A pós-verdade e fake news
Tanto a pós-verdade como fake news são fenômenos contemporâneos que podem ser explicados pela Filosofia e pelo Direito e, seus efeitos no plano real são alvo de constantes estudos e análises que também abrangem a sociologia.
Os conceitos sobre fake
news e da pós-verdade correspondem ao problema das notícias que
progressivamente inundam o cotidiano contemporâneo e, se passam por verdadeiras
e exercem impactantes efeitos de poder, independentemente de sabermos se estas
são ou não verdadeiras. Partindo da crítica elaborada por Nietzsche à teoria da
verdade tida como correspondência, destacou seguindo Foucault indestrinçável
existente entre a verdade e o poder.
E, apontava para uma concepção perceptivista
de verdade, que parece ser mais apta a descrever o que ocorre com as fake
news, mas também capaz de fornecer critério de decisão entre perspectivas
no plano mais amplo do conhecimento.
A suposta isenção e
objetividade jornalísticas é, a sinceridade sobre os próprios interesses e
impulsos que aparece como critério de decisão e como ponto de partida para uma
ética perspectivista.
Em 2016 deu-se a inclusão do
verbete "pós-verdade" no Dicionário Oxford da língua inglesa. O que
nos faz retornar ao problema filosófico da verdade. Afinal, o que é verdade? Há
segurança em apontar o que é verdadeiro?
E, perpassando as ideias de
Nietzsche e também de Foucault, o que resulta em uma crítica à teoria da
verdade como correspondência. Eis que a noção de Nietzsche do que é tido como
verdadeiro intervém de modo decisivo.
Enfim, essa noção tem
praticamente o mesmo significado que as fake news, isto é, notícias que
não se sabe se são ou não verdadeiras, mas que são tidas como se fossem. Nota-se que, inerentemente de como podemos
verificar tais verdades, estas produzem efeitos de poder como se fossem
verdadeiras, sendo nisso semelhantes as noções como Deus, Estado, direito ou loucura.
Enfim, as nobres objeções
feitas por Nietzsche à concepção tradicional de verdade implicam a
impossibilidade de uma refutação da pós-verdade, em termos correspondenciais,
uma vez que não temos acesso ao fato relatado por uma notícia, senão através de
uma notícia.
Porém, isso não significa que
se deva aceitar como verdadeiro[1] todo tipo de notícia que
apareça. Toda verdade produzida pela mídia, toda notícia é resultado de certo
recorte ou enquadramento da realidade, isto é, é uma certa perspectiva, que se
atrela inevitavelmente a algum interesse natural, histórico, vital.
Por essa razão, antes de estar
vinculada aos valores como objetividade
e isenção jornalística, a
ética da mídia
deveria estar ligada,
em primeiro lugar, à
sinceridade a respeito de como
esses interesses vitais são veiculados pelas notícias que são difundidas.
É essa sinceridade que é um
dos valores básicos
daquilo que se
pode chamar de uma
“ética perspectivista”, a qual pode ser aplicada à prática midiática, mas também além dela.
A relação de incompatibilidade
entre as noções de fake news e de verdade como correspondência, bem como
a inviabilidade do uso desta para criticar aqueles. Depois, trata-se dos
efeitos de poder que alguns discursos podem adquirir, independentemente de que se
saiba se eles são verdadeiros ou não.
Após isso, aborda-se o sentido
e as implicações da reação da mídia em relação à propagação da pós-verdade.
Finalmente, identifica-se algumas pistas ou vestígios no que se refere à
construção de uma ética perspectivista, em a sinceridade desponta como valor
central.
Atualmente tramita no
Congresso Nacional uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, designada como
CPMI das Fake News e tem como fim: “Investigar, no
prazo de 180
dias, os ataques
cibernéticos que atentam
contra a democracia e o debate
público; a utilização
de perfis falsos
para influenciar os resultados
das eleições 2018;
a prática de cyberbullying sobre os
usuários mais vulneráveis da
rede de computadores,
bem como sobre
agentes públicos; e o
aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e
suicídio”. (SENADO, 2020)
Apesar de que as fakes news
não tenham ainda se tornado um tipo penal específico, essa CPMI sinaliza o
reconhecimento de que há problemas políticos e jurídicos implicados.
O cerne da questão são os
ataques cibernéticos e as práticas de cyberbullying direcionados a
agentes públicos, que muitas vezes são utilizados como táticas de marketing
eleitoral. E, tais técnicas e táticas se mostram, cada vez mais poderosas e
decisivas.
Todos os sinais são capazes de
nos alertar de que as fakes news são perigosas, principalmente, no que
concerne à política. Depois que vem à tona a verdade dos fatos, o
comprometimento real é inestimável. Foi o que aconteceu na disputa entre Hilary
Clinton e Donald Trump, nas derradeiras eleições norte-americanas. E, a notícia
sobre Hilary era falsa, mas foi tida como verdadeiro e, isso fora o suficiente
para que dela decorressem efeitos reais e concretos.
E, assim, parte do eleitorado
de Hilary foi levado a mudar de voto. Trata-se aí da questão dos Big Data
e de sua utilização na produção de fake news, de acordo com estratégias
de marketing político. Faz tempo que existem empresas especializadas em
prestar esse tipo de serviço, como é o caso da Cambridge Analytica, do
Reino Unido, que teve participação decisiva na vitória, até aqui, parcial do
Brexit.
E, por causa disso que muitos
parlamentares brasileiros da atual CPMI das fake news têm denunciado a
existência de autênticas milícias jornalísticas, com firme atuação nas redes
sociais, que seriam especializadas em destruir reputações e difamar políticos.
Há pouco tempo que a noção de fake
news emergiu juntamente com a noção de pós-verdade. E, o Dicionário Oxford
passou a incluir também o verbete post-truth, a partir de 2016, quando foi
considerada a "palavra do ano".
E o significa é, in
litteris: "“Adjetivo. Relacionado a ou que denota circunstâncias em
que os fatos objetivos têm menos influência da modelagem da opinião pública do que apelos à emoção
e à crença pessoal”(OXFORD,
2020).
O que essa definição sugere é que
as fake News não são apenas
notícias falsas, mas em certo sentido, “pós-verdadeiras”. Em outras
palavras, são notícias falsas ou notícias que não se sabe se são realmente
verdadeiras, são notícias cuja veracidade não deriva de “fatos objetivos”, mas de
apelos à emoção e à fé, notícias que passam por verdadeiras, sem “de fato” serem.
