Decifrando Capitu ou Machado de Assis

Afinal, Capitu traiu ou não traiu o marido? Eis a questão, o que nos remete a análise do adultério como crime e fato de responsabilização civil. O romance também permite avaliar a posição social e jurídica da mulher casada no século XIX e nos tempos contemporâneos.

Fonte: Gisele Leite

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Para se começar entender a obra de Machado de Assis como um todo, é preciso compreender que à medida de seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras que se desarticulam e se rearticulam sob forma de estrutura diferentes, por vezes, mas complexas e, até sofisticada.

De certo modo, a repetição em seus romances de certos temas vem ocasionando um desgaste emocional do leitor, mas promove uma releitura intensa da essência humana em seus moldes reais e vigentes em sua época.

Não se deve recair no equívoco da crítica machadiana que insiste em analisar a obra Dom Casmurro como um pendant, de certa corrente do romance burguês, mas, de intenção antiburguesa do século XIX, a do estudo psicológico do adultério feminino, cujos exemplos mais triviais são Madame Bovary e O Primo Basílio.

Seja para a alegria ou tristeza, reabrindo o problema e procurando decifrar o enigma de Capitu[1]. Qualquer que seja as atitudes tomadas em Dom Casmurro, seja pela condenação ou absolvição de Capitu, há uma grande ingenuidade crítica e, uma identificação emocional com um dos personagens, seja com Capitu ou Bentinho e, comodamente já se sente disposto a esquecer a grande proposição do romance.

A verdade que os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade que é a de Dom Casmurro. O romance machadiano é, antes de tudo, um romance ético e que exige uma reflexão do leitor a todo tempo.

Afinal, não compreender a reflexão moral exigida pelo autor, requer  certa distância dos personagens e/ou do narrador, aliás, a mesma distância que Machado guardou deles.

O problema do amor, do casamento, do ciúme em uma sociedade patriarcal brasileira do Segundo Reinado brasileiro, a posição ambígua e detalhista do adolescente e ainda o caráter aristocratizante do final do século XIX.

O conceito de casamento restringe a expansão livre do sentimento, pois o amor revela-se ser sentimento enjaulado pela cerimônia cristã (o casamento) e, é este que possibilita a constituição da família.

É um universo de amor machadiano asséptico, formal e muito rígido. Amar é casar-se, é comprar título de propriedade. E, qualquer invasão nesta propriedade, como a presença de uma amante ou um amante acarreta um curto-circuito emocional que invalida tudo.

Com o passar dos anos o amor no casamento, o homem e a mulher se entregam aos diversos jogos sociais. E, as variadas formas de jogo são calcadas em posições opostos e complementares e que definem sua posição dentro da sociedade: a liberdade e a prisão, o sentimento e a razão.

A aceitação de qualquer experiência por parte da mulher, aliás, requer, obrigatoriamente a dissimulação: esconder é sua atitude mais habitual, mesmo porque o próprio recado que se exige dela já revela um véu que encobre os mais legítimos sentimentos.

O homem recorre à razão (casamento) para restringir sua liberdade, aceitando as correntes da virtude. Já a mulher se liberta de sua condição de escrava agarrando-se ao sentimento, ao amor que lhe parece ser superior à razão (casamento), arriscando-se com isso ao deslise.

Em verdade, o personagem feminino é o mais carregado de dramaticidade para Machado de Assis é a viúva, Lívia, na obra intitulada “Ressureição”[2]. Tendo experimentado a razão e o sentimento, só ela é que pode, diante de novo pretendente, viver o dilema em toda sua extensão.

Afinal, tinha a possibilidade de escolha: ou a fidelidade ao defunto, a crença no casamento, razão é superior ao sentimento. Ou a aceitação de novo marido, a crença no amor, sentimento, que é superior ao casamento correspondente à razão. Se aceita o novo marido é porque é capaz de sentir sucessivos amores. Afinal, como conciliar tantas complexas contradições?

