A pós-verdade e fake news

Tanto a pós-verdade como fake news são fenômenos contemporâneos que podem ser explicados pela Filosofia e pelo Direito e, seus efeitos no plano real são alvo de constantes estudos e análises que também abrangem a sociologia.

Fonte: Gisele Leite

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Os conceitos sobre fake news e da pós-verdade correspondem ao problema das notícias que progressivamente inundam o cotidiano contemporâneo e, se passam por verdadeiras e exercem impactantes efeitos de poder, independentemente de sabermos se estas são ou não verdadeiras. Partindo da crítica elaborada por Nietzsche à teoria da verdade tida como correspondência, destacou seguindo Foucault indestrinçável existente entre a verdade e o poder.

E, apontava para uma concepção perceptivista de verdade, que parece ser mais apta a descrever o que ocorre com as fake news, mas também capaz de fornecer critério de decisão entre perspectivas no plano mais amplo do conhecimento.

A suposta isenção e objetividade jornalísticas é, a sinceridade sobre os próprios interesses e impulsos que aparece como critério de decisão e como ponto de partida para uma ética perspectivista.

Em 2016 deu-se a inclusão do verbete "pós-verdade" no Dicionário Oxford da língua inglesa. O que nos faz retornar ao problema filosófico da verdade. Afinal, o que é verdade? Há segurança em apontar o que é verdadeiro?

E, perpassando as ideias de Nietzsche e também de Foucault, o que resulta em uma crítica à teoria da verdade como correspondência. Eis que a noção de Nietzsche do que é tido como verdadeiro intervém de modo decisivo.

Enfim, essa noção tem praticamente o mesmo significado que as fake news, isto é, notícias que não se sabe se são ou não verdadeiras, mas que são tidas como se fossem.  Nota-se que, inerentemente de como podemos verificar tais verdades, estas produzem efeitos de poder como se fossem verdadeiras, sendo nisso semelhantes as noções como Deus, Estado, direito ou loucura.

Enfim, as nobres objeções feitas por Nietzsche à concepção tradicional de verdade implicam a impossibilidade de uma refutação da pós-verdade, em termos correspondenciais, uma vez que não temos acesso ao fato relatado por uma notícia, senão através de uma notícia.

Porém, isso não significa que se deva aceitar como verdadeiro[1] todo tipo de notícia que apareça. Toda verdade produzida pela mídia, toda notícia é resultado de certo recorte ou enquadramento da realidade, isto é, é uma certa perspectiva, que se atrela inevitavelmente a algum interesse natural, histórico, vital.

Por essa razão, antes de estar vinculada aos valores como  objetividade e isenção  jornalística,  a  ética  da  mídia  deveria  estar  ligada,  em  primeiro  lugar, à  sinceridade a  respeito de como esses interesses vitais são veiculados pelas notícias que são difundidas.

É essa sinceridade que é um dos  valores  básicos  daquilo  que  se  pode  chamar  de  uma “ética perspectivista”, a qual pode ser aplicada à prática midiática,  mas também além dela.

A relação de incompatibilidade entre as noções de fake news e de verdade como correspondência, bem como a inviabilidade do uso desta para criticar aqueles. Depois, trata-se dos efeitos de poder que alguns discursos podem adquirir, independentemente de que se saiba se eles são verdadeiros ou não.

Após isso, aborda-se o sentido e as implicações da reação da mídia em relação à propagação da pós-verdade. Finalmente, identifica-se algumas pistas ou vestígios no que se refere à construção de uma ética perspectivista, em a sinceridade desponta como valor central.

Atualmente tramita no Congresso Nacional uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, designada como CPMI das Fake News e tem como fim: “Investigar,  no  prazo  de  180  dias,  os  ataques  cibernéticos  que  atentam  contra  a democracia  e  o  debate  público;  a  utilização  de  perfis  falsos  para  influenciar  os resultados  das  eleições  2018;  a  prática  de  cyberbullying  sobre os  usuários  mais vulneráveis  da  rede  de  computadores,  bem  como  sobre  agentes  públicos;  e  o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio”. (SENADO, 2020)

Apesar de que as fakes news não tenham ainda se tornado um tipo penal específico, essa CPMI sinaliza o reconhecimento de que há problemas políticos e jurídicos implicados.

O cerne da questão são os ataques cibernéticos e as práticas de cyberbullying direcionados a agentes públicos, que muitas vezes são utilizados como táticas de marketing eleitoral. E, tais técnicas e táticas se mostram, cada vez mais poderosas e decisivas.

Todos os sinais são capazes de nos alertar de que as fakes news são perigosas, principalmente, no que concerne à política. Depois que vem à tona a verdade dos fatos, o comprometimento real é inestimável. Foi o que aconteceu na disputa entre Hilary Clinton e Donald Trump, nas derradeiras eleições norte-americanas. E, a notícia sobre Hilary era falsa, mas foi tida como verdadeiro e, isso fora o suficiente para que dela decorressem efeitos reais e concretos.

E, assim, parte do eleitorado de Hilary foi levado a mudar de voto. Trata-se aí da questão dos Big Data e de sua utilização na produção de fake news, de acordo com estratégias de marketing político. Faz tempo que existem empresas especializadas em prestar esse tipo de serviço, como é o caso da Cambridge Analytica, do Reino Unido, que teve participação decisiva na vitória, até aqui, parcial do Brexit.

E, por causa disso que muitos parlamentares brasileiros da atual CPMI das fake news têm denunciado a existência de autênticas milícias jornalísticas, com firme atuação nas redes sociais, que seriam especializadas em destruir reputações e difamar políticos.

Há pouco tempo que a noção de fake news emergiu juntamente com a noção de pós-verdade. E, o Dicionário Oxford passou a incluir também o verbete post-truth, a partir de 2016, quando foi considerada a "palavra do ano".

E o significa é, in litteris: "“Adjetivo. Relacionado a ou que denota circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência da modelagem da  opinião pública do que apelos  à emoção  e à crença pessoal”(OXFORD,  2020).

O que essa definição sugere é que as fake News não  são  apenas  notícias falsas, mas em certo sentido, “pós-verdadeiras”. Em outras palavras, são notícias falsas   ou notícias que não se sabe se são realmente verdadeiras, são notícias cuja veracidade não deriva de “fatos objetivos”, mas de apelos à emoção e à fé, notícias que passam por verdadeiras, sem “de fato” serem.

Afora isso, a noção de pós-verdade aponta para espécie de era, que já foi chamada de “Era da Pós-verdade[2]”, posto que a verdade tenha se tornado obsoleta e inútil, particularmente, do ponto de vista daqueles que exercem o poder.

A história política da verdade é mesmo a história das relações entre verdade e poder, sendo bastante urdida e complexa. E, mesmo fora do campo da política, não é possível se restringir à concepção da verdade como correspondência.

