Da multa coercitiva e suas polêmicas

Apesar o CPC de 2015 ter aprimorado na positivação sobre a multa coercitiva, dando tratamento mais detalhado ao instituto, ainda não está totalmente pacificada sua aplicação na sistemática processual brasileira. A multa coercitiva ou astreintes a fim de proceder uma análise de sua aplicação e natureza jurídica, bem como ainda, sobre a possibilidade de cominação de ofício, do beneficiário de seu valor, do seu quantum e do momento de sua exequibilidade. Também vige a controvérsia sobre a destinação do valor da multa se ao Estado, ou ao jurisdicionado prejudicado pela demora de cumprimento da sentença condenatória.

Fonte: Gisele Leite

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Há muito tempo o direito pátrio convive com sistema aberto e generalizado de técnicas coercitivas, especialmente, em face dos artigos 84 do Código de Defesa do Consumidor, e o artigo 461 do CPC/1973 correspondente ao artigo 494 CPC/2015[1] quando se disseminou a prática de usar meios de pressão psicológica para vencer a vontade do ordenado a cumprir com certa determinação de fazer ou não fazer.

Dentre todas as técnicas existente alguns já dependem exclusivamente da criatividade judicial, destacou-se notoriamente, a aplicação da multa coercitiva. Por vezes, a multa não é a mais adequada para inúmeros casos em que vem sendo aplicada, tem a multa coercitiva sido empregada para inúmeras situações em que a usada a multa coercitiva sido empregada quase como sendo a única

técnica viável dentro do sistema nacional. Contribui para o fato de a multa coercitiva ser uma das raras técnicas com específica dedicação pelo direito positivo brasileiro, havendo uma tradição histórica.

Algumas questões encontram-se pacíficas em face do manejo dessa técnica e, não se tem como parâmetro para a fixação da multa o valor da prestação devida. Ademais o magistrado poderá dimensioná-la de acordo com as circunstâncias do caso concreto, em muitos casos, poderá ser mitigada ou majorada, ter sua periodicidade modificada ou ainda, ser suprimida, tudo conforme o caso concreto em análise.

Porém, há outras questões que exigem maiores atenções. Especialmente com o fito de aperfeiçoar a técnica coercitiva,

o direcionamento ao sujeito passivo, o seu destinatário bem como o procedimento para sua efetivação. Em verdade, como único limite das multas reside nas proibições expressas ou implícitas do direito constitucional e infraconstitucional.

A natureza jurídica[2] da multa coercitiva no ordenamento jurídico brasileiro não sofre muita divergência, sendo uníssona a opinião que identifica esse mecanismo como instrumento de proteção da autoridade judicial. É portanto voltada a dar força à ordem judicial, decorrendo assim diretamente da autoridade do Estado.

Tem-se tentado desvincular a figura da multa coercitiva da pretensão albergada de que não é função de tal mecanismo a tutela do direito ou da pretensão alegada pelo jurisdicionado interessado. Enfim, a finalidade da multa é sustentar a autoridade ou o imperium da decisão judicial, com o fito de coibir qualquer possibilidade de transgressão da determinação do Poder Judiciário.

De fato, é inerente aos provimentos mandamentais a sua clara vinculação ao imperium estatal. E, a noção de ordem judicial, traz a ideia de declaração judicial onde o Poder Judiciário vale-se da autoridade estatal não apenas para tornar certo um direito, ou, na precisa definição alemã de declaração Feststellung, mas, sobretudo, para impô-lo concretamente às partes.[3]

Aliás, Pontes de Miranda já reconhecia que na sentença mandamental não se pretende apenas que o juiz declare a existência de direito ou condene trazendo o enunciado de fato e de valor, tampouco, por tal modo fusione o seu pensamento e seu ato para que nasça, finalmente, a eficácia constitutiva. Enfim, pretende-se que o juiz mande. Assim, a diferença fundamental entre a declaração judicial e a ordem judicial reside na presença do imperium. E, assim, essa autoridade reveste-se justamente na imposição não exatamente da prestação devido, de acordo com o direito material, mas sim, na imposição de ordem estatal, a ser tutelada pelos meios coercitivos disponíveis e eficazes.

No direito ianque ou norte-americano há o exemplo mais gritante para o direito brasileiro, quando se refere à vinculação de certas determinações judiciais aos meios coercitivos. Alude-se à doutrina dos inherent powers ou poderes inerentes, segundo a qual os julgadores possuem poder amplo para a adoção de medidas cabais de execução indireta para dar efetividade às suas decisões.

Portanto, afirma-se que os poderes inerentes abrigam todos os poderes razoavelmente exigidos para permitir a um tribunal o efetivo exercício de suas funções judiciais, para proteger sua dignidade, independência e integridade e para tornar efetivas as suas ações processuais.

Os tribunais têm o poder de adotar as medidas necessárias à consecução de suas finalidades, ainda quando esses instrumentos não estejam expressamente previstos no direito positivo. E, tal prerrogativa permite aos tribunais editar e implementar regras para lidar com o litígio a ser apreciado e, ainda determinar a punição em caso de desrespeito ao tribunal (contempt of Court).

Essa garantia opera como condição necessária para a realização da independência do Poder Judiciário, prevista constitucionalmente. Estende-se, mais que esses poderes são intrínsecos à própria existência dos tribunais, derivando diretamente do texto constitucional.

Se os tribunais existem, deve-se-lhes oferecer condições mínimas para que atuem de forma eficaz, constituindo esses poderes nos elementos necessários para tanto. E, entendem os tribunais norte-americanos, o poder de punir a desobediência judicial é essencial para assegurar e prestigiar a autoridade do Judiciário, especialmente, de forma independente em relação aos demais poderes do Estado.

Não há dúvida de que tal interesse igualmente está presente em todos os demais ordenamentos jurídicos. Sendo possível concretizar o fim da jurisdição consistente na prerrogativa de decidir e impor suas decisões sem um aparato cabal e capaz de permitir que a autoridade efetivamente se mostre atuante e presente.

Então, assume a importância redobrada a proteção da autoridade do Estado. A jurisdição não pode mais ser vista como mero poder inerte, cuja vocação se restrinja apenas ao reconhecimento de direitos. O poder de imperium é indissociável a iurisdictio.

Em razão de tudo relatado acima é que há legitimação para a imposição de ofício[4] da multa coercitiva, bem como a alteração de seu valor independentemente de requerimento e a fixação do valor na ordem desproporcional ao conteúdo da prestação.

Porque não existe ligação direta entre a multa coercitiva com a prestação de direito material devida ou solicitada pela parte, não poderá haver vinculação essencial entre o direito material protegido e a ordem judicial cujo cumprimento é garantido pela técnica coercitiva.

Assim como toda técnica de pressão psicológica, a finalidade da multa coercitiva é o de vencer a vontade do ordenado. E, a coerção estatal sustenta-se na ameaça de um mal, visando a contar com a cooperação dos indivíduos no cumprimento das deliberações do Estado. Tais deliberações estas que podem assumir o caráter legislativo, administrativo e jurisdicional.

E, nessa perspectiva, a multa coercitiva tem por fito adotar qualquer outro tipo de atitude. Sendo natural que a multa coercitiva apresente certo aspecto de violência institucionalizada. E, caso os meios coercitivos sirvam para reprimir a vontade do ordenado (de desobedecer ao comando judicial) é inafastável a conclusão de que tal finalidade só se obtém mediante a ameaça de um mal grave e desproporcional a qualquer vantagem que o ordenado pudesse auferir com o desrespeito a determinação judicial.

Para tanto, não têm cabimento os eventuais argumentos e teses que sustentam algum limite[5] para a importância da multa coercitiva, ou que entendem que esta não pode se converter em meio de opressão do ordenado. E, sua função é exatamente essa, ou seja, acenar com a violência institucionalizada ao patrimônio do devedor recalcitrante, para forçá-lo a cumprir a deliberação judicial.

