Considerações sobre Direito Processual Constitucional no Brasil

O julgador está obrigado a fundamentar sua decisão com base em todos os argumentos carreados pelas partes, sob pena de violação ao princípio do contraditório e da fundamentação das decisões e, nesse sentido, o artigo 489, §1° do Código de Processo Civil de 2015 é o instrumento eficaz à implementação da sistemática do processo alicerçado nas bases do modelo constitucional

Fonte: Gisele Leite

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A maior pretensão desse modesto texto foi demonstrar a diferença entre a motivação e fundamentação das decisões judiciais, analisando como estarão em harmonia com o Estado Democrático de Direito.

O termo “Estado Democrático de Direito”, conquanto venha sendo largamente utilizado em nossos dias, é pouco compreendido e de difícil conceituação em face das múltiplas facetas que ele encerra.

No Estado contemporâneo, em virtude da maximização do papel do poder público, que se encontra presente em praticamente todas áreas das relações humanas, a expressão “Estado Democrático de Direito” ganha uma extensão quase que ilimitada, mas, consequente e paradoxalmente, perde muito em compreensão.

Assim compõem: (1)Um Estado Democrático de Direito tem o seu fundamento na soberania popular; (2)A necessidade de providenciar mecanismos de apuração e de efetivação da vontade do povo nas decisões políticas fundamentais do Estado, conciliando uma democracia representativa, pluralista e livre, com uma democracia participativa efetiva; (3)É também um Estado Constitucional, ou seja, dotado de uma constituição material legítima, rígida, emanada da vontade do povo, dotada de supremacia e que vincule todos os poderes e os atos dela provenientes; (4)A existência de um órgão guardião da Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e desimpedida, constitucionalmente garantida; (5)A existência de um sistema de garantia dos direitos humanos, em todas as suas expressões; (6)Realização da democracia – além da política –  social, econômica e cultural, com a consequente promoção da Justiça Social[1].

O estudo do direito processual constitucional que define bem todas as garantias processuais constitucionais a serem observadas, indo do livre convencimento motivado até a fundamentação das decisões, especialmente em atenção ao artigo 489 do CPC.

De fato, o dever de fundamentação das decisões judiciais, teve especial destaque no Código de Processo Civil de 2015, o Código Fux, que criou dispositivos específicos para disciplinar o tema, quais sejam, o artigo 11 que determina que as decisões devem ser fundamentadas sob pena de nulidade, e o artigo 489 que especifica as situações nas quais não se considera que a decisão judicial fora devidamente fundamentada.

É muito relevante demonstrar a convergência existente entre o texto constitucional brasileiro vigente de 1988 e a fundamentação de decisões, além de diferenciar esta da simples motivação e verificar ainda como tem sido feita a aplicação de tal garantia na prática jurídica contemporânea.

Com a abordagem da jurisdição enquanto atividade estatal, a qual, no Estado Democrático de Direito, é, sobretudo, um direito fundamental de qualquer pessoa e a fruição desse direito ocorre pela garantia fundamental do processo constitucional, o qual foi melhor examinado na sequência.

Por outro lado, a fundamentação poderá conter elementos e fundamentos que, embora debatidos e mesmo que acolhidos por unanimidade por um órgão colegiado, não guardam relação necessária com a solução alcançada naquele julgamento.

Trata-se dos obiter dicta, “meras reflexões que ali constaram por decorrência do raciocínio desenvolvido pelo julgador, mas que não podem ser consideradas, isoladamente, como justificativa para a conclusão judicial.”

Traçados os contornos gerais do que se entende por precedente judicial, faz-se relevante à conclusão do tópico a observação feita por Rodrigo Ramina de Lucca de que, independentemente do momento histórico, do local e mesmo do sistema jurídico ao qual se submete, o conceito de precedente[2] é, invariavelmente, o mesmo. “Seja no Brasil, na França ou na Inglaterra, devem ser consideradas precedentes as decisões que, contendo razões jurídicas universais, válidas para todos os casos análogos ao que foi julgado, tenham aptidão para influenciar os julgamentos subsequentes.”

Aqueles fatores tais como o momento, local e sistema apesar de não estarem dentro do conceito, mas, positivamente orbitam em torno dele: serão relevantes para definir como e de que forma o precedente será aplicado. São eles, portanto, os responsáveis pelos diferentes impactos que o precedente[3] pode gerar em cada ordenamento, ou num mesmo ordenamento mas em diferentes momentos, como se observa da comparação entre os sistemas judiciários brasileiro e inglês, ou, dentro do próprio ordenamento brasileiro, entre o sistema construído a partir do CPC/1973 e do vigente CPC/2015.

Com relação aos precedentes judiciais, o overruling ensina Vanin consiste em uma das hipóteses de afastamento do precedente. Com efeito, em algumas situações, a resolução de um novo caso, cujos fatos guardam identidade com os fatos do caso precedente, é realizada de forma distinta, sem referência à norma geral anteriormente criada. Nessas situações, ocorre a revogação do precedente[4].

O overriding, por sua vez, segundo Vanin também é técnica de superação do precedente, na qual a aplicação do precedente é restringida. Embora se relacione com a revogação parcial, tal técnica está muito mais próxima do distinguishing.

Afinal, o overriding consiste na inaplicabilidade do precedente em razão de um novo entendimento, e não exatamente em sua revogação. Assim, verificada uma nova situação, não envolvida no precedente, e um novo entendimento, a distinção ocorre por meio do overriding.

A ampla adoção de precedentes vinculantes pelo vigente Código de Processo Civil é um desafio e uma oportunidade, leciona Vanin. Um desafio porque impõe à comunidade jurídica que se familiarize e busque argumentar com noções muito pouco utilizadas até este momento, tais como ratio decidendi[5] (holding), obiter dictum[6] (considerações marginais) e distinção entre casos (distinguish).

Foi realizado o estudo da fundamentação das decisões, iniciando pela pesquisa acerca do livre convencimento motivado no Código de Processo Civil de 1973, a partir do qual o magistrado estava autorizado a apreciar livremente os fundamentos e provas trazidos aos autos devendo simplesmente motivar suas decisões, culminando no estudo da devida fundamentação das decisões a partir da Constituição da República e do Código de Processo Civil de 2015[7].

Foi feita, ainda, a análise de alguns julgados com o objetivo de verificar a aplicação prática do livre convencimento motivado e da fundamentação das decisões tanto durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973 quanto do CPC de 2015, a fim de elucidar que, mesmo com a previsão da necessidade da fundamentação das decisões, a simples motivação é que continua, muitas vezes, sendo aplicada.

