança reside, aqui, na garantia de que o Estado tutela a vida e a saúde das pessoas da forma mais eficiente possível, ou seja, inclusive agindo antecipadamente para evitar os riscos à saúde, mesmo quando os danos são ainda incertos, mas possíveis.

A segurança, aliás, foi erigida a direito fundamental tanto sob a ótica individual (caput do art. 5º) como social (caput do art. 6º).

A legislação infraconstitucional também contempla, inclusive expressamente, o princípio da precaução.

Além do Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas (Eco-92) e das Convenções sobre a Diversidade Biológica (Decreto nº 2.519/98) e sobre a Mudança do Clima (Decreto nº 2.652/98), já citadas anteriormente, ele foi referido textualmente pelo art. 1º da Lei nº 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que, ao tratar sobre normas de segurança relacionadas a organismos geneticamente modificados, estabeleceu como diretrizes “o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”.

O princípio da precaução atua fortemente na política de assistência farmacêutica à população, seja a pública, seja a privada.

O art. 16, II, da Lei nº 6.360/76 impõe que, para o registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos na Anvisa – o que constitui requisito indispensável para a comercialização em território nacional, salvo hipóteses excepcionais –, é necessária a comprovação científica de sua segurança.

Esses produtos estão dentre aqueles cuja potencialidade lesiva à saúde é notoriamente alta. Assim, cabe a quem pretende o registro comprovar de antemão que o produto é seguro para a saúde humana, sem a necessidade de prévios indícios de que haja algum dano decorrente do seu uso ou mesmo de que haja riscos de danos incertos.

Além do mais, a mera suspeita de que um daqueles produtos, ainda que já registrado, possa ter efeitos nocivos à saúde humana já é causa suficiente a autorizar a suspensão de sua fabricação e sua venda pelo Ministério da Saúde (art. 7º da Lei nº 6.360/76).

Nessa mesma linha, o art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90[14] determina que os medicamentos ou produtos inseridos nos protocolos clínicos e nas diretrizes terapêuticas do SUS devem ser previamente avaliados quanto à sua segurança.

Já o art. 19-Q da mesma lei impõe que a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) avalie, antes da incorporação, as evidências científicas sobre a segurança da tecnologia analisada. Busca-se com isso evitar que os tratamentos oferecidos pelo sistema público de saúde causem mal aos pacientes, ainda que não haja demonstração concreta de potencial prejuízo.

Como referido anteriormente, contudo, o princípio da precaução não impõe que toda nova tecnologia a ser introduzida na sociedade possua “risco zero” à saúde da população.

Por este se pondera, mediante um procedimento de gestão de riscos, quais os potenciais benefícios e os possíveis prejuízos advindos da atividade ou do produto avaliado para que então se decida qual a melhor alternativa a ser adotada (a permissão da nova tecnologia, sua proibição ou a adoção de medidas de controle). É exatamente o que ocorre em relação aos medicamentos.

Com efeito, raramente será encontrado um medicamento que não tenha a possibilidade de causar efeitos colaterais no usuário. Ainda assim, a sociedade e as comunidades médicas e científicas assumem tais efeitos quando eles são notoriamente admissíveis frente aos benefícios que a droga proporcionará à saúde.

Quanto maiores forem os benefícios ou mais graves as doenças a serem tratadas, maior a tolerância em relação aos efeitos adversos. Os tratamentos quimioterápicos para o câncer são exemplo claro disso. Mesmo causando efeitos colaterais graves à saúde dos pacientes, admitem-se a sua produção, a sua comercialização e a sua utilização por conta dos possíveis benefícios.

Trata-se de típica ponderação de riscos e benefícios realizada pelo princípio da precaução, portanto. É indispensável, todavia, que os perigos decorrentes da utilização do medicamento estejam bem delineados e sejam claramente informados aos profissionais da saúde e aos pacientes.

O registro, a comercialização e a utilização de agrotóxicos, disciplinados pela Lei nº 7.802/89 e por diversos atos administrativos, também se dão por necessária influência do princípio da precaução. A liberação para uso desses produtos pressupõe prévia autorização do poder público, como ocorre com os medicamentos.

Os riscos que oferecem à saúde humana são levantados cientificamente e cotejados com os benefícios que trazem à produção agrícola e ao incremento da produção alimentar.

As provas sobre os danos, os riscos ou os benefícios devem ser produzidas antes do registro (aqui incidindo a precaução), sem prejuízo do posterior acompanhamento dos efeitos efetivamente gerados durante sua utilização.

O programa de saúde do trabalhador instituído no âmbito do SUS também é permeado de medidas decorrentes do princípio da precaução. Esta tutela aos trabalhadores sujeitos não apenas aos agravos, mas também aos riscos das condições de trabalho (art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.080/90).

Abrange, dentre outras medidas, a “avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde” (inciso IV), a “informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho” (inciso V) e a “garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou a saúde dos trabalhadores”.

A proteção, como se positivou, é sempre antecipada em tais casos, tutelando a mera existência de riscos, independentemente dos danos efetivamente comprovados.

A saúde do consumidor é outra seara em que o princípio da precaução atua com forte interferência, trabalhando prioritariamente com o afastamento de riscos e independentemente da demonstração de danos concretos.

A Lei nº 8.078/90 é repleta de referências à segurança – que traz ínsita a ideia de afastamento de riscos – e à saúde dos consumidores. Dentre estas, seu art. 6º enumera como direitos básicos do consumidor, em primeiro lugar, “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos” (inciso I).