Afora isso, a noção de
pós-verdade aponta para espécie de era, que já foi chamada de “Era da
Pós-verdade[2]”,
posto que a verdade tenha se tornado obsoleta e inútil, particularmente, do ponto
de vista daqueles que exercem o poder.
A história política da verdade
é mesmo a história das relações entre verdade e poder, sendo bastante urdida e
complexa. E, mesmo fora do campo da política, não é possível se restringir à
concepção da verdade como correspondência.
A política é o campo de quem legisla e não se legisla a partir de uma verdade dada. Pelo revés, a lei, em certa medida, institui o que é verdadeiro. A verdadeiro não antecede a lei, mas a sucede, na medida em que, devido ao princípio da irretroatividade da lei, sempre se legisla acerca do futuro político cujo discurso visa lançar as bases para uma sociedade mais livre, mais igualitária, mais justa e, etc., também se refere ao futuro e fala, necessariamente, daquilo que ainda não é verdadeiro, ou ainda, que no presente não corresponda a nada.
Em política, a verdade é quase
sempre, da ordem de uma construção, de uma invenção, de uma promessa e quase
nunca da ordem de uma descoberta. Na época em que atual Constituição Federal
brasileira estava ainda sendo elaborada, o então deputado
Ulysses Guimarães teria sido
questionado por um entrevistador assim: “Dr. Ulysses, atribui-se ao senhor a
autoria da frase ‘Em política, mais importantes do que os fatos são as versões’.
É verdade?” Ao que ele teria respondido: “É o que dizem”.
Político experiente, ao invés
de dar fim a uma polêmica sobre o que pode ser considerado como a pós-verdade avant
la lettre, Dr. Ulysses preferiu simplesmente continuá-la.
Esse exemplo serve para mostrar
que a pós-verdade é algo que existe há muito mais tempo do que se imagina
atualmente e que a principal dificuldade existente em se cogitar
de uma “era da pós-verdade” está em estabelecer quando essa era começou, pois
talvez a chamada “pós-verdade” seja tão antiga quanto a própria política e tenha sua história, em grande parte,
confundida com a dela.
Afinal, por ter criticado a
ideia de uma verdade última, fundamental e absoluta e por ter entendido a
verdade como sendo criação e como produção de sentido. Nietzsche é lembrado,
por vezes, como espécie de apologista da pós-verdade e das fake news. E,
tal raciocínio resta equivocado.
E, o equívoco está na própria
concepção de pós-verdade como uma novidade, quando, na prática, esta acrescenta
muito pouco em referência ao que Nietzsche ainda no século XIX e outros, antes
dele, já haviam descrito. E, percebe-se então que a noção de pós-verdade se
mostra inócua. Irrisória.
De fato, esta não resulta de nenhuma
elaboração filosófica, mas é antes um constructo da mídia que levanta a
bandeira de uma luta contra a pós-verdade, em nome de todos e no interesse da
verdade autêntica, da isenção e da objetividade, mas que sabemos que está
distante de ser kantiana e, portanto, tem seus interesses.
A concepção acrítica de que a
mídia pressupõe é a mesma que se encontra, em larga escala, no senso comum,
isto é, o correspondencialismo, que por sua vez se lastreia em metafísica da
substância. Para a mídia, verdadeira é a notícia que corresponde a uma
realidade que é constituída por fatos em sentido substancial.
Toda notícia que não
corresponde aos fatos da realidade é falsa. Portanto, a correspondência é o
critério para se distinguir news (verdade) e fake news
(falsidade). Porém, não é tão simples assim. A teoria correspondencial da
verdade pressupõe que temos, de alguma forma, acesso direto aos fatos que
comparamos a uma notícia, para saber se esta é verdadeira ou falsa. O maior e
crucial problema é que não temos esse acesso direto.
Uma das principais instituições
de Nietzsche reside na constatação do enunciado, informação, uma notícia não
precisa ser verdadeira para ser tida como se fosse. Com efeito, não a verdade,
mais o que é tido como verdadeiro é o alvo de suas reflexões.
O termo fake news
designa exatamente o mesmo, informação que não se sabe se é ou não verdadeira,
mas que, independentemente disso, conta como se fosse.
Pode-se afirmar que uma das
principais intuições do filósofo Nietzsche reside na constatação de que um
enunciado, informação, uma notícia não precisa ser verdadeira para ser tida
como se fosse. Mais o que é tido como verdadeiro é algo de suas profundas
reflexões. O termo fake news designa exatamente o mesmo: uma informação
que não se sabe se é verdadeira não, mas que, independentemente disso, conta
mesmo como se fosse.
Há casos em que uma relação de
correspondência não pode ser constatada. Também há casos em que relações de correspondência,
que eram tidas como certas, depois foram desmentidas.
Enfim, há casos como esses,
nos quais o
discurso, que pressupõe
essa relação
de correspondência contestada ou contestável, ainda assim “vale
como verdadeiro”. Em um fragmento póstumo do outono de 1887, Nietzsche (FP
18879) chama isso de Für-Wahr Halten.
É algo como “valer como verdadeiro”,
“passar por verdade”, “ser considerado verdade”, sem que no entanto se possa
sabê-lo. O exemplo fundamental disso é o conceito de “Deus”. Pode-se dizer que
mesmo que Deus nunca tenha existido, mesmo que já se tenha provado isso ou que,
um dia, a ciência prove isso, mesmo assim o conceito de “Deus”, os enunciados e
os discursos que o empregam, não deixarão de ter produzido efeitos de verdade
ou de ter “valido como verdade” (für-wahr-gehalt).
Pelo contrário, é possível que
esses discursos tidos por verdadeiros continuem a produzir efeitos que podem
ser designados como “efeitos de verdade”. Não é verdade, mas produz efeitos
como se fosse (Feuerbach e Marx parecem encaminhar a discussão acerca da
“alienação”, mais ou menos, nesse sentido. A discussão sobre “ideologia” também
passa por aí).
Cumpre frisar que isso não se
refere ao valor de verdade, no sentido da lógica desses enunciados. Esses
efeitos de verdade se produzem, por assim dizer, fora do reino da lógica ou de
acordo com uma logicidade que eles mesmos tentam instaurar, inerentemente de os
enunciados respectivos serem verdadeiros ou falsos. E, que os efeitos de
verdade, são esses que tais enunciados indeterminados ou indetermináveis
produzem? Não são efeitos de verdade, simplesmente, mas também efeitos de
poder.
Daí o filósofo ter enunciado
que "vontade de verdade é vontade de poder". Muitas vezes, não se
quer a verdade pela verdade.
Por exemplo, em geral, não se
quer ter a verdade sobre Deus simplesmente para ter a verdade. O que se deseja
é o exercício do poder que é conferido àquele que detém a verdade sobre
Deus.