Realce-se que a intenção é somente ameaçar o ordenado a fim de obter sua conduta. E, a tendência será sempre fazer com que a violência não se torne realidade, já que a regra será a constatação de que, diante da ameaça, o ordenado cumpriu com a determinação judicial. Porém, em sendo necessário, frente à verificação do descumprimento da ordem judicial pelo ordenado, a ameaça do gravame deve função coercitiva geral e sobre o próprio ordenado e sobre terceiros, seja preservada, sem impacto para a autoridade do Estado.

A multa coercitiva não tem como fim único o sujeito passivo o réu da ação. E, em verdade, todo aquele que estiver sujeito a receber uma ordem judicial também pode incidir na multa coercitiva.

E, assim, também ser ameaçados com a multa coercitiva o terceiro, que tenha alguma relação com o processo, ou que deva cumprir alguma determinação judicial, ou mesmo o autor, quando lhe for imposto algum dever pelo Judiciário.

Já quanto ao terceiro, resta evidente que pode ser, em diversas circunstâncias, sujeito às ordens judicias, sendo viável, em todas elas, ameaçar-lhe com a multa coercitiva. E, apesar do CPC de 1973[6] não prever especificamente, cogita-se da aplicação de multa coercitivas, por exemplo, para guarnecer o pedido de exibição de documento ou coisa contra terceiro, especialmente, no caso em que o objeto da exibição não seja encontrado, ou ainda, para reforçar a ordem de restituição de coisa depositada, sobretudo quando a prisão civil se revelar inadequada.

A propósito, em razão de decisão do STF não se cogita mais da prisão civil do depositário infiel.

Confessadamente é real que em muitos casos concretos onde a multa se mostra imprestável como meio coercitivo é aquele em que esta é imposta contra o Poder Público, até porque o titular do cargo público não vem a sofrer, pessoalmente, a ameaça do meio coercitivo. E, assim não resta estimulado a cumprir lealmente a ordem judicial, especialmente, quando o descumprimento lhe gerar algum benefício, muitas vezes de caráter político.

Tem-se até cogitada que a aplicação da multa coercitiva não deveria ser dirigida ao Poder Público, mas sim, diretamente ao agente que tem a incumbência de atuar conforme a determinação judicial. E, assim, se isso fosse viável e legítimo a eficácia da multa coercitiva seria bem maior.

Repise-se que a função da multa coercitiva é vencer a vontade do ordenado e, introduzi-lo ao cumprimento de ordem judicial. Assim, é técnica evidente que só poderá se dirigir contra quem tem vontade para ser vencida.

E, as pessoas jurídicas em geral, e, não diferente com as pessoas jurídicas de direito público são uma ficção legal. E, só possuem vida autônoma e nem vontade própria. Afinal, a vontade das pessoas jurídicas, essencialmente, é a vontade de seu administrador ou ainda do sujeito que age em seu nome. E, é esta vontade que deverá

ser vencida.

A vontade a ser dobrada e moldada é a do agente e, assim a técnica coercitiva revela seu efeito. Do contrário, não se atingiria a disposição que anima a pessoa jurídica e total inútil seria a multa.

Por conta disso, é errônea a imposição ou condenação de multa à pessoa jurídica pois como sendo simples conjunto de bens e direitos, não terá força própria e, por essa razão, não possui autodeterminação. E, se os seus caminhos são escolhidos por uma pessoa natural, somente se esta é que se poderia cogitar de aplicação de técnicas coercitivas.

Ainda se pode objetar contra a conclusão ora exposta por meio da hermenêutica literal do artigo 461, §4º do CPC/1973. E, segundo tal preceito, o juiz poderá impor multa diária ao réu, nada cogitando em relação a terceiros. E, fundada nessa interpretação, o STJ, ao julgar o Recurso Especial 679 048/RJ, concluiu que a multa coercitiva do artigo 461, §4º do CPC/1973 não pode ser manejada contra gerente de instituição financeira.

E, na inteligência desse julgado, somente a multa do artigo 14, parágrafo único, poderá ser imposta a terceiro, e tal regra alude a todo aquele que participa do processo e, especificamente, ao responsável como sujeito passivo da multa, mas nunca a multa coercitiva do artigo 461, §4º CPC/1973, pois está apenas se destina ao réu.

Sérgio Arenhart não concorda com tal fundamentação e, se o preceito invocado tivesse sido interpretado literalmente, dificilmente se explicaria a possibilidade, especialmente, antes da inclusão do artigo em questão de imposição da multa coercitiva em parâmetros distintos do módulo diário.

O texto também explícito ao mencionar que a multa pode ser cominada diariamente. Porém, não é pacífico, nem em doutrina e nem em jurisprudência, que a multa possa ter outra periodicidade, dando-se a interpretação extensiva ao preceito retromencionado.

E, não se justifica, portanto, que se amplie sua aplicabilidade e, se restrinja seu cabimento de outro.

A finalidade do dispositivo do artigo 461 CPC/1974 fora apenas sinalizar o cabimento de técnicas coercitivas apresentadas em 1994.Jamais se teve a intenção de restringir o cabimento das técnicas coercitivas.  A propósito, seria incongruente ver a restrição mencionada, sobretudo quando não se observa igual limitação no teor do art. 461, § 5º, do CPC.

Com efeito, ao prever as chamadas ―medidas necessárias – dentre as quais figura novamente a multa por tempo  de atraso – não impôs a lei qualquer restrição quanto ao sujeito passivo dessas técnicas.

Assim, se a interpretação literal do dispositivo merecesse prevalecer, a autorização para a imposição de multa coercitiva a terceiros deveria, necessariamente, fluir do art.  461, § 5º, do CPC. Isto porque, ao contemplar em dois dispositivos o cabimento dessa multa (§§ 4º e 5º) e, não existindo no segundo a limitação posta no primeiro (ao réu) só pode estar a lei indicando que a multa também é utilizada (como medida necessária) em outras situações não contempladas pelo primeiro preceito (o § 4º), ou seja, contra terceiros.

Enfim, no particular, que essa é a única interpretação razoável do sistema processual como um todo, e não há sentido de se autorizar prisão civil do depositário infiel, que é um terceiro, e que não restitui a coisa quando exigido. E, não se autorizar a imposição de outras técnicas coercitivas.

Ora, se a legislação nacional autoriza a aplicação de medidas coercitivas mais violentas do que a multa a terceiros, nada há que explique a proibição do emprego de técnicas menos drásticas.

O Tribunal de Justiça do Paraná, em episódio conhecido, aplicou multa coercitiva diretamente ao Governador do Estado, até que cumprisse com determinação judicial que ordenava a nomeação de pessoas aprovadas em cargo público.

Situações como estas demonstram que seria totalmente imprestável aplicar-se a multa contra a pessoa jurídica. Afinal, essa sanção seria arcada por toda a coletividade, sem conseguir isolar a vontade que, efetivamente, inviabilizava o cumprimento da determinação judicial

Do voto do Ministro Teori Zavascki, proferido nesse julgamento, colhe-se a seguinte passagem: “o art. 461, § 4º, do CPC contém autorização para a fixação de multa diária, cujo objetivo é o de constranger o devedor a cumprir a obrigação constante do título executivo, unicamente ao réu, vale dizer, ao executado, a quem cabe adotar as providências internas necessárias à satisfação da determinação judicial”.

É inviável, assim, a imposição das astreintes diretamente a empregado da CEF. Vale salientar que, na atual sistemática do Código de Processo Civil, o depositário é, quase sempre, um terceiro, já que, em princípio, o devedor não pode mais figurar como depositário de bens (art. 666, caput e § 1º, com a redação da Lei n. 11.382/06). TJ-PR, Órgão Especial. MS 70.088-5. Rel. Des. Gil Trotta Telles. DJ 08.03.99.

Em outro caso recente, sem solução final, no Paraná, o Poder Judiciário, por decisão do juiz de Direito da 1ª Vara Cível de Cascavel, impôs multa diária de R$ 2.000,00 ao Governador do Estado, Sr. Roberto Requião, por não cumprimento de uma determinação de reintegração de posse de área ocupada por movimentos organizados, em fazenda pertencente a uma multinacional.