Analisando a função jurisdicional do Estado sofreu evolução, encarando-se a decisão judicial como ato processual. Logo no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal que se constitui em Estado Democrático de Direito.

Tal modelo de Estado prima por ser o contemporâneo paradigma constitucional e permeia as relações jurídicas existentes naquele momento histórico as leituras sobre jurisdição feitas em outros momentos devem ser descartadas.

É o caso daquela que dispõe que a “jurisdição é uma das expressões do poder estatal, caracterizando-se este como a capacidade, que o Estado tem, de decidir imperativamente e impor decisões.”

A função jurisdicional do Estado deve ser entendida como poder-dever ou atividade-dever do Estado, e assim, é direito fundamental de todos, inclusive dos órgãos estatais, de obtê-la adequadamente e de forma eficiente, sem jamais ser atividade beneficente ou mesmo caritativa.

A resolução da lide, diante a pretensão resistida por um dos litigantes, traduz-se no processo, durante o trâmite o julgador deverá sempre vislumbrar a tutela de direitos que inclua a atividade satisfativa e, ainda, que observe todos os direitos e garantias constitucionalmente trazidas.

E, não se trata de apenas declarar o direito, a jurisdição deverá atender às exigências da esfera material, bem como a busca da primazia do julgamento de mérito e, o combate à jurisprudência defensiva.

“A denominada “jurisprudência defensiva” pode ser caracterizada, hoje, como um excesso de rigorismo processual e procedimental. São decisões que se utilizam indiscriminadamente e estendem a aplicação de entendimentos jurisprudenciais, sumulados ou não, que contenham algum óbice ao conhecimento dos recursos.” (FARINA, 2012).

Concretizou-se a adoção de linha principiológica que garanta a aplicação da lei a partir do enfoque constitucional também é uma das suas características mais relevantes e, que confirma a premissa retromencionada.

A Constituição brasileira atual concede manifesto reconhecimento aos princípios como normas jurídicas impositivas, ao lado de regras, realçando a dimensão principiológica de seu sistema, quando, ao início, já no Título I, dispõe a  respeito dos princípios fundamentais que regem a República Federativa do  Brasil, referindo-se, em seguida, no seu artigo 1º, ao Estado Democrático de  Direito, dado topológico este que, ao que entendemos, está a indicar a inclusão do Estado Democrático de Direito entre aqueles princípios fundamentais.

Surge um questionamento, a duvidar da possibilidade de julgadores que não foram eleitos e não sujeitos à periódica avaliação pelos cidadãos, tomem decisões judiciais e que possam prevalecer sobre a soberana vontade popular?

A função jurisdicional está concentrada no Estado e não na pessoa do julgador e, por consequência, não decorre da forma de investidura no cargo, característica dos regimes democráticos (SOUSA, 2017). Portanto, o membro do Judiciário ingressa na carreira mediante concurso público ou, ainda, por nomeação pelo quinto constitucional, mas exerce a atividade jurisdicional em nome do Estado. Trata-se do princípio da investidura.

Em resposta, defende-se que a atividade jurisdicional extrai sua legitimidade através de exercício procedimentalizado da participação das partes no processo e, da juridicidade e ainda racionalidade das decisões judiciais ao final proferidas.

Numa releitura de Friedrich Müller[8], observa-se que a Constituição Federal brasileira de 1988, ao prever que todo o poder emana do povo, expressa a ideia de que tal poder deverá ser exercido por encargo do povo, até porque não é o Estado o real detentor do poder, mas sim, seu âmbito material de responsabilidade e atribuição.

Considerando que a Jurisdição visa preservar o ordenamento jurídico--constitucional no julgamento de casos concretos submetidos à apreciação estatal por meio do processo, as normas constitucionais devem prevalecer sobre as ordinárias e as decisões devem ser construídas de forma coerente com o ordenamento jurídico vigente e adequadas ao caso concreto.

Assim, a tutela jurisdicional efetiva, no Estado Democrático de Direito, é, sobretudo, um direito fundamental de qualquer pessoa e a fruição desse direito ocorre pela garantia fundamental do processo constitucional (BRÊTAS, 2018), justificativa pela qual o Estado deve criar mecanismos para seu pleno exercício, com acesso à jurisdição de maneira ampla, devendo o legislador se preocupar em criar expedientes processuais que cumpram sua finalidade.

O inciso XXXV do art. 5° da CF é expresso quanto a qualquer ameaça ou lesão a direito não poder ser afastada do Poder Judiciário. O dispositivo impõe, por isso mesmo, que o direito processual civil se estruture, desde a CF, em duas grandes frentes.

Uma voltada à reparação de lesões ocorridas no passado, uma proposta retrospectiva da função jurisdicional, e outra, voltada para o futuro, uma visão prospectiva do processo, destinada a evitar a consumação de quaisquer lesões a direito, é dizer, a emissão de uma forma de tutela jurisdicional que imunize quaisquer ameaças independentemente de elas converterem-se em lesões. Independentemente, até mesmo, de elas gerarem quaisquer danos. Basta, quando a ameaça é o foro das preocupações da atuação jurisdicional, que haja uma situação antijurídica.

É o dever de fundamentar as decisões, com o objetivo de “garantir fiscalidade à função jurisdicional e conter os arbítrios, discricionariedades, o solipsismo do julgador, que são incompatíveis com a noção de Estado Democrático de Direito”

A fundamentação das decisões judiciais possui íntima relação com o Estado Democrático de Direito, com a segurança jurídica e com o devido processo constitucional, vez que as decisões arbitrárias implicam em grave ofensa às garantias supramencionadas.

O devido processo legal simboliza a obediência às normas processuais estipuladas em lei, garantindo aos jurisdicionados direito à dialética processual, marcada pela bilateralidade da relação entre os litigantes, o exercício amplo de defesa e um julgamento justo e igualitário com atos e decisões devidamente motivadas.

O due process of law objetiva a proteção de vários direitos fundamentais do ser humano que também, dada a sua importância, estão igualmente consagrados expressamente ou implicitamente na Constituição, como o acesso ao judiciário, o contraditório, a decisão justa e a efetividade do processo.

Assim, o devido processo legal[9] se identifica como o processo com contraditório, ampla defesa, decisão fundamentada e recursos legais, com procedimentos e término em prazos razoáveis e com a necessária segurança jurídica, não podendo ser negado a quem provar insuficiência de recursos.

Relevante destacar que o dever de fundamentar as decisões vai muito além da conceção que é amplamente visualizada em algumas decisões emanadas pelo Judiciário.

