Considerações sobre os fundamentos filosóficos da dignidade humana
Ensinou Ronald Dworkin que há duas dimensões da dignidade humana consensuais no contexto sociopolítico norte-americano, o valor intrínseco de cada vida humana e a responsabilidade individual das pessoas pelas suas próprias vidas. E, quanto à primeira dimensão ressaltou: "Cada vida humana tem um tipo especial de valor objetivo. Ela tem um valor como potencialidade, depois que uma vida humana começou, importa como ela caminha” (...). Esta é uma questão de valor objetivo e não apenas subjetivo (...) O sucesso ou fracasso de cada vida humana é algo importante em si, algo que temos uma razão para querer ou deplorar.
O
Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagno aponta que a dignidade em inglês dignity,
em francês dignité, alemão Würde, em italiano é Dignitã.
Como princípio da dignidade humana entende-se a exigência enunciada por Kant
como segunda fórmula do imperativo categórico: "Age de tal forma que
trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre também como um fim e nunca como um meio".
O
referido imperativo estabelece que todo homem, aliás, todo ser racional, como
fim em si mesmo, possui um valor não relativo, mas intrínseco, ou seja, a
dignidade. O que tem preço pode ser substituído por alguma outra coisa
equivalente, o que é superior a qualquer preço e, por isso não permite nenhuma equivalência,
tem dignidade.
Substancialmente,
a dignidade de um ser racional consiste no fato de ele não obedecer a nenhuma
lei que não seja também instituída por ele mesmo. A moralidade como condição
dessa autonomia legislativa é, portanto, a condição da dignidade do homem, e
moralidade e humanidade são as únicas coisas que não têm preço.
Tais
conceitos kantianos retornam em F. Schiller[1], Graça e Dignidade[2] (1793)[3]: "A dominação dos
institutos pela força moral é a liberdade do espírito e a expressão da liberdade
do espírito no fenômeno chama-se dignidade.
Nas
incertezas constantes de valorações morais do mundo contemporâneo, que aumentou
com as duas guerras mundiais, pode-se dizer que a exigência da dignidade do ser
humano venceu uma prova, revelando-se como pedra de toque para a aceitação dos
ideais ou das formas de vida instauradas ou propostas; isso porque as
ideologias, os partidos e os regimes que, implícita ou explicitamente, se
opuserem a essas teses mostraram-se desastrosos para si e para os outros.
Foram
os escolásticos, na esteira de Boécio que traduziram a palavra axioma e, Vico
conservou essa palavra em italiano e suas dignitas, expostas na parte da
Scienza Nuova intitulada " Dos elementos", constituem os
fundamentos de sua obra.
Propomos
agora aqui os seguintes axiomas ou dignidade filosóficas e filológicas, algumas
poucas perguntas racionais e discretas, com outras tantas definições
esclarecidas; estas, assim como o sangue pelo corpo animado, devem fluir por
dentro desta ciência e animá-la em tudo o que ela razoa sobre a natureza comum
das nações.
Ao
longo do tempo, a dignidade humana veio se edificando e se tornando o valor
fundamental, algo que vale por si mesmo, identificando-se seu ser com sua
valia.
Dignitas é uma
qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano o que por si só, o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para
ter vida saúde, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos.
A
relação existente entre a dignidade humana e o pensamento filosófico reside em
sua complementaridade conceitual, pois é uma resposta filosófica sobre a
perquirição antropológica e ontológica.
No
período clássico da história grega nem todos eram cidadãos. E, assim, o valor
humano era quantificado conforme o status que possuía, isto é, não era uma
qualidade intrínseca de todos. E, podemos identificar esse entendimento diante
da atividade escravocrata e ainda no papel da mulher na função de procriadora e
mãe.
Os
escravos gregos, em sua maioria, eram prisioneiros de guerra, fossem gregos,
romanos ou bárbaros, eram considerados apenas como instrumentos de trabalho
vivos. Já a mulher em seu papel social e cultural na geração de outra vida era
considerada uma terra disponível e fértil para o plantio. O homem era o
portador do sperma (que em grego quer dizer semente) e a mulher era mero
receptáculo da semente.
Deve-se
observar que o papel da escravidão para a filosofia, deixou importante legado
para a história grega. Pois, o cidadão grego tinha direitos sobre o escravo e
ainda gozava do luxo de não se preocupar com trabalhos manuais, sobrando tempo
para a vida política e o trabalho intelectual. E, entre muitos fatores que
ensejaram a filosofia grega, o ócio era o que elevava o intelecto e,
diametralmente, rebaixava o valor do outro.
A
ideia de dignidade pertencente somente ao cidadão grego pode ser mais bem
analisada no fim do século VI antes de Cristo, onde a classe média grega adere
às causas dos camponeses e artesãos, reivindicando o fim do trabalho escravo
por dívida. E, cabe sublinhar que a mudança se deu apenas para os gregos que
foram escravizados por dívida, aqueles outros indivíduos, prisioneiros de
guerra, não tinha nenhum vislumbre de libertação.
Foi no
governo de Sólon (638 a 558 a.C.) que a prática da escravidão por dívida passa
a ser extinta, reincidindo sobre o ex-escravo a luz do respeito à dignidade
humana. E, assim o conceito de dignidade humana se relacionou com o papel do
indivíduo na sociedade, isto é, o cidadão.
Com o
advento da democracia implantada por Clístenes (564-492 a.C.) deu-se
considerável número de atenienses. E, assim, as poleis (plural de pólis)
passaram representar firmemente a vida social.
E, ipso
facto, deu-se o surgimento das Cidades-Estados que veio aperfeiçoar o
conceito de cidadão, definindo-o como membro integral da comunidade e
participante do governo grego. A pólis passou a ser seus próprios cidadãos, e,
o cidadão coincidem com o Estado, ratificando que os fins da pólis começaram a
representar seus próprios fins, isto é, a grandeza do Estado que demonstra o
respeito da liberdade.
Não
olvidemos que o conceito de cidadão não abarca todos os indivíduos pertencentes
à pólis. Pois eram apenas cidadãos os homens adultos, nascidos de pai e mãe
atenienses, dessa forma, mulheres, crianças, idosos, estrangeiros e escravos
não possuíam cidadania, e não tinham legitimidade para exercê-la.
O mais
proeminente discípulo de Sócrates, foi Platão que mais elevou a filosofia de
seu mestre era descendente de família nobre, o que nos padrões gregos lhe
conferia cidadania, legitimando-o a participar das discussões políticas da Pólis.
Muito desapontado com fim trágico do seu mestre, condenado a beber cicuta e
morrer.