Merece destaque, ainda, o art. 8º da mesma lei, segundo o qual “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição (...)”.

Percebe-se, mais uma vez, a caracterização do princípio da precaução como um mecanismo de gestão de riscos, porquanto não afasta a possibilidade de fornecimento de produtos ou serviços perigosos, desde que sejam aqueles normais e previsíveis de acordo com suas características e sua forma de utilização.

 Os princípios da prevenção e da precaução na jurisprudência do STF[15] sobre direito à saúde

Bem vistos os delineamentos dos princípios da prevenção e da precaução na órbita do direito à saúde, é importante verificar como eles vêm sendo aplicados em casos concretos. Para isso, é bastante interessante a menção a alguns acórdãos do Supremo Tribunal Federal que debateram o tema.

Sobre a extração e utilização do amianto crisotila também aplicando o princípio da prevenção no direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade superveniente da Lei nº 9.055/95, que, em seu art. 2º, autorizou a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do amianto da variedade crisotila (asbesto branco) na forma por ela disciplinada. As decisões se deram na ADI 3.937, de relatoria do Ministro Dias Toffoli,[49] e nas ADIs 3.406 e 3.470, ambas relatadas pela Ministra Rosa Weber.[50]

O Supremo Tribunal Federal considerou que a nocividade do amianto crisotila à saúde humana é atualmente comprovada pela ciência. Conforme constou na ementa do acórdão da ADI 3.937:

Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se, na época da edição da lei, na possibilidade do uso controlado dessa substância, atualmente, o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador.

O consenso científico em torno da natureza altamente cancerígena do amianto crisotila e a disponibilidade de materiais alternativos à fibra de amianto levaram o STF a concluir, então, pela superveniente inconstitucionalidade da Lei nº 9.055/95 por ofensa ao direito à saúde (arts. 6º e 196, CF/88), ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88) e à proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88).

O sentido das decisões foi impedir um dano à saúde já conhecido e sabidamente advindo da utilização do amianto crisotila, em prestígio ao princípio da prevenção.

Sobre a redução do campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica

Ao julgar o RE 627.189, em que se discutiu a obrigação das concessionárias de energia elétrica de reduzir a intensidade dos campos eletromagnéticos de torres de transmissão, por ser a radiação potencialmente cancerígena, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se detidamente sobre o princípio da precaução. Como pano de fundo do julgamento, estavam os possíveis riscos à saúde humana que esses campos poderiam trazer.

O voto do Ministro Dias Toffoli, relator do acórdão, é bastante profícuo e minucioso na análise do princípio de que se trata. Para melhor compreensão do tema, vale a pena transcrever a ementa do julgado:

Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Direito Constitucional e Ambiental. Acórdão do tribunal de origem que, além de impor normativa alienígena, desprezou norma técnica mundialmente aceita. Conteúdo jurídico do princípio da precaução. Ausência, por ora, de fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias de energia elétrica a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar legal. Presunção de constitucionalidade não elidida. Recurso provido. Ações civis públicas julgadas improcedentes.

1. O assunto corresponde ao Tema nº 479 da Gestão por Temas da Repercussão Geral do portal do STF na Internet e trata, à luz dos arts. 5º, caput e inciso II, e 225 da Constituição Federal, da possibilidade, ou não, de se impor a concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, por observância ao princípio da precaução, a obrigação de reduzir o campo eletromagnético de suas linhas de transmissão, de acordo com padrões internacionais de segurança, em face de eventuais efeitos nocivos à saúde da população.

2. O princípio da precaução é um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos, o que exige que o Estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais.

3. Não há vedação para o controle jurisdicional das políticas públicas sobre a aplicação do princípio da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste da análise formal dos limites desses parâmetros e privilegie a opção democrática das escolhas discricionárias feitas pelo legislador e pela Administração Pública.

4. Por ora, não existem fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias de energia elétrica a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar legal fixado.

5. Por força da repercussão geral, é fixada a seguinte tese: no atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei nº 11.934/2009. 6. Recurso extraordinário provido para o fim de julgar improcedentes ambas as ações civis públicas, sem a fixação de verbas de sucumbência. (RE 627.189, relator Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 08.06.2016, acórdão eletrônico, repercussão geral – mérito, DJe-066, divulg. 31.03.2017, public. 03.04.2017)

Invocando o princípio da precaução, a parte-autora da ação objetivava que o campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica fosse reduzido a limites inferiores aos máximos previstos na legislação pátria e recomendados pela OMS, mas de acordo com padrões internacionais, especificamente da Suíça.

O que chama a atenção no acórdão em epígrafe é a consideração do princípio da precaução como mecanismo de gestão de riscos, conforme exposto anteriormente.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal não exigiu que fosse demonstrado cientificamente um “risco zero” de danos à saúde com a adoção, pelo ordenamento jurídico pátrio, dos limites do campo eletromagnético recomendados pela OMS, que são superiores ao da Suíça. Bastava, segundo o entendimento adotado, que os riscos e as consequências da manutenção ou da redução dos limites fossem previamente apreciados mediante critérios científicos confiáveis para então serem sopesados e considerados na decisão a ser tomada. Os seguintes trechos do voto do ministro relator são bastante elucidativos quanto ao ponto:

Com o devido respeito, não se mostra correta a afirmativa de que esse princípio (o da precaução) deva ser aplicado quando não comprovado o afastamento total dos riscos efetivos ou potenciais. Isso porque dificilmente existirá um produto ou serviço que possa estar livre de qualquer margem de risco à saúde ou, conforme o caso, ao meio ambiente.