O TJPR, em episódio conhecido, aplicou multa coercitiva diretamente ao Governador do Estado, até que cumprisse com determinação judicial que ordenava a normação de pessoas aprovadas em cargo público.

In litteris: TJ-PR, Órgão Especial. MS 70.088-5. Rel. Des. Gil Trotta Telles. DJ 08.03.99. Em outro caso recente, sem solução final, no Paraná, o Poder Judiciário, por decisão do juiz de Direito da 1ª Vara Cível de Cascavel, impôs multa diária de R$ 2.000,00 ao Governador do Estado, Sr. Roberto Requião, por não  cumprimento de uma determinação de reintegração de posse de área ocupada por movimentos  organizados, em fazenda pertencente a uma multinacional.

Situações como estas,[7] demonstram que seria totalmente imprestável aplicar-se a multa contra a pessoa jurídica. Afinal, essa sanção seria arcada por toda a coletividade, sem conseguir isolar a vontade que, efetivamente, inviabilizava o cumprimento da determinação judicial.

Impõe-se tomar com menor ojeriza a possibilidade de dirigir aos representantes de pessoas jurídicas a cominação da multa pecuniária, até para extrair dessa técnica as suas mais extensas possibilidades.

Quanto o destinatário da multa coercitiva quando fixada, em razão de função atribuída à esta, é possível haver uma questão quanto a determinação do beneficiário da multa coercitiva. Pois, em caso da incidência desta técnica, para quem deve ser destinado o valor da multa coercitiva?

É praticamente pacífica no direito pátrio e, ainda, estranhamente, a questão encontra pouco debate no ordenamento brasileiro – a orientação de que o produto resultante da incidência da multa coercitiva deve ser destinado ao autor da demanda em que a multa é cominada.

Assim, se o juiz, para assegurar uma sentença fundada no art. 461, do CPC/1973, aplica multa coercitiva ao réu, em caso de descumprimento da ordem a multa deve ser realizada por iniciativa do autor da demanda, por via de execução, revertendo para si o produto dessa execução.

Aliás, a doutrina pondera até que, em razão de ser o autor o destinatário da multa coercitiva, pode ele utilizar-se do valor em questão para transigir com o ordenado, ameaçando, mais uma vez, com a cobrança dessa importância, no intuito de obter finalmente o cumprimento da determinação judicial.

Fundamentalmente, argumenta-se, para sustentar a destinação desse valor ao credor, com quatro argumentos.

i)             Primeiramente, afirma-se que deve o autor ser o beneficiário da multa em razão de questões de ordem prática: não fosse assim, a iniciativa da execução caberia ao Estado que, como cediço, em razão do elevado volume de causas, poderia deixar em segundo plano essa espécie de demanda.

Por isso, destinando-se essa importância ao autor – e sendo ele o principal interessado na condução rápida do processo – há maior segurança para o pronto início da execução, em caso de descumprimento da ordem judicial. Do mesmo modo, sob o ponto de vista prático, a reversão para o autor do produto dessa multa seria a única solução viável para quando o sujeito passivo da ordem fosse o Estado.

ii) Em segundo lugar, a doutrina entende que o valor deve ser entregue ao credor aplicando, por analogia, o que preceitua o art. 601, do CPC/1973.

Como se sabe, esse dispositivo, tratando da multa aplicável por ato atentatório à dignidade da jurisdição, prevê expressamente que essa cominação deva ser atribuída ao credor. Reconhece-se que, embora se trate de imposições com naturezas distintas, se no art. 601, do CPC/1973, o valor é atribuído ao credor – mesmo não fazendo jus a tanto – também deve ser esta a destinação da multa coercitiva.

Aliás, o direito português tem como previsão expressa que autoriza a imposição de multa coercitiva, lá denominada de sanção pecuniária compulsória aos titulares de órgãos públicos, vide o artigo 169, I CPTA de 2002. O que ratifica (In: FERREIRA, Fernando Amâncio em sua obra intitulada Curso de Processo de execução. 9ª edição. Coimbra: Almedina, 2006).

iii) Diz-se ainda que, não prevendo o art. 461, do CPC, expressamente, que o produto da multa deve reverter em benefício do Estado, esse montante só pode ser destinado ao autor da demanda. A ausência de previsão explícita indicaria a proibição de destinar esse valor ao Estado. Mais precisamente, interpreta-se o previsto no § 2º, do art. 461, do CPC, no sentido de que, ao dispor que a indenização por perdas e danos  deve dar-se sem prejuízo da aplicação da multa, está sinalizando que (à semelhança da  indenização) o produto da multa deve reverter em benefício da parte autora.

iv) Há, enfim, aqueles que sustentam que o valor da multa deve reverter em prol do autor porque ele é o maior prejudicado pelo descumprimento da ordem judicial.  De modo semelhante, diz-se que a finalidade da técnica coercitiva não é, exatamente, dar guarida à ordem judicial, mas sim ao direito material que constitui o objeto do processo.

Sendo está a finalidade do instituto, nada mais natural do que atribuir o valor da multa ao titular do direito discutido. Examinados os argumentos acima expostos com um pouco de critério, percebe-se

nitidamente que eles não resistem por muito tempo. Aliás, é interessante observar que grande parte da doutrina brasileira se mostra francamente descontente com a atribuição desse dinheiro ao autor da ação.

Não obstante isso, dificilmente se encontra alguém que afirme que a solução está errada. E, no entanto, parece evidente que não há nenhum  motivo legítimo que autorize entregar ao autor esse dinheiro.

Realmente, os aspectos práticos assinalados anteriormente, obviamente não têm sentido. E, aquelas premissas assentam-se em falsas premissas, particularmente, na de que o valor da multa deve se sujeitar a execução (seja por processo autônomo, seja por cumprimento de sentença) e na de que a multa imposta em ação

contra o Estado deva ter como sujeito passivo o próprio Estado.

Não pode, nem deve existir, execução, da multa coercitiva, especialmente, sujeitando-a à iniciativa do autor da demanda.

Noutro viés, evidentemente, a multa aplicada contra o Estado não possui eficácia, conforme já se comentou anteriormente.

E, se a intenção da multa é vencer a vontade do renitente devedor, está só poderá ter por sujeito passivo, aquele que tem vontade. O Estado não tem, autonomamente, vontade, de modo que jamais poderia ser sujeito passivo da multa coercitiva. Constata-se que o argumento carece de validade.

Em relação ao motivo apontado no segundo item, também é fácil notar que a analogia usada não é adequada. Pois, só pode a analogia ser usada para tratar de situações ou casos semelhantes. Não havendo, portanto, paridade nas situações enfrentadas, resta evidente ser descabida a aplicação da analogia.

Portanto, a multa prevista no artigo 601 do CPC/1973, evidentemente, não guarda relação com a multa coercitiva. Aquela sanção tem o caráter punitivo, de modo que seu regime não pode refletir-se para o trato da multa coercitiva.

A propósito, se não fosse assim, reinaria franca arbitrariedade na eleição do regime previsto pelo artigo 601 CPC/1973, em detrimento do artigo 14, parágrafo único do mesmo diploma legal. Assim, de fato, as multas previstas nos dois preceitos têm caráter punitivo: a primeira reverte em prol do auto, mas a segunda, é destinada ao Estado.

O preceito do artigo 601 CPC/1973 não serve para justificar a destinação do produto da multa coercitiva ao particular. No mesmo sentido é a crítica de Guilherme Rizzo Amaral.

A propósito, diante da ausência de regra expressa, a única analogia que seria possível para indicar o endereçamento da multa coercitiva seria com o regime da multa  coercitiva aplicada em processos coletivos. Como se sabe, o produto dos meios coercitivos angariado em ações coletivas reverte em benefício do Fundo de Defesa de  Direitos Difusos (art. 13, da Lei n. 7.347/85 e art. 2º , I, do Decreto n. 1.306/9435).