Platão
decidiu lecionar em local mais fastado do meio político, a fim de que suas
reflexões pudessem fluir com maior tranquilidade. E, em 384 a.C. foi fundada a
Academia onde professou seus ensinamentos até sua morte.
As
preocupações filosóficas de Platão, inicialmente, coincidiram com as de seu
mestre, Sócrates. E, buscavam as definições de valores morais abstratos, tais
como a justiça e a virtude. Indo além, Platão inaugurou um sistema filosófico
lastreado em pressupostos transcendentais, sendo contrários à experiência
direta e efetiva.
E,
dentre suas reflexões há os pensamentos sobre a alma, a preexistência da alma,
a reminiscência de ideias anteriores à existência, a subsistência da alma e
tantos outros temas decorrentes de sua filosofia transcendental.
O
principal alicerce da filosofia platônica foi a constatação da dualidade
universal, ou seja, a noção de que o mundo onde vivemos não constitui todo o
universo. E, de acordo com Platão, há um plano material onde é refletivo os
conceitos perpetuados em outro plano, um plano transcendental.
E,
assim formulou uma dualidade de mundos, onde um possui a essência inerente de
todas as coisas e outro que possui apenas aspectos imperfeitos dessa realidade
transcendente. Enfim, o filósofo distinguiu dois mundos, um transcendente,
imaterial, ou seja, o mundo das ideias e, outro mundo, o material, sensível e
corruptível.
É mais
bem esclarecida a referida dualidade no famoso mito da caverna de Platão, e nas
palavras de Buckingham:
"Eles
nos convida a imaginar uma caverna na qual as pessoas estão aprisionadas desde
o nascimento, amarradas, encarando a parede ao fundo, na escuridão. Elas só
podem olhar para a frente. Atrás dos prisioneiros, há uma chama brilhante que
lança sombras na parede para a qual eles olham. Há também uma plataforma entre
o fogo e os prisioneiros, na qual pessoas andam e exibem vários objetos de
tempos em tempos, de modo que as sombras desses objetos são lançadas na parede.
Tais sombras são tudo o que os prisioneiros conhecem do mundo, e eles não têm noção
alguma sobre os objetos reais. Se um prisioneiro conseguir se desamarrar e se
virar, verá ele mesmo os objetos. Mas,
depois de uma vida de confinamento, ele provavelmente ficará muito confuso e
talvez fascinado pelo fogo, e muito provavelmente se voltará de novo para a
parede, a única realidade que conhece” (2011).
A
leitura e significado da alegoria da caverna nos leva ao questionamento: - como
podemos reconhecer a forma correta e perfeita de alguma coisa? Platão respondeu
à questão demonstrando que há uma espécie de forma ideal de mundo
transcendente, e cabe ao ser humano apenas visualizar um conceito imperfeito.
No entanto, continuou o filósofo, a alma humana é parte desse mundo das ideias
e ela carrega dentro de si, todos os conhecimentos dos elementos
transcendentais na qual ela residia, sendo permitia ao corpo humano
(corruptível e imperfeito) apenas uma breve lembrança de tais conceitos
(Buckingham, 2011).
Para
Platão, a alma é a única capaz de transcender o mundo material, visto que esta
originalmente pertence ao mundo imaterial.
Uma
vez evidenciado a importância da alma no conhecimento das verdades
transcendentes, o filósofo elaborou divisões de potencialidade de cada alma. E,
teorizou que a potência de cada alma tem relação com o modo de vida de cada
homem, de maneira que: a) a parte logística da alma passa a representar o que
diferencia o ser humano de outros seres;
(b) a parte logística da alma passa a representar a imortalidade do ser;
(c) a parte logística da alma passa a
representar o que há de mais excelente no homem que o faz assemelhar-se
aos deuses; (d) a alma logística (logistikón) é hegemônica diante das outras partes da alma
humana; (e) a alma logística é capaz de reflexão (diánoia), de
opinião (dóxa), e de imaginação (phantasía);
(e) a alma logística é capaz de razão (noûs) e é esta razão que permite
ao homem acessar, por meio da
contemplação, as ideias que somente aos deuses são acessíveis (BITTAR, 2012).
Platão
conclui que todas as faculdades da alma possuí a capacidade de aperfeiçoamento,
de maneira a sempre buscar a excelência, ou seja, areté (BITTAR, 2012). Assim
como Sócrates, Platão entende que a verdadeira virtude (areté) tem base
no conhecimento, logo, o aprimoramento humano só poderia ser adquirido pela
razão (BURNS, 1970).
Nos
dizeres de Bittar: “buscar a virtude é afastar-se do que é tipicamente
valorizado pelos homens, que é o que mais ainda o mantém ligado ao corpo e ao
mundo terreno” (2012).
É
exatamente nesta questão onde se vislumbra a dignidade humana platônica. Pois
atingir a areté é a única forma onde o ser humano pode dignificar sua
existência, visto que apenas pela busca por excelência que o homem se conciliar
com sua alma que sempre esteve acima da existência humana.
Assim,
o homem pertencente ao mundo material e imperfeito, somente é capaz de
vislumbrar a perfeição de um mundo transcendental quando se identifica com sua
própria alma, assim, através dela, será demonstrado ao indivíduo a centelha
divina e seu valor perante os deuses.
Aristóteles
que foi discípulo de Platão, nascido em 384 antes de Cristo, em Estagira, na
fronteira com a Macedônia, isto é, não era um cidadão nos padrões gregos,
viajou para Antenas e ingressa na Academia, onde permaneceu até a morte de
Platão.
E, uma
de suas funções como preceptor de Alexandre (356 – 323 a.C.) lhe garante bons
olhos perante aquele que futuramente iria ser conhecido como Alexandre, o
Grande[4]. Antes de falecer, o rei
Filipe (359 – 336 a. C.), pai de Alexandre, já havia anexado à Macedônica
grande parte das poleis gregas, incluindo Atenas.
Ao
assumir o trono, Alexandre, o Grande, oferece a Aristóteles a direção da
Academia platônica, no entanto, o filósofo recusa a oferta e solicita ao
monarca uma propriedade para que pudesse fundar sua própria escola filosófica. Após
a generosa doação, o filósofo inaugura sua escola, dando-lhe o nome de Liceu
(REALE, 1990).
Com a
morte de Alexandre, em 323 a.C., começa em Atenas uma forte reação
antimacedônica. Em meio a revolta, a figura de Aristóteles e sua escola começam
a despertar a lembrança da dominação macedônica, posto que o mesmo fora
professor de Alexandre. Em fuga de seus inimigos, Aristóteles começa a residir
em Cálcis, na Eubéia, onde falece em 322 a.C. (REALE, 1990).