(...) A legislação brasileira, rememoro, instituiu 83,33 μT (microteslas) como o limite máximo de emissão de campos magnéticos, detectável a um metro e meio do solo.

A discussão sobre a segurança desse limite para a saúde do ser humano não é nova em nosso país, tendo-se iniciado em 2007. Em 2009, após amplo debate, os Poderes Executivo e Legislativo optaram por acatar os parâmetros propostos pela Organização Mundial da Saúde, e o país acabou por aprovar a Lei nº 11.934/09.

(...) Como reiteradamente se manifestaram as partes durante o feito, bem como os especialistas, a caracterização do que é seguro ou não seguro depende do avanço do conhecimento científico.

Entretanto, não me parece que existem provas ou mesmo indícios de que o avanço científico na Suíça ou em outros países que não adotam os padrões da OMS esteja além do da maioria dos países que compõem a União Europeia ou do de outros países do mundo que estão a adotar os limites estabelecidos pela OMS e pela ICNIRP.

Acentuo, ainda, que esses limites acabaram sendo aceitos em nosso país, inclusive pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como se verifica na edição da NBR nº 15.415, publicada em 20 de outubro de 2006.

(...) Portanto, tendo sido adotadas pelo Estado brasileiro as necessárias cautelas, pautadas pelo princípio constitucional da precaução, e tendo em vista que nosso regime jurídico se encontra pautado de acordo com os parâmetros de segurança reconhecidos internacionalmente, não há razão suficiente que justifique a manutenção da decisão objurgada.

É evidente que, no futuro, caso surjam efetivas e reais razões científicas e/ou políticas para a revisão do que se deliberou no âmbito normativo, o espaço para esses debates e a tomada de novas decisões há de ser respeitado.

É interessante observar que o julgamento foi precedido de audiência pública em que foram ouvidos representantes do Ministério da Saúde, da Aneel, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e do Ministério de Minas e Energia, além de entidades representativas de profissionais da saúde, universidades, centros de pesquisa e especialistas na área.

O procedimento segue a ideia de pluralização do debate, que, como já demonstrado anteriormente, exorbita as questões eminentemente técnicas, de forma que os dados científicos solidamente colhidos servem para uma posterior decisão que muitas vezes terá cunho político, observando-se, evidentemente, a primazia que o direito à vida e à saúde tem em relação aos demais.

No julgamento da ADI 5.592/DF, o Supremo Tribunal Federal apreciou a constitucionalidade da norma do art. 1º, § 3º, IV, da Lei nº 13.301/16, que trata de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão por aeronaves para o combate ao mosquito transmissor da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika.

Em síntese, seria a pulverização de veneno contra o mosquito. A Procuradoria-Geral da República afirmava que, além de carecer de provas científicas de sua efetividade, a medida poderia causar prejuízos à saúde e ao meio ambiente.

A relevância do julgamento reside no entendimento do STF de que, em prestígio ao princípio da precaução, não basta que a medida seja previamente autorizada pela autoridade sanitária competente. É necessário, mais do que isso, que a autorização ocorra com base em estudos científicos consistentes que demonstrem a sua segurança para a saúde humana e a eficácia do método.

É interessante observar que o controle vetorial a que se refere a Lei nº 13.301/16 destina-se justamente à prevenção das doenças transmitidas pelo mosquito. Significa dizer que estavam em cotejo dois cenários em que a saúde pública demandava atenção, seja pelos danos causados pelas doenças, seja pelos riscos trazidos pelas medidas de combate.

No caso, prevaleceu o entendimento de que o princípio da precaução impunha que se obtivessem evidências científicas seguras acerca do método de controle do vetor antes de sua implementação. É o que se depreende do voto do Ministro Edson Fachin, relator para o acórdão:

De fato, apesar de a lei condicionar a utilização de dispersão de substâncias químicas por aeronaves para combate ao mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika à autorização da autoridade sanitária e à demonstração da eficácia do método, é mister asseverar que, em se tratando de procedimento que acarreta riscos indubitáveis à saúde humana e ao equilíbrio da fauna e da flora da região na qual eventualmente se dispersarão os venenos, mostra-se inafastável a incidência do princípio da precaução, a orientar o agir do Estado, ainda que se trate de grave epidemia a acometer o país.

Apesar de submeter a incorporação dessa medida à autorização da autoridade sanitária e à comprovação de eficácia da prática no combate ao mosquito, entendo que o legislador assume a positivação do instrumento sem a realização prévia desses estudos, o que pode levar à violação à sistemática de proteção ambiental contida no artigo 225 da Constituição Federal.

(...) Portanto, para o atendimento do princípio da precaução ambiental – que condiz com a própria manutenção da vida no planeta –, não basta a previsão legal autorizando a medida, ainda que com condicionantes; é imperiosa a garantia da segurança e da eficácia da utilização da técnica, com estudos científicos prévios à própria inclusão na legislação, a fim de que o Estado-legislador corretamente demonstre a inexistência ou a mitigação eficiente dos riscos envolvidos antes de sua positivação.

(...) Nada obstante, é evidente que não existiu a devida perquirição científica prévia acerca da segurança e da eficácia dessa modalidade de controle da epidemia de doenças causadas pelo mosquito Aedes aegypti.