Afirma Ronaldo Brêtas que:

“O princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais ainda se perfaz pelo princípio da congruência (ou princípio da adstrição do juiz ao pedido), este significando correspondência entre o que foi pedido pelas partes e que foi decidido, ou seja, deve existir correlação entre o objeto da ação ajuizada, que originou o processo, a pretensão, revelada no pedido formulado na petição inicial, e o objeto da decisão jurisdicional nele proferida”. (BRÊTAS, 2018)

A base da decisão judicial exarada não poderá ser originada de uma única interpretação do julgador, devendo se fulcrar em todos os argumentos e provas promovidos pelo contraditório e pela ampla defesa, os quais procuram concretizar a concreta influência dos litigantes no processo.

A fundamentação das decisões, dentro do devido processo constitucional[10] determina a fruição do direito fundamental à jurisdição e ocorre pela garantia fundamental do processo, sendo que este abrange também outras garantias fundamentais, tais como a devida fundamentação e observância do contraditório, o que guarda íntima relação entre si.

As preciosas lições que vieram no alvorecer do século XX favorecerem o surgimento das Constituições Democráticas e passaram a militar pela convergência entre a Constituição e Processo, permitindo a condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo. E, tal fenômeno de constitucionalização do processo em nosso país, teve como marco a promulgação da Constituição Cidadã que trouxe nítida visão democrática do processo.

In litteris:

[...] Em razão da instituição dessa nova matriz disciplinar, com a promulgação  da Constituição de 1988, o processo deve ser analisado sob uma perspectiva  democrática, sendo necessário, para tanto, romper com as teorias do processo  que o tratam como um poder do Estado, principalmente com a Teoria do Processo como Relação Jurídica (Escola Instrumentalista do Processo), sistematizada por Oskar Von Büllow (BÜLLOW, 1964), que serviu de marco teórico para  o Código de Processo Civil de 1973, segundo a qual o processo é uma relação  jurídica entre autor, réu e Juiz. (FREITAS, G.; FREITAS, S., 2016).

Antes da constitucionalização do processo[11], este possuiu outras compreensões. O processo enquanto relação jurídica tem como ponto de partida o direito subjetivo (concepção civilística), em que uma das partes, detentora de determinado direito, tem sua pretensão resistida, podendo exigir referido direito do sujeito passivo, “ante a existência de vínculo jurídico de exigibilidade entre os sujeitos processuais.

[...] diante da vinculação de uma parte à outra e de ambas ao magistrado, é possível verificar que, apesar da importância da teoria da relação jurídica de Büllow para o avanço do estudo do processo, ela não se adequa ao Estado Democrático de Direito, o qual preceitua incessantes direitos de participação e fiscalização das partes, não sendo aceito que uma parte imponha à outra a prática de qualquer ato processual. (CAMARGOS, 2020).

Elio Fazzalari, rompeu com tal concepção, ainda na década de cinquenta, e propôs nova noção de procedimento e de processo. Assim, não se define o processo por mera sequência, direção ou finalidade de atos praticados pelas partes ou pelo juiz, mas sim, pela presença do atendimento do direito ao contraditório entre as partes, em simétrica paridade. O processo é procedimento em contraditório[12].

O princípio do contraditório é de fundamental importância no processo civil, pois concede ao réu não apenas o direito de ser citada no processo mas, também, interagir nesse processo de modo a produzir provas e fazer com que o juiz possa ser influenciado pelas alegações do réu.

O princípio do contraditório assim como direito processual como um todo igualmente evoluiu, passou de termos e bases formais para uma concretude mais palpável e material. Enfim, o processo contemporâneo o transformou em dever de diálogo judicial.

Assim, o contraditório ergueu-se a ser elemento técnico incorporado na estrutura procedimental e entendida como sequência de atos, normas e posições jurídicas para a plena configuração do processo.

Na teoria constitucionalista do processo, de acordo com José Alfredo de Oliveira Baracho, o surgimento do Direito Processual Constitucional ocorreu com a aproximação entre Constituição e Processo. O que não traduz um ramo autônomo do Direito Processual, mas sim, de colocação científica da acepção metodológica e sistemática, do qual se pode examinar o processo em suas relações com a Constituição.

Portanto, que “a teoria do processo constitucional se concretiza com a tutela da supremacia constitucional desaguando na proteção dos direitos fundamentais.”

É comum encontrar nos manuais e nas obras que versam sobre Direito Constitucional a menção ao princípio do Devido Processo Legal8

Ocorre que, em verdade, o princípio constitucional deve ser denominado de “devido processo constitucional”. Isso porque, sobretudo, no modelo de ordenamento jurídico adotado pelo Estado, a base principiológica decorre da Constituição da República e não da lei:

Por esta razão, aliás, aliada à correta compreensão da importância do “modelo constitucional” para o estudo do direito processual civil, não há como deixar de reconhecer que o chamado “devido processo legal” é, antes de tudo, um “devido processo constitucional”, expressão que enfatiza que a pauta de reflexão sobre o direito, em um modelo de Estado como o brasileiro, tem que partir da Constituição, e não da lei.

O devido processo constitucional é exatamente a prestação jurisdicional sob o prisma da Constituição, que deve reger todos os procedimentos pois remete à ideia de que, além dos os princípios autônomos trazidos pela legislação infraconstitucional, todas as garantias processuais constitucionais devem ser observadas.

O Judiciário, nas esperadas democracias plenárias, não é o espaço encantado (reificado) de julgamento de casos para revelação da Justiça, mas órgão de exercício jurisdicional segundo o modelo constitucional do processo em sua projeção de intra e infra expansividade principiológica e regradora.

O devido processo constitucional é que é jurisdicional, porque o processo é que cria e rege a dicção procedimental do direito, cabendo ao juízo ditar o direito pela escritura da lei no provimento judicial.

Mesmo o controle judicial de constitucionalidade há de se fazer pelo devido processo constitucional, porque a tutela jurisdicional da constitucionalidade é pela Jurisdição Constitucional da lei democrática e não da autoridade (poder) judicacional (decisória)dos juízes.

Conforme lições de Luís Roberto Barroso:

De grande riqueza histórica, a expressão devido processo legal, oriunda da inglesa “due processo of law[13]”, remonta à cláusula “law of the land” da “Magna Carta” do Rei John Lackland, documento percursor do constitucionalismo, datado de 1215, tendo, no entanto, ocorrido sua consagração em texto positivo através da 5ª e 14ª emendas à Constituição norte-americana. (BARROSO, 2015).