Apesar
de ter sido discípulo de Platão, Aristóteles divergia de seu preceptor em
diversos aspectos. O filósofo concordava com mestre quando ao pensamento
platônico para o fato de que as ideias são reais e o conhecimento derivado dos
sentidos tendia a ser limitado e inexato, no entanto, discordava na questão da
dualidade de mundos. E, de acordo Aristóteles, tornava-se desnecessários
assumir um mundo hipotético das formas, quando as realidades das coisas podem
ser apreendidas aqui na Terra.
O
cerne de toda filosofia aristotélica é a noção teleológica, isto é, a ideia de
que o universo é governado por uma finalidade. E, assim o filósofo elaborou um
sistema de pensamento baseado em quatro causas inerentes ao ser, são elas;
causa forma, descrição da forma do ser, causa material, identificação da
matéria que constitui ser; causa eficiente, a transformação que o ser passou ou
pode passar, e, finalmente, causa final, a explicação da finalidade do ser. E,
na dicção de Morrison: "tudo no cosmos, tem o poder de tornar-se aquilo
que sua forma estabeleceu como seu fim" (2006).
Dentro
do processo filosófico, Aristóteles dividiu o mundo em seres inanimados que não
possuem capacidade intelectiva e os seres animados, capazes de pensar. E,
dentre os seres animados, o homem possui um lugar de destaque, e por possuir
tal valor, deve dispor de um princípio fundamental que o direciona ao seu fim
verdadeiro.
Para o
filósofo, o que distingue o ser humano dentre os demais seres animados é a sua
alma, princípio gerador da vida e da sua finalidade (REALE, 1990). Vislumbra-se
na alma a centelha de dignidade humana, ou seja, aquilo que diferencia o homem
e lhe garante valor de existência.
No
processo teleológico, Aristóteles alertou ao fato de muitos pensarem que o
designo humano pode ser encontrado no prazer, na riqueza, na honra entre outros
fins passageiros. O filósofo aludiu ao fato de que tais fins não prescrevem
todo valor, por fim, demonstra que a verdadeira dignidade humana se encontra na
busca pela felicidade (eudaimonia). A felicidade é o fim que, por si só,
satisfaz todas as exigências. (Morrison, 2006).
Com o
fim último e motivo do elevado valor humano, resta ao indivíduo conhecer os
meios para guiar-se para sua realização. E, Miguel Reale aludiu in litteris: “o
bem supremo realizável pelo homem (e, portanto, a felicidade) consiste em
aperfeiçoar-se enquanto homem, ou seja, naquela atividade que diferencia o
homem de todas as outras coisas.
Assim,
não pode consistir no simples viver como tal, porque até os seres vegetativos
vivem, nem mesmo viver na vida sensitiva, que é comum também aos animais. Só
resta, portanto, a atividade da razão. O homem que quer viver bem deve viver
sempre segundo a razão” (1990).
Conclui-se
que a busca pela essência humana e sua respectiva dignidade, deve ser alcançado
através da razão. No entanto, viver de
modo racional não é tão fácil quanto parece, pois existe no interior humano
impulsos não racionais que interferem na realização teleológica, como:
necessidades físicas, desejos e sentimentos (SELL, 2008).
Verifica-se
a necessidade de uma aptidão para seguir os caminhos da alma intelectiva, logo,
é algo que deve ser aprimorado e desenvolvido.
Neste
ponto, Aristóteles recomenda o caminho da virtude, da excelência, ou seja, da
areté. Além disso, o filósofo teoria que não se deve rejeitar ou negar tais impulsos,
deve-se apenas controlá-los (MORRISON, 2006).
Além
da dignidade fundada na posição privilegiada e na capacidade intelectiva
humana, Aristóteles explana outra noção de valor humano, fundamentado na ideia
política de sociedade.
E, o
pensamento político aristotélico pode ser resumido em um único axioma, a saber:
o homem como animal político (zoon politikón), isto é, uma definição
além da alma racional, mas também como animal social. E, em face de sua
natureza humana, o Estado surge como consequência lógica, assim, a pólis
não existe para satisfazer as necessidades de uma sociedade, muito além existe
para satisfazer a finalidade última da existência humana.
Essencial
no fim político humano está a busca do bem comum em detrimento do individual.
Aristóteles expõe que a vida social deve ter uma razão mais profunda que os
meros anseios individuais. E, Eduardo Bittar bem explica: “o Bem que a todos
alcança afeta o bem de cada indivíduo, assim como o bem de cada indivíduo acaba
convertendo-se no Bem de toda a comunidade quando comungado socialmente”
(2012).
Aristóteles
teoria que na vida política apenas alguns seletos indivíduos poderiam desfrutar
da dignidade presente no status de cidadão.
Assim
como na cultura ateniense de democracia, o filósofo pressupõe que apenas os
cidadãos poderiam participar da vida política (SELL, 2008), logo, o cidadão
deveria possuir um nível de dignidade maior que os demais. Com base nesse
pensamento, Aristóteles chega a fundamentar a necessidade da escravidão.
Segundo
o filósofo o escravo é somente um meio para a consistência do Estado. Desse
modo: “há homens que nasceram para deliberar acerca do bem comum e homens que
são apenas instrumentos para consecução desse bem comum.
As
mulheres e os escravos se encontram nessa situação. Aquelas têm rígidos deveres
dentro do matrimônio, estão subordinadas aos seus maridos e se ocupam
exclusivamente da administração doméstica. Os escravos, por sua vez, são
objetos de propriedade de outro ser humano” (Aristóteles, 2000).
A fim
de finalizar o exposto, faz-se necessário elucidar que no pensamento
aristotélico pode-se encontrar duas formas de compreender a dignidade humana
que se complementam. Num primeiro momento, traz-se o valor humano intimamente
ligado a atividade intelectiva. Em outro momento, explana-se um olhar social
inerente à natureza humana, o que demonstra que a dignidade pode ser
quantitativa, visto que alguns possuem mais dignidade que outros.
Destacam-se
três noções diferentes da dignidade humana: uma social; outra platônica e, por
fim, outra aristotélica. Todas possuem uma coisa em comum, o papel da dignidade
humana como valor que expõe o indivíduo que a possui em posição privilegiada perante
os outros.
Tomar
cuidado ao realizar a leitura da dignidade humana no veio social grego, visto
que se fala de uma época distante à nossa. Temas como: escravidão e o papel da
mulher no seio matrimonial, podem ascender algum olhar de reprovação, no entanto,
é primordial analisar o fato em seu contexto histórico e político.