(...) Ao contrário, os estudos citados pela Procuradoria-Geral da República e as notas técnicas juntadas à petição inicial, emitidas pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Meio Ambiente, demonstram haver incerteza científica no tocante à efetiva segurança da utilização da dispersão aérea de substâncias químicas para o combate ao mosquito Aedes aegypti.

A conclusão do Supremo Tribunal Federal foi, então, a de conferir interpretação conforme ao art. 1º, § 3º, IV, da Lei 13.301/2016, de maneira que a dispersão aérea de veneno só seja feita após prévia comprovação científica de sua eficácia e da ausência de danos à saúde e ao meio ambiente.

A Portaria nº 43/2020 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento/Secretaria de Defesa Agropecuária, nos itens 64 a 68 da Tabela 1 de seu artigo 2º, estabeleceu prazo de 180 dias para a manifestação da autoridade competente sobre o registro de fertilizantes e de 60 dias para agrotóxicos. Na ausência de manifestação conclusiva da Secretaria de Defesa Agropecuária sobre a liberação, considera-se que houve aprovação tácita.

Essas regras foram impugnadas por meio das ADPFs 656 e 658, ambas relatadas pelo Ministro Ricardo Levandowski, cujos acórdãos não foram publicados até a data da conclusão deste trabalho. Ainda assim, as informações extraídas de notícia divulgada pelo Supremo Tribunal Federal foram de que a Corte se valeu do princípio da precaução, diante dos sabidos efeitos nocivos dos agrotóxicos para a saúde e o meio ambiente, para suspender os dispositivos normativos impugnados.

De fato, conforme visto anteriormente, o controle sanitário de medicamentos e agrotóxicos é uma das áreas da saúde pública em que o princípio da precaução mais se faz presente. Dados os notórios riscos que esses produtos oferecem à saúde, a sua liberação para uso pressupõe minuciosa análise técnica e científica acerca dos potenciais danos, o que é evidentemente incompatível com a aprovação tácita.

A pandemia da Covid-19 trouxe à tona inúmeras discussões relacionadas à aplicação dos princípios da precaução e da prevenção no âmbito do direito à saúde.

Um caso interessante em que a questão foi abordada é o da STP 393, apreciada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli.

O Município de Bom Jesus do Galho/MG apud Silva e Santos requisitou um hospital privado desativado para tratamento de portadores da Covid-19, nos termos do art. 3º, VII, da Lei 13.979/2020, que prevê tal forma de requisição. Havia até então um único caso da doença confirmado na cidade.

Impugnada a medida, o STF, por meio de seu presidente, utilizou o princípio da precaução para mantê-la hígida mesmo diante das incertezas a respeito da forma de propagação do vírus no município, que poderia ou não tornar necessária a utilização dos leitos do hospital requisitado.

Vale citar, em relação ao ponto, os seguintes trechos da decisão:

(...) a forma como sua disseminação tem ocorrido velozmente país afora e tem acarretado dramáticas situações na rede pública hospitalar de saúde de diversos municípios demonstra que não parece prudente aguardar uma piora do quadro para a tomada de medidas concretas.

Por outro lado, a forma absolutamente imprevisível como ocorreu o início e a propagação dessa pandemia torna de todo desarrazoado exigir-se, com exacerbado rigor, que medidas emergenciais na área de saúde pública sejam tomadas com base em sólidas evidências científicas ou estratégicas de informações em saúde.

(...)

E o acerto de referida medida administrativa também pode ser referendado pela aplicação, ao caso, do princípio da precaução, o qual, muito embora não se refira, diretamente, à hipótese fática em discussão nestes autos, visto que mais comumente ligado a situações ocorridas em matéria tecnológica e ambiental, impõe que o julgador, em matéria de saúde pública e em face de dúvida sobre qual a melhor solução a tomar, sempre opte por aquela que mais adequadamente atenda aos interesses da saúde pública.

 Com a campanha, o Brasil não pode parar, preocupada com os efeitos econômicos que o isolamento social traria e na contramão das recomendações das autoridades de saúde pública, o governo federal estimulava a manutenção das atividades cotidianas dos cidadãos e das empresas.

A campanha publicitária foi então impugnada na ADPF 668,[54] sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso. Em uma primorosa decisão cautelar, o ministro considerou que a campanha caminhava em sentido contrário às recomendações da OMS, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina, da Sociedade Brasileira de Infectologia, além de outras instituições nacionais e internacionais, todas propugnando pelo distanciamento social.

Aplicou ao caso os princípios da prevenção e da precaução, “que determinam, na forma da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, na dúvida quanto à adoção de uma medida sanitária, deve prevalecer a escolha que ofereça proteção mais ampla à saúde”.

O ministro assim detalhou seu raciocínio:

 “Ainda que assim não fosse, que não houvesse uma quase unanimidade técnico-científica acerca da importância das medidas de distanciamento social e mesmo que não tivéssemos a agravante de reunirmos grupos vulneráveis em situações de baixa renda, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada no sentido de que, em matéria de tutela ao meio ambiente e à saúde pública, devem-se observar os princípios da precaução e da prevenção. Portanto, havendo qualquer dúvida científica acerca da adoção da medida sanitária de distanciamento social – o que, vale reiterar, não parece estar presente –, a questão deve ser solucionada em favor do bem saúde da população”.

Após o deferimento da medida cautelar, o próprio governo federal entendeu por bem não levar a campanha adiante, fazendo com que a ADPF perdesse seu objeto e fosse extinta.