O fundo em questão é público, de modo que a analogia deveria implicar que também o produto da multa coercitiva imposta em ação individual devesse reverter para o patrimônio público e não para o particular do autor da demanda.

Quanto ao terceiro argumento que é levantado para conferir ao demandante o produto da multa coercitiva, tem-se clara a distorção procedida.

Afirma-se que o art. 461, § 2º, do CPCq1973, ao indicar que a multa é cumulável com a indenização por perdas e danos, indicaria que o destinatário da multa será (assim como  das perdas e danos) o autor da ação. Não é esse, evidentemente, o teor do dispositivo

mencionado.

O preceito em questão diz, simplesmente, que ―a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287. Nada há aí que indique que o comando está tratando da destinação a ser atribuída ao produto da multa.

Apenas se pretende evidenciar que a multa não tem caráter indenizatório, de modo que não substitui ela o  valor devido por eventuais danos causados ao autor da demanda.36 Não fosse assim,  seria forçoso concluir que a multa deverá ser sempre entregue a todo aquele que sofrer  prejuízo em razão do descumprimento de ordem judicial. Ora, o prejuízo não é, por óbvio, limitado ao autor da causa, podendo refletir-se para terceiros e, também, para o próprio Estado (que tem seu prestígio abalado, seu serviço aumentado etc.)

É patente a artificialidade do argumento. Finalmente, quanto à última razão invocada, cabe ele ser desdobrado em duas análises.

De um lado, a tese de que o autor é o principal prejudicado (razão pela qual deve a ele reverter o produto da multa) incide em duplo equívoco. O primeiro é o de que o principal prejudicado com o descumprimento de uma o ordem judicial é, sem dúvida, o  próprio Estado e não a parte autora.

Afinal, trata-se de ofensa à sua autoridade, que instabiliza o poder que deve o Estado exercer. O desrespeito à ordem judicial constitui ofensa tão grave que é, até mesmo, tipificado como crime (a exemplo do que prescreve o art. 330, do Código Penal).

O segundo dos defeitos do raciocínio acima apontado está em que os prejuízos sofridos pelo autor (ou por quem quer que seja) com a renitência do  ordenado não são, nem podem ser, adequadamente reparados pela multa coercitiva em  questão. E, isso por uma simples razão (acima já apontada): a multa não tem por parâmetro o valor da prestação devida e é, como adverte o art. 461, § 2º, cumulável com a indenização eventualmente devida.

Ora, se é viável essa cumulação – e se seria absurdo imaginar que alguém pudesse receber várias indenizações por um mesmo fato – é evidente que não é papel da multa prestar-se como reparação aos prejuízos causados.

Note-se, ademais, que o papel indenizatório estaria comprometido na medida em que os padrões em que a multa deve ser fixada não variam de acordo com o dano causado, mas sim com a capacidade de resistência do ordenado. Daí resulta que o valor da multa

pode ser muito superior ou muito inferior ao valor de eventual prejuízo causado ao autor com a demora no cumprimento da ordem judicial.

De outro lado, merece ser enfrentado com maior seriedade o argumento que  sustenta que o dinheiro da multa deve reverter em benefício do autor, já que a ele  pertence o direito material e na medida em que a função da multa não seria garantir a  ordem do Estado, mas, sim, aquele direito afirmado.

Embora a tese seja sedutora, parece que ela assenta-se em uma redução indevida, eliminando a importância da ordem  judicial em si. Ao defender que o fundamento da multa coercitiva é, somente, o direito material protegido, abstrai-se a função da autoridade estatal e, consequentemente, a proteção que essa autoridade merece (de forma autônoma, frise-se).

A redução, como acima se disse, é indevida, porque, na realidade, é a autoridade estatal que é tutelada por  meio das técnicas coercitivas e não, diretamente, a pretensão material exposta pelo autor  da demanda.

De fato, é essa proteção autônoma devida à autoridade do Estado que justifica, por  exemplo, a proteção penal dada às ordens judiciais – o crime de desobediência, como se  sabe, independe do conteúdo daquele comando, importando apenas a origem pública da  determinação.

É também essa autonomia que permite ao juiz eleger a técnica coercitiva mais adequada para atender ao caso concreto. Não houvesse separação entre a proteção da ordem estatal e do direito material, dificilmente seria concebível a inexistência prévia de uma (e uma só) técnica adequada para atender a cada pretensão. De outro lado, seria ainda inexplicável a possibilidade de o magistrado trocar o meio coercitivo (após imposto) ou alterar livremente o valor da multa aplicada[8].

Realmente, se o valor da multa fosse de titularidade do autor, porque ligado à obrigação que protege, como seria possível autorizar ao magistrado dispor desse valor, reduzindo-o (v.g., art. 645, parágrafo único, do CPC/1973)? Como seria viável que impusesse de ofício essa medida (art. 461, § 4º, do CPC/1973)?

Poderiam as partes excluir previamente a multa coercitiva em negócio jurídico? As respostas a estas indagações conduzem, inevitavelmente, à separação entre a proteção derivada do direito material e a tutela da autoridade do Estado.

Com efeito, deve-se notar que não é natural às pretensões de direito material o poder de impor medidas coercitivas. De fato, a titularidade de um direito material não dá ao seu detentor o poder de impor meios suasórios contra ninguém. Esse poder pertence, exclusivamente, ao Estado. E não é ele vinculado ao direito material, mas sim, apenas, ao poder que o Estado legitimamente exerce.

Identifica-se, portanto, que, embora indiretamente se preste a multa coercitiva à proteção dos direitos materiais (em geral), tem ela por finalidade específica a proteção da autoridade do Estado, evitando que alguém possa menosprezá-la ou desconsiderá-la  (contempt of Court).

De tudo aquilo que acima se expôs, resta claro que não há motivo para que se ofereça ao autor da demanda o produto da multa coercitiva. Aliás, além de não haver razão para tanto, há importante fundamento para não o fazer: o enriquecimento ilícito do autor. Com efeito, entregar ao autor esse dinheiro é aumentar seu patrimônio, sem qualquer motivo legítimo que o autorize a tanto. O autor ganha dinheiro porque o ordenado desobedeceu a uma ordem judicial!

Como cediço, tem-se enriquecimento sem causa quando alguém obtém vantagem patrimonial à custa de outrem, sem que esta vantagem esteja lastreada em previsão legal ou em negócio jurídico anterior. Não havendo razão justa para o aumento patrimonial de alguém em prejuízo de outrem – seja pela invalidade, pela inexistência ou pela ineficácia de algum negócio jurídico, seja diante da falta de qualquer previsão legal que  autorize esse incremento – tem-se o enriquecimento ilícito.

Ora, precisamente é isso o que aqui ocorre. A doutrina – sem nenhuma base jurídica – tem defendido que o autor  da demanda mereça receber um crédito, simplesmente porque alguém desafiou a  autoridade estatal.

Note-se, relembrando o que acima já se disse, que o enriquecimento em questão é sem causa porque todo o dano que o autor sofre com a demora no cumprimento da prestação (protegida pela ordem judicial) será devidamente reparado por meio de perdas e danos, como expressamente prevê o art. 461, § 2º , do CPC/1973. Desse modo, não há outros danos, sofridos pelo autor, a serem indenizados por meio da multa coercitiva.

Por isso, é clara a presença do enriquecimento sem causa. Em razão de tudo isso, conclui-se que a multa coercitiva deve ser entregue ao Estado, independentemente de quem seja o autor da demanda.38 A essa conclusão se harmoniza a analogia com o art. 13, da Lei n. 7.347/85, a questão do enriquecimento sem causa do autor da demanda e, enfim, a lesão à autoridade estatal decorrente do descumprimento do comando judicial.

Fora do sistema brasileiro, raros são os exemplos de ordenamentos jurídicos que conferem ao autor da ação o produto de multas coercitivas. No direito germânico, as Zwangstrafen (Ordnungsgeld) pertencem ao Estado.

Já, no ordenamento norte-americano, não há prévia definição de quem será o titular do crédito em questão. No Chile, existe previsão específica de que todas as multas revertam em benefício do Estado (artigo 252, do Código de Procedimiento Civil).