A política é o campo de quem legisla e não se legisla a partir de uma verdade dada. Pelo revés, a lei, em certa medida, institui o que é verdadeiro. A verdadeiro não antecede a lei, mas a sucede, na medida em que, devido ao princípio da irretroatividade da lei, sempre se legisla acerca do futuro político cujo discurso visa lançar as bases para uma sociedade mais livre, mais igualitária, mais justa e, etc., também se refere ao futuro e fala, necessariamente, daquilo que ainda não é verdadeiro, ou ainda, que no presente não corresponda a nada.

Em política, a verdade é quase sempre, da ordem de uma construção, de uma invenção, de uma promessa e quase nunca da ordem de uma descoberta. Na época em que atual Constituição Federal brasileira estava ainda sendo elaborada, o então deputado

Ulysses Guimarães teria sido questionado por um entrevistador assim: “Dr. Ulysses, atribui-se ao senhor a autoria da frase ‘Em política, mais importantes do que os fatos são as versões’. É verdade?” Ao que ele teria respondido: “É o que dizem”.

Político experiente, ao invés de dar fim a uma polêmica sobre o que pode ser considerado como a pós-verdade avant la lettre, Dr. Ulysses preferiu simplesmente continuá-la.

Esse exemplo serve para mostrar que a pós-verdade é algo que existe há muito mais tempo do que  se imagina  atualmente  e  que  a  principal dificuldade existente em se cogitar de uma “era da pós-verdade” está em estabelecer quando essa era começou, pois talvez a chamada “pós-verdade” seja tão antiga quanto a própria política e  tenha sua história, em grande parte, confundida com a dela.

Afinal, por ter criticado a ideia de uma verdade última, fundamental e absoluta e por ter entendido a verdade como sendo criação e como produção de sentido. Nietzsche é lembrado, por vezes, como espécie de apologista da pós-verdade e das fake news. E, tal raciocínio resta equivocado.

E, o equívoco está na própria concepção de pós-verdade como uma novidade, quando, na prática, esta acrescenta muito pouco em referência ao que Nietzsche ainda no século XIX e outros, antes dele, já haviam descrito. E, percebe-se então que a noção de pós-verdade se mostra inócua. Irrisória.

De fato, esta não resulta de nenhuma elaboração filosófica, mas é antes um constructo da mídia que levanta a bandeira de uma luta contra a pós-verdade, em nome de todos e no interesse da verdade autêntica, da isenção e da objetividade, mas que sabemos que está distante de ser kantiana e, portanto, tem seus interesses.

A concepção acrítica de que a mídia pressupõe é a mesma que se encontra, em larga escala, no senso comum, isto é, o correspondencialismo, que por sua vez se lastreia em metafísica da substância. Para a mídia, verdadeira é a notícia que corresponde a uma realidade que é constituída por fatos em sentido substancial.

Toda notícia que não corresponde aos fatos da realidade é falsa. Portanto, a correspondência é o critério para se distinguir news (verdade) e fake news (falsidade). Porém, não é tão simples assim. A teoria correspondencial da verdade pressupõe que temos, de alguma forma, acesso direto aos fatos que comparamos a uma notícia, para saber se esta é verdadeira ou falsa. O maior e crucial problema é que não temos esse acesso direto.

Uma das principais instituições de Nietzsche reside na constatação do enunciado, informação, uma notícia não precisa ser verdadeira para ser tida como se fosse. Com efeito, não a verdade, mais o que é tido como verdadeiro é o alvo de suas reflexões.

O termo fake news designa exatamente o mesmo, informação que não se sabe se é ou não verdadeira, mas que, independentemente disso, conta como se fosse.

Pode-se afirmar que uma das principais intuições do filósofo Nietzsche reside na constatação de que um enunciado, informação, uma notícia não precisa ser verdadeira para ser tida como se fosse. Mais o que é tido como verdadeiro é algo de suas profundas reflexões. O termo fake news designa exatamente o mesmo: uma informação que não se sabe se é verdadeira não, mas que, independentemente disso, conta mesmo como se fosse.

Há casos em que uma relação de correspondência não pode ser constatada. Também há casos em que relações de correspondência, que eram tidas como certas, depois foram desmentidas.

Enfim, há casos como esses, nos  quais  o  discurso,  que  pressupõe   essa  relação  de  correspondência  contestada ou contestável, ainda assim “vale como verdadeiro”. Em um fragmento póstumo do outono de 1887, Nietzsche (FP 18879) chama isso de Für-Wahr Halten.

É algo como “valer como verdadeiro”, “passar por verdade”, “ser considerado verdade”, sem que no entanto se possa sabê-lo. O exemplo fundamental disso é o conceito de “Deus”. Pode-se dizer que mesmo que Deus nunca tenha existido, mesmo que já se tenha provado isso ou que, um dia, a ciência prove isso, mesmo assim o conceito de “Deus”, os enunciados e os discursos que o empregam, não deixarão de ter produzido efeitos de verdade ou de ter “valido como verdade” (für-wahr-gehalt).

Pelo contrário, é possível que esses discursos tidos por verdadeiros continuem a produzir efeitos que podem ser designados como “efeitos de verdade”. Não é verdade, mas produz efeitos como se fosse (Feuerbach e Marx parecem encaminhar a discussão acerca da “alienação”, mais ou menos, nesse sentido. A discussão sobre “ideologia” também passa por aí).

Cumpre frisar que isso não se refere ao valor de verdade, no sentido da lógica desses enunciados. Esses efeitos de verdade se produzem, por assim dizer, fora do reino da lógica ou de acordo com uma logicidade que eles mesmos tentam instaurar, inerentemente de os enunciados respectivos serem verdadeiros ou falsos. E, que os efeitos de verdade, são esses que tais enunciados indeterminados ou indetermináveis produzem? Não são efeitos de verdade, simplesmente, mas também efeitos de poder.

Daí o filósofo ter enunciado que "vontade de verdade é vontade de poder". Muitas vezes, não se quer a verdade pela verdade.

Por exemplo, em geral, não se quer ter a verdade sobre Deus simplesmente para ter a verdade. O que se deseja é o exercício do poder que é conferido àquele que detém a verdade sobre Deus. 

E veja que esse “poder sobre a verdade acerca de Deus” pode ser exercido até mesmo pelos ateus. Que interesse há em dizer que “Deus está morto”? Não há interesse algum em dizer isso. O que se quer dizer é que a verdade está morta, isto é, que a verdade enquanto Deus, para nós, morreu.

Noutras palavras, quando a verdade é de um enunciado é uma evidência, como é o caso da falsidade das contradições e de enunciados fáticos simples, quando praticamente não existe disputa sobre isso. É preciso demonstrar que isso não é uma banalidade para que as pessoas passem a discuti-lo.