O que é digno de nota e atenção no caso ora indicado é que os princípios da precaução e da prevenção foram utilizados como parâmetro de controle de uma política pública como um todo que buscava induzir a população a não seguir as orientações de isolamento social preconizadas pelas autoridades sanitárias.

Diante de tantas incertezas científicas relacionadas à pandemia da Covid-19, das graves repercussões sanitárias e econômicas que ela trouxe, da necessidade de compatibilização da saúde pública com a economia e das implicações da urgência nas tomadas de providências administrativas das mais diversas ordens para se lidar com o vírus, veio a lume a Medida Provisória nº 966/2020, que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”.

De acordo com seu art. 1º, a responsabilização dos agentes públicos nas esferas civil e administrativa por decisões concernentes à pandemia depende de ação ou omissão mediante dolo ou erro grosseiro.

Já o art. 2º, que foi objeto de impugnação por meio da ADI 6.421, dispõe: “considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

Parcela dos meios jurídico e político considerou que a medida provisória em questão poderia servir como álibi para a não responsabilização de agentes públicos por decisões descoladas de critérios técnicos, o que levou ao questionamento de seu art. 2º no Supremo Tribunal Federal por meio da referida ADI 6.421.

O plenário do STF, acompanhando os termos do Ministro Roberto Barroso, fixou então as seguintes teses:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.

2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e dos critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

A um só tempo, o Supremo Tribunal Federal reforçou o status constitucional dos princípios da prevenção e da precaução e os vinculou às normas e aos critérios técnico-científicos como parâmetros decisórios fora dos quais os agentes públicos podem ser responsabilizados.

Além disso, frisou que esses critérios sejam estabelecidos por “organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas”, tudo a confirmar que os princípios da prevenção e da precaução devem sempre caminhar ao lado da ciência.

Com efeito, tratando-se de princípios constitucionais, a prevenção e a precaução devem balizar a atuação dos agentes públicos, tornando ilícitas as condutas que não os seguem.

Caso emblemático em que a não observância do princípio da precaução causou prejuízos gravíssimos à saúde de muitos cidadãos, ensejando o reconhecimento pelo próprio Estado do dever de indenização, foi o da talidomida[16].

A droga foi lançada na década de 1950 do século passado como antigripal e sedativa. Sem estudos prévios e de longo prazo suficientes em relação à segurança para a saúde humana, atingiu sucesso mundial sob a propaganda agressiva de ser um medicamento seguro e eficaz.

Pouco tempo após o início do uso generalizado, ainda no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, começaram a aparecer os primeiros relatos de efeitos colaterais graves, culminando na constatação de malformações congênitas.

Como detalhado por Moro e Invernizzi:

“Entre as anormalidades ocasionadas pela talidomida estão: perda de audição, alterações oculares, surdez, paralisia facial; malformações na laringe, na traqueia, nos pulmões e no coração; e retardo mental em 6,6% dos indivíduos afetados.

A taxa de mortalidade entre as vítimas variou entre 40% e 45%. Entre dez e quinze mil crianças nasceram com as malformações típicas associadas à talidomida no mundo, e 40% destas morreram no primeiro ano de vida (Vianna, Sanseverino, Faccini, 2014)”.

No Brasil, a talidomida[17] começou a ser comercializada quando já havia notificação de efeitos adversos na Alemanha. A retirada da droga do mercado ocorreu em 1965, quatro anos depois do país europeu. A tragédia causada na saúde pública foi tamanha que a Lei nº 7.070/82 instituiu pensão especial para as vítimas do medicamento.

Já a Lei nº 12.190/2010 concedeu indenização por danos morais para as mesmas vítimas, em um reconhecimento claro da responsabilidade do Estado em razão da não observância dos princípios da prevenção e da precaução quando da liberação da droga para uso em território nacional e da sua suspensão tardia.

A prudência é uma virtude que deve acompanhar todas as ações humanas. Esta é, especialmente, importante no trato da vida e da saúde das pessoas, que são os bens jurídicos mais caros que possuem.

O desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo que viabiliza o progresso socioeconômico, permite antever consequências negativas ou ao menos vislumbrar riscos de danos decorrentes de certas práticas e acontecimentos. Por outro viés, as próprias inovações tecnológicas podem oferecer riscos à saúde enquanto seus efeitos, sobretudo a longo prazo, não são perfeitamente conhecidos.

Nesse contexto, tanto o impedimento de danos certos quanto o afastamento dos riscos de danos incertos ganham especial importância na proteção à vida e à saúde pública.

O princípio da prevenção tem como objetivo evitar a ocorrência de danos conhecidos à saúde. Está previsto expressamente em normas constitucionais e infraconstitucionais relacionadas ao direito à saúde, permeando as mais variadas vertentes do SUS e da saúde suplementar.

Encontra-se especialmente presente nas políticas de vigilância sanitária e epidemiológica, de vacinação, de saúde do trabalhador e do consumidor.

Na condição de princípio jurídico, impõe padrões de conduta ao Estado e aos particulares. Por outro viés, deve ser harmonizado com outros princípios, observando-se a primazia que o direito à vida e à saúde tem sobre os demais.

Já o princípio da precaução trata com os danos desconhecidos ou incertos de uma atividade ou um produto. Busca afastar os simples riscos, impondo que a mera inexistência de comprovação dos danos ou de sua extensão não sirva como justificativa para a permissão do livre desenvolvimento da atividade ou da comercialização do produto.