No processo civil português adotou-se a solução de atribuir a metade do produto da multa coercitiva, ou seja, a sanção pecuniária compulsória ao autor e metade ao Estado (artigo 829-AA, n.3. do Código Civil português, com a redação dada pelo Decreto-Lei 262/83).

No sistema francês, das astreintes que se supõe tenha sido servido de inspiração para o direito brasileiro, não é exato mencionar que a multa coercitiva reverte sempre em benefício do autor.

O art. 36, da Lei 91.650, de 9 de julho de 1997, autoriza que essa quantia seja destinada às instituições de caridade. In: PERROT, Roger. ―La coercizione per dissuasione nel diritto francese in Rivista di diritto processuale. Padova: CEDAM, julho-setembro/1996, p. 666.

Não se concebe, portanto, razão jurídica razoável para entregar ao autor o produto desta multa coercitiva. É certo que, recentemente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sinalizou por acolher a tese de que o produto desta multa deve ser oferecido ao autor da ação, contrariando a tese aqui defendida.45 Todavia, nas razões desse julgado não se vê qualquer motivo capaz de abalar as conclusões aqui desenvolvidas. De fato, o acórdão inicia sua conclusão assinalando que a multa coercitiva não se confunde com a multa punitiva, prevista no art. 14, parágrafo único, do CPC/1973.

Posteriormente, alicerça aquele julgado a sua conclusão pautando-se no critério já mencionado da regra contida no artigo 461, segundo parágrafo do CPC/1973, a dizer que a multa é devida independentemente das perdas e danos, referindo-se, ademais à lição doutrinária de Luiz Fux, que também foi o relator do acórdão, e, ainda na lição a de Vicente Greco Filho.

O argumento usado pelo STJ é precisamente aquele já enfrentado, o de que a regra contida no artigo 461, §2º do CPC/1973, indicaria que o mesmo destinatário das perdas e danos deve ser também da multa coercitiva.

O fundamento já fora examinado, dispensando maiores digressões. Deve-se lembrar, todavia, que a aceitação dessa conclusão parte de premissa equivocada e o olvida completamente a situação em que as perdas e danos são devidos a terceiros que não o autor da ação.

De outro viés, há jurisprudência brasileira que tem orientação distinta e acolheu a tese de que a multa deverá ser revertida em benefício do Estado. Ao julgar apelação n. 2004.70.00.014004-8/PR (3ª Turma. Rel. Juiz Fernando Quadros da Silva.  DJU 25.10.06), o Tribunal Regional Federal da 4a Região concluiu que ―a multa prevista no art. 461 do CPC é destinada à União por constituir mecanismo coercitivo de  garantia à prestação jurisdicional, desprovido de natureza indenizatória, o que se dá  mediante a conversão em perdas e danos‖. Nos fundamentos da referida decisão, conclui aquela Corte que ―por óbvio, o autor é o grande prejudicado com o descumprimento do comando judicial que visa a tutelar o direito postulado, razão por que tem o direito a perdas e danos. Ocorre que o pagamento da multa ao autor figura desvirtuamento do instituto, que visa à efetividade do provimento jurisdicional e não à compensação de prejuízo.

Tanto o é que o arbitramento da multa se dá pela capacidade de compelir a outra parte ao cumprimento da decisão e não pelo que representaria o descumprimento a título de perdas e danos.

Por esses fundamentos, entendo que a multa  deve ser revertida à União, do que resulta a ilegitimidade dos exequentes. A decisão mencionada, aliás, confirma sentença de primeiro grau, proferida pelo Dr. Vicente de Paula Ataíde Jr., eminente processualista radicado no Paraná, que ao argumentar pelo direcionamento do produto da multa ao Poder Público, vale-se, por analogia, do que  preceitua o art. 14, parágrafo único, do CPC e reafirma a função da multa coercitiva de  dar guarida à autoridade judicial.

 Ademais, em sua sentença, lança o magistrado a sua visão de que, em prevalecendo entendimento contrário, ver-se-á surgir rapidamente  ―escritórios especializados na cobrança de multas coercitivas e a instalação de uma  verdadeira “indústria de astreintes‘, estimulando a corrupção e as chicanas para a  caracterização do descumprimento de decisões judiciais.

Entre os argumentos lançados nestas e naquelas decisões judiciais, parece mais ponderada a segunda visão, razão pela qual nada justifica entregar ao autor da ação o produto da multa coercitiva.

No tocante ao problema da forma da efetivação da multa coercitiva, paira grande  paz na doutrina e na jurisprudência nacional influenciada pela premissa de que o montante da multa deverá ser revertida em prol do autor da demanda, entende-se que é necessário inaugurar-se execução própria para realizar esse valor contra o devedor.

Assim, na compreensão da doutrina, a decisão que impõe a ordem sob pena de multa coercitiva traz eficácia condenatória (referente à multa) constituindo o título executivo hábil a futura execução.

O máximo que se põe em discussão é a respeito da exigibilidade ou não do crédito  referente à multa, no caso de posterior alteração da decisão judicial que impunha o  dever de prestar o fato.

Ou seja, a discussão limita-se em saber se, uma vez imposta alguma prestação em decisão passível de revisão, havendo descumprimento da ordem  (sob pena de multa) esta sanção é devida no caso de cassação ou modificação da decisão  em recurso ou em nova decisão. Isso, obviamente, deságua na discussão sobre o cabimento ou não de execução provisória da multa cominada.

Parece que a questão toda está ofuscada pela tentação de considerar a multa como uma condenação acessória (coisa que ela não é). Adiante será examinada com mais detalhes a questão, para se notar que não há cabimento em pretender sujeitar essa multa a execução – nem por parte do autor, nem por parte do Estado, nem pela via do processo  de execução, nem pela modalidade de cumprimento de sentença.

Parece oportuno considerar de modo breve o problema acima posto, ou seja, a exigibilidade da multa no caso de futura decisão contrária à ordem que impunha o fazer.

A opinião majoritária conclui que não é possível subsistir a multa se, ao final, o Judiciário concluiu que não havia o direito que era protegido por aquele meio  coercitivo. Entende-se que não é possível a abstração do direito material no caso, de modo que não pode alguém ser punido por ter agido nos limites de seu direito. O  argumento defendido é o de que somente a ordem judicial que se harmoniza com a  situação de direito material protegida é que deve ser cumprida e não qualquer ordem  judicial.

O fundamento, porém, padece de sério defeito. A ser acolhida essa visão, faz-se da parte obrigada o último juiz da validade ou não de qualquer determinação judicial.

Por outras palavras, a solução dada pela doutrina majoritária autoriza a parte a não cumprir  as determinações judiciais que entenda ilegítimas, precisamente esperando que, ao final,  sua própria convicção prevaleça. Sim, porque, se a validade da ordem não definitiva (sentença sujeita a recurso ou liminar) for depois infirmada, tinha toda razão a parte desobediente em desconsiderar a autoridade estatal.

Ora, essa tese praticamente elimina todo o valor de decisões provisórias. É como  se a doutrina sinalizasse à população brasileira que só constitui verdadeiro exercício de  poder (legítimo) a decisão final da causa. Todo o resto é provisório e, por isso,  independentemente de ter-se originado do Poder Judiciário, pode ser contestado e  descumprido, sem nenhum pudor.

Então, nesse caso, o desobediente simplesmente assume o risco de, se sua opinião sobre o litígio não prevalecer ao final do processo, ter de pagar um plus por isso. Não resta dúvida de que, em um Estado de Direito o próprio Poder Público se submete ao Direito, de forma que sua autoridade deriva do ordenamento jurídico, podendo ser exercida apenas nestes limites.

Todavia, a regra jurídica que outorga ao magistrado o poder de impor certa conduta a alguém (especialmente de maneira provisória, por decisão liminar) não é a norma de direito material, mas a processual.

Para que o juiz possa ordenar (em sede liminar) a alguém uma conduta, basta a presença da aparência do direito (fumus boni iuris), que certamente não se confunde com a existência efetiva do direito subjetivo reconhecido.