E veja que esse “poder sobre a
verdade acerca de Deus” pode ser exercido até mesmo pelos ateus. Que interesse
há em dizer que “Deus está morto”? Não há interesse algum em dizer isso. O que
se quer dizer é que a verdade está morta, isto é, que a verdade enquanto Deus,
para nós, morreu.
Noutras palavras, quando a
verdade é de um enunciado é uma evidência, como é o caso da falsidade das
contradições e de enunciados fáticos simples, quando praticamente não existe
disputa sobre isso. É preciso demonstrar que isso não é uma banalidade para que
as pessoas passem a discuti-lo.
E, nesses casos, podemos
facilmente admitir que as relações correspondenciais e afirmar que certa frase seja
verdadeira ou que seja falsa. Talvez, Karl Popper afirmasse, só ela é
verdadeira porque ainda não foi refutada, a sua veracidade não foi questionada.
Se há ou não uma relação de
correspondência, isso é um problema a ser resolvido por uma teoria da verdade
como correspondência. Mas, o ponto de vista que se quer propor não é esse e ele
nem valida
nem invalida o ponto de vista
desta ou de qualquer outra teoria da verdade. É antes mera tentativa de
apreender uma outra faceta desse mesmo problema, aquele plano em que a verdade
é uma interface do poder.
Portanto, possivelmente
possamos afirmar que o questionamento que interesse ao filósofo como Foucault e
Nietzsche começa quando chegamos até às verdades disputadas ou disputáveis.
Atualmente, é notório que Deus seja uma dessas verdades disputáveis. Mas, esse
tipo de fenômeno de valor como verdadeiro é mais frequente do que em geral se
imagina.
O Estado a que fato ele
corresponde? Constrói-se um discurso e uma série de práticas que empregam esse
conceito e que exercem poder, que é feto para exercer poder sobre as pessoas de
forma muito real e concreta, como se fosse verdade inquestionável.
Tendo em vista as guerras
protagonizadas pelo Estado, desde que o discurso e a prática ligadas a esse
conceito nasceram. E, assim, portanto, independentemente de o Estado ser real
ou não, corresponder ou não, esse termo, esse significante exercem seus efeitos
no plano real.
O mesmo se pode afirmar para o
Direito[3]. A que fato o direito
corresponde? É norma, diriam os juristas. Pois, não é da definição de norma, do
valor, não ser um fato? Pelo motivo de que não correspondam a um fato, pode-se afirmar
que os valores, amoral, o direito, a estética, não existem?
Por outro viés, em qual
sentido eles existem, se não são como fatos,? Eles existem como nomes,
designações, mas não com nomes quaisquer, e, sim, nomes e nomenclatura que
possibilitam o exercício do poder ou o governo dos homens. Aliás, podemos dizer
o mesmo sobre o próprio conceito de homem, que não é eterno.
Assim essa coisa indeterminada
que só pode ser uma série caótica de fatos, se for da ordem de um fato, a que
os discursos das ciências humanas vêm chamando de "homem", mais ou
menos, desde o fim do século XVIII, pois bem, o conceito de "homem"
enquanto objetivação nem sempre existiu e, talvez, este na iminência de
desaparecer.
Percorrendo-se as abstrações
históricas não existem como fatos constatáveis e que possam correspondem a um
fenômeno diretamente observável e, assim, foi que Foucault disse que constitui
uma espécie de "nominalismo histórico". Os universais históricos não
existem como fenômenos reais, porém, apenas como nomes, meras palavras (flatus
vocis).
A vantagem do nominalismo
histórico é que não vai afirmar apenas os universais que não passam de nomes.
Mas, vai procurar investigar de que forma foi possível a esses nomes interferir
na história, muitas vezes, determinando relações de poder. Se se quiser, o que
está em jogo aí não é a questão da verdade per se, mas a questão dos efeitos de
poder dos discursos considerados como verdadeiros, sejam eles verdadeiros ou não.
Pode-se até afirmar que o
poder produz certas verdades, mas isso não quer dizer que todas as verdades
sejam produzidas pelo poder. Quando se diz que a verdade morreu, o que se pretende
dizer é que as verdades produzidas pelo poder morreram, ou seja, não devem mais
produzir efeitos, não devemos nos submeter às tais verdades, devemos resistir.
A generalização é, realmente,
retórica, que cumpre seus motivos político-pedagógicos. Não deixa de haver
certa relação, de caráter bizarro, com o esclarecimento, com o iluminismo.
No campo da prática, como a
prática médica, do saber e das práticas psiquiátricas. Apesar de não ser campo
habitual de discussão filosófica,
mas que exige reflexão concernente aos usos da verdade. Afinal, qual é o
conceito de loucura.? A loucura é um fato ou uma série de fatos?
A loucura, particularmente,
não corresponde a nenhum fato delimitável. Afinal, ser louco ou estar louco
seria bordejar o limite e, mais, ira além da sanidade, da normalidade, da
racionalidade. O louco é irracional. Como construir um discurso que diz a
verdade sobre a loucura? Teria a psiquiatria sólida teoria verdadeira da
loucura?
Lembremos como se constrói o
conceito de “esquizofrenia”, que é de definição residual, por exclusão. Todos
os “pacientes” que não se encaixam em alguma outra categoria de psicose são
incluídos pela psiquiatria no rol dos esquizofrênicos! A psiquiatria não define
o que é “esquizofrenia”, noção que é um mero nome, um substituto de outro nome,
mais popular, que é “loucura[4]”. Como é possível um tal
diagnóstico?
A que fato ele corresponde?
Para que ele possa corresponder a algum fato, no caso, o fato “loucura”, é
preciso primeiro que esse fato tenha sido construído como um fato por um certo
saber e que, em seguida, tenha sido imposto à realidade por meio de uma prática
baseada nesse saber.
Agora, como se pode fundar uma
autoridade à qual
se delega o poder de interver em nível psiquiátrico (físico, químico e
somático) sobre as pessoas? Que direito têm ou tiveram eles de dar choques nas
pessoas, em nome da “verdade” e da “ciência”, para curá-las, sem terem a menor
ideia do que estavam fazendo? É o intolerável. É o horrendo. Não pode haver
nada de mais perigoso. E é praticado em nome da “verdade” e da “ciência”!
Há casos também ligados à
psiquiatria. São os casos de racismo e da homofobia. Aliás, as práticas médicas
da primeira metade do século XX eram abertamente racistas. Como um enunciado:
"Todo judeu é uma doença" poderá ser considerado verdadeiro? Sob qual
hipótese um fato pôde ter correspondido a essa sentença (de morte)?