Diante da necessidade de que o sistema processual civil esteja de acordo com as garantias fundamentais previstas na Constituição da República de 1988 a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015 estipulou:

“Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: l) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; [...].” (BRASIL, 2010).

A garantia constitucional da fundamentação das decisões, enseja um certo controle à atividade do magistrado que, por consequência, limita suas funções, com adequada aplicabilidade e observação dos princípios constitucionais, evidenciando as decisões arbitrárias, que tenham descumprido direitos fundamentais ou ainda contrárias à legislação ordinária.

Portanto, o processo como modelo constitucionalizado deve ser obedecido na construção dos procedimentos na infraconstitucionalidade. O contraditório deixa de ser mero atributo do processo para se tornar condição de princípio determinativo de sua própria inserção na estruturação de todos os procedimentos preparatórios dos atos jurisdicionais.

As partes, ou seja, os litigantes, passaram a participar[14] da construção do ato decisório, sendo o contraditório um princípio para a promoção da isonomia entre as partes.

O contraditório deve ser compreendido como princípio de influência e de não surpresa, tornando-se base para o princípio da fundamentação da decisão e para o exercício do controle da argumentação utilizada pelo juiz. Se houver a restrição ou a supressão da garantia constitucional do contraditório, certamente, haverá a violação da garantia constitucional da fundamentação das decisões. Ao passo que se o princípio da fundamentação das decisões for respeitado, o contraditório também foi respeitado no trâmite processual.

Existe, assim, direta relação entre a fundamentação de decisões judiciais e o princípio do contraditório, que deverá ser oportunizado às partes a possibilidade de apresentar provas e argumentos, sendo o ato decisório, uma construção participada. E, nesse sentido, afirma-se que há o fenômeno jurídico dialético construído perante cada caso concreto e havendo a racionalização dos argumentos envolvidos e apreciados.

Isto se dá porque existe a partir da comunidade que o encerra e em função dela” (GONTIJO, 2011). Ora, se o fenômeno jurídico existe a partir da comunidade, a decisão clara e fundamentada é medida que se impõe, vez que, se assim não for, o Direito não alcança seu objetivo e se torna inócuo.

O procedimento judicial deve ser horizontal, próximo e em função das partes e da sociedade para, assim, ser visto como instrumento efetivo de resolução dos problemas, principalmente pelas classes sociais mais baixas.

Se um julgado não traz em sua parte dispositiva uma resposta à todas as alegações das partes, percebe-se a inobservância do princípio da fundamentação das decisões, com consequente ofensa à garantia processual da tutela jurisdicional efetiva (FREITAS, G.; FREITAS, S., 2016).

O juiz deverá buscar a desburocratização do Direito bem como a efetividade da prestação jurisdicional para galgar a efetivação de garantias fundamentais, sejam as individuais ou coletivas.

Niklas Luhmann descreveu a necessidade utilitária do direito como “desafogamento de atenção e da responsabilidade com respeito às consequências da decisão” (LUHMANN, 2002,).

A lição do doutrinador é a de que o processo de tecnicização do fenômeno jurídico, permite ao julgador se eximir de proferir decisões efetivas, claras, fundamentadas. Portanto, o julgador se torna mero “aplicador automatizado” das regras jurídicas, sem avaliar a fundo o caso concreto, proferindo decisões que, ainda que de acordo com a legislação, não são efetivas e não integram às partes e sociedade.

A decisão, portanto, encontra sua validade no respeito às regras judiciais, e não na sociedade, se tornando inócua, sem efetividade. A “formalística insensata” utilizadas nas decisões judiciais podem ser contestadas pela sociedade, seja pela ausência de senso crítico, de análise subjetiva, mas, com relação ao método jurídico, nada pode ser feito.

As garantias processuais, como tutela jurisdicional efetiva, constituem-se direitos positivos, que dependem de prestações positivas do Estado, sendo a fundamentação das decisões uma garantia constitucional, o que evidencia a importância do presente estudo.

Ao adentrar com maior profundidade no estudo da fundamentação das decisões, importante iniciar com um breve histórico do instituto no ordenamento processual brasileiro.

A decisão baseada apenas na interpretação isolada do Juiz era proferida sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, o Código Buzaid, mais especificamente no artigo 131, o qual expressava o sistema do livre convencimento do juiz, a partir do qual o magistrado estava autorizado a apreciar livremente os fundamentos e provas trazidos aos autos: “Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”

Com o sistema do livre convencimento, a decisão sem fundamentação é nula, todavia, basta que o magistrado motive as razões do seu convencimento, sendo ele soberano na análise dos autos:

      “Livre convencimento motivado. O juiz é soberano na análise das provas produzidas nos autos. Deve decidir de acordo com o seu convencimento. Cumpre ao magistrado dar as razões de seu convencimento. Decisão sem fundamentação é nula pleno jure (CF 93 IX). Não pode utilizar-se de fórmulas genéricas que nada dizem. Não basta que o juiz, ao decidir, afirme que defere ou indefere o pedido por falta de amparo legal; é preciso que diga qual o dispositivo de lei que veda a pretensão da parte ou interessado e porque é aplicável no caso concreto”.

Não é mais pertinente a vetusta afirmação ainda muito usada de que o Juiz não está obrigada a se manifestar a respeito de todas as alegações das partes decorre da equivocada compreensão do princípio da fundamentação e da extensão das questões relevantes ao processo.

Na necessidade de simples motivação, há uma premissa de que aquele que julga tem o poder de cotejar quais as alegações trazidas devem ser analisadas, com filtro subjetivo do que é ou não pertinente à solução do conflito.

A fundamentação acaba se tornando uma exaltação das razões que amparam o ato decisório do juiz, sendo os argumentos e provas trazidos pelas partes sumariamente ignorados. Pode-se dizer, por exemplo, que “a decisão dá as razões pelas quais o vencedor venceu, mas não diz porque o sucumbente perdeu”.

Não se pode, portanto, confundir a simples motivação prevista no CPC de 1973 com a   necessidade da devida fundamentação, prevista no CPC de 2015, a partir do qual devem ser evitadas referências genéricas e não justificadas, do tipo: ‘a prova produzida pelo autor não convence’.

Com isso, o juiz de maneira alguma se desincumbiu do dever de motivar: ele tem de explicar por que não lhe pareceu convincente a prova produzida pelo autor. Analogicamente, quando o juiz   afirma: ‘as alegações do réu não ficaram comprovadas’, ele precisa demonstrar que isso realmente aconteceu; se as provas produzidas pelo réu não o convenceram, que ele exponha os motivos pelos quais não ficou convencido.