O que
se conclui da leitura é uma dignidade estratificada, onde poucos a possuem, ou
seja, apenas os cidadãos. Outro fator relevante ao conceito do valor humana é
seu caráter quantitativo, visto que a dignidade poderia variar de acordo com o
status que o indivíduo possuía, seja como cidadão, mulher, criança, idoso,
estrangeiro ou escravo.
Ao
analisar a leitura platônico do termo, vislumbra-se uma interligação entre o
sistema filosófico dualista e o valor humano como consequência lógica da
reflexão platônica.
A
ideia de transcendental que Platão inaugura eleva a dignidade humana ao patamar
de conquista humana, visto que só se pode alcançar tal dignidade quando o corpo
humano (corruptível e material) concilia-se com a alma (perfeita e imaterial).
Somente quando o indivíduo transcende sua existência no plano material que
poderá compreender seu valor como ser dual, receptáculo de uma alma perfeita e
imortal.
Por
fim, é no pensamento aristotélico que a dignidade humana encontra dois vieses
de fundamentação: um teleológico, outro social. Aristóteles compreende a vida
humana como busca pelo seu fim último, ou seja, sua natureza teleológica.
Neste
ponto, alude o filósofo que apenas através da razão poderá ser realizado tal
fim e neste ponto, o valor humano será reconhecido. No plano social, há uma
inevitável semelhança com o espectro político grego da época e, assim como na
polis, há um fator quantitativo na dignidade humana, ou seja, alguns possuem
mais valor que outros
Em
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant desenvolveu que a
autonomia da vontade é o princípio supremo da moralidade e, de fato, para o
referido filósofo, as pessoas devem agir segundo a máxima tal que possa ao
mesmo tempo querer ela se torne universal e, em todas suas ações devem ser
considerado como um fim em si mesmo.
Aliás,
John Rawls desenvolveu uma teoria da justiça com base na liberdade de Kant,
acrescentando aspectos de igualdade extraídos de Rousseau e, então afirmou que
a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos
sistemas do pensamento. E, para tal pensador, os princípios da justiça são:
1.
Toda pessoa tem o mesmo direito[5] a um esquema plenamente
adequado de iguais liberdades básicas que seja compatível com as liberdades
para todos; 2. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas
condições.
Em
primeiro lugar, devem estar associadas aos cargos e posições abertas a todos em
igualdade de oportunidades; em segundo lugar, devem supor o maior benefício
para os membros menos avantajados da sociedade.
Lembremos
que os valores superiores e almejados pelo Direito são: a liberdade, a
igualdade, a justiça e a dignidade da pessoa humana;. Dentre estes, a dignidade
da pessoa humana ocupa posição principal sendo que os demais são decorrência
desse reconhecimento. A dignidade humana não é mera consequência ou reflexo do
ordenamento jurídico, ao revés, tem uma existência prévia a este.
Frise-se
que no direito não existem valores absolutos. E, por vezes, estes devem ceder
para não atingir outros valores igualmente assegurados. Em certas situações, a
liberdade de uns deverá ser restringida para que não afete a dos demais. Por
sua vez, em certos casos, as pessoas desiguais devem ser tratadas desigualmente
para garantir certo equilíbrio.
A
justiça, então, poderá ser considerada como o ponto de equilíbrio entre a
igualdade e a liberdade. É uma noção que cada um possui e visa alcançar
critérios para a solução de casos, harmônica e equilibradamente, sobre uma base
racional e ética, respeitando a dignidade humana, disciplinando as relações das
pessoas entre si e delas com o Estado.
É
notável a evolução histórica da noção de dignidade da pessoa humana no
pensamento filosófico e a sua inserção no âmbito jurídica. De fato, a proteção
à dignidade da pessoa humana se tornou princípio basilar dos ordenamentos
jurídicos contemporâneos, particularmente, depois da Segunda Grande Guerra
Mundial, tendo sido positivado expressamente no bojo da Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988.
Remontam-se
à Antiguidade Clássica a concepção da dignidade humana, com o estoicismo
(século III antes de Cristo) e ao Cristianismo[6]. Sendo possível observar
que a dignidade humana estava intimamente relacionada com a posição ocupada
pelo indivíduo perante a sociedade e como esta, o reconhecia. E, nesse
contexto, surgiu o que denominamos de "quantificação e modulação da
dignidade humana", no sentido de se admitir a existência de pessoas mais
ou menos dignas.
Para
os estoicistas, a ideia de dignidade humana era reconhecida como qualidade
intrínseca do homem, sendo sua característica singular que permitia sua distinção
entre os demais seres vivos.
Em
verdade, constata-se que o termo "dignidade" evoluiu através dos
tempos e, atualmente é reconhecidamente o fundamento internacional e meta de
toda humanidade. Há tratamento desigual do tema, por vezes, consensuado no
plano internacional e nas democracias constitucionalistas como direito humano e
garantia fundamental. Apesar de alguns fossem mais dignos do que outros, embora
as normas de documentos internacionais e constitucionais regulem de forma
diversa.
Há de
se realizar e perceber a diferença existente entre a dignidade no plano do
direito abstrato, como estática jurídica, onde se tem uma dignidade igual para
todos, como sendo uma interpretação mediada de normas por profissionais do
direito e, no plano do direito concreto, tido como dinâmica jurídica (Kelsen,
1999), vista também na atuação do
exercício de liberdades negativas, onde aqueles que, não são social e
culturalmente valorados e são tratados como menos dignos, precisam da
concretização e aplicação do direito, para tentar o reequilíbrio da relação
corroída.
Em
prisca era, na Roma Antiga, o filósofo e político Marco Túlio Cícero fora muito
influenciado pela Escola Estoicista que entendia que todos os homens eram
iguais em dignidade pelo fato de serem semelhantes e, que, portanto não podiam
lesar uns aos outros, estando assim, todos subordinados ao mesmo ordenamento
jurídico de direito natural.
Cícero
desenvolveu o entendimento de dignidade diferenciado, posto que desvinculou ao
conceito de status social, tornando possível, a coexistência de um sentido
moral e sociopolítico de dignidade humana. Esse sentido moral considerado inato
e que todo ser humano traz em si desde seu nascimento, pelo fato de ser único
ser racional entre os existentes na natureza. Já, o sentido sociopolítico
admitia uma vinculação da dignidade humana à posição social da pessoa, sendo
que esta, poderia sofrer modificações ao longo da vida.
Como
doutrina, o estoicismo foi a de maior influência na história do pensamento
ocidental e atuou diretamente no cristianismo que tanto prosperou na Idade
Média, particularmente com a queda do Império Romano.