E, nesses casos, podemos facilmente admitir que as relações correspondenciais e afirmar que certa frase seja verdadeira ou que seja falsa. Talvez, Karl Popper afirmasse, só ela é verdadeira porque ainda não foi refutada, a sua veracidade não foi questionada.

Se há ou não uma relação de correspondência, isso é um problema a ser resolvido por uma teoria da verdade como correspondência. Mas, o ponto de vista que se quer propor não é esse e ele nem valida

nem invalida o ponto de vista desta ou de qualquer outra teoria da verdade. É antes mera tentativa de apreender uma outra faceta desse mesmo problema, aquele plano em que a verdade é uma interface do poder.

Portanto, possivelmente possamos afirmar que o questionamento que interesse ao filósofo como Foucault e Nietzsche começa quando chegamos até às verdades disputadas ou disputáveis. Atualmente, é notório que Deus seja uma dessas verdades disputáveis. Mas, esse tipo de fenômeno de valor como verdadeiro é mais frequente do que em geral se imagina.

O Estado a que fato ele corresponde? Constrói-se um discurso e uma série de práticas que empregam esse conceito e que exercem poder, que é feto para exercer poder sobre as pessoas de forma muito real e concreta, como se fosse verdade inquestionável.

Tendo em vista as guerras protagonizadas pelo Estado, desde que o discurso e a prática ligadas a esse conceito nasceram. E, assim, portanto, independentemente de o Estado ser real ou não, corresponder ou não, esse termo, esse significante exercem seus efeitos no plano real.

O mesmo se pode afirmar para o Direito[3]. A que fato o direito corresponde? É norma, diriam os juristas. Pois, não é da definição de norma, do valor, não ser um fato? Pelo motivo de que não correspondam a um fato, pode-se afirmar que os valores, amoral, o direito, a estética, não existem?

Por outro viés, em qual sentido eles existem, se não são como fatos,? Eles existem como nomes, designações, mas não com nomes quaisquer, e, sim, nomes e nomenclatura que possibilitam o exercício do poder ou o governo dos homens. Aliás, podemos dizer o mesmo sobre o próprio conceito de homem, que não é eterno.

Assim essa coisa indeterminada que só pode ser uma série caótica de fatos, se for da ordem de um fato, a que os discursos das ciências humanas vêm chamando de "homem", mais ou menos, desde o fim do século XVIII, pois bem, o conceito de "homem" enquanto objetivação nem sempre existiu e, talvez, este na iminência de desaparecer.

Percorrendo-se as abstrações históricas não existem como fatos constatáveis e que possam correspondem a um fenômeno diretamente observável e, assim, foi que Foucault disse que constitui uma espécie de "nominalismo histórico". Os universais históricos não existem como fenômenos reais, porém, apenas como nomes, meras palavras (flatus vocis).

A vantagem do nominalismo histórico é que não vai afirmar apenas os universais que não passam de nomes. Mas, vai procurar investigar de que forma foi possível a esses nomes interferir na história, muitas vezes, determinando relações de poder. Se se quiser, o que está em jogo aí não é a questão da verdade per se, mas a questão dos efeitos de poder dos discursos considerados como verdadeiros, sejam eles verdadeiros ou não.

Pode-se até afirmar que o poder produz certas verdades, mas isso não quer dizer que todas as verdades sejam produzidas pelo poder. Quando se diz que a verdade morreu, o que se pretende dizer é que as verdades produzidas pelo poder morreram, ou seja, não devem mais produzir efeitos, não devemos nos submeter às tais verdades, devemos resistir.

A generalização é, realmente, retórica, que cumpre seus motivos político-pedagógicos. Não deixa de haver certa relação, de caráter bizarro, com o esclarecimento, com o iluminismo.

No campo da prática, como a prática médica, do saber e das práticas psiquiátricas. Apesar de não ser campo habitual         de discussão filosófica, mas que exige reflexão concernente aos usos da verdade. Afinal, qual é o conceito de loucura.? A loucura é um fato ou uma série de fatos?

A loucura, particularmente, não corresponde a nenhum fato delimitável. Afinal, ser louco ou estar louco seria bordejar o limite e, mais, ira além da sanidade, da normalidade, da racionalidade. O louco é irracional. Como construir um discurso que diz a verdade sobre a loucura? Teria a psiquiatria sólida teoria verdadeira da loucura?

Lembremos como se constrói o conceito de “esquizofrenia”, que é de definição residual, por exclusão. Todos os “pacientes” que não se encaixam em alguma outra categoria de psicose são incluídos pela psiquiatria no rol dos esquizofrênicos! A psiquiatria não define o que é “esquizofrenia”, noção que é um mero nome, um substituto de outro nome, mais popular, que é “loucura[4]”. Como é possível um tal diagnóstico?

A que fato ele corresponde? Para que ele possa corresponder a algum fato, no caso, o fato “loucura”, é preciso primeiro que esse fato tenha sido construído como um fato por um certo saber e que, em seguida, tenha sido imposto à realidade por meio de uma  prática  baseada  nesse  saber. 

Agora, como se pode fundar uma autoridade  à  qual  se delega o poder de interver em nível psiquiátrico (físico, químico e somático) sobre as pessoas? Que direito têm ou tiveram eles de dar choques nas pessoas, em nome da “verdade” e da “ciência”, para curá-las, sem terem a menor ideia do que estavam fazendo? É o intolerável. É o horrendo. Não pode haver nada de mais perigoso. E é praticado em nome da “verdade” e da “ciência”!

Há casos também ligados à psiquiatria. São os casos de racismo e da homofobia. Aliás, as práticas médicas da primeira metade do século XX eram abertamente racistas. Como um enunciado: "Todo judeu é uma doença" poderá ser considerado verdadeiro? Sob qual hipótese um fato pôde ter correspondido a essa sentença (de morte)?

Ou ainda, a psiquiatria homofóbica que até 1986 considerava o homossexualismo uma doença.

Em 17 de maio de 1990, a homossexualidade foi retirada da lista internacional de doenças pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Antes de 1990, vários países puniam pessoas homossexuais com o rigor da lei e em alguns, a sentença era a morte.

A determinação da OMS representou um grande avanço para a comunidade Lgbtqi+ que por décadas enfrentaram e ainda enfrentam todas as formas de discriminação e preconceito diante da orientação sexual. Desde então a data passou a ser usada como símbolo de combate ao preconceito a todos os segmentos da diversidade sexual, no entanto o preconceito ainda existe.

Em 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero fosse criminalizada. No entanto o país ainda não tem lei tipificada para punir as agressões discriminatórias. A conduta passou a ser punida pela Lei de Racismo (7716/89), que hoje prevê crimes de discriminação ou preconceito por "raça, cor, etnia, religião e procedência nacional".