Machado de Assis idealiza o romance Dom Casmurro e se tornou mais ambíguo, mais sutil e, para isso, suprime o narrador onisciente, que explicava os fatos de uma  plataforma divina e, dá toda a responsabilidade da narração ao personagem ciumento.

Dom Casmurro muda de profissão do personagem, passa ele a ser advogado, portanto, homem mais ligado à arte de escrever, de persuadir e de julgar os outros, como também o faz ex-seminarista, homem que, pelo menos em tese, deve ter as antenas mais preparadas para sentir os problemas morais.

Casa-o, fá-lo ciumento da esposa, pai de um filho. Deixa que acuse a esposa de infidelidade, que a renegue e que a envie para a Europa com o filho. Mente e engana os amigos e, na Europa, a esposa morre  sozinha. Então recebe a visita do filho já moço, deseja-lhe morte de lepra e, seu pedido é atendido, o filho morre da peste no Norte da África.

Percebe-se que o traço mais marcante da retórica do advogado-narrador é o apriorismo. Pois sabe de antemão que o quer provar é o desenvolvimento verossímil de certo raciocínio que nos conduzirá implacavelmente à conclusão por ele ambicionada. Sua estruturação dos fatos, sua apresentação do comportamento humano do s personagens (inclusive de Bentinho) é informada pelo rigor da demonstração a ser estabelecida.

Para Dom Casmurro o essencial era provar e sair vencedor que o conhecimento que tinha dos atos de Capitu quando menina lhe possibilitava um julgamento mais seguro sobre Capitu adulta e tão misteriosa.

Ou, in litteris: "Mas, eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de reconhecer que uma estava dentro da oura, como fruto dentro da casca".

Outro traço marcante para definir a retórica da verossimilhança é o predomínio da imaginação sobre a memória na investigação do passado. Deixa claro, o autor que ao narrador a ocasião de levantar o contraste entre as duas faculdades e estabelecer nítida vitória da fantasia.

O infatigável racionalista que era Machado Assis, dificilmente poderia ser colocado ao lado do bergsonismo proustiano. Colocar de um e do outro é subestimar a formação filosófica de um e do outro.

A retórica de Dom Casmurro é o fato de recusar sistematizamente a procura da identidade perfeita entre dois elementos, procurando antes impingir ao leitor proposições que traduzem a igualdade pela semelhança.

Mesmo deixando de lado a regra de três (menina/adulta: fruta/casa), vemos por exemplo que Bentinho, segundo o dizer de José Dias, e de sua mãe, "é a cara do pai"; como ainda nos propõe Dom Casmurro[3] como argumento maior para o adultério da esposa o fato de seu filho não se parecer a ele, sendo mais semelhante a amigo Escobar.

Segundo a mestre em História Social pela PUC/SP o adultério era visto como uma invasão destruidora do amor lascivo no universo estável do amor conjugal. Era um ataque ao direito masculino sobre o corpo de sua esposa.

Somente a mulher era penalizada por adultério. Apenas era considerado crime  praticado pelo marido se fosse descoberto que ele sustentava ou mantinha outra  família, mas não era caracterizado como adultério. O machismo era tão forte,  que não existia adultério masculino, em que pese, essa expressão sequer existia.

Assim sendo, percebe-se que somente a mulher cometia adultério, o artigo 250 do Código Penal de 1830 era bem claro quanto a isso. Com o passar do tempo, o adultério passou  a valer também para a figura masculina, previsto no artigo 240 do Código Penal de 1940.

Sobre o instituto do adultério, sendo discutido tanto na esfera penal como na esfera cível,  levando em consideração a constante evolução da sociedade, verificou-se que o adultério,  com todas as mudanças do século XXI, seja no contexto social, cultural e até mesmo econômico,  não mais justificava ser caracterizado como crime.

Dessa forma, a Lei 11.106, de 28 de março  de 2005, descriminalizou o adultério, revogando o artigo 240 do CP. O direito ao longo do  tempo inevitavelmente vai se modificando, se adequa e se transforma conforme a sociedade vai  evoluindo para satisfazer as necessidades que vão surgindo.