Voltando-se
ao foco religioso, já se observam as referências no Antigo Testamento,
considerando que o homem foi criado como a imagem e semelhança de Deus. Foi a
Filosofia Cristão que muito contribuiu para construção da ideia de dignidade da
pessoa humana.
A Era
Cristã pode, a título didático, ser dividida em três momentos principais, a
saber: o Cristianismo constituído pelo Novo Testamento[7] que tem o fim de resolver
a questão do mal como problema e de apresentar o homem como ser digno; a
Patrística formada pelo pensamento cristão dos séculos II ao VIII, que,
resumidamente, construiu a teologia católica; e a Escolástica, constituída pelo
pensamento cristão dos séculos IX ao XV, momento da criação da filosofia
cristão propriamente dita.
Conforme
prescrito no livro Gênesis (1:26), de que Deus criou o Homem é sua imagem e
semelhança, para governar sobre os demais seres vivos e sobre a terra[8]. Encontrando--se também a
mesma ideia na tragédia grega Antígona, de Sófocles, no momento em que Homem é
aduzido como o maior milagre da terra e como senhor de todos os seres vivos (apud
SARLET) In: SARLET, I.W. Dignidade da Pessoa Direitos Fundamentais.
9ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.34).
No
Novo Testamento o pensamento cristão se traduz pelas lições emanadas por Jesus
Cristo que difundiu a ideia de fraternidade, no sentido de que todos somos
irmãos e filhos de um mesmo Pai que se encontra no reino dos céus. É no
contexto do ideário fraterno que se pretende propagar, a expressa igualdade em
dignidade entre todos os homens.
A
mensagem divulgada por Cristo representou inflexão no mundo antigo. Então, o
homem pela primeira vez passou a ser valorizado individualmente e, a mensagem
de Cristo enfatizada não somente o indivíduo em si, mas também o valor do
outro, despertando os sentimentos de solidariedade e piedade para com o
próximo. (In: BARCELLOS, A. P. A Eficácia jurídica dos Princípios
Constitucionais. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2011).
Na
tradição cristã é possível diferenciar a dignidade ontológica, decorrente da
condição de ser humano ter sido feito à imagem e semelhança de Deus e, a
dignidade existencial ou adquirida correspondente a vida levada de acordo com
os ditames da fé cristão.
Mais
tarde, na Idade Média, no século XIII, há dois importantes momentos, a saber: a
criação do Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição e o pensamento de
Tomás de Aquino.
O
Santo Ofício fora criado pelo Papa Gregório IX[9], por volta de 1232, o qual
confiou o encargo inicialmente à Ordem dos Dominicanos com o fim de combater e
reprimir as heresias populares. Tendo a Santa Inquisição[10] perdurado por séculos e
se tornado instrumento de perseguição dos inimigos reais ou supostos do
catolicismo. Com a aplicação de métodos que perpetrou inúmeras crueldades à
pessoa humana, ceifando muitas vidas em nome da supremacia da Igreja Católica
Romana.
Relevante
destacar que nessa busca constante da não diversidade de religiões ou
pensamento, o Santo Ofício, por meio de seus atos mesmo pregando o
cristianismo, negou a mensagem divulgada por Cristo.
Numa
contrapartida, no mesmo momento histórico, há o pensamento do monge dominicano
Tomás de Aquino que foi considerado o autêntico arquiteto da Filosofia Cristã.
De fato, foi o primeiro pensador erigir em sua obra o tema da dignitas humana,
ou seja, a dignidade da pessoa humana muito influenciado pelo pensamento
cristão e estóico que estabeleceu a ideia de que a dignidade tem seu fundamento
no fato de o homem ter sido concebido à imagem e semelhança de Deus, e também
na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, na qual se crê
que o ser humano existe em razão de sua própria vontade.
Para
São Tomás de Aquino, o homem seria composto por dois corpos, um material e
outro espiritual, formando unidade substancial, mas que não impossibilitava a
imortalidade da alma, visto que a união do espírito e do corpo criava um ente
dotado do mais elevado grau de consideração, o homem. A dignidade guardaria estreita
relação com a concepção de pessoa, sendo uma qualidade inerente a todo ser
humano, o qual se distinguiria das demais criaturas pela racionalidade.
No
Renascimento, em meados do século XV, no começo da Idade Moderna, quando se
proclamou o homem como sujeito ativo e responsável pela transformação da sua
própria realidade (antropocentrismo), temos em destaque o pensamento de
Giovanni Picco Della Mirandola[11], um humanista italiano
que vislumbrou na racionalidade do homem a prerrogativa para se construir de
forma livre e autônoma sua existência e destino. Em sua obra "Discurso
sobre a Dignidade do Homem" afirmou que o homem era uma criatura de Deus,
todavia, de natureza indefinida, o que possibilitava que o mesmo fosse próprio árbitro,
com capacidade de ser e obter tudo aquilo que deseja e quer.
Nos
idos do século XVI, na fase de expansão colonial espanhola, surgiu Francisco de
Vitória, outro pensamento com base no estoicismo cristão que muito contribuiu
para o desenvolvimento do princípio da dignidade humana, pois considerava que
os indígenas (constantemente explorados, escravizados e aniquilados pelos
colonizadores) em razão de sua natureza humana, eram livres e iguais,
independentemente de suas religiões, devendo ser respeitados como sujeitos de
direitos e proprietários das terras nas quais se encontravam.
Nos
séculos XVII e XVIII no campo do jusnaturalismo, adveio o movimento do
Iluminismo que com sua convicção na razão humana, foi responsável pela
transição do teocentrismo para o antropocentrismo e, com isso, a concepção de
dignidade humana, bem como o próprio direito natural, passou por um processo de
racionalização e laicização, todavia, resguardando-se a noção fundamental da
igualdade entre todos os homens com relação à dignidade e liberdade.
O
humanismo da época consagrou e culminou no relevante processo de reconhecimento
da ideia de dignidade humana, com a preocupação efetiva com os direitos
individuais do homem e o exercício democrático do poder.
No
mesmo período, surgiram inúmeros pensadores dignos de menção, tais como: Samuel
Pufendorf[12]
no século XVII, Immanuel Kant, no século XVIII. Para o primeiro, a noção de
dignidade não está relacionada com a noção de ser uma qualidade intrínseca do
ser humano, muito menos, estaria vinculada à sua posição ou status social.
Discorda também do pensamento cristão, no qual seria a dignidade do homem uma
concessão divina.
E,
assim, Pufendorf defendia que todos, até mesmo o monarca, deveriam respeitar a
dignidade da pessoa humana, considerando esta com o livre arbítrio do homem por
optar conforme sua razão e agir de acordo com seu entendimento e escolha.