Partindo dos pressupostos de que dificilmente será possível chegar-se ao desenvolvimento e à comprovação de atividades com “risco zero” à saúde e de que muitas vezes os benefícios destas advindos podem superar os riscos oferecidos, o princípio da precaução passou a ser largamente utilizado como mecanismo de gestão de riscos.

Para que seja adequadamente empregado e atinja os seus reais propósitos, é necessário que esteja sempre pautado por critérios técnicos e científicos rigorosos para a apuração dos riscos, dos potenciais danos (considerados em relação à sua gravidade, à sua probabilidade e à sua extensão) e, por outro lado, dos proveitos que se almeja obter com a nova tecnologia.

A distribuição do ônus da prova quanto à existência dos riscos e à sua extensão na aplicação do princípio da precaução é um tema que enseja intensos debates. Pela própria essência do princípio, não há que se exigir a prova de existência de lesividade de uma tecnologia para que se impeça o seu desenvolvimento.

Quando há razoáveis indicativos de que ela pode ser perigosa à saúde, cabe ao proponente produzir provas em sentido contrário. Por outro lado, não havendo nenhum indício de riscos, a sua demonstração é de incumbência dos terceiros interessados. Havendo tal demonstração, aí sim se exige do proponente que os afaste.

Quanto mais graves ou extensos os possíveis danos, menor deve ser o rigor na apuração dos indícios que farão com que o ônus da prova da inexistência dos danos se volte contra o proponente. A análise é inevitavelmente casuística.

O princípio da precaução encontra guarida nas mais diversas facetas do direito sanitário, já que todo ele é pautado pela busca de “redução do risco de doença e de outros agravos”, nos termos do art. 196 da Constituição.

É de visibilidade mais nítida e límpida na regulação de medicamentos e agrotóxicos e na política de assistência farmacêutica do SUS, apesar de também estar presente, por exemplo, nos programas de proteção à saúde do trabalhador e do consumidor.

A jurisprudência pátria[18] tem se deparado com inúmeras situações concretas em que os princípios da prevenção e da precaução são diretamente aplicados na interpretação do direito à saúde.

O Supremo Tribunal Federal[19] conta com diversas decisões e acórdãos emblemáticos sobre o tema, conforme citados e elencados, em razão de sua relevância como paradigmas a serem observados.

Em conclusão, buscou-se demonstrar a relevância que os princípios da precaução e da prevenção possuem também no direito sanitário, visto que eles são costumeiramente abordados no direito ambiental.

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Notas:

[1] A gestão de risco é o conjunto de atividades coordenadas que têm o objetivo de gerenciar e controlar uma organização em relação a potenciais ameaças, seja qual for a sua manifestação. Isso implica no planejamento e uso dos recursos humanos e materiais para minimizar os riscos ou, então, tratá-los. É uma estratégia que envolve um trabalho preventivo de se antecipar a possíveis situações e considerar a prática como parte dos processos da empresa. Mas inclui também atuar de maneira prescritiva, isto é, quando o risco se manifesta sem ter sido previsto.

[2] A Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que a hidroxicloroquina não funciona no tratamento contra a Covid-19 e alertou ainda que seu uso pode causar efeitos adversos. O medicamento passou por uma análise de um grupo de especialistas e pacientes e recebeu “forte recomendação” contra o uso no combate ao coronavírus. O grupo de 32 debatedores da OMS classificou a ineficiência da droga para tratamento de Covid-19 como de “alta certeza”. Eles sugeriram ainda que “os financiadores e pesquisadores devem reconsiderar o início ou continuação dessas experiências”. O documento foi publicado pela revista científica The BJM. Portanto, recomendar o uso de tais medicamento constitui um atentado ao direito à saúde.

[3]  Gonçalves assevera que “as autoridades públicas terão de intervir para estabelecer os níveis de risco socialmente aceitáveis para uma dada classe de perigos, com base em procedimentos de pesquisa técnica e científica e de debates públicos” (GONÇALVES, Vasco Barroso. O princípio da precaução e a gestão dos riscos ambientais: contribuições e limitações dos modelos econômicos. Ambient. Soc., São Paulo, v. 16, n. 4, p. 121-138, dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2013000400008&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16.03 2022.

[4] STF mantém restrição temporária de atividades religiosas presenciais no Estado de São Paulo em 08.04.2021 Por maioria dos votos (9x2), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta quinta-feira (8), manter a restrição temporária da realização de atividades religiosas coletivas presenciais, no Estado de São Paulo, como medida de enfrentamento da pandemia de Covid-19. A Corte entendeu que tal proibição não fere o núcleo essencial da liberdade religiosa e que a prioridade do atual momento é a proteção à vida. O Tribunal considerou constitucional o dispositivo do Decreto estadual 65.563/2021 que, em caráter emergencial, vedou excepcional e temporariamente a realização de cultos, missas e outras cerimônias religiosas a fim de conter a disseminação do novo coronavírus. O Tribunal decidiu já julgar no mérito a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 811, ajuizada pelo Partido Social Democrático (PSD). O exame da matéria teve início na sessão plenária de ontem (7.04.2021), com a apresentação dos argumentos das partes, dos terceiros interessados, bem como com o relatório e o voto do ministro Gilmar Mendes.

[5] Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.

[6] A assistência a que alude o art. 1º desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.