Ou ainda, a psiquiatria
homofóbica que até 1986 considerava o homossexualismo uma doença.
Em 17 de maio de 1990, a
homossexualidade foi retirada da lista internacional de doenças pela OMS
(Organização Mundial da Saúde). Antes de 1990, vários países puniam pessoas
homossexuais com o rigor da lei e em alguns, a sentença era a morte.
A determinação da OMS
representou um grande avanço para a comunidade Lgbtqi+ que por décadas
enfrentaram e ainda enfrentam todas as formas de discriminação e preconceito
diante da orientação sexual. Desde então a data passou a ser usada como símbolo
de combate ao preconceito a todos os segmentos da diversidade sexual, no
entanto o preconceito ainda existe.
Em 2019 o Supremo Tribunal
Federal (STF) determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade
de gênero fosse criminalizada. No entanto o país ainda não tem lei tipificada
para punir as agressões discriminatórias. A conduta passou a ser punida pela
Lei de Racismo (7716/89), que hoje prevê crimes de discriminação ou preconceito
por "raça, cor, etnia, religião e procedência nacional".
A determinação do STF, é
também para que o Congresso Nacional crie uma lei específica para identificar e
punir ações que violente os direitos e a vida de todo segmento da diversidade
sexual. Enquanto isso a homotransbifobia será tratada como um tipo de racismo. Ainda assim, representa um grande avanço para
a população LGBTQI+.
A Comunidade tem alcançado
alguns direitos após muitos anos de luta. O direito ao uso do nome social em
carteira de identidade, permissão para a adoção de crianças, doar sangue, união
instável são alguns desses direitos. Concorrer a cargos eletivos também
permitiu que a diversidade ocupasse os bancos de Câmaras Vereadoras,
Municipais, Legislativas e o Congresso Nacional.
Novamente, a que tipo de fato esse
conceito poderia corresponder? Por que
uma relação sexual
entre dois corpos
de mesma genitália deveria
ser considerada uma doença? O que se quer saber aí, não é o que é a
verdade, mas qual é o regime, as regras, os argumentos que possibilitaram que
esse tipo de discurso e de prática fosse considerado como
"verdadeiro".
Nietzsche foi um pensador que
percebeu a existência do que é considerado como verdadeiro sem ser, mas isso
não significa que fora um defensor disso. Ao revés, o que fez foi a crítica da
verdade enquanto o que é tido por verdadeiro sem que saibamos, com absoluta
certeza, se exige algo que possa ser considerado verdadeiro. O filósofo
analisou a pós-verdade quando esta ainda nem tinha esse nome, mas jamais fez a
apologia a ela.
Ele denunciou toda verdade
como pós-verdade, tendo anulado a suposta diferença entre fatos objetivos e
apelos emocionais, ou ainda, entre enunciados que correspondem a fatos e
enunciados que não correspondem.
A crítica de Nietzsche à noção
de verdade inviabiliza, portanto,
qualquer defesa da pós-verdade, mas
inviabiliza também a
crítica que se
faz, de maneira
geral, à pós-verdade.
Essa crítica procede de uma concepção
correspondencial de verdade,
para a qual
a pós-verdade deve ser
eliminada porque não
corresponde aos fatos.
Sem dúvida, esses
arautos da verdade ficariam surpresos se alguém lhes dissesse
que, a rigor, nada corresponde aos fatos, que a própria noção de fato
é, em “última instância”,
uma construção, e que
suas verdades não
são assim tão diferentes daquelas que eles repudiam
como “pós-verdades” ou “pré-mentiras”.
E quanto à questão das fake
news, agora em mais detalhes. As fakes news se opõe às news,
assim como notícias falsas se opõem a notícias verdadeiras, ou ainda, assim
como notícias que não correspondem aos fatos se opõem a notícias que
correspondem aos fatos.
A mídia, que foi quem primeiro
saiu em luta contra as fake news, termo que ela se encarregou de popularizar, alega
que suas notícias são
sempre news, ou seja,
que elas correspondem efetivamente aos fatos a que se
referem. Isso devido à prática de valores como objetividade e a isenção jornalística.
No entanto,
se tivermos em
mente a crítica de
Nietzsche, e de
outros, à concepção de verdade
como correspondência, veremos que a pretensão de veracidade da mídia não se
sustenta. Ora, nem mesmo a ciência[5] consegue sustentar essa
pretensão, como a mídia poderia fazê-lo?
Cumpre ainda observar que os
tempos de produção de verdade científica e de uma verdade midiática são muito diferentes.
O tempo da ciência é lento, pois leva muitos anos para que uma teoria seja
finalmente admitida como verdadeira (e, esta sempre terá algum ponto em disputa).
O tempo da verdade midiática é
rápido, célere, é o do furo de reportagem, é da ordem do imediato. A apuração
dos fatos e a verificação das fontes é inteiramente sumária. Assim, a verdade
midiática precisa satisfazer muito menores exigências do que a verdade
científica e quiçá a verdade judiciária e a verdade jurídica.
A verdade jurídica[6] é, na essência, um ato de
valor. Isso, todavia, não significa que ela dependa do arbítrio ou do capricho
do sujeito que a propaga. Por isso, há de se referir a um discurso coletivo, em
que o consenso se torna a pedra angular.
Já a verdade judiciária pode
ser refletida na coisa julgada, que o direito contemporâneo tem trazido sua
progressiva relativização em prol de produzir maior justiça e menores
desigualdades.
De fato, existem diversos
enfoque sobre o conceito de verdade. O primeiro é o da verdade por
correspondência. Assim, a ciência teria por objetivo revelar os fenômenos da
natureza tal como eles se apresentam. Foi Aristóteles o maior precursor dessa
corrente filosófica ao defender o uso dos sentidos como forma de captar a
realidade, erigindo-os à condição de fonte primeira de conhecimento.
Já a verdade por coerência
preserva a ausência de contradição dentro de um sistema. Refere-se a uma verdade
interna de determinada teoria. E, seguindo as regras e princípios existentes no
interior do sistema, o sujeito cognoscente passa a desenvolver o seu trabalho
até concluir, pela lógica, a verdade que deve prevalecer em certa hipótese. As
proposições são aceitas como verdadeiras e são deduzidas umas das outras.
A verdade pragmática também
chamada de verdade como utilidade e, considera como verdadeiro um enunciado quando
houver efeitos práticos para que o sustenta. Para essa corrente filosófica, a
verdade não seria um valor teórico, mas somente expressaria a utilidade para a
conservação da vida e das relações de poder. Nega-se o caráter de
cientificidade a esse pensamento, ante a restrição do conceito de verdade ao
pragmatismo.