Registre-se que a diferença, não obstante parecer ser tênue, é nítida quando analisados casos concretos. Relevante destacar que esta decisão proferida na vigência do Código de Processo Civil de 1973 em que o magistrado estava autorizado a apreciar livremente os fundamentos e as provas trazidos aos autos:

[...] 3. Não está obrigado o Magistrado a julgar a questão posta a seu exame de acordo com o pleiteado pelas partes, mas, sim, com o seu livre convencimento (art. 131, do CPC), utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertencentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso concreto. [...].  (BRASIL, 2001).

A questão é que, a partir da análise de decisões proferidas vinte anos mais tarde e na vigência de um Código de Processo Civil que não mais prevê a possibilidade de simples motivação das decisões, mas a necessidade da devida fundamentação, é possível perceber que o livre convencimento motivado continua sendo aplicado.

Mesmo anos depois da promulgação e vigência do Código de Processo Civil de 2015, é comum defrontar-se com decisões que não guardam sintonia com os requisitos trazidos pela legislação processual atual, em descompasso com o devido processo constitucional e, consequentemente, com a própria Constituição da República.

Daí a importância de se estudar o instituto da fundamentação das decisões como garantidor do devido processo constitucional, e o estudo do processo no Estado Democrático de Direito e seu reconhecimento como verdadeiro mecanismo de participação e fiscalização na construção das decisões.

Nossa Constituição Cidadã consagra o princípio do devido processo constitucional, a partir do qual decorrem todos os outros, inclusive o da fundamentação das decisões, trazendo o artigo 93, inciso IX a previsão de que “IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]” (BRASIL, 1988).  A fim de garantir a legitimidade da função jurisdicional, as decisões não podem se basear no livre convencimento do magistrado.

In verbis:

“Na atual quadra histórica, e com os avanços propiciados pelos estudos da  ciência processual, tem-se que o conteúdo do ato decisório não pode mais  se resumir no que o julgador acredita ser o direito aplicável, segundo seu livre  convencimento[15]; tampouco pode corresponder a uma aplicação mecânica  sobre o que os tribunais superiores, dentro do ordenamento jurídico brasileiro,  atribuem como tese jurídica, a ser aplicada irrefletidamente e sem preocupação com o caso concreto, em prol da busca por uma eficiência quantitativa (de  números)”.

Cogitar na construção da decisão, sob este viés, só permite a perpetuação de um protagonismo judicial, incompatível com o Estado Democrático de Direito. Faz-se necessário, de uma vez por todas, delimitar o conteúdo da decisão, em especial da judicial, e garantir maior democraticidade e legitimidade da função jurisdicional.

Conclui-se que a fundamentação das decisões judicias possui direta relação com o Estado Democrática de Direito, com a segurança jurídica e ainda com o devido processo constitucional[16].

A fundamentação deve ser a demonstração de que [...] a decisão está fundada sobre uma premissa fática devidamente alegada e provada nos autos e sobre uma premissa jurídica correta, pois fruto da aplicação de uma norma jurídica previamente estabelecida e conhecida pelas partes, ainda que tenha sido extraída de uma complexa interpretação do sistema jurídico, dos seus princípios estruturantes e dos valores da sociedade.

A melhor forma de integrar às partes que não tenham profundo conhecimento jurídico envolvidas em um processo judicial é por meio de decisões claras, didáticas e, sobretudo, efetivas. Fundamentar uma decisão apenas com apontamentos legais e rígidos só contribui para a verticalização do procedimento, prática dissociada da fundamentação efetiva que se pretende abordar.

A fundamentação, além de trazer os apontamentos legais, deve, valendo-se do pensamento habermasiano, ser racional. Conforme leciona Marco Antônio Sousa Alves apud Alves, a racionalidade está atrelada ao poder discursivo, ou seja, a qualidade da argumentação demonstrará se a decisão é racional, isonômica e válida.

Esclarece ainda que “uma vez que a racionalidade é definida em termos de susceptibilidade de crítica e de fundamentação, racional passa a ser aquele indivíduo capaz de fundamentar suas manifestações ou emissões nas circunstâncias apropriadas”.

Na propedêutica filosófica, Habermas buscou construir uma lógica de argumentação partindo de diferentes pretensões de validez, sendo que o processo encontra sua legitimidade na democracia.

Nesse sentido, o procedimento democrático propõe uma “conexão interna entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de autocompreensão e discursos relativos a questões de justiça e fundamenta a suposição de que sob tais condições obtém-se resultados racionais e equitativos”.

Esclarece o doutrinador Dierle Nunes:

     “Em decorrência dessa perspectiva procedimental do Estado Democrático de Direito, vislumbra-se que nem a autonomia privada nem a autonomia pública possuem precedência, mas, sim, pressupõem-se mutuamente. No espaço procedimental discursivo criado, será possibilitada a livre flutuação de temas e de contribuições, de informações e de argumentos na formação falível da deliberação”. (NUNES, 2017).

Assim, deve dispor de procedimento e instrumentos que garantam a coparticipação das partes na construção do ato decisório e, nesse sentido, a fundamentação da decisão deve abordar todos os argumentos e provas apresentados nos autos do processo analisado (SOUSA, 2017).

A fundamentação das decisões, além de ter sua função endoprocessual, conforme trazido no parágrafo anterior, tem o condão, também, de propiciar a extensão do debate à toda comunidade, criando um modelo de controle difuso (SOUSA, 2017).

A devida fundamentação das decisões, ao garantir a participação e permitir a fiscalização pelo povo, é uma concretização do Estado Democrático de Direito.

In litteris, novamente:

[...] a fundamentação das decisões, enquanto exigência constitucional, torna-se destacado instrumento de controle democrático do conteúdo da decisão, como também do próprio exercício da função jurisdicional, permitindo-se tanto a controla ilidade exercida pelos participantes do processo, quanto a fiscalização do povo, por meio da publicidade e da transparência dos atos procedimentais.  (Souza, 2017).

Desta forma, a fundamentação das decisões judiciais é definida como mecanismo de controle das justificações expostas nas decisões, afastando as decisões irracionais, abstratas, discricionárias ou arbitrárias.

Com a previsão constitucional, é necessária sua previsão e dessecamento por lei ordinária, justificativa pela qual o Código de Processo Civil de 2015 trouxe previsão específica para a fundamentação das decisões, prevista no artigo 489, §1°.

É possível afirmar, portanto, que a partir da análise da Constituição da República vigente e do Código de Processo Civil de 2015, houve uma evolução no que tange à fundamentação das decisões, à necessidade de argumentação fática e jurídica de forma correlacionada com as especificidades do caso concreto, e sua obrigatoriedade, ao invés de simples indicação dos motivos que levaram àquele resultado. E, esta é a diferença entre fundamentação e motivação.