[7] Nos anos 80, a política de saúde no Brasil seguiu trajetória paradoxal: de um lado, a concepção universalizante; de outro, obedecendo às tendências estruturais organizadas pelo projeto neoliberal, concretizaram-se práticas caracterizadas pela exclusão social e redução de investimentos públicos. Em função dos baixos investimentos em saúde e consequente queda da qualidade dos serviços, ocorreu uma progressiva migração dos setores de “classe média” para os planos e seguros privados. A expansão da saúde suplementar nas últimas décadas foi significativa. O Estado tem atuado no campo da saúde no Brasil, tanto como prestador de serviços, fornecendo cuidados à saúde, como regulador do mercado, fixando normas, padrões de qualidade, preços, tornando-se complexo o debate das relações público/privadas.

[8] Em julgamento virtual finalizado em 22 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, à unanimidade, que é constitucional dispositivo legal que permite a concessão de auxílio por incapacidade temporária mediante apresentação de atestado médico durante a pandemia de covid-19 (ADI 6928). O art. 6º da Lei nº 14.131/2021 (oriunda da Medida Provisória nº 1.006/2020) autoriza que, até 31 de dezembro de 2021, o INSS conceda auxílio por incapacidade temporária (auxílio-doença) por meio da apresentação de atestado médico e de documentos complementares que comprovem a doença. Na ADI, a Associação Nacional dos Peritos Médicos Federais (ANMP) argumentou que (i) se trata de matéria inserida por emenda parlamentar, estranha ao objeto original da medida provisória da qual se originou (MP nº 1.006/20, a qual originalmente aumentava a margem de crédito consignado aos aposentados); (ii) viola o direito fundamental social à previdência e precariza o sistema de verificação de incapacidade laborativa; e (iii) não observa os critérios de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social. Contudo, para a relatora do processo, Ministra Cármen Lúcia, (i) o tema tratado no referido dispositivo não está dissociado da MP original; (ii) o dispositivo, além de ir de encontro ao direito dos segurados incapacitados à previdência, importa em eficiência do serviço público e na redução de prejuízos financeiros ocasionados pela covid-19 aos segurados (mormente em razão do fechamento das agências do INSS, o que impossibilitou a realização de perícia médica para a concessão do referido benefício); (iii) a verificação de ocorrência de fraudes pela concessão de benefício sem perícia médica cabe aos instrumentos de investigação e jurisdição ordinária; (iv) a Portaria Conjunta nº 32/2021 da então Secretaria Especial de Previdência e Trabalho elenca casos de dispensa de perícia e mantem a autonomia do perito, que, após analisar documentos médicos, pode concluir que determinado segurado preenche ou não requisitos para a concessão do benefício; e (iv) não há que se falar em aumento de despesa, nem em desequilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário, pois não há extensão da concessão das hipóteses de auxílio por incapacidade temporária.

[9] Campanha publicitária “O Brasil não pode parar” também em questão relacionada à pandemia da Covid-19, o Supremo Tribunal Federal foi provocado para se manifestar sobre a campanha publicitária proposta pelo governo federal com o lema “O Brasil não pode parar”. A campanha seria lançada em um momento em que praticamente todas as autoridades sanitárias nacionais e internacionais, inclusive a OMS, recomendavam o isolamento social como medida destinada a amenizar a disseminação descontrolada do vírus, que até o presente momento não pode ser curado por medicamentos nem conta com vacina que o previna.

[10] Novo lockdown na China pode impactar a economia mundial. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2022/04/como-novo-lockdown-na-china-pode-impactar-economia-mundial-ouca-podcast.shtml   Acesso em 10.04.2022. China volta a ter lockdown, mas analistas veem impacto limitado em exportações brasileiras Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/china-volta-a-fechar-mas-analistas-veem-impacto-limitado-em-exportacoes-brasileiras/ Acesso em 10.04.2022.

[11] STF decide por inconstitucionalidade da concessão de desconto geral em mensalidade de universidade por motivo de pandemia. Em 09.12.2021 Então, o CRUB (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras) e a ANUP (Associação Nacional das Universidades Particulares), interpuseram Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF’s 706 E 713) alegando que haveria sido retirado das universidades privadas o poder de negociar individualmente com os pais ou alunos, beneficiando até mesmo quem não teve a renda afetada.

Sendo assim, no dia 18 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal, decidiu, por 9 votos a 1, julgar inconstitucionais as decisões judiciais que concederam descontos lineares nas mensalidades de faculdades durante a pandemia da COVID-19. Tendo como relatora a ministra Rosa Weber, as ADPFs declararam inconstitucionais tais decisões por ferirem os princípios constitucionais da livre iniciativa e da isonomia, além da autonomia universitária.  Os fundamentos apresentados foram os de que os descontos nas mensalidades eram lineares, portanto, se aplicavam a todos os alunos, independentemente de fatores externos, como a renda do aluno, os efeitos econômicos para as instituições e etc., o que, para a Ilustre Relatora, era um erro. Rosa Weber destacou uma série de exigências imprescindíveis para a caracterização da vulnerabilidade econômica e da onerosidade excessiva em contratos de prestação de serviços educacionais, para que pudessem ser concedidos os devidos descontos, o que deveria ser levado em conta pelos juízes. Portanto, com a decisão, o colegiado afastou as decisões judiciais que concedam o desconto apenas com o fundamento de eclosão da pandemia e virtualização das aulas. Para que sejam concedidos os descontos, deverão ser analisadas as situações do caso concreto, para avaliar se há a onerosidade excessiva, falta de contraprestação adequada ou lesão às normas do Código de Defesa do Consumidor.