O adultério deixou de ser crime não por se tratar de questões de foro íntimo ou por não ser do  interesse público, se fosse assim nenhum litigio que chega ao judiciário seria do interesse público,  como por exemplo uma negativação na Serasa indevidamente, um cartão de crédito recebido sem ter sido solicitando, dentre outros.

A possibilidade de indenização por dano moral nos casos de infidelidade conjugal não deve ser desprezada pelo  judiciário, pois viola os direitos da personalidade, o princípio da eticidade e da dignidade da pessoa humana,  mas também não pode ser vista como uma solução para todos os casos de forma genérica. Por esse motivo que só é  configurado o dever de indenizar se for comprovado exposição ou humilhação do cônjuge fiel.

A juíza de Direito Clarissa Somesom Tauk, da 5ª vara da Família e Sucessões de São Paulo/SP, condenou um homem a indenizar a ex-esposa, por danos morais, em virtude de um relacionamento extraconjugal.

Ao analisar o caso, a juíza pontuou que: “a prática de adultério, isoladamente, não se mostra suficiente a gerar um dano moral indenizável, sendo necessário  que a postura do cônjuge infiel seja ostentada de forma pública, comprometendo a reputação, a imagem e a dignidade do  companheiro, ou seja, que os atos tenham sido martirizantes, advindo profundo mal-estar e angústia à pessoa traída”.

Segundo a magistrada, o caso em questão se enquadrou nos critérios necessários para aplicação da responsabilidade civil e, consequentemente, acarretou o dever de indenizar. Assim, a juíza condenou o homem ao pagamento de indenização no valor de R$ 50 (cinquenta) mil à ex-mulher.

A prática do adultério era capitulada como crime no Direito Penal  Brasileiro até o advento da Lei n. 11.106/05, publicada no Diário Oficial da União em 29.03.2005.

Entretanto, muito antes disso, eram raros os processos criminais requerendo a aplicação da pena. O que ocorria mais frequentemente era a alegação de sua prática com  o objetivo de fundamentar pedidos de divórcio e indenizações por danos morais em processos cíveis.

Mas, houve época em que o Adultério era crime passível de pena capital. As Ordenações Filipinas (1603), legislação aplicada no Brasil colonial, previam apena de morte para a adúltera e o amante.

Ainda hoje, existem países onde o adultério é considerado crime punível com a pena de morte.  Em certos países mulçumanos como o Irã e  a Nigéria, a pena aplicada aos adúlteros é a lapidação, que consiste em enterrar as vítimas até o peito ou o pescoço e apedrejá-las até a morte[4].

Historicamente, a prática de adultério costumava ser punida com mais severidade quando praticado pela mulher do que quando praticado pelo homem.

Um bom exemplo disso é o artigo 279 do Código Penal Brasileiro de1890, que punia a mulher adúltera com a pena de prisão celular de um até três anos, a mesma pena somente se aplicava ao marido adúltero se este mantivesse uma concubina “teúda e manteúda”, ou seja, caso sustentasse uma amante. Quando o homem mantinha uma simples relação sexual fortuita fora do casamento não havia crime.

Obviamente, a pena aplicada (quinze dias a seis meses) dava margem a penas/medidas alternativas de liberdade. Mas o absurdo da questão tratava-se de aplicar o Direito Penal em uma questão absolutamente moral.

Atualmente, a questão da fidelidade conjugal é apreciada no ramo cível, como deve ser visto que o Direito Penal não tem que se preocupar com questões morais.

No entanto, ainda hoje encontramos situações na jurisprudência em que a infidelidade feminina é justificativa para o comportamento violento do homem traído, ou justificativa para uma penalização da mulher em questão.

A tese da legítima defesa da honra, até pouco tempo atrás, era usada para a defesa de homens acusados de agredir ou até assassinar a companheira.