A determinação do STF, é também para que o Congresso Nacional crie uma lei específica para identificar e punir ações que violente os direitos e a vida de todo segmento da diversidade sexual. Enquanto isso a homotransbifobia será tratada como um tipo de racismo.  Ainda assim, representa um grande avanço para a população LGBTQI+.

A Comunidade tem alcançado alguns direitos após muitos anos de luta. O direito ao uso do nome social em carteira de identidade, permissão para a adoção de crianças, doar sangue, união instável são alguns desses direitos. Concorrer a cargos eletivos também permitiu que a diversidade ocupasse os bancos de Câmaras Vereadoras, Municipais, Legislativas e o Congresso Nacional.

Novamente, a que tipo de fato esse conceito poderia corresponder?  Por  que  uma  relação  sexual  entre  dois  corpos  de  mesma genitália  deveria  ser considerada uma doença? O que se quer saber aí, não é o que é a verdade, mas qual é o regime, as regras, os argumentos que possibilitaram que esse tipo de discurso e de prática fosse considerado como "verdadeiro".

Nietzsche foi um pensador que percebeu a existência do que é considerado como verdadeiro sem ser, mas isso não significa que fora um defensor disso. Ao revés, o que fez foi a crítica da verdade enquanto o que é tido por verdadeiro sem que saibamos, com absoluta certeza, se exige algo que possa ser considerado verdadeiro. O filósofo analisou a pós-verdade quando esta ainda nem tinha esse nome, mas jamais fez a apologia a ela.

Ele denunciou toda verdade como pós-verdade, tendo anulado a suposta diferença entre fatos objetivos e apelos emocionais, ou ainda, entre enunciados que correspondem a fatos e enunciados que não correspondem.

A crítica de Nietzsche à noção de verdade  inviabiliza, portanto, qualquer defesa da pós-verdade, mas  inviabiliza  também  a  crítica  que  se  faz,  de  maneira  geral,   à  pós-verdade.  Essa  crítica procede  de  uma  concepção  correspondencial  de  verdade,  para  a  qual  a  pós-verdade  deve  ser eliminada  porque  não  corresponde  aos  fatos. 

Sem dúvida,  esses  arautos  da  verdade ficariam surpresos se alguém lhes dissesse que, a rigor, nada corresponde aos fatos, que a própria noção de  fato  é,  em “última  instância”,  uma  construção, e  que  suas  verdades  não  são  assim  tão diferentes daquelas que eles repudiam como “pós-verdades” ou “pré-mentiras”.

E quanto à questão das fake news, agora em mais detalhes. As fakes news se opõe às news, assim como notícias falsas se opõem a notícias verdadeiras, ou ainda, assim como notícias que não correspondem aos fatos se opõem a notícias que correspondem aos fatos.

A mídia, que foi quem primeiro saiu em luta contra as fake news, termo que ela se encarregou de popularizar, alega que suas  notícias  são  sempre news,  ou  seja,  que  elas  correspondem efetivamente aos fatos a que se referem. Isso devido à prática de valores como objetividade e a isenção jornalística.

No  entanto,  se  tivermos  em  mente a  crítica  de  Nietzsche,  e  de  outros,  à concepção de verdade como correspondência, veremos que a pretensão de veracidade da mídia não se sustenta. Ora, nem mesmo a ciência[5] consegue sustentar essa pretensão, como a mídia poderia fazê-lo?

Cumpre ainda observar que os tempos de produção de verdade científica e de uma verdade midiática são muito diferentes. O tempo da ciência é lento, pois leva muitos anos para que uma teoria seja finalmente admitida como verdadeira (e, esta sempre terá algum ponto em disputa).

O tempo da verdade midiática é rápido, célere, é o do furo de reportagem, é da ordem do imediato. A apuração dos fatos e a verificação das fontes é inteiramente sumária. Assim, a verdade midiática precisa satisfazer muito menores exigências do que a verdade científica e quiçá a verdade judiciária e a verdade jurídica.

A verdade jurídica[6] é, na essência, um ato de valor. Isso, todavia, não significa que ela dependa do arbítrio ou do capricho do sujeito que a propaga. Por isso, há de se referir a um discurso coletivo, em que o consenso se torna a pedra angular.

Já a verdade judiciária pode ser refletida na coisa julgada, que o direito contemporâneo tem trazido sua progressiva relativização em prol de produzir maior justiça e menores desigualdades.

De fato, existem diversos enfoque sobre o conceito de verdade. O primeiro é o da verdade por correspondência. Assim, a ciência teria por objetivo revelar os fenômenos da natureza tal como eles se apresentam. Foi Aristóteles o maior precursor dessa corrente filosófica ao defender o uso dos sentidos como forma de captar a realidade, erigindo-os à condição de fonte primeira de conhecimento.

Já a verdade por coerência preserva a ausência de contradição dentro de um sistema. Refere-se a uma verdade interna de determinada teoria. E, seguindo as regras e princípios existentes no interior do sistema, o sujeito cognoscente passa a desenvolver o seu trabalho até concluir, pela lógica, a verdade que deve prevalecer em certa hipótese. As proposições são aceitas como verdadeiras e são deduzidas umas das outras.

A verdade pragmática também chamada de verdade como utilidade e, considera como verdadeiro um enunciado quando houver efeitos práticos para que o sustenta. Para essa corrente filosófica, a verdade não seria um valor teórico, mas somente expressaria a utilidade para a conservação da vida e das relações de poder. Nega-se o caráter de cientificidade a esse pensamento, ante a restrição do conceito de verdade ao pragmatismo.

A verdade consensual resulta do consenso, ou seja, o acordo entre os indivíduos de determinada comunidade ou cultura. E, se baseia na communis opinio.

A verdade por consenso também pode ser encarada como algo constituído pelo sistema onde se insere. Tal corrente filosófica defende a impossibilidade da verdade absoluta, pois o consenso prestigiaria a sua contextualização social, relativizando as opiniões comuns ou dominantes com o passar do tempo em busca de novos consensos.

Durante décadas a filosofia, notadamente a Teoria do conhecimento, dedicou-se a investigações acerca do conhecimento, preconizando a existência de um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Grosso modo, podemos dizer que toda a discussão que envolvia o conhecimento estabeleceu-se nos moldes desse quadro dualístico, e que alguns representantes depositavam mais confiança e importância no objeto, outros, no sujeito cognoscente.

Enquanto a filosofia de Sócrates baseia-se em uma concepção de verdade única, imutável, absoluta, a filosofia sofista defenderá  a relatividade da verdade, a sua possibilidade de transformação de  acordo com a operação do λόγος (lógos)

Algo pode assim, segundo Protágoras, por exemplo, anunciar-se como verdade ou como mentira, como a favor ou contrariamente a determinado argumento, e será essa flexibilidade do conceito de verdade e a possibilidade de manipulá-la para A ou para B, para o sim ou para o não, em que serão construídos os exercícios de persuasão e as aulas de retórica  que farão dos sofistas famosos professores entre as pólis gregas.