[12] Historicamente, o Brasil vem utilizando mecanismos diversos para controle e manutenção da regulamentação do setor de saúde. Para isto, em 28 de janeiro de 2000 foi decretada e sancionada a Lei nº 9.961 que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro – RJ, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. Possui natureza de autarquia especial caracterizada por autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de seus dirigentes.

[13] Ao todo, foram 15 macro assuntos principais investigados ao longo da CPI da Covid, são eles:  Gabinete paralelo Imunidade de rebanho; Tratamento precoce; Oposição às medidas não farmacológicas; A falsa alegação de supernotificação por Covid-19; Recusa e atraso na aquisição das vacinas; Crise do estado do Amazonas e a falta de coordenação do Governo Federal; O caso Covaxin; Hospitais federais do Rio de Janeiro; Caso VTC Operadora Logística LTDA – VTCLOG; Análise orçamentária da pandemia no Brasil; Indígenas; Impactos da pandemia sobre as mulheres, a população negra e os quilombolas; Desinformação na pandemia (Fake news); Prevent Senior. Além disso, mais de 20 crimes foram identificados em todo o relatório, atribuídos aos indiciados, quais foram: Homicídio; Crime de perigo para a vida ou saúde de outrem; Crime de epidemia; Crime de infração de medida sanitária preventiva; Omissão de notificação da doença; Charlatanismo; Incitação ao crime; Falsificação de documento particular; Falsidade ideológica; Uso de documento falso; Emprego irregular de verbas ou rendas públicas; Corrupção passiva e ativa; Prevaricação; Advocacia administrativa; Usurpação de função pública; Fraude ao contrato (Dispensa de licitação); Organização criminosa; Comunicação falsa de crime; Fraude processual; Crimes de responsabilidade; Improbidade administrativa e lei anticorrupção; Crime contra a humanidade.

[14] A Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como Lei Orgânica de Saúde, disciplina sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços públicos de saúde. O SUS presta os serviços públicos de assistência à saúde pelo qual toda a população tem acesso à assistência pública, integral e gratuita, financiada pelo Estado. Na prática isto não ocorre de forma a garantir o direito à saúde, pois o Estado não tem conseguido cumprir seu dever, deixando a desejar o que tem levado a população, preocupada por não ter seu direito constitucional garantido pelo poder público, a recorrer à iniciativa privada para tal satisfação. Desta feita, em 03 de junho de 1998 foi decretada e sancionada a lei nº 9.656 que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde.

[15] O Supremo Tribunal Federal (STF) referendou, nesta quarta-feira (15/4/2020), a liminar do ministro Marco Aurélio para explicitar a competência de Estados e municípios de tomar medidas com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus. Desta forma, estes entes da federação podem determinar quarentenas, isolamento, restrição de atividades, sem que a União possa interferir no assunto. A ação em julgamento questiona a Medida Provisória 926, sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos. Foi o primeiro caso apreciado pelo plenário da Corte no formato de julgamento por videoconferência.  A decisão, unânime, foi proferida no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341. Na ação, o PDT pede a declaração de inconstitucionalidade da MP 926, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em 20 de março, por entender que a norma desrespeita o preceito constitucional da autonomia dos entes federativos e foi editada com a finalidade política de atingir os governadores.

[16] A tragédia da talidomida, no final dos anos 1950, foi um divisor de águas na regulação de medicamentos. Ela foi descoberta na Alemanha em 1953 para ser agregada a antibióticos, mas foi reconhecida mundialmente após 1957 como sedativo e hipnótico.

[17] Hoje, a talidomida ainda é utilizada para tratar a hanseníase (lepra) e o mieloma múltiplo (um tipo de câncer). No Brasil - segundo país do mundo em casos de hanseníase, superado apenas pela Índia - milhões de comprimidos da droga são consumidos por milhares de pacientes.

[18] Judicialização da saúde no STF Tema 006 – RE 566.471 O STF irá definir tese sobre o parecer seguinte tema: “Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras de comprá-lo” (vide tema 106 do STJ). Tema 262 – RE 605.533 O Ministério Público é parte legítima para ajuizamento de ação civil pública que vise o fornecimento de remédios a portadores de certa doença. Tema 345 – RE 597.064 É constitucional o ressarcimento previsto no artigo 32 da Lei 9.656/1998, o qual é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados pelo SUS e posteriores a 04/06/1998, assegurados o contraditório e a ampla defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos. Tema 500 – RE 657.718 1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Tema 579 – RE 581.488 É constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de Saúde, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de Saúde, ou por médico conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes. Tema 793 – RE 855.178 Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. Tema 1033 – RE 666.094 / Recurso Extraordinário O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde. AgRgAI 486.816 Obrigação do Estado de fornecer medicamentos a pessoas carentes. AgRgAI 553.712 Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes.

[19] Há responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde. Decisão na STA nº 175, de 2009, reiterada no julgamento do RE 855178.  É vedado tratamento diferenciado a título de acomodação hospitalar ou escolha de médico no SUS. RE nº 581488. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. RE 657718.  A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. RE 657718. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos os requisitos da existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras; da existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e da inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

O Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo pleiteados judicialmente quando não constarem das relações oficiais de medicamentos do SUS. RE 566471.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito à Saúde.Judicialização da Política STF Jurisprudência Princípio da Precaução Covid-19

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