Considerações sobre a Judicialização da Saúde no Brasil

A extremada judicialização da saúde esbarra em problemas relacionados com a questão orçamentária e de gestão dos recursos públicos e das políticas públicas. A demanda exacerbada recai em perigoso panprincipialismo e, ainda, pode causar maiores danos do que melhores atendimento ao direito fundamental à saúde e à dignidade da pessoa humana.

Fonte: Gisele Leite

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A proposta inicial era de analisar a judicialização da saúde e seus efeitos nos direitos da personalidade e, quais são os mecanismos ou filtros que podem ser usados, pelo Estado-juiz,  e saber se o julgador deverá ou não, considerar as consequências práticas que suas decisões podem acarretar o cenário social, administrativo e, também, nos direitos da personalidade.

Ressalte-se que o direito à prestação social de saúde não poderá ser pautada em visão meramente abstrata de tutela de direitos fundamentais sem se ater ao custo da implementação desses direitos e, seu respectivo impacto orçamentário, particularmente, num país como nosso, sofredor de escassez de recursos financeiros e econômicos, além da alta complexidade da demanda de serviços essenciais.

Por vezes, o Poder Judiciário dotado com visão sentimentalista de tutela de direitos fundamentais, aprecia lides envolvendo o direito à saúde sem examinar as consequências práticas que tais decisões judiciais provocam no âmbito social, no orçamento público e na tutela de direitos da personalidade.

Cumpre destacar que o direito à saúde, tido como pressuposto de fruição de direitos, experimenta relevante proteção na seara constitucional, internacional e infraconstitucional.

Trata-se de bem jurídico indisponível e singular devendo ser observado pelo poder Público, a quem incumbe formular e implementar as políticas públicas que visem garantir o acesso universal e gratuito à assistência médico-hospitalar e demais insumos.

O artigo 196 da Constituição da República do Brasil de 1988 estabelece ser a saúde um direito de todos e um dever do Estado, sendo garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

À primeira vista, parece de forma indevida ser um direito social absoluto e, devemos, sem embargos, reconhecer que os direitos fundamentais são direitos submetidos aos limites e restrições.

As concepções abstratas sobre os direitos fundamentais baseadas no chamado e aclamado "mínimo existencial" acabando por entorpecer o intérprete, especial, o julgador, de forma a levá-lo ao entendimento de que a tutela do direito à saúde é ilimitada.

É comum que o Estado-juiz nas demandas relacionadas com a judicialização da saúde, deixa de enfrentar o impacto das decisões judiciais no âmbito social e política. E, a despacha uma carta branca da dignidade da pessoa humana, sendo o Judiciário compelido o Estado fornecer aos cidadãos um número ilimitado de medicamentos, tratamentos próteses e, outros gêneros similares.

Ademais, é preciso lembrar que no país existe a rotunda escassez de recursos e alta demanda por serviços essenciais, notadamente o direito à saúde. E, a afamada judicialização da saúde vem galgando índices e estatísticas alarmantes. E, gera  consequências práticas que podem impactar os orçamentos públicos, na tutela isonômica de direitos e na própria tutela em larga escala dos direitos da personalidade.

A partir de uma perspectiva procura destacar a necessidade de o Estado-Juiz oferecer a tutela responsável de direito fundamental à saúde, enxergando além do caso concreto específico em julgamento.

Não se deve olvidar a relevância do direito social à saúde, em decorrência da teoria dos deveres fundamentais de proteção extraída da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Uma interpretação constitucionalmente adequada do direito fundamental à saúde pode garantir a intangibilidade do princípio da isonomia.

A importância essencial da temática situa-se no fato de os direitos da personalidade consubstanciados na tutela da pessoa humana em suas múltiplas projeções e, serem negativamente impactados, a depender do caminho a ser tomado pelo poder Judiciário no enfrentamento dos problemas oriundos da judicialização da saúde.

De fato, o direito à vida ocupa posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, de sorte que a saúde ostenta igual importância. Aliás, sem saúde, não há como cogitar em vida digna.

E, na CFRB de 1988 estabelece em seu artigo 196 ser a saúde um direito de todos e um dever do Estado, mediante a políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e  prover o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

“A constitucionalização da saúde como direito fundamental é uma das inovações introduzidas  pela Constituição Federal de 1988, na medida em que as referências encontradas em textos  constitucionais anteriores, quando existentes, limitavam-se a regras sobre distribuição de  competências executivas e legislativas ou à salvaguarda específica de algum direito dos  trabalhadores.