Na literatura, a questão do adultério já foi tratada em diversas obras. Um julgamento fictício que chega às raias do absurdo é o de Hester Prynne, em “A letra escarlate”[5]. Documentos históricos da época atestam que a situação narrada no romance de Hawthorne era real: mulheres acusadas de adultério utilizavam um estigma nas vestimentas, para que toda a comunidade soubesse que crime elas haviam cometido.

Com o advento do Estatuto da Mulher Casada[6], o marido deixou de ser o chefe absoluto da sociedade conjugal. A lei mudou mais de dez artigos do Código Civil vigente,  entre estes o artigo 6º que atestava a incapacidade feminina para alguns atos.

Atualmente, os cônjuges têm os mesmos direitos e deveres em relação a casa, filhos e bens. A mulher não pode praticar sem autorização apenas as ações que o seu  marido também precisa de consentimento para realizar, como por exemplo contrair obrigações que implicam em alienação dos bens do casal.

A legislação penal brasileira prevê expressamente a hipótese de uma conduta deixar de ser enquadrada como crime devido à edição de norma revogadora superveniente. De acordo com o caput do artigo 2º do Código Penal (CP), ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de tipificar como crime. Nesse caso, deve haver a cessação da execução e dos efeitos de eventual sentença condenatória.

Entre os exemplos mais mencionados de delitos alcançados pela chamada abolitio criminis no Brasil estão o adultério e a sedução de mulher virgem entre 14 e 18 anos de idade, ambos os tipos penais foram revogados pela Lei 11.106/2005. Ao longo de sua história, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem sendo provocado, em várias ocasiões, a se manifestar sobre a aplicação do instituto da abolitio criminis.

No tocante ao debate sobre a abolitio criminis em delitos contra a dignidade sexual[7], a edição 151 de Jurisprudência em Teses anota que a conduta de atentado violento ao pudor permanece criminalizada mesmo após a revogação do artigo 214 do Código Penal pela Lei 12.015/2009. O entendimento consolidado pelos órgãos julgadores de direito penal do STJ é o de que o legislador reuniu em único dispositivo os delitos de atentado violento ao pudor e estupro.

Foi o que levou em consideração a Quinta Turma, por unanimidade, ao não conhecer de habeas corpus em que a defesa de um condenado pela prática forçada de conjunção carnal e outros atos libidinosos contra vítima menor de 14 anos alegava constrangimento ilegal diante da revogação do artigo 214 do CP, antes mesmo da prolação da sentença.

Ao negar a análise do pedido da defesa contra o acórdão do TJSP, o relator, Ribeiro Dantas, ressaltou que, segundo a jurisprudência do STJ, a tipificação penal do atentado violento ao pudor se mantém com fundamento no princípio da continuidade normativa.

"O delito de atentado violento ao pudor, antes tipificado no artigo 214 do Código Penal, com a reforma introduzida na legislação penal, foi aglutinado no artigo 213 do mesmo código", assinalou o ministro, ressaltando que a Lei 12.015/2009 somente deslocou o fato criminoso para outro tipo penal, "agora cumulativo".

Na edição 153 de Jurisprudência em Teses, é mencionada a incidência da abolitio criminis em relação ao crime de corrupção sexual de maiores de 14 (quatorze) e menores de 18 (dezoito) anos, que estava previsto na redação original do artigo 218 do Código Penal e deixou de ser tipificado com o advento da Lei 12.015/2009.

Responsabilidade civil - Dano moral - Adultério - Ação ajuizada pelo marido traído em face do cúmplice da ex-esposa - Ato ilícito – Inexistência - Ausência de violação de norma posta

O cúmplice de cônjuge infiel não tem o dever de indenizar o traído, uma vez que o conceito de ilicitude está imbricado na violação de um dever legal ou contratual, do qual resulta dano para outrem, e não há no ordenamento jurídico pátrio norma de direito público ou privado que obrigue terceiros a velar pela fidelidade conjugal em casamento do qual não faz parte.