Desde já, somos confrontados a pensar na verdade como absoluta ou relativa, pondo em xeque, portanto, qualquer noção de objetividade ou de retrato fiel das coisas ou do mundo. Essa contenda insolúvel contribuiria, em larga medida, para o nascimento daquilo que hoje chamaríamos de política.  

Com o surgimento da Filosofia da Linguagem, inaugurada com a obra “Tractatus lógico-philosophicus” de Wittgenstein[7], a teoria do conhecimento, inicialmente centrada no caráter exclusivamente descritivo da linguagem, sofreu profunda alteração: a linguagem passou a ser considerada como algo independente do mundo da experiência, convertendo-se em algo capaz de criar tanto ser cognoscente quanto a realidade.

É que o ser humano encontra-se inserido no “cerco inapelável da linguagem” e só por meio dela é que mantém contato com o mundo físico, sem, entretanto esgotá-lo completamente, afinal a linguagem apta para falar do mundo é inesgotável.

O tempo de produção da verdade via processo judicial é lento, em que pesem os pedidos de urgência que podem ser feitos e as medidas saneadoras que podem ser tomadas. Dessas três, ciência, Justiça e mídia, a verdade da mídia é a que é mais hipotética, em que sentido ela é verdade?

Segundo a concepção perspectivista de verdade que se pode depreender de alguns escritos de Nietzsche, como a obra “Além do bem e do mal”, ajuda-nos a explicar e entender tudo isso.

Toda notícia da mídia não importa quais sejam seus graus de objetividade e de isenção que, em todo caso, serão sempre inferiores aos da ciência e do judiciário, toda notícia é apenas uma perspectiva, e não a verdade pura e simples a respeito de certo tema.

Uma perspectiva implica sempre em recorte, um olhar parcial, uma seleção da realidade e, Nietzsche acrescenta, uma seleção necessariamente arbitrária da realidade, feita em razão de um interesse de uma certa forma de vida. Portanto, aquilo que a mídia chama de news não é jamais um fato nu e cru, mas uma perspectiva, a perspectiva da mídia, acerca do que efetivamente se passa.

Não  é  difícil  observar  que  assim como  as news são  perspectivas,  recortes seletivos da realidade, as fake news também são perspectivas. Isso significa que se as news não são necessariamente verdadeiras (e a história dos equívocos jornalísticos mostra isso), as fake news não são necessariamente falsas, ou melhor dizendo, elas não são apenas falsas.

Elas são perspectivas, sempre foram. Com efeito,  as fake  news,  com  esse  nome, só se  tornaram  um problema há  alguns,  mais  especificamente  em  2016,  no  chamado “ano da pós-verdade”.

Por que exatamente em 2016? 2016 foi o ano em que o usuário médio das redes sociais descobriu  como  se fabricam  notícias  e  como  se  inventam  verdades. 

Precisa-se apenas de um pouco (cada vez menos) de tecnologia e de um mínimo de criatividade.  Acontece que esse  é  exatamente  o “negócio”  dos  veículos  de  mídia  em  geral:  produzir  verdades, que   supostamente corresponderiam aos  fatos.

De seu lado, a mídia diz que esse não é o negócio dela, mas da ciência. Isso, porém, faz parte do próprio negócio. E, a ciência, realmente, nunca conseguiu converter verdades em negócio(business)como a mídia faz. 

Aos olhos do jornalista, o cientista e o intelectual sempre parecem um tanto ingênuos, afinal nem imaginam que todo o seu esforço desinteressado pela “verdade” não vai valer de nada, em nosso mundo, enquanto a verdade científica não tenha sido devidamente diagramada e difundida como “verdade” pela mídia.

O jornalista também olha para o político dessa maneira, mas sabe que esse não tem nada ingênuo, nem faz o menor esforço pela  verdade, embora  construir  a verdade  seja  o  interesse  básico  e atividade típica do bom político no dia-a-dia, é o seu “negócio”, muito mais do que do cientista ou do intelectual.

Em todo caso, devido ao instinto de sobrevivência que é altamente aguçado nas empresas capitalistas atuais,  ao se ver ameada por uma concorrência assimétrica que assalta precisamente o monopólio da criação da verdade jornalística, naturalmente, a mídia reage. E, essa reação assume, já em 2016, a forma de campanha contra a pós-verdade e as fake news que marcha agora a pleno vapor.

No entanto, se fosse levada, coerentemente, até o seu limite a crítica à pós-verdade e às fake news deveria acarretar a abolição da própria mídia. É claro que esse já não é mais o interesse da mídia: a crítica precisa parar antes disso. Com efeito, esse é precisamente um dos aspectos que, de acordo com a mídia, devem ficar do recorte.

A novidade que querem transformar em um escândalo, como de costume, é que aqueles que  deveriam  ser  os  destinatários, no  máximo, participativos  das  verdades  postas  à venda no mercado pela mídia, de repente, começaram a fazer por conta própria a mesma coisa que a mídia desde sempre tinha feito. Aliás, a mídia se fez fazendo isso: produzindo a verdade.

E  não  há  nenhuma  culpa  do  jornalista  nisso;  o  que  ele  faz,  ao  fazer  a  verdade  diária,  ou hebdomadária, não é propriamente uma maldade. Premido pela lógica espaço-temporal do furo de reportagem, ou seja, tendo em vista que tempo e espaço são dinheiro, o discurso midiático caracteriza-se, necessariamente, por um déficit de verificação fática e, por vezes, até mesmo de validade lógica. 

Os jornalistas fazem isso porque sabem, e  fizeram  disso  uma  profissão (possivelmente  tanto  quanto  os  pastores),  que  independentemente  desse  detalhe  que  é  o  seu déficit  necessário  de  veracidade,  um  discurso  pode  produzir  efeitos  de  verdade  ali  onde realmente  conta,  que  não  é  na  universidade (condomínio  privado)  devidamente  cercado destinado  àqueles  que  desejem  perder  suas  vidas  digladiando-se  pela  verdade,  mas  no imaginário da massa.

Conclui-se que a verossimilhança é plenamente suficiente para se conquistar os corações e as mentes das massas. E, nisso o gênero jornalístico aproxima-se definitivamente mais da retórica e do direito que da ciência (embora, de acordo com a mídia, isso não deva ser dito).

Pretendendo compensar esse déficit sine qua non, o discurso midiático remete constantemente para fora de si mesmo.  Integra as regras de seu jogo que o jornalista não seja (quase) nunca a testemunha, nem tampouco autoridade. É a isso se chama de isenção jornalística.