A fundamentação das decisões reafirma o processo judicial (e os procedimentos administrativos) como um conjunto de atos constitucionalizados, com o objetivo precípuo de garantir o exercício dos direitos fundamentais de maneira efetiva, garantindo a coparticipação das partes na construção do ato decisório, haja vista que o processo existe e se encerra pela e para as partes e, por consequência, é construído e surte efeitos na comunidade.

Por outro viés, a decisão simplesmente motivada, por não considerar todos os argumentos formulados e provas constituídas, não se apresenta como instrumento a efetivar a prestação jurisdicional baseada no modelo constitucional de processo adotado por nosso ordenamento jurídico.

Há, portanto, o dever do magistrado de fundamentar devidamente os atos decisórios, sob pena de nulidade (artigo 93 inciso IX da Constituição da República), o que é reiterado pelo artigo 11 do Código de Processo Civil de 2015: “Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.” (BRASIL, 2015).

Ao magistrado, cabe a função e o dever de fundamentar o ato decisório, “demonstrando às partes, aos tribunais que lhe são hierarquicamente superiores e à sociedade de modo geral que aquela era a decisão correta a ser tomada” (LUCCA, 2017).

   [...] a fundamentação das decisões visa a romper com arbitrariedade e a discricionariedade do órgão julgador, e mais, busca ultrapassar uma visão de processo pautado em protagonismo judicial, afeito à crença de que ao juiz (e sua clarividência) cabe decidir conforme a sua convicção e preferência, desprezando as contribuições dos sujeitos processuais, da doutrina, da jurisprudência e da própria história institucional do direito a ser aplicado. (SOUSA, 2017)

A promulgação do Código de Processo Civil de 2015, em especial a introdução do artigo 489 e seu parágrafo primeiro, foi a forma encontrada para afastar decisões com superficial exposição da convicção do magistrado ou, muitas vezes, sem qualquer exposição fática.

Prevê o artigo 489, §1°: Art. 489. [...] § 1° Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - Se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - Empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - Não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - Se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Portanto, que supramencionado dispositivo processual traz as situações em que a decisão não pode ser considerada fundamentada.

A inovação trazida pelo legislador pátrio no artigo 489, §1°, do Código de Processo Civil de 2015 propõe-se a elencar, mediante um critério negativo, de exclusão, isto é, do que não se considera uma decisão fundamentada (hipóteses a serem observadas quando da prolação de um ato decisório).

As hipóteses, então, elencadas no citado dispositivo pretendem atingir as exigências de legitimidade, dentro da ordem constitucional vigente, o que busca inviabilizar a crença em respostas pré-fabricadas (pautadas em teses decididas), antes mesmo do debate processual. [...] somente em atenção às particularidades do caso concreto é que se torna condição de possibilidade a formação legítima e adequada da decisão, com a interação argumentativa entre os sujeitos processuais, nos moldes apregoados pelo modelo constitucional de processo.  (SOUSA, 2017).

Então, o artigo 489 do vigente CPC superou teoricamente a prática que ainda é ponto controvertido objeto de amplas discussões judiciais: a de não enfrentar todas as alegações trazidas pelas partes. Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, exigiu-se do magistrado o enfrentamento de “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”

Confirma-se a participação das partes na medida em que suas provas e manifestações são efetivamente consideradas pelo magistrado, em atenção ao princípio do contraditório.

O problema é que, a partir do estudo dissertativo sobre as teorias do processo civil e da origem do Código de Processo Civil de 2015, desde a sua Exposição de Motivos, por ser de enorme relevância a contextualização do momento, é possível concluir que o Código de Processo Civil ainda possui dispositivos que vão de encontro com o Estado Democrático de Direito e entram em contradição com alguns de seus próprios artigos:

   “[...] analisando a exposição de motivos, o projeto e os relatórios correspondentes, não causa espanto a dedução de que, não obstante ter sido o Código de Processo Civil de 2015 confeccionado na vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito, muitos de seus dispositivos não são inteiramente democráticos, tampouco baseados na Constituição da República. [...] o Código de Processo Civil de 2015, assim como ocorreu com seus atos preparatórios, não apenas permanece conectado com compreensões que destoam do Estado Democrático de Direito, como também entra em contradição entre seus próprios artigos”. (CAMARGOS, 2020)

Destaca-se como contraditórios os dispositivos do CPC de 2015 é justamente o parágrafo primeiro do artigo 489 e o artigo 371. Enquanto aquele aprofunda na necessidade de fundamentação das decisões judiciais, indo ao encontro do que preconiza o Estado Democrático de Direito, este abre espaço para que o livre convencimento motivado seja aplicado, como de fato ocorre ainda atualmente, ao dispor que: “o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.” (BRASIL, 2015).

Com a alteração do Código de Processo Civil e a inovação trazida pelo artigo 489, §1°, ficou demonstrada a preocupação do legislador em garantir a aplicabilidade integral do princípio da fundamentação das decisões como decorrência do devido processo constitucional, reforçando o dever dos julgadores de fundamentar suas decisões, ainda que existam outros dispositivos do próprio CPC que preveem o contrário, conforme visto acima.

Tendo como paradigmas o Estado Democrático de Direito e a teoria constitucionalista do processo, o artigo 489 do Código de Processo Civil deve ser exaltado, já que em consonância com o que eles preconizam.

O artigo 489 do CPC se mostra como importante instrumento para concretização do devido processo constitucional ao impor a necessidade de que as decisões sejam fundamentadas com a identificação de todos os argumentos e provas empreendidos pelas partes, e a realização da análise detalhada do caso julgado, bem como de eventual julgado anterior, para que seja possível aplicar um precedente, que deve guardar similitude suficiente que o autorize a utilizá-lo como precedente.

O magistrado deve analisar todos os argumentos e provas empreendidos pelas partes, sendo mecanismo de superação ao subjetivismo:

   [...] a atividade de fundamentação do magistrado não é mais dotada da liberdade anteriormente concedida pelo sistema do livre convencimento motivado, estando, nesse novo momento, totalmente vinculada ao contraditório, sendo por esse, também, limitada e fiscalizada.

Em lição convergente, conclui que: [...] a correta compreensão do artigo 489, §1°, do CPC/2015 exige por parte do julgador o enfrentamento de todos os argumentos levados a cabo pelas partes, sobretudo da parte sucumbente, a fim de permitir maior controlabilidade de suas justificativas, sob pena de se restar caracterizada violação ao princípio do contraditório e à fundamentação das decisões.