Immanuel
Kant trouxe a primeira formulação do conceito moderno de dignidade humana, onde
considera uma autonomia ética do ser humano, abandonando a influência do
pensamento cristão existente até o momento. Em suas formulações, o filósofo
conceituou os valores e entende que todos estão entrelaçados: razão, moral,
liberdade, autonomia e vontade.
De
forma sintética, entende que a razão é uma característica essencialmente
humana, que ordena tudo o que deve acontecer no mundo de forma autônoma e
independente de todos os fenômenos e nesse sentido, entende que os conceitos
morais têm sua origem na razão.
Frisou
que a vontade seria a faculdade na qual se determina a si próprio que as ações
sejam em conformidade com o conteúdo de certas leis, isto é, seria uma razão
prática; que a autonomia é uma liberdade da vontade e que a liberdade seria a
capacidade de ser governado pela razão, grosseiramente, uma propriedade da
vontade.
Para
Kant o homem existe como um fim em si mesmo e, não apenas como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade. O filósofo ainda apontou, nesse contexto,
que todos os seres racionais estão submetidos a essa lei que ordena que cada um
deles jamais se trate a si próprio ou aos outros simplesmente como meios, mas
sempre simultaneamente como fins em si mesmos."
Eis
que Kant chamou de "reino dos fins", afinal coisas possuem preços,
pessoas possuem dignidade. A coisa pode ser substituída por outra equivalente,
porém, se esta coisa se encontra acima de qualquer preço, e por isso, não
admite equivalência, portanto, possui uma dignidade que é um valor interno.
Ainda
de acordo com Kant[13], a moralidade e a
humanidade são as únicas coisas munidas de dignidade. Essa dignidade seria uma
disposição de espírito e imensamente superior a qualquer preço, não podendo ser
colocada em hipótese alguma em colisão ou conflito com algo que possua preço,
sem ferir a sua pureza.
O
sábio de Königsberg entende que as próprias leis, que determinam todos os valores
devem ser dotadas de dignidade, isto é, um valor incondicional, incomparável
para qual só a palavra respeito confere a expressão conveniente do apreço que
um ser racional deve lhe tributar. Desse modo, afirmou que o fundamento da
dignidade humana e de toda natureza racional está na autonomia da vontade.
Kant
afirmou que: "a autonomia da vontade é a constituição da vontade, graças à
qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos
do querer), sendo considerada como princípio supremo da moralidade.
Onde o
homem existe com fim em si mesmo, porém, talvez fugindo ao entendimento de
Kant, mas de modo, buscando uma interpretação ampla de seu raciocínio na
atualidade, vislumbramos duas acepções, a saber: uma interpretativa e outra literal.
E, na concepção interpretativa, entende-se que o homem sabe quais são suas
necessidades e, portanto, cada um sabe os fins que deseja alcançar. Já no que
se pode dizer de uma concepção literal, entende-se ser o homem o seu próprio
limite ou fim.
Desta
forma, dentro de sua racionalidade, deverá impor seus próprios limites pessoais,
para que, alcance a satisfação de suas necessidades, dentro da legalidade e sem
prejudicar outras pessoas, que no mesmo modo, são seres humanos.
Lastreando-se
nos ideais filosóficos do Iluminismo[14], adveio a Revolução
Francesa de 1789 e que resultou na produção da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão onde se esboçou dentro dos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, uma tentativa de proteção à dignidade da pessoa humana quando em
seu artigo 1º positivou: "os homens nascem e são livres e iguais em
direitos e que as distinções sociais só podem se fundar na utilidade
comum".
Adiante,
em seu artigo 4º, positivou: "a liberdade consiste em poder fazer tudo
aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de
cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos".
Portanto,
é possível perceber a existência de uma relação de proximidade entre o
pensamento de Kant quando afirma que o imperativo prático, do homem como fim em
si mesmo, é "agir de tal maneira que possa usar a humanidade, tanto em tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre simultaneamente com fim e nunca
simplesmente como meio".
Seguindo
o inexorável fluxo da evolução histórica, cumpre lembrar do pensamento de
Friedrich Hegel[15],
no século XIX, o qual, influenciado pela escolástica, defendeu a dignidade
humana constituída como atributo a ser conquistado. Desta forma, a dignidade não resultaria da
autodeterminação, e sim, teria origem na máxima de que sendo pessoas, devemos respeito
os outros também como pessoas.
Hegel
afirmava a dignidade como noção pautada na ética, na qual considerava que não
era inata ao homem, mas que este, tornar-se-ia digno, quando exercesse sua
cidadania. Ressalte-se ainda que Hegel apesar de alguns poucos pensamentos em comum,
não comungava das mesmas ideias sustentadas por Kant.
No
início do século XX já começavam a ser inseridos em algumas Constituições, o
princípio da preservação da dignidade humana, o reconhecimento dos direitos
individuais e um esboço de separação de poderes e, ao final da Primeira Grande Guerra Mundial[16], deu-se o surgimento de
uma preocupação com os já intitulados "direitos
sociais" (positivos e prestacionais posto que obriguem a atuação positiva
do Estado, para intervir no domínio econômico e de prestar políticas públicas
de caráter social), fruto da transição do Estado Liberal para o Estado Social,
que passam paulatinamente a ser introduzidos nos textos constitucionais pelo
mundo todo.
O
derradeiro momento marcante da evolução histórica da noção de dignidade humana,
também é um dos mais aterrorizantes, e que, certamente, revelou graves
violações à dignidade da pessoa humana, temos as atrocidades perpetradas pelos
governos nazifascistas durante a Segunda Guerra Mundial, ao perseguirem
determinadas minorias, numa política fanática de extermínio, a fim de
consubstanciar a imposição de seus ideais.
Depois
da Segunda Grande Guerra tornou-se um marco para mudança de paradigma no âmbito
científico e filosófico, surgindo então, a necessidade de uma
constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana, passando este
a ser positivado na maioria das Constituições, começando a despontar como
núcleo central do constitucionalismo de valores, do Estado Constitucional
Democrático e dos direitos fundamentais.
Foi a
reação à barbárie do nazifascismo que acarretou a consagração da dignidade da
pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos
ordenamentos jurídicos e o princípio orientador da atuação estatal e dos
organismos internacionais.
Assim, em diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a dignidade humana como fundamento do Estado de Direito e, ainda conforme a introdução na Declaração Universal das Nações Unidas, em 1948, que, com certeza, forneceu noções para as bases da formulação de um conceito de dignidade humana.