E, seja como for, divulgar como verdadeira uma afirmação sem saber se ela é efetivamente verdadeira é essencial para o gênero midiático. A questão ora abordada em torno da gestão do significado do que é efetivamente verdadeiro. E, é evidente que o jornalismo se caracteriza por lassidão maior a esse respeito do que a ciência.

Não faz muito tempo houve acirramento de um processo que começou há muito tempo e que teve seu clímax na Web 2.0(redes sociais, blogosfera, wikis), o usuário da internet, mesmo sem dar conta disso na maioria das vezes, vê-se munido de um poder que, em princípio, segundo a mídia, deveria ser, exclusivo dela.

Portanto, esta revida de imediato, revida de imediato, declinando um estilo acusatório um tanto artificioso, como de praxe, a fim de advogar em causa própria, de uma maneira que evidentemente se aparta de qualquer isenção possível.

O que se sabe ao certo é que o discurso catastrofista tem grande força retórica, desde tempos imemoriais. É como se, depois de séculos vendendo as verdades que produz, a mídia nos dissesse: “Ei, esse negócio de fabricar verdade e inventar fatos não é de vocês. Vocês deveriam consumir isso e não produzir. Fomos nós que chegamos primeiro! Vocês pensam que é fácil?” E, passando do tom de ameaça ao vaticínio:

“A verdade de vocês não é verdade como a nossa, pois não passa de uma pós-verdade, isto é, uma pré-mentira”.  Aí eles  filosofam,  muito  embora  em  geral,  para  eles,  o  deslizamento filosofante seja o que há de mais incompatível com o formato da notícia.

Então a imprensa vai à imprensa[8] para denunciar algo que seria como um Estado de Exceção da multidão de internautas, uma usurpação do Quarto Poder[9] pela massa de comunicação amorfa e perniciosa com tendência à delinquência cibernética, cujo exemplo mais terrível seria aquele dos hackers black blocks.

Nesse ponto é que a pós-verdade e as fakes news compõem o panorama que o Assange chamou de infoapocalipse com seus quatro cavaleiros: o narcotráfico, o tráfico de armas, a pedofilia e o tráfico de seres humanos, que supostamente dominariam a Deep Web, embora não se saiba ao certo.

O  conceito  de  “pós-verdade”  pertence  à  estratégia  de  sobrevivência  da  mídia decadente e obsoleta do nosso tempo.  É um discurso não se dissocia da ideia de que eles, os produtores  das  aparências  das  aparências,  as  plataformas  de   espetáculos,  é  que  seriam  os guardiões da verdade.

Seja como for, a tendência cujo anúncio se formula com esse conceito  de pós-verdade, pouco importa de onde ele tenha vindo, é de que a abolição, mais ou menos rápida, da propriedade midiática  privada da verdade já está em curso. Com efeito, ela constitui um movimento, um descarrilamento, um arrebentamento  que, cedo  ou  tarde,  nem  o Quarto Poder vai conseguir conter.

Eis que há a questão da pós-verdade que se coloca de forma mais aguda. E, a velha armação conceitual da crítica à ideologia já não nos ajuda. Seria preciso deixar de pensar em termos de ideologia e ciência e, passa a pensar em termos de verdade e poder.

Desse modo, as fake news não estariam mais para a ideologia assim como as news estão para ciência. Tanto que as news quanto fake news são verdades produzidas por relações de poder, de modo que, o critério correspondencial de verdade não ajuda a distingui-las.

Por certo, é preciso um critério para distingui-las, mas qual? Afirmar simplesmente que a esquerda lida com dados reais, fatos e verdades enquanto a direita nos manipula com notícias falsas, ilações e mentiras é fácil demais para ser verdadeiro.

No fundo, a verdade tem mais caprichos e pudores que podemos supor... A partilha tão simplória do verdadeiro e do falso entre a esquerda e a direita não é nem um pouco interessante do ponto de vista estratégico.

E, novamente, a concepção perspectivista de verdade nos auxilia a explicar o que se passa. Todo discurso, enunciado e informação estão sempre ligados a um interesse e nessa medida se articular sempre como um instrumento de poder, como uma arma de luta.

Cogita-se, então, sobretudo na política, de armas discursivas e de batalhas discursivas. Um discurso é uma representação da realidade, um recorte de um todo que não podemos captar em sua inteireza. E, do ponto de vista do que seria a realidade objetiva, esse recorte se faz arbitrariamente. Mas, tal recorte é sempre feito em razão de um interesse e de um interesse vital, ou ainda, do que está em jogo para a manutenção e para a expansão de uma forma de vida.

Todo conhecimento, toda verdade e toda ciência é ideológica[10]. Não se pode nem é preciso contrapor ciência a ideologia, discurso ideológico ao discurso não-ideológico, a pureza da verdade do lamaçal dos interesses, ou da teia do poder.

É legítimo ter interesses e lutar por eles. É legítimo apresentar a realidade em função de seus interesses, a partir de sua perspectiva. Dado que não há perspectiva única, que não é possível que todos olhemos o mundo a partir do mesmo ponto de vista, estas perspectivas estarão sempre em combate.

Verdade é a resultante dessas interações conflituais entre perspectivas e como tal ela jamais será desvinculada das relações de poder.  Essa resultante vale para todas as perspectivas, mas apenas circunstancialmente, isto é, até que uma nova perspectiva venha desafiá-la.

Nenhuma perspectiva permanece na posição α para sempre, exceto aquela que defende que α = 0, isto é, que se contradiz e se auto-anula.  Isso autoriza afirmar que há uma trama  de  relações  de  poder  na  base  de  articulação  de  todo discurso, de todo enunciado, de toda verdade

Existe uma diferença básica entre perspectivas. Há aquelas que expõem o interesse que as orienta e aquelas que tentam  apenas escamotear esse interesse para se fazer valer. Aliás, o escamoteamento, a ocultação são potentes mecanismos ideológicos. Se as relações de poder são ocultadas por um dos polos da relação, este tem chances de fazer prevalecer seu interesse de modo quase absoluto.

O modo por excelência de absolutizar o poder que existe em uma relação é omiti-lo, agir como se não se tratasse de uma relação de poder. Cumpre à crítica denunciar tais escamoteamentos onde quer que eles ocorram, fazendo ver o conteúdo agonístico latente nas relações.

De outro lado, cabe propor algo e sempre se propõe algo quando se concebe um recorte da realidade, uma perspectiva, um conceito, quando se elabora uma notícia ou uma reportagem.

Ético, neste caso, não é ser isento, objetivo e imparcial. Ou quiçá, neutro, mas perceber o interesse a qual nos vinculamos e não omiti-lo.