Ao que parece, a solução alvitrada pela maioria da doutrina acaba por, em última análise, fazer retornar aos tempos em que se via, de modo absoluto, o princípio nulla executio sine título, já que somente após o  reconhecimento efetivo e definitivo da existência do direito assumiria o Estado  autoridade suficiente para impor sua decisão à parte, podendo executar a multa  anteriormente imposta.

A autoridade do Estado, certamente, deriva da presunção de que a decisão jurisdicional é correta e de acordo com o ordenamento jurídico material e com os critérios de justiça. Entretanto, é perfeitamente possível ter-se uma decisão injusta (ou mesmo equivocada, sob o prisma do direito material) e ainda assim dotada de autoridade para impor-se sobre as partes. Autorizar a parte a descumprir a ordem judicial quando ela vislumbre a possibilidade de sagrar-se vencedora ao final é, ao que parece, retornar à discussão sobre a possibilidade ou não de decisões judiciais injustas mas legítimas.

Lembremos que a decisão judicial é imperativa para as partes porque derivativa da autoridade pública que detém o monopólio da força legítima e, só.  Se a decisão reflete o melhor entendimento, ou se poderá ser alterada ao final do feito, são questões que extrapolam o âmbito de discussão do fundamento da autoridade do Estado, não competindo nem às partes, nem ao jurista.

Por isso, no sistema brasileiro, parece adequado entender que, sendo a ordem formalmente válida — ou seja, obedecidos os requisitos legais para sua expedição — merece ela cumprimento, ainda que, posteriormente, haja modificação do entendimento, e a conclusão final da causa dê pela improcedência da ação49. Desde que não seja a decisão que concede a multa nula (por decisão do órgão superior, em recurso, ou por constatação do próprio juiz da causa) deve ela ser cumprida, ainda que haja possibilidade de que a ação venha a ser julgada improcedente ao final.

A par disso, essa visão esconde um outro preconceito: o de que as decisões provisórias (liminares) merecem menos respeito – e possuem menor autoridade – que as  definitivas, porque podem estar erradas. O preconceito é antigo e sequer precisa ser demonstrado.

A lógica e o raciocínio estão lastreados em simples dedução, ou seja, porque as decisões provisórias são feitas com base na aparência do direito, ou seja, fumus boni iuris, podem estas refletir erros de julgamento e, por isso, aquilo que estabelecerem não pode nem ser definitivo, nem ser tomado como verdadeiro exercício de jurisdição.

Olvida-se que as tutelas provisórias correspondem a uma necessidade imposta pela natural e contumaz demora da solução final. E, esquece-se ainda, que estas decisões, não são, por isso, melhores nem piores que as decisões definitivas.

Trata-se de necessidade imposta pela existência do processo, e refletem somente as circunstâncias existentes no momento de sua prolação. Eis que a cognição que as permeia, não é da mesma profundidade, daquela existente na decisão definitiva, sequer ela em si é estável.

Todavia, isso não desqualifica esse tipo de decisão. Sabe-se que a decisão tem sempre cognição limitada, já que seria impossível exigir do magistrado que sempre encontrasse a verdade para que pudesse decidir.

A diferença entre a decisão final e a provisória, portanto, é apenas de graus de aparência, de forma que é perfeitamente viável supor que possa existir maior similitude com a verdade na primeira decisão que na segunda.

Se todas as decisões são dadas com base em verdade conjectural ou em uma verdade possível, não há razão para emprestar-se sempre a maior dignidade e respeito à última.

E, em face disso tudo, é preciso oferecer a mesma tutela à decisão provisória, que, ademais, também foi ou pode ser discutida suficientemente no processo, seja no primeiro grau, seja em recursos interpostos contra esta, que é a definitiva.

Esgotados os recursos cabíveis contra a liminar, deve ela receber a mesma autoridade que a definitiva, senão mais. Realmente, seria possível conceber mesmo que ela devesse receber maior grau de efetividade que a definitiva, porque sua emissão está calcada no pressuposto do periculum in mora. Ou seja, se aquele que pede e obtém uma medida de urgência está em situação de perigo, é preciso que o processo lhe conceda mecanismos extremamente ágeis, eficazes e prontos para a atuação da ordem emanada, sob pena de perecimento do direito.

A visão majoritária, ao negar todas essas circunstâncias, aplaude não apenas o desprestígio da autoridade estatal, mas, acima de tudo, a prepotência da vontade do desobediente, que pode aniquilar qualquer possibilidade de proteção adequada do interesse exposto pelo autor da demanda.

Em conta de tudo isso, não se pode concordar com essa conclusão, de modo que a melhor orientação só pode ser aquela que dá autonomia à ordem judicial, impondo-a  mesmo no caso de final insucesso da demanda.

Afinal, quando expedida a ordem provisória, a autoridade estatal se impôs e o desrespeito a esse comando configura sempre menosprezo ao poder do Estado, que deve  ser devidamente combatido.

É curial recordar que as medidas cautelares quando apoiadas em juízo de aparência, foram durante longo tempo consideradas como providências administrativas e não jurisdicionais, vide in: Calamandrei, Introduccion al estudio sistematico de las providencias cautelares. Tradução de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Editorial Bibliográfico Argentina, 1945, p. 142 e 210-211.

Já ensinava Carnelutti, em magistral passagem, que ―exatamente porque a coisa é uma parte ela é e não é, pode ser comparada a uma medalha sobre cujo anverso está inscrito o seu ser e no verso o seu não ser.

Mas para conhecer a verdade de uma coisa, ou digamos apenas da parte, é necessário conhecer tanto o verso quanto o anverso; uma rosa é uma rosa, ensinava Francesco, porque não é alguma outra flor; isto  quer dizer que para conhecer realmente a rosa, isto é para atingir a verdade, impõe-se conhecer não  apenas aquilo que ela é mas também o que ela não é.

Por isso a verdade de uma coisa não aparece até que nós possamos conhecer todas as outras coisas e assim não podemos conseguir que um conhecimento parcial. (...) Em suma, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós (In: CARNELUTTI, Francesco. ―Veritá, dubbio, certezz. Rivista di diritto processuale. 2ª série. Padova: CEDAM, 1965, p.  4/5).

O direito norte-americano, analisando a figura das injuctions — cuja função é estreitamente ligada à preservação da autoridade judiciária — entende que o desrespeito ao tribunal se dá mesmo quando a ordem seja posteriormente cassada ou alterada, por  ocasião do exame final da causa. Naquele regime, com efeito, ainda que a ordem seja  inconstitucional, se não foi infirmada por outra decisão, deve ser obedecida.

 Entende se, afinal, que não se pode deixar ao alvitre da parte decidir sobre a validade das ordens emanadas, sob pena de transformar-se o poder jurisdicional em simples zombaria (mockery), tornando as Cortes impotentes.

Não há razão para ser outra a resposta do direito brasileiro. Se a função da multa é garantir a obediência à ordem judicial, não se pode abrir espaço para o requerido questioná-la (senão pelas vias naturais judiciais), sob pena de negar-se-lhe todo caráter coercitivo.

Pouco importa se a ordem se justificava ou não; após a sua preclusão, só resta o seu cumprimento, sem qualquer ulterior questionamento. Merece ela ser respeitada (quando editada) pela simples razão de decorrer da autoridade pública adequada. Está em jogo, afinal, a própria autoridade do Estado. Não se pode, portanto, dizer que ocorreu apenas a inobservância de uma decisão do Estado-juiz.

Ocorreu, em verdade, a transgressão a uma ordem, que se presume legal (mesmo porque submetida à potencial revisão interna no Judiciário). Se o conteúdo desta ordem será, posteriormente, infirmado pelo exame final da causa, isto é dado futuro, que não pode refletir para o fato de que a ordem, enquanto vigorou, deveria ser cumprida inevitavelmente.