Nesse sentido, a explicitação constitucional do direito fundamental à saúde, assim  como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), resultam da evolução dos sistemas de proteção  estabelecidos pela legislação ordinária anterior (em 1975, a Lei n. 6.229 criou o Sistema Nacional  de Saúde, depois sucedido pelo Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – SUDS, em 1987),  bem como das reivindicações do Movimento de Reforma Sanitária, sobretudo a partir das  conclusões firmadas pela VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que inspiraram os  constituintes de 1987/1988109.

Daqui derivam, entre outros: a) a adoção de um conceito amplo de  saúde, congruente com a noção de estado de completo bem-estar físico, mental e social, proposta  pela Organização Mundial de Saúde (OMS); b) a superação da concepção apenas curativa de  saúde, para incluir os aspectos protetivo e promocional ao direito fundamental; c) a unificação do  sistema de saúde (sistema único), marcado pela descentralização e regionalização das ações e dos  serviços de saúde; d) a universalidade de atendimento, isto é, o acesso à assistência à saúde não  mais restrito somente aos trabalhadores com vínculo formal e respectivos beneficiários; e) a  relevância pública das ações e serviços de saúde.” (In: SARLET, Ingo Wolfgang, FIGUEIREDO,  Mariana Filchtiner. Comentário ao artigo 196. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.;  SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:  Saraiva/Almedina, 2013).

Enfim, não se cogita apenas de parte de um conjunto de outros sociais fundamentais devidamente constitucionalizados. A saúde traduz positivamente um direito fundamental de natureza social, individual e coletiva, regulado por quatro extensos artigos constitucionais que descrevem os contornos gerais da política pública e, ainda, da oferta privada destes serviços, além de ser citado mais de sessenta vezes no mesmo documento legal.

Relevante ainda sublinhar que a expressão econômica do direito à saúde é de aproximadamente cerca de vinte por cento da renda nacional, com crescimento progressivo nos derradeiros anos, tanto em volume de serviços como em custos.

De fato, a saúde é pressuposto de fruição de inúmeros direitos e garantias do homem, eis o porquê que a OMS, Organização Mundial da Saúde, a definiu ainda em 1946 como estado de completo bem-estar físico, mental e social e, não apenas, como a ausência de doença ou enfermidade.

O direito à saúde não é só um direito social fundamental, mas também um direito humano e direito da personalidade. E, no âmbito internacional, o grau de magnitude do direito à saúde pode ser identificada em vários documentos legais, a saber:

(i) Declaração Universal de  Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas7 (DUDH/ONU) - artigos 22  e 25 tratam dos direitos à segurança social e a um padrão de vida capaz de  assegurar a saúde e o bem-estar da pessoa; (ii) Pacto Internacional de Direitos  Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966, internalizado pelo Decreto  legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgado pelo Decreto n. 5918,  de 06 de julho de 1992 – artigo 12 trata do direito ao mais alto nível possível de  saúde; (iii) Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da  Costa Rica), internalizada pelo Decreto legislativo n. 27, de 26 de maio de 1992, e  promulgada pelo Decreto n. 6789 , de 6 de novembro de 1992 – artigos 4º e 5º tratam  dos direitos à vida e à integridade física e pessoal; (iv) Protocolo Adicional à  Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos  Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), internalizado pelo  Decreto legislativo n. 56, de 19 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto n.  3.37110, de 31 de dezembro de 1999 – artigo 10 versa sobre o direito à saúde.

Lado outro, a vinculação da saúde aos direitos da personalidade é importante  para fins de proteção do indivíduo. Por estar umbilicalmente ligado ao direito à  vida e ser dotada de essencialidade, é também classificada como um direito  da personalidade.

De fato, o direito à saúde corresponde a medula da personalidade, sem o qual, todos os demais direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo. E, se o indivíduo não puder efetivamente gozar de saúde, outros direitos não lhe despertarão o interesse, nem poderão sequer ser exercidos.

Em verdade, a expressão "direitos da personalidade" foi cunhada por jusnaturalistas franceses e alemães para referenciar certos direitos inerentes ao homem. A propósito, os direitos preexistentes, ao seu reconhecimento por parte do Estado.