A verdade consensual resulta
do consenso, ou seja, o acordo entre os indivíduos de determinada comunidade ou
cultura. E, se baseia na communis opinio.
A verdade por consenso também
pode ser encarada como algo constituído pelo sistema onde se insere. Tal
corrente filosófica defende a impossibilidade da verdade absoluta, pois o
consenso prestigiaria a sua contextualização social, relativizando as opiniões
comuns ou dominantes com o passar do tempo em busca de novos consensos.
Durante décadas a filosofia,
notadamente a Teoria do conhecimento, dedicou-se a investigações acerca do
conhecimento, preconizando a existência de um sujeito cognoscente e um objeto
cognoscível. Grosso modo, podemos dizer que toda a discussão que envolvia o
conhecimento estabeleceu-se nos moldes desse quadro dualístico, e que alguns representantes
depositavam mais confiança e importância no objeto, outros, no sujeito
cognoscente.
Enquanto a filosofia de
Sócrates baseia-se em uma concepção de verdade única, imutável, absoluta, a
filosofia sofista defenderá a
relatividade da verdade, a sua possibilidade de transformação de acordo com a operação do λόγος (lógos)
Algo pode assim, segundo
Protágoras, por exemplo, anunciar-se como verdade ou como mentira, como a favor
ou contrariamente a determinado argumento, e será essa flexibilidade do conceito
de verdade e a possibilidade de manipulá-la para A ou para B, para o sim ou
para o não, em que serão construídos os exercícios de persuasão e as aulas de
retórica que farão dos sofistas famosos
professores entre as pólis gregas.
Desde já, somos confrontados a
pensar na verdade como absoluta ou relativa, pondo em xeque, portanto, qualquer
noção de objetividade ou de retrato fiel das coisas ou do mundo. Essa contenda
insolúvel contribuiria, em larga medida, para o nascimento daquilo que hoje chamaríamos
de política.
Com o surgimento da Filosofia
da Linguagem, inaugurada com a obra “Tractatus lógico-philosophicus” de
Wittgenstein[7],
a teoria do conhecimento, inicialmente centrada no caráter exclusivamente
descritivo da linguagem, sofreu profunda alteração: a linguagem passou a ser
considerada como algo independente do mundo da experiência, convertendo-se em
algo capaz de criar tanto ser cognoscente quanto a realidade.
É que o ser humano encontra-se
inserido no “cerco inapelável da linguagem” e só por meio dela é que mantém
contato com o mundo físico, sem, entretanto esgotá-lo completamente, afinal a
linguagem apta para falar do mundo é inesgotável.
O tempo de produção da verdade
via processo judicial é lento, em que pesem os pedidos de urgência que podem
ser feitos e as medidas saneadoras que podem ser tomadas. Dessas três, ciência,
Justiça e mídia, a verdade da mídia é a que é mais hipotética, em que sentido
ela é verdade?
Segundo a concepção
perspectivista de verdade que se pode depreender de alguns escritos de
Nietzsche, como a obra “Além do bem e do mal”, ajuda-nos a explicar e entender
tudo isso.
Toda notícia da mídia não
importa quais sejam seus graus de objetividade e de isenção que, em todo caso,
serão sempre inferiores aos da ciência e do judiciário, toda notícia é apenas
uma perspectiva, e não a verdade pura e simples a respeito de certo tema.
Uma perspectiva implica sempre
em recorte, um olhar parcial, uma seleção da realidade e, Nietzsche acrescenta,
uma seleção necessariamente arbitrária da realidade, feita em razão de um
interesse de uma certa forma de vida. Portanto, aquilo que a mídia chama de
news não é jamais um fato nu e cru, mas uma perspectiva, a perspectiva da
mídia, acerca do que efetivamente se passa.
Não é
difícil observar que
assim como as news são perspectivas,
recortes seletivos da realidade, as fake news também são perspectivas.
Isso significa que se as news não são necessariamente verdadeiras (e a história
dos equívocos jornalísticos mostra isso), as fake news não são necessariamente
falsas, ou melhor dizendo, elas não são apenas falsas.
Elas são perspectivas, sempre
foram. Com efeito, as fake news,
com esse nome, só se
tornaram um problema há alguns,
mais especificamente em
2016, no chamado “ano da pós-verdade”.
Por que exatamente em 2016?
2016 foi o ano em que o usuário médio das redes sociais descobriu como
se fabricam notícias e como se
inventam verdades.
Precisa-se apenas de um pouco (cada vez menos) de tecnologia e de um mínimo de criatividade. Acontece que esse é exatamente o “negócio” dos veículos de mídia em geral: produzir verdades, que supostamente corresponderiam aos fatos.
De seu lado, a mídia diz que
esse não é o negócio dela, mas da ciência. Isso, porém, faz parte do próprio
negócio. E, a ciência, realmente, nunca conseguiu converter verdades em
negócio(business)como a mídia faz.
Aos olhos do jornalista, o
cientista e o intelectual sempre parecem um tanto ingênuos, afinal nem imaginam
que todo o seu esforço desinteressado pela “verdade” não vai valer de nada, em
nosso mundo, enquanto a verdade científica não tenha sido devidamente
diagramada e difundida como “verdade” pela mídia.
O jornalista também olha para
o político dessa maneira, mas sabe que esse não tem nada ingênuo, nem faz o menor
esforço pela verdade, embora construir
a verdade seja o
interesse básico e atividade típica do bom político no
dia-a-dia, é o seu “negócio”, muito mais do que do cientista ou do intelectual.
Em todo caso, devido ao
instinto de sobrevivência que é altamente aguçado nas empresas capitalistas
atuais, ao se ver ameada por uma
concorrência assimétrica que assalta precisamente o monopólio da criação da
verdade jornalística, naturalmente, a mídia reage. E, essa reação assume, já em
2016, a forma de campanha contra a pós-verdade e as fake news que marcha
agora a pleno vapor.
No entanto, se fosse levada,
coerentemente, até o seu limite a crítica à pós-verdade e às fake news
deveria acarretar a abolição da própria mídia. É claro que esse já não é mais o
interesse da mídia: a crítica precisa parar antes disso. Com efeito, esse é precisamente
um dos aspectos que, de acordo com a mídia, devem ficar do recorte.
A novidade que querem
transformar em um escândalo, como de costume, é que aqueles que deveriam
ser os destinatários, no máximo, participativos das
verdades postas à venda no mercado pela mídia, de repente,
começaram a fazer por conta própria a mesma coisa que a mídia desde sempre
tinha feito. Aliás, a mídia se fez fazendo isso: produzindo a verdade.