A ideia central é que é mais legítimo afirmar a que viemos, sem subterfúgios e ainda apresentar o mundo de nosso ponto de vista, de acordo com nosso interesse, de modo sincero e franco ainda possamos parecer, por vezes, ingênuos ou cínicos. Será mais legítimo ser sincero e revelar logo o interesse implicado, do que procurar ocultar esse interesse por de trás de uma suposta isenção que, com efeito, só tem em vista apenas impor sorrateiramente, um interesse dissimulado.

O erro não está em ter um interesse nem tampouco em procurar fazê-lo na hipocrisia e uma objetividade de fachada, na tentativa de omitir o aspecto experimental, temporário, precária e nunca definitivo das verdades humanas. Demasiadamente humanas e, por assim fazer com que uma, apenas uma perspectiva seja tida como verdade.

Na ética perspectivista, uma sinceridade imprudente ganha maior valor que a verdade supostamente desinteressada.

Em tal ética conteria, entre outras coisas, uma abordagem aplicada, um manual não de combate frontal às fake news e à pós-verdade, mas de uso da mídia e da verdade. Manual que conteria as práticas de resistência na contemporaneidade e, portanto, ele seria apenas o princípio.

Referências

ASSANGE, Julian Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. São Paulo: Boitempo, 2013.

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BORGES JUNIOR, Eli. O que é a pós-verdade? Elementos para uma crítica do conceito. Disponível em: https://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/download/1189/pdf_1/5377. Acesso em 12.02.2023.

DUNKER, Christian; SAFATLE, Vladimir; TIBURI, Márcia et al. (orgs.) Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Supervisão de Léa Porto de Abreu Novaes et al. 3.ed. Rio de Janeiro: NAU, 2002.

HABERMAS, J. Strukturwandel der Öffentlickhkeit: Untersuchungen zu einer Kategorie der bürgerlichen Gesellschaft. Baden-Baden: Suhrkamp, 1962.

LATGÉ, Luiz Cláudio. O mundo pós-verdade. O Globo, 23 nov. 2016. Opinião. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/o-mundo-pos-verdade-20522515. Acesso em: 12.02.2023.

MAGALHÃES, Gildo. Dossiê "Georges Canguillhem, a história e os historiadores". Lab Teo (Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia). Intelligere Revista de História Intelectual. ISSN 2447-9020. v.2. 2016.

MERELES, Carla; MORAES, Isabela. Notícias falsas e pós-verdade: o mundo das fake news e da (des)informação. Politize!, 16 set. 2020.  Disponível em: https://www.politize.com.br/noticias-falsas-pos-verdade/. Acesso em 12.02.2023.

MOTA, Thiago. Nietzsche e a pós-verdade. Estudos Nietzsche. Espírito Santo, v.12. n.1. p.88-102, jan./jul. 2021.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal. Ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro. Tradução de Márcio Pugliesi (USP). Curitiba: Editora Hemus Livraria, 2001.

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OXFORD Languages. Word of the Year 2016. Oxford University Press. Disponível em: https://languages.oup.com/word-of-the-year/2016/. Acesso em 12.02.2023.

POST-VERITÀ. In: ISTITUTO TRECCANI. Vocabolario Treccani. Disponível em: https://www.treccani.it/vocabolario/post-verita_res-65be68bc-89ea-11e8-a....  Acesso em: 20 jun. 2021.

POSVERDAD. In: REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua española. Edición del Tricentenario. Actualización 2020.  Disponível em: https://dle.rae.es/posverdad. Acesso em: 12.02.2023.

PLATÃO. Platon: oeuvres complètes. Sous la direction de Luc Brisson. Paris, Flammarion, 2011.

REALE, G.; ANTISERI, D. Storia della filosofia. Dai presocratici ad Aristotele. Volume 1. Milano: Bompiani, 2014

SENADO FEDERAL. CPMI Fake News. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?0&codcol=2292 .  Acesso em: 10.02.2023

SEIXAS, Rodrigo. A retórica da pós-verdade: o problema das convicções. EID&A – Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 18, p. 122-138, abr. 2019. DOI dx.doi.org/10.17648/eidea-18-2197.

Notas:

[1] Canguilhem aponta que a distinção entre o falso e o verdadeiro é um problema epistemológico para a prática da história da ciência que implica no modo pelo qual se constroem os conhecimentos científicos. Como a ciência critica os falsos saberes, seria razoável propor que a ciência é uma crítica das ideologias científicas? Lembra então que a popularização da noção de ideologia decorre da vulgarização do pensamento de Marx, que denuncia as ideologias em nome das ciências da história e da economia política, como pretende instituir. A pergunta passa a ser se uma ideologia científica pode ser compreendida na noção geral de  ideologia no sentido marxista e a resposta é que isto seria uma contradição lógica, já que toda  ideologia seria ilusória e a ciência revela a realidade, ainda que construída sobre as bases materiais da sociedade.

[2] Pós-verdade. Informação ou asserção que distorce deliberadamente a verdade, ou algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais. “A explicação da palavra pós-verdade de acordo com o Oxford é de que o composto do prefixo ‘pós’ não se refere apenas ao tempo seguinte a alguma situação ou evento – como pós-guerra, por exemplo –, mas sim a ‘pertencer a um momento em que o conceito específico se tornou irrelevante ou não é mais importante’. Neste caso, a verdade. Portanto, pós-verdade se refere ao momento em que a verdade já não é mais importante como já foi.”

“Pela definição do dicionário [Oxford], pós-verdade quer dizer ‘algo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou crenças pessoais’. Em outros termos: a verdade perdeu o valor. Não nos guiamos mais pelos fatos. Mas pelo que escolhemos ou queremos acreditar que é a verdade. (...) O terreno da internet tem se revelado fértil para a propagação de mentiras – sempre interessadas –, trincheira dos haters. Levamos tanto tempo para estabelecer uma visão ‘científica’ dos fatos, construir a isenção do jornalista, a independência editorial e, de repente, vemos que o debate político se dá entre ‘socos e pontapés’. A pós-verdade arrasta a política, o jornalismo, a justiça, a economia, a nossa vida pessoal...”

“Segundo Braga (2018, p. 205), o fenômeno das fake news pode ser entendido como ‘a disseminação, por qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o intuito de atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem política ou econômica’. Por essa ótica, pode-se considerar que há, por parte do(s) sujeito(s) que veicula(m) tais notícias, uma certa vontade de desinformar o seu interlocutor e levá-lo, ao menos potencialmente, a um estado de dissuasão referente à sua disposição de espírito anterior acerca de qualquer assunto. Em contrapartida, Christian Dunker (2017) acentua que: [...] alguns consideram que o discurso da pós-verdade corresponde a uma suspensão completa de referência a fatos e verificações objetivas, substituídas por opiniões tornadas verossímeis apenas à base de repetições, sem confirmação de fontes. Penso que o fenômeno é mais complexo que isso, pois ele envolve uma combinação calculada de observações corretas, interpretações plausíveis e fontes confiáveis em uma mistura que é, no conjunto, absolutamente falsa e interesseira (DUNKER, 2017, p. 38). Há nesses discursos, por assim dizer, enunciados comprovadamente verdadeiros, relação a fatos efetivamente comprovados, interpretações plausíveis, induções verossímeis, o que confere ao fenômeno da pós-verdade traços para além da velha mentira política.”