Considerando esses argumentos, somados ao fato – explorado no item anterior – de que a multa deve reverter para o estado e não para a parte, resulta invencível a  conclusão de que a exigibilidade da cominação não está condicionada à confirmação  da decisão provisória pela sentença final, muito menos está condicionada ao trânsito  em julgado desta decisão favorável.

Em obra anterior, defendeu Sergio Arenhart a ideia de que essa afirmação somente se aplica à tutela individual, já que, em relação à tutela coletiva há preceito explícito em sentido contrário (art. 12, § 2º, da Lei n. 7.347/85). Parece, porém, ser caso de retificar aquele entendimento anterior. Tanto na tutela individual,

como na tutela coletiva, a exigibilidade da multa não pode estar condicionada ao trânsito em julgado da sentença favorável. Na verdade, é preciso notar que a regra  apontada, referente à tutela coletiva, deve ser situada em seu momento histórico.

Convivia ela com a primitiva redação do art. 287, do CPC/1973, que, ao tratar da ação cominatória (principal via então existente para a imposição de prestações de fato), somente permitia a imposição de multa para o descumprimento da sentença.

Eis que era o entendimento jurisprudencial prevalente e uniforme na época em compreender que aquela multa somente poderia  ser cobrada depois de transitada em julgada a sentença de procedência condenatória. quadro, era certamente um avanço significativo permitir que a multa pudesse incidir – ao menos para as ações coletivas – a partir da data do  descumprimento da liminar.

Para os padrões atuais, porém, o avanço já perdeu sua finalidade. Hoje é possível ir muito além. Aliás, vale notar que semelhante restrição não foi posta no art. 84, do Código de Defesa do Consumidor, que, como se sabe, é norma que trata de maneira geral de tutela coletiva.

Ante a ausência de repetição da restrição nesse segundo preceito, cumpre concluir que aquela limitação se encontra implicitamente revogada pela nova disciplina, que trata de modo amplo do assunto.

Ademais, como recorda Sérgio Shimura, se é possível essa efetivação imediata da multa para as ações individuais, nada justificaria o tratamento diverso dado para as ações coletivas.

Por isso, reconsiderando a opinião antes lançada, conclui-se que tanto nas ações individuais, como nas ações coletivas a multa cominada liminarmente é devida ainda quando a decisão provisória não seja confirmada pela sentença final.

Postas estas observações, que se situam no campo da exigibilidade da multa coercitiva, deve-se então avaliar o mecanismo processual a ser utilizado para obter essa exigência.

Como antes salientado, é pacífica na doutrina a orientação de que essa multa deve ser exigida por meio de execução – por processo autônomo (seguindo o rito das execuções de títulos extrajudiciais)62 ou incidentalmente ao processo em que fora cominada, na forma de ―cumprimento de sentença.

Não parece que assim seja. Na realidade, é bastante estranho que a doutrina apresente tão pronta resposta – ainda que presente, atualmente, a divergência acima apontada – para a efetivação da multa coercitiva por meio de procedimento executivo, quando para todas as outras técnicas coercitivas a solução é diametralmente oposta.

De fato, ninguém cogita de submeter outros meios coercitivos a procedimentos executivos (de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa). Seria inimaginável

pretender que a prisão civil se efetivasse por procedimento de execução de obrigação de fazer. Seria também impensável sujeitar a restrição de direitos a procedimento de execução, com seus consectários.

Para todas estas outras técnicas coercitivas, indicam a doutrina e jurisprudência a atuação ex officio do julgador, inerentemente de provocação de quem quer que seja, e também sem cogitar de aplicar-lhes as regras referentes ao processo de execução. Questiona-se se somente a multa coercitiva sofre tratamento diferente?

Provavelmente, porque a multa se reveste do caráter pecuniário e é, então, natural pensar em execução por quantia certa. Ademais, porque na visão corrente a multa deve ser endereçada à parte autora, seria mesmo inexorável a conclusão de submeter a sua efetivação ao procedimento de realização de créditos (fundado em título judicial ou extrajudicial).

Todavia, partindo da premissa exposta neste texto – de que a multa não deve  reverter para o autor – e ainda do fato de que este mecanismo deve ter tratamento  semelhante ao oferecido para as demais técnicas coercitivas, vê-se que não há o que  autorize essa interpretação.

Se todos os outros instrumentos de coerção são atuáveis de ofício pelo juiz, também assim deve ocorrer com a multa coercitiva. Não precisa ela, para ser exigida, da iniciativa de ninguém (nem da parte autora, nem do próprio Estado, por meio de suas procuradorias públicas).

Deve o magistrado, assim que verificado o descumprimento de sua ordem, ou seja, assim que escoado o prazo dado para o cumprimento da sua determinação  determinar a realização da multa, na exata forma da ameaça contida na decisão.

Outrossim, essa iniciativa judicial independerá, como é óbvio, de qualquer processo autônomo. O juiz adotará as providências necessárias para que a multa seja efetivada de pronto. Para tanto, dispõe o magistrado hoje de amplos poderes.

Poderá, por exemplo, valer-se da penhora on line do valor correspondente à multa que incidiu;  poderá também arrecadar do patrimônio do recalcitrante bens em valor compatível com  a multa imposta; poderá ainda bloquear pagamentos que seriam recebidos pelo  desobediente; enfim, poderá adotar qualquer providência expedita, que se mostre  adequada para a imediata realização da multa. Atuará o magistrado, in casu, como verdadeiro representante do Estado, mostrando que o descumprimento a uma ordem legítima não pode ser tolerado.

Recorde-se, afinal, que é a certeza da punição que oferece o verdadeiro caráter coercitivo à multa e não o seu tamanho.66 Importa mais, para a função coercitiva da multa, que não haja dúvida de que descumprida a ordem a sanção será imposta, do que o valor da pena em si.

Por isso, a atuação de ofício do juiz constitui medida salutar para dar à técnica a sua maior força, cumpre sublinhar que o ora defendido para que o processo assuma caráter autoritário, como alguém poderia supor. E, essa interpretação a ser dada à multa coercitiva tem, inquestionavelmente, o papel de fazer com que a multa não incida.

A intenção será sempre colocar o devedor na situação de jamais optar pela multa e sempre cumprir a ordem judicial. Para tanto, a multa necessariamente deve revestir-se de certa dose de violência, sob pena de transformar o Judiciário em um poder de mentira, que só atua para o reconhecimento (mas não para a efetivação) de direitos.

A multa, portanto, como medida coativa de natureza patrimonial passou a assumir relevância na sistemática processual brasileira, sobretudo dentro do âmbito das obrigações de fazer infungíveis, a ponto de o Código de Processo Civil vigente lhe dedicar regras específicas, procurando eliminar as principais controvérsias suscitadas no CPC de 1973.

Ab initio, a determinação expressa do artigo 537 CPC vigente, de que a multa pode ser imposta inerentemente

de pedido da parte. E, assim, o julgador poderá agravá-la, quando considerada insuficiente para o fim a que se destina, reduzi-la, ou, ainda, suprimi-la, na hipótese de o devedor ter adimplido apenas parte da obrigação, ou ainda, ter apresentado justificação plausível para o seu cumprimento ex vi o artigo 537, §1º, incisos I e II CPC/2015).

Igualmente o julgador tem o poder de revogar a incidência da multa quando se tornar impossível de atender a ordem judicial. E, a orientação dominante na jurisprudência do STJ, consoante se infere do julgamento da Quarta Turma, no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 431,294-RS, da relatoria do Ministro Raul Araújo, ao patentear in litteris: “É cabível a aplicação de astreintes como instrumento de coerção ao cumprimento de decisões judiciais que imponham obrigação de fazer ou não fazer. Todavia, deve ser afastada a incidência da referida multa na hipótese de impossibilidade de se alcançar a finalidade da ordem judicial”.

Acrescente-se que, recentemente, a Corte Especial do STJ, apreciando ação de homologação de sentença estrangeira (SEC 8.542), considerou a independência jurídica, para todos os fins legais, de empresa sediada nos Estados Unidos de sua subsidiária, localizada no Brasil, “que é uma pessoa jurídica distinta”, e, portanto, na condição de terceira, não pode ser responsabilizada por obrigação imposta à empresa norte-americana.