E não
há nenhuma culpa
do jornalista nisso;
o que ele
faz, ao fazer
a verdade diária,
ou hebdomadária, não é propriamente uma maldade. Premido pela lógica
espaço-temporal do furo de reportagem, ou seja, tendo em vista que tempo e
espaço são dinheiro, o discurso midiático caracteriza-se, necessariamente, por
um déficit de verificação fática e, por vezes, até mesmo de validade
lógica.
Os jornalistas fazem isso porque
sabem, e fizeram disso
uma profissão (possivelmente tanto
quanto os pastores),
que independentemente desse
detalhe que é
o seu déficit necessário
de veracidade, um
discurso pode produzir
efeitos de verdade
ali onde realmente conta,
que não é
na universidade (condomínio privado)
devidamente cercado
destinado àqueles que
desejem perder suas
vidas digladiando-se pela
verdade, mas no imaginário da massa.
Conclui-se que a
verossimilhança é plenamente suficiente para se conquistar os corações e as
mentes das massas. E, nisso o gênero jornalístico aproxima-se definitivamente
mais da retórica e do direito que da ciência (embora, de acordo com a mídia,
isso não deva ser dito).
Pretendendo compensar esse
déficit sine qua non, o discurso midiático remete constantemente para fora
de si mesmo. Integra as regras de seu
jogo que o jornalista não seja (quase) nunca a testemunha, nem tampouco
autoridade. É a isso se chama de isenção jornalística.
E, seja como for, divulgar
como verdadeira uma afirmação sem saber se ela é efetivamente verdadeira é
essencial para o gênero midiático. A questão ora abordada em torno da gestão do
significado do que é efetivamente verdadeiro. E, é evidente que o jornalismo se
caracteriza por lassidão maior a esse respeito do que a ciência.
Não faz muito tempo houve
acirramento de um processo que começou há muito tempo e que teve seu clímax na
Web 2.0(redes sociais, blogosfera, wikis), o usuário da internet, mesmo sem dar
conta disso na maioria das vezes, vê-se munido de um poder que, em princípio,
segundo a mídia, deveria ser, exclusivo dela.
Portanto, esta revida de
imediato, revida de imediato, declinando um estilo acusatório um tanto artificioso,
como de praxe, a fim de advogar em causa própria, de uma maneira que
evidentemente se aparta de qualquer isenção possível.
O que se sabe
ao certo é que o discurso catastrofista tem grande força retórica, desde tempos
imemoriais. É como se, depois de séculos vendendo as verdades que produz, a
mídia nos dissesse: “Ei, esse negócio de fabricar verdade e inventar fatos não
é de vocês. Vocês deveriam consumir isso e não produzir. Fomos nós que chegamos
primeiro! Vocês pensam que é fácil?” E, passando do tom de ameaça ao vaticínio:
“A verdade de
vocês não é verdade como a nossa, pois não passa de uma pós-verdade, isto é,
uma pré-mentira”. Aí eles filosofam,
muito embora em
geral, para eles,
o deslizamento filosofante seja o
que há de mais incompatível com o formato da notícia.
Então a imprensa vai à
imprensa[8] para denunciar algo que
seria como um Estado de Exceção da multidão de internautas, uma usurpação do
Quarto Poder[9]
pela massa de comunicação amorfa e perniciosa com tendência à delinquência
cibernética, cujo exemplo mais terrível seria aquele dos hackers black blocks.
Nesse ponto é que a
pós-verdade e as fakes news compõem o panorama que o Assange chamou de
infoapocalipse com seus quatro cavaleiros: o narcotráfico, o tráfico de armas,
a pedofilia e o tráfico de seres humanos, que supostamente dominariam a Deep
Web, embora não se saiba ao certo.
O conceito
de “pós-verdade” pertence
à estratégia de
sobrevivência da mídia decadente e obsoleta do nosso tempo. É um discurso não se dissocia da ideia de que
eles, os produtores das aparências
das aparências, as
plataformas de espetáculos, é
que seriam os guardiões da verdade.
Seja como for, a tendência
cujo anúncio se formula com esse conceito de pós-verdade, pouco importa de onde ele
tenha vindo, é de que a abolição, mais ou menos rápida, da propriedade
midiática privada da verdade já está em
curso. Com efeito, ela constitui um movimento, um descarrilamento, um
arrebentamento que, cedo ou
tarde, nem o Quarto Poder vai conseguir conter.
Eis que há a questão da
pós-verdade que se coloca de forma mais aguda. E, a velha armação conceitual da
crítica à ideologia já não nos ajuda. Seria preciso deixar de pensar em termos
de ideologia e ciência e, passa a pensar em termos de verdade e poder.
Desse modo, as fake news
não estariam mais para a ideologia assim como as news estão para ciência. Tanto
que as news quanto fake news são verdades produzidas por relações de poder, de
modo que, o critério correspondencial de verdade não ajuda a distingui-las.
Por certo, é preciso um
critério para distingui-las, mas qual? Afirmar simplesmente que a esquerda lida
com dados reais, fatos e verdades enquanto a direita nos manipula com notícias
falsas, ilações e mentiras é fácil demais para ser verdadeiro.
No fundo, a verdade tem mais
caprichos e pudores que podemos supor... A partilha tão simplória do verdadeiro
e do falso entre a esquerda e a direita não é nem um pouco interessante do
ponto de vista estratégico.
E, novamente, a concepção
perspectivista de verdade nos auxilia a explicar o que se passa. Todo discurso,
enunciado e informação estão sempre ligados a um interesse e nessa medida se
articular sempre como um instrumento de poder, como uma arma de luta.
Cogita-se, então, sobretudo na
política, de armas discursivas e de batalhas discursivas. Um discurso é uma
representação da realidade, um recorte de um todo que não podemos captar em sua
inteireza. E, do ponto de vista do que seria a realidade objetiva, esse recorte
se faz arbitrariamente. Mas, tal recorte é sempre feito em razão de um
interesse e de um interesse vital, ou ainda, do que está em jogo para a
manutenção e para a expansão de uma forma de vida.
Todo conhecimento, toda
verdade e toda ciência é ideológica[10]. Não se pode nem é
preciso contrapor ciência a ideologia, discurso ideológico ao discurso
não-ideológico, a pureza da verdade do lamaçal dos interesses, ou da teia do
poder.