O artigo 489, §1°, do CPC/2015 demonstra que, para se construir uma fundamentação adequada, é preciso abandonar métodos decisórios obsoletos desde a exegese [...] e se apostar na reconstrução argumentativa do caso concreto, em respeito às suas particularidades. E, essa reconstrução só é realizável quando se cogita o processo fincado nas bases do modelo constitucional. (SOUSA, 2017).

O julgador está obrigado a fundamentar sua decisão com base em todos os argumentos carreados pelas partes, sob pena de violação ao princípio do contraditório e da fundamentação das decisões e, nesse sentido, o artigo 489, §1° do Código de Processo Civil de 2015  é o instrumento eficaz à implementação da sistemática do processo alicerçado nas bases do  modelo constitucional, cabendo à sociedade e, principalmente, aos operadores do Direito, a  fiscalização do Judiciário para que a fundamentação das decisões e todas as demais garantias  constitucionais imprescindíveis à condução do processo sejam observadas.

Demonstrou-se a importância de se fundamentar efetivamente as decisões, ou seja, afastando a simples motivação que, como visto, possui respaldo no não mais vigente Código de Processo Civil de 1973.

Somente assim as decisões estarão em consonância com o ordenamento jurídico, em respeito ao Estado Democrático de Direito e suas consequentes garantias constitucionais imprescindíveis a esse modelo processual, com especial destaque ao contraditório e ao princípio do devido processo constitucional.

Nesse sentido, o artigo 489, §1°, do Código de Processo Civil de 2015 vem como instituto eficaz à implementação da sistemática do processo alicerçado nas bases do modelo constitucional do processo, sendo extremamente específico em definir o que não pode ser considerada como decisão fundamentada no Estado Democrático de Direito.

Entretanto, apesar de estar expressa no mencionado artigo a exigência de que o magistrado enfrente todos os argumentos deduzidos no processo capazes de infirmar a conclusão adotada pelo julgador, ainda é muito frequente nos depararmos com decisões dos tribunais pátrios justificando determinado posicionamento no fato de que o magistrado não está obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações da parte.

Reforça-se ainda a necessidade de uma mudança de racionalidade dos sujeitos do processo e a ideia de que não há evolução efetiva, tampouco consonância com o Estado Democrático de Direito, quando a legislação é alterada ( e  como foi) e as decisões judiciais continuam sendo proferidas com base em conceitos e institutos passados, que não guardam relação com o paradigma constitucional contemporâneo e vigente, tampouco com o próprio Código de Processo Civil vigente, violando garantias processuais constitucionais.

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Notas:

[1] A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define justiça social como o meio pelo qual todo trabalhador ou trabalhadora pode reivindicar livremente e com base na igualdade de oportunidades sua justa parte da riqueza que ajudou a gerar. A noção de justiça social como conhecemos hoje, ancorada em princípios morais e políticos, fundamentada nas ideias de igualdade e solidariedade, começou a ser desenvolvida ainda no século XIX.

[2] Teresa Arruda Alvim propõe uma classificação diversa para os precedentes, que mensura a (des)necessidade de sua observância conforme três graus de obrigatoriedade: forte, médio e fraco. De obrigatoriedade forte são aqueles para os quais o Código previu o cabimento de ação criada sob medida para contrastar a decisão que os tenha desrespeitado, isto é, os precedentes que, violados, autorizam o manejo de reclamação (art. 988, CPC). Média é a obrigatoriedade que emana do precedente que, quando ofendido, enseja contraste pela via recursal, e fraca é a obrigatoriedade “(apenas) cultural. É aquela que decorre do bom senso, da razão de ser das coisas, do que se deve ter o direito de razoavelmente esperar.”

[3] Essa percepção decorre, notadamente, do exame dos arts. 926, 92775 e 489, § 1º, V, do Código de 2015. O primeiro deles estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, e positiva, dessa forma, a concepção de que a jurisdição contribui com o Direito não apenas trazendo a solução de um caso concreto mas, em especial, outorgando-lhe unidade, “a fim de que a ordem jurídica possa ser segura e capaz de prover liberdade e igualdade de todos perante o direito.

[4] O STF, de ofício ou mediante provocação, é o exclusivo tribunal competente para a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante. Súmula 473 STF A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. Tese de Repercussão Geral Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo.  [Tese definida no RE 594.296, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 21-9-2011, DJE 146 de 13-2-2012, Tema 138.]

[5]  A noção de ratio decidendi tem a ver com a identificação dos fundamentos centrais de certa decisão judicial. Literalmente são as razões para decidir presentes em sentenças e acórdãos. Nesse sentido, a ratio de uma decisão está ligada à noção de fundamentação da decisão judicial. A ratio decidendi é o sentido do precedente, obtido via interpretação. De modo que não há precedente sem ratio decidendi. Decisão sem ratio, porque se limitou a refletir a normatividade da lei ou de outro precedente, mas que não é precedente.

[6] Um obiter dictum é “algo dito por um juiz ao realizar o seu julgamento que não é essencial para a decisão do caso. Ele não forma parte da ratio decidendi do caso e portanto não cria precedente vinculante, mas pode ser citado como autoridade persuasiva em casos futuros”. Obiter dicta abusivos são particularmente perigosos em momentos de grande polarização política e impasses institucionais que envolvem interpretações controvertidas dos limites de atuação dos três Poderes. Não obstante, é justamente nesses casos “perigosos” em que os obiter dicta abusivos são mais frequentes. É justamente essa frequência de obiter dicta abusivos que torna o Poder Judiciário, no Brasil contemporâneo, um dos mais perigosos agentes de desestabilização da democracia e do Estado de Direito.

[7] O Código de 2015 não só manteve em sua quase integralidade as técnicas de objetivação da prestação jurisdicional presentes no seu antecessor como criou novos institutos com esse propósito. É o caso do já emblemático incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR. Se, de um lado, é inegável (e inevitável) que do processo de aplicação da lei sobre os fatos seja possível extrair diversas normas jurídicas, de outro, cabe ao judiciário encontrar, de forma justificada e racional, a melhor delas. Nessa seara, o grande passo dado pelo CPC/2015, com relação ao seu antecessor, está na valorização dessa missão do Judiciário em delimitar a melhor norma jurídica aplicável a um determinado caso. Essa percepção decorre, notadamente, do exame dos arts. 926, 92775 e 489, § 1º, V, do Código de 2015.