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Notas:
[1]
Johann Cristoph Friedrich von Schiller era filósofo, médico e historiador
alemão. Foi um dos maiores literatos alemães do século XVIII, ao lado de
Goethe, nasceu no dia 10 de novembro de 1759, em Marbach am Neckar, província
na qual passa seus primeiros quatro anos de existência. Este grande poeta, dramaturgo, filósofo e
historiador era filho do cirurgião militar Johann Kaspar Schiller, integrante
do exército de Württemberg, e de Elisabeth Dorothea Kodweis, filha do
proprietário de uma taberna.
[2]
A ideia fundamental do ensaio de Friedrich Schiller é a de que o corpo humano
pode mostrar dois tipos de beleza. Uma tem origem na natureza sensível do ser
humano e chama-se beleza arquitetônica ou beleza da estrutura. Há também uma
beleza do jogo ou da expressão, uma beleza móvel que comunica ao corpo os
movimentos da alma.
[3]
SCHILLER, Friedrich. On grace and dignity. Tradução de George Gregory. O texto
foi publicado na Alemanha em 1793, encontra-se disponível em: www.schillerinstitute.org/educ/aesthetics/Schiller_On_Grace_
and_Dignity.pdf. Acesso em 25.2.2023.
[4]
Alexandre Magno, Alexandrino ou Alexandre, o Grande. Alexandre III da Macedônia
(356 a.C.-323 a.C.) foi rei do reino grego antigo da Macedônia e um membro da
dinastia argéada. Durante sua juventude,
Alexandre foi orientado pelo filósofo Aristóteles até aos 16 anos. Depois que
Filipe foi assassinado em 336 a.C., Alexandre sucedeu a seu pai no trono e
herdou um reino forte e um exército experiente. Havia sido premiado com o
generalato da Grécia e usou essa autoridade para lançar o projeto pan-helênico
de seu pai liderando os gregos na conquista da Pérsia. Em 334 a.C., invadiu o
Império Aquemênida, governando a Ásia Menor, e começou uma série de campanhas
que durou dez anos. Quebrou o poder da Pérsia em uma série de batalhas
decisivas, mais notavelmente as batalhas de Isso e Gaugamela. Em seguida,
derrubou o rei persa Dario III e conquistou a Pérsia em sua totalidade. Nesse ponto,
seu império se estendia do mar Adriático ao rio Indo. Buscando alcançar os
"confins do mundo e do Grande Mar Exterior", invadiu a Índia em 326
a.C., mas foi forçado a voltar pela demanda de suas tropas. Alexandre morreu na
Babilônia em 323 a.C., a cidade que planejava estabelecer como sua capital, em
executar uma série de campanhas planejadas que teria começado com uma invasão
da Arábia. Nos anos seguintes à sua morte, uma série de guerras civis rasgou
seu império em pedaços, resultando em vários estados governados pelos diádocos,
sobreviventes e herdeiros generais de Alexandre.
[5]
Cotejando o direito contemporâneo, a palavra "dignidade" tem sido
usada em um terceiro sentido, associado aos direitos humanos. A dignidade é
usada como qualidade intrínseca de todos os seres
humanos, independentemente
de seu status e da sua conduta. É ontológica e não contingente. Noutras
palavras, todos os indivíduos que pertencem à espécie humana possuem dignidade
apenas por serem pessoas. Não se admitem restrições relativas aos fatores como
gênero, idade, orientação sexual, nacionalidade, deficiência, capacidade
intelectual ou qualquer outro. E, ninguém se despe da dignidade humana, ainda
que cometa crimes gravíssimos, que pratique os mais abomináveis atos. O
homicida, o estuprador e torturador têm o mesmo valor intrínseco que o herói, o
religioso ou o santo. A dignidade humana que não é concedida por ninguém não
pode ser retirada pelo Estado ou pela sociedade, em nenhuma situação. É
inerente à personalidade humana e, portanto, embora possa ser violada e
ofendida pela ação do Estado ou de particulares, jamais será perdida pelo seu
titular.
[6] As duas narrativas míticas sobre a Criação
que encontramos na Bíblia provêm de tradições orais diferentes, mas ambas
afirmam a dignidade da pessoa humana que, colocada no centro do ato criador de
Deus, se torna parceiro de Deus no cuidado de toda a Criação.
[7]
A dignidade dos seres humanos é afirmada em três sentenças sucessivas em
Gênesis 1.27-28. Em primeiro lugar, “criou Deus o homem à sua [própria]
imagem”. Em segundo, “homem e mulher os criou”. Em terceiro lugar, “Deus os
abençoou, e lhes disse: Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a
terra!”. A dignidade humana é vista aqui como consistindo em três
relacionamentos singulares que Deus estabeleceu para nós pela criação, os
quais, juntos, constituem grande parte da nossa humanidade e que foram
distorcidos pela Queda, mas não destruídos.
[8]
Nossa terceira qualidade distintiva como seres humanos é o nosso relacionamento
com a terra e com suas criaturas. Deus nos deu o domínio, com instruções para
subjugar e cultivar a frutífera terra e dominar suas criaturas. Assim então,
todos aqueles direitos humanos que denominamos direito ao trabalho e direito ao
descanso, o direito de compartilhar dos recursos da terra, o direito ao
alimento, vestuário e abrigo, o direito à vida, à saúde e à sua preservação,
juntamente com a libertação da pobreza, da fome e das doenças, vêm sob essa
terceira classificação do nosso relacionamento com a terra.
[9]
Gregório IX (1145-1241) nascido como Ugolino di Anagbi foi Papa de 1227 a 1241.
Filho do Conde de Segni e sobrinho do Papa Inocêncio III, estudou Direito em
Paris e Bolonha. Feito cardeal em 1198, tornou-se cardeal-bispo de Óstia em
1206. Importante incentivador dos dominicanos e dos franciscanos, tendo sido
amigo pessoal do próprio São Francisco de Assis. Organizou a Inquisição
Pontifícia com o fito de reprimir as heresias, com a promulgação da bula Licet
ad capiendos em 20 de abril de 1233, dirigida aos dominicanos, que passaram
a liderar o trabalho de investigação, julgamento, condenação ou absolvição dos
hereges. Canonizou São Francisco de Assis dois anos após sua morte, S. Domingos
de Gusmão e Santo Antonio de Lisboa.
[10]
Os inquisidores portugueses fizeram 40 (quarenta) mil vítimas, das quais 2
(dois) mil foram mortas na fogueira. Na Espanha, até a extinção do Santo
Ofício, em 1834, estima-se que quase 300 (trezentos) mil pessoas tenham sido
condenadas e 30 (trinta) mil executadas. Desta maneira, as principais vítimas
da perseguição protestante foram os católicos que se recusaram a se converter
ao protestantismo. Também foram condenadas pessoas acusadas de adultério,
bruxaria e seitas como a dos anabatistas. A inquisição no Brasil ocorreu por
volta da segunda metade do século XVIII, nesse período cerca de 500 pessoas
foram acusadas de disseminar o judaísmo. A inquisição atuou no Brasil
perseguindo aqueles que eram considerados hereges.