Não há como o Judiciário impor um “não fazer” ao cúmplice, decorrendo disso a impossibilidade de se indenizar o ato por inexistência de norma posta - legal e não moral - que assim determine. O réu é estranho à relação jurídica existente entre o autor e sua ex-esposa, relação da qual se origina o dever de fidelidade mencionado no art. 1.566, inciso I, do Código Civil de 2002.

De outra parte, não se reconhece solidariedade do réu por suposto ilícito praticado pela ex-esposa do autor, tendo em vista que o art. 942, caput e § único, do CC/02 (art. 1.518 do CC/16) somente tem aplicação quando o ato do coautor ou partícipe for, em si, ilícito, o que não se verifica na hipótese dos autos.  Recurso especial não conhecido.

A punição para o adultério, sempre mais centrada na “mulher adúltera”, diante da dúvida que poderia surgir em relação à paternidade da prole, é historicamente identificada. A legislação mosaica impunha pena de morte por apedrejamento.

Em Roma, a pena imposta pela “Lex Julia de adulteriis”[8] era a relegação, reconhecendo-se ao pai o direito de matar a filha surpreendida na prática de adultério. No direito germânico, a pena de morte também era aplicada.

De qualquer modo, quando a questão era examinada pelo ângulo do direito penal, sempre se entendeu que o delito era de concurso necessário, pois deveria ser praticado por duas pessoas de sexo oposto, uma das quais casada.

O Código Penal Brasileiro considerava como crime o adultério, atingindo o casamento (art. 240), disposição revogada pela Lei 11.106/2005.

Não obstante, antes e depois da revogação da lei penal, a doutrina se inclina, no campo do direito civil, a reconhecer o dever de indenizar (material e moralmente) apenas por parte do cônjuge adúltero.

Por todos, confira-se a excelente monografia de Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos (Reparação civil na separação e no divórcio, Saraiva, 1999).

A jurisprudência vem seguindo essa linha: REsp412.684/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma; REsp 742137/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma; REsp 37051/SP, Rel. Ministro Nilson Naves, Terceira Turma.

 De outra parte, não há que se falar em solidariedade do réu por suposto ilícito praticado pela ex-esposa do autor, tendo em vista que o art. 942, caput e § único (art. 1.518 do CC/16), somente tem aplicação quando o ato do coautor ou partícipe for, em si, ilícito, o que não se verifica na hipótese dos autos. In: https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/2875/1/0191-STJ-002.pdf Acesso em 15.10.2022.

Vejamos a jurisprudência: INFIDELIDADE CONJUGAL – DANO MORAL. A exposição de cônjuge traído a situação humilhante que ofenda a sua honra, imagem ou integridade física ou psíquica enseja indenização por dano moral.

A Turma confirmou a sentença de Primeiro Grau que condenou o réu ao pagamento da indenização de R$ 5.000,00 a ex-cônjuge por danos morais decorrentes de relacionamento extraconjugal. Inicialmente, os Desembargadores salientaram que o simples descumprimento do dever jurídico da fidelidade conjugal não implica, por si só, indenização por dano moral; para tanto, é necessário que o cônjuge traído tenha sido exposto a situação humilhante com ofensa a sua honra, imagem ou integridade física ou psíquica.

In casu, os Julgadores entenderam que os fatos geradores do abalo psíquico à apelada ultrapassaram as vicissitudes da vida conjugal, uma vez que o réu divulgou, em rede social, imagem na qual aparece em público, acompanhado da amante, e admitiu, em gravação, não ter se prevenido sexualmente nesse relacionamento extraconjugal.

Portanto, por ter assumido o risco de transmitir alguma doença à esposa, a Turma concluiu pela efetiva configuração da ofensa aos direitos de personalidade da autora.

Acórdão n. 1084472, 20160310152255APC, Relator Des. Fábio Eduardo Marques, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 21/3/2018, publicado no DJe: 26/3/2018.