O primeiro deles estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, e positiva, dessa forma, a concepção de que a jurisdição contribui com o Direito não apenas trazendo solução de um caso concreto mas, em especial, outorgando-lhe unidade, “a fim de que a ordem jurídica possa ser segura e capaz de prover liberdade e igualdade de todos perante o direito.” A estabilidade exigida dos tribunais pelo dispositivo legal é condição necessária à própria segurança jurídica, princípio este que conforma pilar do Estado de Direito e, como sustenta Lucas Macêdo, “é um dos mais importantes vetores do CPC/2015”, defendendo o autor que o “regime de precedentes obrigatórios” instituído pelos arts. 926 e 927 é verdadeira “normatização fundada no princípio da segurança jurídica”.

[8] É jurista alemão que leciona Direito Constitucional, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito na Universidade de Heidelberg. Desenvolve pesquisas em Teoria e Linguagem do Direito. Além de publicar poemas sob o pseudônimo de Fedja Müller. Friedrich Müller considera que o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo, que, após interpretado, revela o respectivo programa normativo. Ou seja, o texto da lei, por si só, corresponde apenas a uma parte da norma, sendo a outra parte encontrada a partir da interpretação do enunciado normativo.

[9] Em relação ao direito europeu convém mencionar o artigo 6.°, § 1°, da Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em Roma, em 4 de novembro de 1950, garante que "qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela"  Ressalta-se que a Corte Europeia de Proteção dos Direitos Humanos ao qual compete o julgamento de processos envolvendo violações ao citado artigo 6°, § 1°, por parte dos países signatários da referida convenção entende por sua jurisprudência que a disposição daquele parágrafo impõe aos Estados contratantes o dever de organizar seus sistemas judiciários de tal maneira que suas cortes possam se encontrar conforme as exigências daquela norma, bem como reafirma a importância de administrar a justiça sem atrasos, pois estes podem pôr em perigo sua eficácia e credibilidade (julgamento de Katte Klitsche de la Grange v. Italy de 27 outubro 1994, série A no. 293-B, p. 39, § 61).

[10] No âmbito dos Países Americanos cabe mencionar o Artigo 8º, 1, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), o qual estabelece que "Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza", tratado do qual o Brasil é signatário. Portanto, ao lado da maior proteção e previsão de direitos (humanos) em instrumentos universais e internacionais, que foram incorporados aos sistemas jurídicos nacionais de diversos países, também houve evolução no que se refere à proteção judicial desses direitos pelos Juízes e Tribunais internacionais e nacionais.

[11]  Explicou que o personagem do “juiz Boca de lei”, criado pelo filósofo francês Montesquieu em sua obra “O Estado de Direito”, parte do princípio de que toda autoridade deve estar imprescindivelmente submetida às regras da lei. Só depois da revolução francesa é que surge um Judiciário autônomo, porque renegada a origem divina invocada pelo Estado Monárquico; separados os poderes, a lei passou a ser a única fonte do direito do cidadão. Nesse período, o juiz era “a boca que pronuncia a vontade da lei”, ou seja, tornava-se mero intérprete do que o legislador real expressava. Era tomada a lei na sua literalidade.

[12] Fazzalari emprega o critério lógico para distinguir o processo do procedimento subtraindo o elemento teleológico de ambos, ainda que não possa ser eliminado de fato, pois o procedimento almeja um fim específico. Sublinhando que se diferem pela caracterização do processo enquanto procedimento em contraditório, o que pressupõe a oposição de interesses entre as partes, bem como o objetivo final de uma prestação jurisdicional imperativa, ou seja, norma reguladora de um ato final.

[13]  E o due process of law na atual conjuntura política, social e jurídica, se materializa através dos direitos fundamentais: 1) da segurança jurídica do processo; 2) do acesso à jurisdição; 3) da igualdade processual material; 4) do contraditório; 5) da ampla defesa; 6) do duplo grau de jurisdição; 7) da justiça da decisão e, finalmente; 8) da duração razoável e da efetividade do processo.  A segurança jurídica constitui o objetivo e é o elemento essencial não só do devido processo legal, mas de todo o sistema jurídico, pois é necessária a previsibilidade dos procedimentos e das regulações de condutas entre os indivíduos, ou entre estes e o Estado, até porque a certeza assegura aquela segurança. A segurança jurídica do devido processo legal é amparada pela existência do Poder Judiciário, independente e harmônico com os demais poderes (art. 2° da CF/88) ao qual compete exclusivamente o exercício da jurisdição, bem como - e até em decorrência do princípio da legalidade (art. 5°, II da CF/88) - pela obrigatoriedade de lei para regular os procedimentos inerentes ao processo, que no caso do processo civil é o Código de Processo Civil (clique aqui), e, finalmente, pela previsão de estabilização definitiva do conflito pela coisa julgada (art. 5°, XXXVI da CF/88).

[14]  Contudo, considerando que o processo só se estabelece plenamente com a participação de três sujeitos principais: Estado, demandante e demandado (Judicium est actum trium personarum), gerando assim uma relação jurídica trilateral que vincula os sujeitos da lide e o juiz, todos à procura de uma solução para o conflito de interesses, têm se exigido para a consecução do processo justo, uma maior atividade por parte deste último (juiz) para que este seja mais participativo na condução e instrução do processo. Deve o juiz informar as partes dos atos praticados no processo, bem como contemplar os argumentos apresentados com isenção.

[15]  O termo “livre convencimento motivado” (LCM) foi largamente utilizado no Brasil para designar o modo pelo qual os juízes valoram a prova e decidem os casos. Sua hegemonia era tanta que foi positivado em diferentes códigos processuais. Contudo, nos últimos anos a discricionariedade judicial passou a ser vista como um dos problemas centrais em nosso direito. Frequentemente se afirmar que o livre convencimento motivado não deve ser confundido com o velho sistema da “íntima convicção do juiz”. O LCM não defenderia a subjetividade plena do juiz ao valorar a prova. Seria apenas uma alternativa menos “engessada” ao sistema da “prova tarifada”, pelo qual os critérios de valoração de cada tipo de prova estariam minunciosamente adiantados em lei. Com base nisso, tenta-se vender o LCM como uma espécie de meio-termo ao qual todos os juristas sensatos deveriam aderir.

[16] Aspecto do due process of law constante na Constituição Federal é o da justiça da decisão, ou do processo justo ou equitativo, que consiste na obtenção da justiça ao caso concreto, que também é garantida pela obrigatoriedade de motivação em todas as decisões judiciais e de publicidade dos julgamentos conforme preceitua o artigo 93, IX da CF/88:  "art. 93... IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação".


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Fundamentação Decisão Judicial Estado Democrático de Direito Constituição Federal Brasileira de 1988

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