[11]
Giovanni Picco Della Mirandola (1463-1494) foi um erudito, filósofo neoplatônico
e humanista do Renascimento italiano. O seu objetivo principal era conciliar
religião e filosofia. Assim como o seu mestre Marcílio Ficino, Giovanni baseava
as suas conceções principalmente em Platão, em oposição a Aristóteles. Todavia Giovanni era em essência um eclético
e em muitos aspetos, ele representava uma reação contra os exageros do
Humanismo. De acordo com Pico della Mirandola, deveríamos estudar as fontes
hebraicas e talmúdicas, enquanto as melhores conquistas da escolástica deveriam
ser preservadas. O seu Heptaplus, uma exposição místico-alegórica da
criação do mundo de acordo com os sete sentidos bíblicos, segue essa ideia; ao
mesmo período pertence “De ente et uno”, com explanações de várias
passagens dos livros mosaicos, platônicos e aristotélicos. Já em Roma, no ano
de 1486, com apenas 23 anos de idade, publica as suas polêmicas 900 teses
intituladas Conclusiones philosophicae, cabalisticae et theologicae,
com que acreditava ter desvelado as bases de todo o conhecimento da humanidade,
combinando elementos do neoplatonismo, hermetismo e cabalismo, além de versar
sobre lógica, matemática, física.
[12] Samuel Pufendorf (1632-1694) foi um jurista alemão. Tornou-se nobre, quando fora elevado a barão, poucos meses antes de seu óbito em 1684. E, seu nome passou a ser Samuel von Pufendorf. Foi um dos expoentes da corrente jurisnaturalista e criou o transpersonalismo, tendo os seus escritos influenciado de forma duradoura o ensino do Direito na maior parte da Europa, com destaque para os países de tradição católica, entre os quais Portugal, onde suas obras foram adotadas como manuais na Universidade de Coimbra. Pufendorf defende a noção de que o direito internacional não está restrito à cristandade, mas constitui um elo comum a todas as nações, pois todas elas formam a humanidade. Pufendorf é um teórico da guerra justa. As suas obras são adotadas em muitas cadeiras de Direito Natural, mas a leitura do Direito Natural procura destacá-lo daquilo que é em geral a Ética, assumindo que a construção de um sistema de Direito Natural é diferente da construção de uma ética.
[13]
Segundo Kant, a dignidade do homem emana do seu potencial, dele querer ser o
que quiser e, por esse motivo, deixava clara a importância da liberdade e da
autonomia para o homem. Ser “anjo” ou “besta” seria uma escolha genuinamente
humana. Para Kant os elementos que fundamentam a dignidade da pessoa humana,
tem como ponto partida, a educação da razão, pois é por ela que o ser humano é
“construído”. O pensamento acerca da educação em Kant é correlacionado com a
conduta humana individual e com as ações morais em conjunto, uma vez que, a
finalidade da educação é conscientizar o homem para o cumprimento das leis e do
direito, para que seja possível a justiça. A liberdade, a autonomia e a vontade
são atributos de um sujeito devidamente educado e conhecedor dos seus direitos.
Este texto apresenta algumas relações com o pensamento de Rousseau no que se
refere ao conceito de liberdade e da natureza humana. Para Kant, a bondade ou a
maldade não são aspectos determinados pela natureza.
[14] "Os iluministas preocuparam-se em denunciar a injustiça, a dominação religiosa, o estado absolutista e os privilégios enquanto vícios de uma sociedade que, cada vez mais, afastava os homens do seu “direito natural” à felicidade. Segunda a visão desses pensadores, sociedades que não se organizam em torno da melhoria das condições de seus indivíduos concebem uma realidade incapaz de justificar, por argumentos lógicos, sua própria existência. Por isso, o pensamento iluminista elege a “razão” como o grande instrumento de reflexão capaz de melhorar e empreender instituições mais justas e funcionais. No entanto, se o homem não tem sua liberdade assegurada, a razão acaba sendo tolhida por entraves como o da crença religiosa ou pela imposição de governos que oprimem o indivíduo. A racionalização dos hábitos era uma das grandes ideias defendidas pelo iluminismo. As instituições religiosas eram sistematicamente atacadas por esses pensadores. A intromissão da Igreja nos assuntos econômicos e políticos era um tipo de hábito nocivo ao desenvolvimento e ao progresso da sociedade. Até mesmo o pensamento dogmático religioso era colocado como uma barreira entre Deus e o homem. O pensamento iluminista acreditava que a natureza divina estava presente no próprio indivíduo e, por isso, a razão e o experimento eram meios seguros de compreensão da essência divina."
[15]
Hegel, filósofo do século XIX, com sua Filosofia que pode ser denominada de
“orgânica”, expõe conceitos necessários para o entendimento das relações
humanas, entre estes estão o conceito da liberdade, de direitos, de autonomia e
de dignidade. Em sua obra Filosofia do Direito, a eticidade é a fase final da
evolução social, na qual estão contidas as instituições sociais, incluindo o
Estado. Este, por sua vez, permite a efetivação da liberdade, visto que isto,
para este autor, é o principal objetivo do Estado, e, consequentemente garante
a autonomia e a dignidade humanas. Este ensaio pretende elucidar os conceitos
de autonomia e de dignidade, juntamente com o de liberdade na Filosofia do
Direito de Hegel, remetendo-se ao longo do estudo, a Cícero, a Pico della
Mirandola, a Tomás de Aquino, a Pufendorf e a Kant, visando a uma comparação
breve, objetivando enfatizar as definições.
[16]
Com o término das guerras e períodos que suprimiram e mitigaram direitos, temos
a nítida visão de que a dignidade da pessoa humana passa a embasar qualquer
direito, sendo a essência que projeta o ordenamento jurídico, passando a ter
valor supremo e fundamental, logo converge todas as demais leis a um único
ponto. A dignidade humana, como
atualmente compreendida, se assenta sobre o pressuposto de que cada ser humano
possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no universo. Diversas
religiões, teologias e concepções filosóficas buscam justificar essa visão
metafísica. O longo desenvolvimento da compreensão contemporânea de dignidade
humana se iniciou com o pensamento clássico e tem como marcos a tradição
judaico-cristã, o Iluminismo e o período imediatamente posteriores ao fim da
Segunda Guerra Mundial.