É legítimo ter interesses e
lutar por eles. É legítimo apresentar a realidade em função de seus interesses,
a partir de sua perspectiva. Dado que não há perspectiva única, que não é
possível que todos olhemos o mundo a partir do mesmo ponto de vista, estas
perspectivas estarão sempre em combate.
Verdade é a resultante dessas
interações conflituais entre perspectivas e como tal ela jamais será
desvinculada das relações de poder. Essa
resultante vale para todas as perspectivas, mas apenas circunstancialmente,
isto é, até que uma nova perspectiva venha desafiá-la.
Nenhuma perspectiva permanece na posição α
para sempre, exceto aquela que defende que α = 0, isto é, que se contradiz e se
auto-anula. Isso autoriza afirmar que há
uma trama de relações
de poder na
base de articulação
de todo discurso, de todo
enunciado, de toda verdade
Existe uma diferença básica
entre perspectivas. Há aquelas que expõem o interesse que as orienta e aquelas
que tentam apenas escamotear esse
interesse para se fazer valer. Aliás, o escamoteamento, a ocultação são
potentes mecanismos ideológicos. Se as relações de poder são ocultadas por um
dos polos da relação, este tem chances de fazer prevalecer seu interesse de modo
quase absoluto.
O modo por excelência de
absolutizar o poder que existe em uma relação é omiti-lo, agir como se não se
tratasse de uma relação de poder. Cumpre à crítica denunciar tais
escamoteamentos onde quer que eles ocorram, fazendo ver o conteúdo agonístico
latente nas relações.
De outro lado, cabe propor
algo e sempre se propõe algo quando se concebe um recorte da realidade, uma
perspectiva, um conceito, quando se elabora uma notícia ou uma reportagem.
Ético, neste caso, não é ser
isento, objetivo e imparcial. Ou quiçá, neutro, mas perceber o interesse a qual
nos vinculamos e não omiti-lo.
A ideia central é que é mais
legítimo afirmar a que viemos, sem subterfúgios e ainda apresentar o mundo de
nosso ponto de vista, de acordo com nosso interesse, de modo sincero e franco
ainda possamos parecer, por vezes, ingênuos ou cínicos. Será mais legítimo ser
sincero e revelar logo o interesse implicado, do que procurar ocultar esse
interesse por de trás de uma suposta isenção que, com efeito, só tem em vista apenas
impor sorrateiramente, um interesse dissimulado.
O erro não está em ter um
interesse nem tampouco em procurar fazê-lo na hipocrisia e uma objetividade de
fachada, na tentativa de omitir o aspecto experimental, temporário, precária e
nunca definitivo das verdades humanas. Demasiadamente humanas e, por assim
fazer com que uma, apenas uma perspectiva seja tida como verdade.
Na ética perspectivista, uma
sinceridade imprudente ganha maior valor que a verdade supostamente
desinteressada.
Em tal ética conteria, entre outras coisas, uma abordagem aplicada, um manual não de combate frontal às fake news e à pós-verdade, mas de uso da mídia e da verdade. Manual que conteria as práticas de resistência na contemporaneidade e, portanto, ele seria apenas o princípio.
Referências
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Porto Alegre: Dublinense, 2017.
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de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 18, p. 122-138,
abr. 2019. DOI dx.doi.org/10.17648/eidea-18-2197.
Notas:
[1]
Canguilhem aponta que a distinção entre o falso e o verdadeiro é um problema
epistemológico para a prática da história da ciência que implica no modo pelo
qual se constroem os conhecimentos científicos. Como a ciência critica os
falsos saberes, seria razoável propor que a ciência é uma crítica das
ideologias científicas? Lembra então que a popularização da noção de ideologia
decorre da vulgarização do pensamento de Marx, que denuncia as ideologias em
nome das ciências da história e da economia política, como pretende instituir. A
pergunta passa a ser se uma ideologia científica pode ser compreendida na noção
geral de ideologia no sentido marxista e
a resposta é que isto seria uma contradição lógica, já que toda ideologia seria ilusória e a ciência revela a
realidade, ainda que construída sobre as bases materiais da sociedade.
[2]
Pós-verdade. Informação ou asserção que distorce deliberadamente a verdade, ou
algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base
crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como
verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais. “A
explicação da palavra pós-verdade de acordo com o Oxford é de que o composto do
prefixo ‘pós’ não se refere apenas ao tempo seguinte a alguma situação ou
evento – como pós-guerra, por exemplo –, mas sim a ‘pertencer a um momento em
que o conceito específico se tornou irrelevante ou não é mais importante’.
Neste caso, a verdade. Portanto, pós-verdade se refere ao momento em que a verdade
já não é mais importante como já foi.”
“Pela definição do
dicionário [Oxford], pós-verdade quer dizer ‘algo que denota circunstâncias nas
quais fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do
que o apelo à emoção ou crenças pessoais’. Em outros termos: a verdade perdeu o
valor. Não nos guiamos mais pelos fatos. Mas pelo que escolhemos ou queremos
acreditar que é a verdade. (...) O terreno da internet tem se revelado fértil
para a propagação de mentiras – sempre interessadas –, trincheira dos haters.
Levamos tanto tempo para estabelecer uma visão ‘científica’ dos fatos,
construir a isenção do jornalista, a independência editorial e, de repente,
vemos que o debate político se dá entre ‘socos e pontapés’. A pós-verdade
arrasta a política, o jornalismo, a justiça, a economia, a nossa vida
pessoal...”
“Segundo Braga (2018, p.
205), o fenômeno das fake news pode ser entendido como ‘a disseminação, por
qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o intuito de
atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem política ou econômica’. Por
essa ótica, pode-se considerar que há, por parte do(s) sujeito(s) que
veicula(m) tais notícias, uma certa vontade de desinformar o seu interlocutor e
levá-lo, ao menos potencialmente, a um estado de dissuasão referente à sua
disposição de espírito anterior acerca de qualquer assunto. Em contrapartida,
Christian Dunker (2017) acentua que: [...] alguns consideram que o discurso da
pós-verdade corresponde a uma suspensão completa de referência a fatos e
verificações objetivas, substituídas por opiniões tornadas verossímeis apenas à
base de repetições, sem confirmação de fontes. Penso que o fenômeno é mais
complexo que isso, pois ele envolve uma combinação calculada de observações
corretas, interpretações plausíveis e fontes confiáveis em uma mistura que é,
no conjunto, absolutamente falsa e interesseira (DUNKER, 2017, p. 38). Há
nesses discursos, por assim dizer, enunciados comprovadamente verdadeiros,
relação a fatos efetivamente comprovados, interpretações plausíveis, induções
verossímeis, o que confere ao fenômeno da pós-verdade traços para além da velha
mentira política.”