O adultério deixou de ser crime há mais de dezesseis anos, quando a Lei 11.106/2005 que tirou do Código Penal brasileiro a pena de quinze dias a seis meses de detenção para a prática. A revogação apresentou importante para o Direito de Família brasileiro e a traição no casamento só pode acarretar a responsabilização cível buscando compensação indenizatória por danos extrapatrimoniais.

É conveniente recordar que o artigo 1.566 do Código Civil brasileiro arrola os deveres conjugais e, logo em seu inciso primeiro é feita menção à fidelidade recíproca. Todos os deveres conjugais, por óbvio, incluindo a fidelidade recíproca, se traduzem em padrões comportamentais. E, têm ligação com a boa-fé objetiva.

A quebra da fidelidade entre cônjuges pode ensejar dever indenizatório de cunho moral na hipótese de restar devidamente comprovada, durante a instrução processual, a ocorrência de situação vexatória, de exposição da infidelidade conjugal em nível transcenda a figura dos próprios cônjuges, ou seja, de dano vá além da dor decorrente exclusivamente do fim do afeto.

Em artigo recente para a Revista Científica do IBDFAM, o advogado e professor trata da responsabilidade civil decorrente da quebra dos deveres conjugais em casos de transmissão de infecções sexualmente transmissíveis – ISTs. O texto é assinado em parceria com a estudante Cristiane Guerin Alves, também membro do IBDFAM.

“Quando a inobservância de algum dos deveres conjugais ou convivenciais enseja dano, seja ele material, moral ou estético, é inegável o surgimento de obrigação ressarcitória em desfavor de seu causador, observados, por óbvio, os elementos ensejadores da responsabilização civil”, destacou o autor, ao comentar o tema do artigo, em maio.

Segundo ele, a indenização também pode ser pleiteada quando o transmissor da infecção não é cônjuge. Nesses casos, afasta-se a análise sob a ótica do Direito das Famílias. “Uma eventual indenização decorreria da comprovação dos elementos que ensejam a responsabilidade civil (ação ou omissão do agente, dano e nexo de causalidade), devendo ser aplicadas as regras gerais do Código Civil (artigos 186 e 187), que remetem à obrigação de indenizar (com regulamentação prevista a partir do art. 927, também do Código Civil)”, explica.

O adultério deixou de ser crime no Brasil em 2005, mas continua gerando polêmicas. Vítimas de adultério têm ingressado com ações judiciais com o objetivo de receber indenização por danos morais dos adúlteros ou até mesmo da terceira pessoa envolvida na relação extraconjugal, conhecida popularmente como amante.

O autor Miguel Matos em sua obra Código Machado de Assis aponta uma senha jurídica que traz a confirmação tácita que Capitu traiu Bentinho e o autor trouxe diversas citações jurídicas que demonstram a relevância do Direito em sua obra.

Certa noite, Bentinho, ele próprio um advogado, vai ao teatro sem Capitu e,  ao voltar antes do fim do primeiro ato, encontra Escobar à porta do corredor de sua casa.

É uma situação de quase flagrante, que só piora com o álibi: o amigo diz que passara por  lá para tratar de uma “questão de embargos”. Só que, quanto mais Escobar explica o assunto, mais o leitor dotado de um mínimo conhecimento jurídico percebe que o incidente não é  importante, observa Matos.

Além do mais, Escobar era um veterano negociante, com experiência suficiente para saber disso. Naquele tempo, ele nunca bateria tarde da noite na  casa de alguém se o motivo não fosse relevante.

Referências

ASSIS, Machado de. Obra completa, 2 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

Assessoria de Comunicação do IBDFAM. Traição no casamento pode acarretar indenização por danos morais? Especialista responde. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8593#:~:text=O%20adult%C3%A9rio%20deixou%20de%20ser,para%20o%20Direito%20das%20Fam%C3%ADlias. Acesso em: 15.10.2022.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3ª.ed. São Paulo: Cultrix, 1982.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. v. 2ªedição. São Paulo: Saraiva, 1990.