[3] Existem respostas verdadeiras no Direito? Uma decisão pode ser melhor que outra? Para além da questão de como se interpreta, em direção ao dilema de como se aplica, esta obra analisa as grandes questões contemporâneas que cercam a decisão jurídica, explorando os desafios e os problemas da trajetória de construção de um direito fundamental do cidadão: o de obter respostas corretas e adequadas à Constituição Federal. Há um modo próprio. de filosofar em seu livro. Não é, no entanto, só de filosofia que se trata, pois retoma de modo percuciente um conjunto de questões práticas que aparecem, em todo momento e inevitavelmente, quando se analisam posições da filosofia no Direito (e não simplesmente do Direito, na expressão cunhada por Lenio em obras anteriores). Não se trata apenas de entrar em um debate em terrenos pouco explorados pela Filosofia do Direito. O que importa é traçar as coordenadas que nos levam a pensar corretamente, em um mundo complexo, as questões simples, mas essenciais, que giram em torno do modo como pensar a Filosofia do Direito.

[4] A concepção teórica da Saúde Mental percebe a loucura essencialmente como um fenômeno de intolerância e exclusão da vida social, em que surge um rechaço do louco por  ele ser visto como doente mental, o que conduz a uma internação hospitalar mesmo contra sua vontade, com o fim de ser isolado. Assim, fundado nas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), são considerados transtornos mentais e comportamentais as alterações mórbidas do modo de pensar, do humor e as alterações de comportamento associadas à angústia expressiva ou a deterioração do funcionamento psíquico global, de modo a não poder desempenhar normalmente, em razão de sua idade, sexo, fatores sociais e culturais, o papel que lhe caberia para sua realização pessoal (OMS, 1993).

[5] A ideologia e a ciência sempre estiveram ligadas, desde os princípios da ciência, assim desde os homens primitivos havia questões acerca das coisas de que não se compreendia, ou que não se tivesse poder sobre ela, como os fenômenos naturais. Originalmente o termo ideologia, postulado por Destutt de Tracy era definido como o estudo científico das ideias, e que elas resultariam da interação entre organismos vivos e o ambiente, como se fosse um estudo do comportamento humano. A partir daí, outros significados foram somados, levando às conotações críticas e negativas que se propagam hoje. A popularização do termo veio com Marx e Engels, que associaram essa palavra a doutrinas puras e desvinculadas de uma realidade material, gerando ideias errôneas e distorcidas sobre a natureza do homem.

[6] Lenio Streck deixa bem claro é possível falar em verdades jurídicas. Elas existem e podem ser demonstradas através do estabelecimento de respostas adequadas à Constituição. A base de sua teoria (Crítica Hermenêutica do Direito) é robusta e respeitável, de modo que a partir de Heidegger, Gadamer e Dworkin – para citar alguns -, o autor estabelece e fixa o seu próprio aporte teórico, fornecendo aos juristas uma possibilidade concreta de se efetivar o Direito enquanto tal – livre das mazelas que o assolam. O respeito e observância à Constituição devem conduzir o trilhar do jurista, atentando-se para não cair nas tentações dos discursos falaciosos dissonantes com o Direito que apenas o desestabilizam. A proposta, portanto, é significativa e possui grande relevância, tratando-se assim de uma verdadeira contribuição para o Direito.

[7] Mas Wittgenstein foi além: disse que os limites de nossa linguagem são também os limites de nosso pensamento. Esta ideia está em consonância com o que pensa o escritor Aldous Huxley, que vê os dois lados da linguagem: ao mesmo tempo em que o indivíduo se beneficiaria com ela, por ser fruto da experiência acumulada pela sociedade, também seria limitado a ela, na medida em que a língua confinaria a consciência e a reduziria a uma consciência única, traduzida pela visão una de como seria a realidade para aquele grupo.

[8] A crise da imprensa aparece como peça importante nesta engrenagem. A perda da credibilidade agrava o cenário pelo incremento do embate político e do radicalismo. O mercado da comunicação passa por adversidades econômicas, de redefinição dos negócios e o enfraquecimento da mídia tradicional. Sem investimento, o trabalho jornalístico é prejudicado. Com menos recursos humanos, a qualidade do produto desaba, tornando a função jornalística mais rasa e suscetível a erros. O trabalho jornalístico tem um custo e a maioria dos cidadãos não tem acesso às informações por não conseguir pagar. As plataformas de fact-checking, que são ótimas opções para certificar a veracidade de fatos, não conseguem competir com o fluxo exponencial das fakes news.

A expansão das redes sociais potencializou o acesso à informação, é verdade. Trata-se, no entanto, de informação não apurada, um campo fértil, infelizmente, à desinformação.

[9] O Quarto Poder trata-se de expressão usada para declarar que o jornalismo e os meios de comunicação de massa podem exercer determinada influência sobre a sociedade. É assim o termo porque tem como referência os Três Poderes do Estado Democrático que regem a república (Legislativo, Executivo e Judiciário). O termo é usado quando se pretende discutir em como a imprensa atua na sociedade no enquadramento de notícias que são levadas ao conhecimento público, incluindo a agenda política sobre os debates, eleições, gestão, atos legais ou ilegais que acontecem na política contemporânea. Existem, pelo menos, três definições atribuídas à imprensa (mídia) a função de quarto poder. Dentre essas, as mais usuais são: o Fourth Estate, Fourth Branch e o Poder Moderador.

[10] Considera-se comumente que o termo ideologia se originou com Destutt de Tracy, que o empregou no sentido de “ciência das ideias” em sua obra Les éléments de l’idéologie (1801).  Então, ao menos originalmente, a equação estava invertida e a ideologia era de fato uma ciência. De Tracy pertencia a um grupo intelectual, os “ideólogos” franceses que, na tradição de Étienne de Condillac, rejeitavam a metafísica e eram adeptos da crença no progresso humano, buscando uma fundamentação antropológica e psicológica para a cultura, tendo apoiado politicamente a ascensão de Napoleão Bonaparte. Mannheim localizou a origem histórica da depreciação que se faz contemporaneamente do termo ideologia na acusação de Napoleão Bonaparte a esse grupo quando se opuseram a seus projetos imperialistas. Eles acabaram alijados do poder pelo próprio Napoleão, que em 1812 os chamou de metafísicos tenebrosos e os acusou de serem responsáveis pela derrota militar francesa na Europa.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Verdade Pós-verdade Fake News News Jornalismo Interpretativo

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