[3]
Existem respostas verdadeiras no Direito? Uma decisão pode ser melhor que
outra? Para além da questão de como se interpreta, em direção ao dilema de como
se aplica, esta obra analisa as grandes questões contemporâneas que cercam a
decisão jurídica, explorando os desafios e os problemas da trajetória de
construção de um direito fundamental do cidadão: o de obter respostas corretas
e adequadas à Constituição Federal. Há um modo próprio. de filosofar em seu
livro. Não é, no entanto, só de filosofia que se trata, pois retoma de modo
percuciente um conjunto de questões práticas que aparecem, em todo momento e
inevitavelmente, quando se analisam posições da filosofia no Direito (e não
simplesmente do Direito, na expressão cunhada por Lenio em obras anteriores).
Não se trata apenas de entrar em um debate em terrenos pouco explorados pela
Filosofia do Direito. O que importa é traçar as coordenadas que nos levam a
pensar corretamente, em um mundo complexo, as questões simples, mas essenciais,
que giram em torno do modo como pensar a Filosofia do Direito.
[4] A concepção teórica da Saúde Mental percebe a loucura essencialmente como um fenômeno de intolerância e exclusão da vida social, em que surge um rechaço do louco por ele ser visto como doente mental, o que conduz a uma internação hospitalar mesmo contra sua vontade, com o fim de ser isolado. Assim, fundado nas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), são considerados transtornos mentais e comportamentais as alterações mórbidas do modo de pensar, do humor e as alterações de comportamento associadas à angústia expressiva ou a deterioração do funcionamento psíquico global, de modo a não poder desempenhar normalmente, em razão de sua idade, sexo, fatores sociais e culturais, o papel que lhe caberia para sua realização pessoal (OMS, 1993).
[5]
A ideologia e a ciência sempre estiveram ligadas, desde os princípios da
ciência, assim desde os homens primitivos havia questões acerca das coisas de
que não se compreendia, ou que não se tivesse poder sobre ela, como os
fenômenos naturais. Originalmente o termo ideologia, postulado por Destutt de
Tracy era definido como o estudo científico das ideias, e que elas resultariam
da interação entre organismos vivos e o ambiente, como se fosse um estudo do
comportamento humano. A partir daí, outros significados foram somados, levando
às conotações críticas e negativas que se propagam hoje. A popularização do
termo veio com Marx e Engels, que associaram essa palavra a doutrinas puras e
desvinculadas de uma realidade material, gerando ideias errôneas e distorcidas
sobre a natureza do homem.
[6]
Lenio Streck deixa bem claro é possível falar em verdades jurídicas. Elas
existem e podem ser demonstradas através do estabelecimento de respostas
adequadas à Constituição. A base de sua teoria (Crítica Hermenêutica do Direito)
é robusta e respeitável, de modo que a partir de Heidegger, Gadamer e Dworkin –
para citar alguns -, o autor estabelece e fixa o seu próprio aporte teórico,
fornecendo aos juristas uma possibilidade concreta de se efetivar o Direito
enquanto tal – livre das mazelas que o assolam. O respeito e observância à
Constituição devem conduzir o trilhar do jurista, atentando-se para não cair
nas tentações dos discursos falaciosos dissonantes com o Direito que apenas o
desestabilizam. A proposta, portanto, é significativa e possui grande
relevância, tratando-se assim de uma verdadeira contribuição para o Direito.
[7]
Mas Wittgenstein foi além: disse que os limites de nossa linguagem são também
os limites de nosso pensamento. Esta ideia está em consonância com o que pensa
o escritor Aldous Huxley, que vê os dois lados da linguagem: ao mesmo tempo em
que o indivíduo se beneficiaria com ela, por ser fruto da experiência acumulada
pela sociedade, também seria limitado a ela, na medida em que a língua
confinaria a consciência e a reduziria a uma consciência única, traduzida pela
visão una de como seria a realidade para aquele grupo.
[8]
A crise da imprensa aparece como peça importante nesta engrenagem. A perda da
credibilidade agrava o cenário pelo incremento do embate político e do
radicalismo. O mercado da comunicação passa por adversidades econômicas, de
redefinição dos negócios e o enfraquecimento da mídia tradicional. Sem
investimento, o trabalho jornalístico é prejudicado. Com menos recursos
humanos, a qualidade do produto desaba, tornando a função jornalística mais
rasa e suscetível a erros. O trabalho jornalístico tem um custo e a maioria dos
cidadãos não tem acesso às informações por não conseguir pagar. As plataformas
de fact-checking, que são ótimas opções para certificar a veracidade de fatos,
não conseguem competir com o fluxo exponencial das fakes news.
A expansão das redes sociais potencializou o acesso à
informação, é verdade. Trata-se, no entanto, de informação não apurada, um
campo fértil, infelizmente, à desinformação.
[9]
O Quarto Poder trata-se de expressão usada para declarar que o jornalismo e os
meios de comunicação de massa podem exercer determinada influência sobre a
sociedade. É assim o termo porque tem como referência os Três Poderes do Estado
Democrático que regem a república (Legislativo, Executivo e Judiciário). O
termo é usado quando se pretende discutir em como a imprensa atua na sociedade
no enquadramento de notícias que são levadas ao conhecimento público, incluindo
a agenda política sobre os debates, eleições, gestão, atos legais ou ilegais
que acontecem na política contemporânea. Existem, pelo menos, três definições
atribuídas à imprensa (mídia) a função de quarto poder. Dentre essas, as mais
usuais são: o Fourth Estate, Fourth Branch e o Poder Moderador.
[10]
Considera-se comumente que o termo ideologia se originou com Destutt de Tracy,
que o empregou no sentido de “ciência das ideias” em sua obra Les éléments
de l’idéologie (1801). Então, ao
menos originalmente, a equação estava invertida e a ideologia era de fato uma
ciência. De Tracy pertencia a um grupo intelectual, os “ideólogos” franceses
que, na tradição de Étienne de Condillac, rejeitavam a metafísica e eram
adeptos da crença no progresso humano, buscando uma fundamentação antropológica
e psicológica para a cultura, tendo apoiado politicamente a ascensão de
Napoleão Bonaparte. Mannheim localizou a origem histórica da depreciação que se
faz contemporaneamente do termo ideologia na acusação de Napoleão Bonaparte a
esse grupo quando se opuseram a seus projetos imperialistas. Eles acabaram
alijados do poder pelo próprio Napoleão, que em 1812 os chamou de metafísicos
tenebrosos e os acusou de serem responsáveis pela derrota militar francesa na
Europa.