CARVALHO, Castelar. Dicionário de Machado de Assis. 2ª.ed. Rio de Janeiro, 2018.

COSTA, Márcia; TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. Machado de Assis e o legado da crítica: ao escritor as palavras. Disponível em:  https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/download/5209/3701 Acesso em: 15.10.2022.

DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

GOMES, Eugênio. O Enigma de Capitu. 1ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967.

ICIZUKA, Atílio de Castro; ABDALLAH, Rhamice Ibrahim Ali Ahmad. A trajetória da descriminalização do adultério no direito brasileiro: uma análise à luz das transformações sociais e da política jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.2, n.3, 3º quadrimestre de 2007. Disponível em:www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791.

JESUS, Damásio de. Direito Penal. v.2. Parte especial. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002.

Jurisp. Mineira. Belo Horizonte. Responsabilidade Civil no adultério. a.60,nº 191, p-331-334.out./dez. 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Prólogo à Primeira Edição. Tradução de João Baptista Machado. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; DE MELO. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/mkBHYrM8HVHMbwHsYTDmzKz/?lang=pt Acesso m 16.10.2022

MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis. São Paulo: Editora Migalhas, 2021.

PINATI, Flávia Giúlia Andriolo. Capitu (recurso eletrônico): uma transposição metaficcional. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu: Memórias póstumas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

Notas:

[1] Maria Capitolina Santiago. Tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada." "olhos de ressaca". O assunto da 'culpa' ou 'inocência' de Capitu é fonte de permanente discussão.  No romance, o foco narrativo está centrado em Bento Santiago, o Dom Casmurro, favorecendo, portanto,  sua visão de que ela seria, de fato, adúltera. A escritora Lygia Fagundes Telles, por exemplo, que chegou  a publicar artigo demonstrando a culpa de Capitu, em 2009 declarou ter percebido, afinal, que Capitu era  inocente. O debate em torno dessa personagem criada há mais de um século é uma demonstração da força  criativa da ficção de Machado. Muito já se debateu sobre a personalidade de Capitu. Um grupo de estudantes  de Direito brasileiros inocentou a personagem da acusação de adultério por "falta de provas".

[2] Este é o primeiro romance de Machado de Assis, lançado quando o autor era um rapazote de apenas 33 anos e ainda não usava aqueles óculos estiloso  e nem aquela barba lazarenta (as fotos indicam que só o lance do Bozzano no cabelo que parece ter começado cedo). Ressurreição não é sobre Jesus e, infelizmente, também não é sobre zumbis (o mais perto disso foi o Memórias Póstumas de Brás Cubas mesmo).  Na verdade, é só uma história de amor cheia de idas e vindas. Félix é um médico solteirão que vive nas festas (altas valsas) pegando várias mulheres, mas relacionamento sério que é bom, nada.  Eis que surge uma belíssima viúva chamada Lívia em seu caminho e ele resolve sossegar o facho. Porém, naquilo que talvez seja a gênese  do que viria ser Bento Santiago, Félix é inseguro e ciumento demais, do tipo que iria no Casos de Família fazer barraco. E aí o livro é  sobre como seria possível haver um relacionamento saudável entre duas pessoas se os sentimentos que as envolve são tão nebulosos. Recorde-se que a obra machadiana foi dividida em duas fases, a Romântica e a Realista.  A ideia, num geral, é demonstrar o espírito perturbado de Félix a partir da dualidade entre o amor e o ódio. Os sentimentos dos personagens  são meio exagerados, como era comum nesse período literário, então quando eles sofrem, sofrem muito, é mais um lance de se jogar no chão e esperar a morte por tristeza. A história é contada de forma linear e sem grandes novidades na narração, que não conta com aquela ironia inteligente que tanto da fase  realista e nem com as conversas diretas com o leitor..

[3] No Brasil, encontramos narrativas autorreferentes, inicialmente, em textos de Machado de Assis, tais como Ressureição (1872), A Mão e a Luva (1874), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899), onde o autor nesses romances usou sua imaginação para brincar com o conceito de mimesis através de jogos paródicos, mistura de gêneros e forte ironia.