Para os desafortunados de alma, o interesse se escreve com duplos cifrões, e quão mais expressivo for, maior será a coercibilidade exercida por multa inibitória à prática de determinados atos. O negócio jurídico processual e a efetividade dos provimentos judiciais são temáticas marcantes e controversas dentro da sistemática processual pátria.

O aspecto excessivamente formal da garantia da segurança jurídica e do melhor interesse das partes envolvidas na relação processual fora paulatinamente perdendo força à medida do crescimento do reconhecimento da autonomia e da possibilidade de proteção para além das nuances adjetivas do processo.

E, o novo modelo negocial trazido pelo Código Fux apenas consumou a inclinação acima citada. A respeito do autorregramento da vontade das partes e à arrematação de atipicidade negocial sobre o processo, a legislação vigente admite uma série de arranjos promovidos pelos jurisdicionados interessados que lhe sejam mais convenientes, seja antes ou durante o processo.

Contemporaneamente, ainda há muitas dificuldades para obter a necessária efetividade às decisões judiciais, a utilização da multa cominatória é um dos principais instrumentos de que dispõe o juiz para compelir o obrigado.

Havia grande expectativa da comunidade jurídica a respeito do tratamento dispensado ao instituto pelo novo CPC. Tanto que o Código Fux reconheceu a relevância da multa coercitiva e lhe destinou tratamento mais minudente.

Infelizmente, não lhe trouxe francos progressos. E, as novidades já estavam incorporadas e consolidadas pela jurisprudência. Basta verificar o exemplo estampado no inciso IV do artigo 139 do vigente CPC, que viabiliza a aplicação da multa coercitiva em quaisquer espécies de processos e graus de jurisdição.

Infelizmente, o legislador pátrio abandonou a oportunidade de solucionar o mais grave busilis envolvendo a multa coercitiva, que é saber sobre sua destinação integral de seu valor ao beneficiário da decisão. E, outro ponto é a questão do valor da multa, certamente não seria adequada tabelar valores, mas teria sido relevante balizar a fixação da quantia exequenda.

E, tal omissão alimenta aceso o debate entre os que entendem que o valor da multa não pode superar o da obrigação principal e, os que entendem o contrário.

Segundo o atual entendimento jurisprudência prevalente e doutrinário sobre o valor da multa acima do valor da obrigação principal, importaria enriquecimento sem causa, deverão se avolumar as decisões judiciais reduzindo as multas aos patamares pouco ou quase nada intimidatórios[9].

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SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. 3ª edição. São Paulo: RT, 2000.

Notas:

[1] O vigente CPC brasileiro não disciplinou expressamente da possibilidade de a Fazenda Pública ser sujeito passivo da multa. Apesar de que existe um posicionamento contrário, sustentado dentro outros por Greco Filho, é plenamente viável a cominação de multa ao ente público. os defensores da tese da impossibilidade argumentam que o poder de coerção da multa sobre a Fazenda Pública é reduzido, já que não é o administrador recalcitrante quem irá pagá-la, mas sim os cofres públicos. Em face desse respeitável argumento, deve-se ponderar que o Estado poderá/deverá acionar regressivamente o agente público que, descumprimento a ordem judicial, deu causa ao prejuízo suportado pelo Erário.

[2] Proclama o atual texto constitucional brasileiro vigente que no âmbito judicial e administrativo a necessidade de haver a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. E, provavelmente o grande desafio do Estado de Direito é dotar as decisões judiciais de sua necessária efetividade.  E, nesse contexto vem existir a multa coercitiva. A multa coercitiva é a prévia imposição do dever de pagar, periodicamente, determinada quantia em razão de descumprimento de um comando emanado do juízo.

[3] Trata-se de meio indireto de execução, ou ainda, execução por coerção indireta. Vide julgado do TJRJ, in litteris: "Além de ter falado em função inibidora da multa, ou seja, no uso da multa como prevenção da repetição do ilícito, deixou claro que o ressarcimento e, portanto, o dano, não guardam qualquer relação com o valor da multa e, por consequência, com a função preventiva. O valor da multa, ao contrário do valor do ressarcimento, não tem nada a ver com o dano, mas apenas com a sua função inibidora e preventiva, que obviamente prescinde do dano e da culpa".

[4] Relativamente ao cumprimento de sentença, de acordo com o artigo 536, caput e §1º do CPC/2015 no cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento para efetividade da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente dentre as quais a imposição de multa. No que respeita à execução, o novo Código trata de maneira diferente a obrigação de entrega de coisa certa da obrigação de fazer ou de não fazer. Segundo o § 1.º do art. 806, na execução da obrigação de entrega de coisa certa, ao despachar a inicial, "o juiz poderá fixar multa por dia de atraso" no cumprimento da obrigação, ficando o respectivo valor sujeito a alteração, caso se revele insuficiente ou excessivo. Já na execução das obrigações de fazer ou de não fazer, de acordo com o art. 814, "ao despachar a inicial, o juiz fixará multa por período de atraso" no cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida.

[5] Quanto ao valor da multa apesar de existirem julgados e doutrina no sentido de que o seu quantum deve guardar proporção com o valor da obrigação principal, conforme ensina Ministro Luiz Fux, in litteris: "Dispõe a lei que para vencer a recalcitrância do devedor o juiz pode fixar multa diária, cuja incidência dia a dia seja capaz de atemorizá-lo quanto ao dano patrimonial que sofrerá, de tal maneira que o faça abandonar aquele estado de inércia. A técnica das astreintes exige que a mesma não tenha compromisso de proporcionalidade com a obrigação principal para que o devedor capitule diante de seu montante avassalador". Esse entendimento é, sem dúvida, mais adequado à natureza jurídica e à finalidade da multa coercitiva. Se o escopo da multa é o de incutir no devedor o receio de sofrer prejuízo patrimonial, o valor deve ser suficiente para que esse prejuízo seja relevante.

[6] Na vigência do Código Buzaid muito se discutiu sobre quais espécies de obrigação comportariam a cominação de multa. E, vige entendimento de que as obrigações fungíveis, isto é, aquelas que podem ser realizadas por terceiro, não comportariam a aplicação de multa, já que o bem da vida buscado poderia ser alcançado sem a necessidade de coerção do devedor. Contudo, não é a ótica que melhor se adequa à natureza do instituto e ao princípio da efetividade.

[7] Em que pese o fundamento de Araken de Assis, a formação da coisa julgada impede completamente a discussão do valor do montante das astreintes no processo de execução, particularmente, na impugnação ao cumprimento de sentença. E, constata-se quando se analisava as hipóteses elencadas no artigo 475-L do CPC/1973 e o que significa excesso de execução. Portanto, trata-se de excesso quando o credor cobra o valor principal e os acessórios em discordância com a lei e a jurisprudência, como, por exemplo, ocorre na cumulação indevida de correção monetária e a correção de permanência, vedada expressamente pela Súmula 30 do STJ.

[8] Três possibilidades de mudança do valor da multa podem ser cogitadas: (a) a  primeira seria a mudança do valor da multa ainda no processo de conhecimento,  perfeitamente possível, tanto com efeito ex tunc como ex nunc, de acordo com o  arbítrio do juiz; (b) a segunda seria depois de transitada em julgado a sentença, e  ainda não cumprida a obrigação, aqui somente com eficácia ex nunc; e (c) por  último, quando transitada em julgado a sentença e cumprida a obrigação, se pensa  em alterar o valor da multa do período em que ela já incidiu, este totalmente  impossibilitada.

[9] A frequente redução do valor das multas pelas instâncias superiores, em especial pelo STJ, sob o argumento de que configuram enriquecimento sem causa, pode conduzir ao enfraquecimento do instituto. Incentivase assim o descumprimento da obrigação e a interposição de recursos. Portanto, a minoração do valor deve ser medida excepcional.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Multa Coercitiva CPC/1973 CPC/2015 CFRB/1988 Bis in idem

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