[4] A Perícope da Adúltera (em latim: Perícope Adulterae) é um episódio bíblico que se encontra no Evangelho de João (João 7:53 até João 8:1–11). Trata-se de uma perícope muito conhecida e polêmica a respeito de uma mulher que seria julgada por ter sido surpreendida em ato de adultério.  Embora não seja dissonante do restante do texto, a maioria dos acadêmicos concorda que a passagem não faz parte do texto original do evangelho de João. Alguns exegetas identificam a mulher adúltera como Maria Madalena, porém não há nenhuma base histórica ou evangélica para confirmar esta identificação. A autenticidade desta perícope carece de unanimidade entre os especialistas, quanto a pertencer a João. Alguns afirmam ter sido incluído posteriormente,  ato conhecido por interpolação, não fazendo parte dos escritos originais de João. A perícope não consta dos manuscritos mais antigos de João: os códices P66 e o P75 do século III. Também não está presente no Codex Sinaiticus nem no  Codex Vaticanus, do século IV. O primeiro manuscrito em que a perícope aparece é o Codex Bezae do século V. Bruce Metzger argumentou que "Nenhum padre grego antes de Eutímio Zigabeno  (século XII) comentou sobre a Perícopa da Adúltera e Eutímio declarou que as cópias mais precisas dos Evangelhos não a continham".

[5] The Scarlet Letter (A Letra Escarlate, ou A Letra Encarnada) é um livro de Nathaniel Hawthorne publicado nos Estados Unidos em 1850. A história se passa na Salem (Massachusetts) do século XVII, colonizada por puritanos vindos da Inglaterra. Para Fernando Pessoa, que a traduziu, ""A Letra Encarnada é o mais célebre e, na opinião da grande maioria dos críticos, o maior dos  romances norte-americanos. Henry James chamou-lhe «a peça mais distintiva de ficção em prosa que tem produzido o solo americano»".  Pessoa cita outro crítico que referiu que «É uma tragédia sinistra em que as consequências do pecado se pintam com uma simplicidade,  um movimento firme e uma impiedade dignas das tragédias de Eurípides».

[6] A historiografia sobre transformações culturais associa modificações no modelo de família a mudanças econômicas de ordem estrutural, tal como industrialização e crescimento da população urbana. A sociedade brasileira mudou radicalmente da segunda metade do século XIX aos anos 1950. Ainda assim, foi preciso um processo de decisão amadurecido no Congresso para ajustar o país legal ao país real. Este artigo examina um aspecto dessa separação: o poder que os maridos detinham como tutores de suas esposas. Em termos metodológicos, são examinados os debates parlamentares sobre direitos de mulheres casadas em dois momentos históricos: nos anos 1930 e 1950.

[7] A Lei n° 12.015/2009 dispõe sobre os crimes contra a dignidade sexual e contra a liberdade sexual, conceituando os crimes de estupro,  violação sexual mediante fraude, assédio sexual, exploração sexual e tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. “A violência cometida por parceiros e a violência sexual causam sérios problemas para a saúde física, mental, sexual e reprodutiva  a curto e a longo prazo para sobreviventes e seus filhos, e levam a altos custos sociais e econômicos. A violência contra as mulheres pode ter consequências mortais, como o homicídio ou o suicídio. Além disso, pode provocar lesões: 42% das mulheres vítimas de violência por parte do parceiro relatam lesões como consequência da violência.”. violência sexual não se resume a penetração forçada. Muitos atos de natureza sexual que podem ser considerados violência: Toques indesejados nos órgãos sexuais; Ser forçada a tocar órgãos sexuais de outra pessoa; Ser obrigada a fazer sexo oral; Beijos e carícias forçadas; Ser obrigada a assistir conteúdo pornográfico ou participar; Ser forçada a se prostituir.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito de Família Direito Penal Adultério Dano Moral Constituição Federal Brasileira de 1988

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