São próprios do ser humano e decorrentes de sua existência. E, após a Segunda Grande Guerra Mundial, buscou-se a proteger a pessoa contra os arbítrios provenientes do Estado, entrelaçando os direitos da personalidade à noção de preservação da dignidade da pessoa humana e, os promovendo à proteção constitucional e internacional.

Concluímos que os direitos da personalidade representam a tutela da pessoa humana em suas múltiplas projeções e, por isso, é também razoável[1] afirmar que a saúde ocupa a centralidade no sistema jurídico, atuando como pressupostos de fruição desses direitos.

Enfim, a essência da pessoa humana está em seus direitos da personalidade, os quais consistem na parte intrínseca da pessoa humana, isto é, trata-se de um atributo de existência. Portanto, são direitos essenciais para petição da dignidade humana e de sua respectiva integridade psicofísica.

“Os direitos da personalidade são os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, os quais são  considerados essenciais diante da necessária proteção da dignidade da pessoa humana e da sua  integridade psicofísica. Essa categoria de direitos é construção teórica relativamente recente, cujas  raízes são provenientes principalmente das elaborações doutrinárias germânicas e francesa da  segunda metade do século XIX.” (In: CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade:  disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do  Advogado, 2009. p. 28).

Enxerga-se o corolário que o direito à saúde mantém com a interpenetração de um complexo formado por direitos subjetivos fundamentais humanos e da personalidade, assegurado à generalidade das pessoas pela Lei magna, traduzindo a consequência constitucional indissociável do direito à vida.

O exercício da maior parte dos diferentes direitos fundamentais, humanos e da  personalidade consagrados, respectivamente, no texto constitucional, em  documentos internacionais e na legislação infraconstitucional – há de se reconhecer  –, pressupõe que o cidadão não esteja com a saúde limitada, total ou parcialmente.

Sendo livre e saudável, o ser humano pode, a princípio, associar-se, locomover-se,  reunir-se, manifestar de forma mais ampla no seio social o seu pensamento, exercer  de maneira irrestrita a liberdade de culto e religião, trabalhar etc. Ao revés, quando  limitada a saúde, é indene de dúvidas que a concretização de direitos, seja  fundamental, seja da personalidade, é sobremaneira impactada.

Verifica-se que tanto os direitos fundamentais quanto os humanos e os da personalidade, em razão da interdependência que lhes é inerente, encontram a sua concretização ligada ao pressuposto da vida digna e saudável.

Por certo, a saúde é pressuposto da proteção da própria dignidade humana, a qual configura a base axiológica onde se assentam os direitos fundamentais e os direitos da personalidade.

Além da categorização do direito à saúde como direito social fundamental,  direito humano e direito da personalidade, de se ver que, invariavelmente, ele impacta  significativamente todas aquelas categorias de direitos citadas. E, os direitos da  personalidade especialmente ligados à integridade física, psíquica e emocional de  sujeitos de direitos são impactados de forma mais direta.

Essa circunstância promove a centralidade da saúde no sistema jurídico e realça  a sua capacidade de produzir efeitos sobre o exercício de tantos outros direitos.

Explicita, além disso, conforme será mais bem exposto no decorrer desta pesquisa,  por quais razões inúmeras decisões judiciais sobre saúde são acolhidas pelo Estado-Juiz, com base na carta branca da dignidade da pessoa humana, sem exame das  consequências geradas no seio social, no orçamento, na tutela coletiva, na isonomia  etc.

É mesmo incontestável a relevância do direito à saúde, o que faz merecer a tutela significativa pela organização jurídica do Estado e, de outro lado, é preciso ter a consciência de que sua excessiva judicialização e desmedida impacta a tutela dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade.

Ademais, a própria noção de acesso à justiça não deve ser examinada de forma mais profícua por parte dos intérpretes que, baseados na concepção muito aberta da dignidade humana, defendem que o Estado tem o dever de oferecer todo e qualquer tipo de pretensão relacionada à saúde, independentemente, do custo de tal pretensão.

Constata-se que parcela significativa da população brasileira, não tem a mesma sorte ou mesmo acesso à informação, de forma que, quando o Estado-Juiz se substitui ao administrador na escolha de prioridades, retira deste a possibilidade de gerir ao administrador na escolha de prioridades, retira deste a possibilidade de gestão da política pública mais adequada aos interesses da sociedade brasileira.

Exemplificando: Imagine-se determinado indivíduo de  um município com 15 mil habitantes que, por meio de advogado constituído, ajuíza  ação na justiça estadual pleiteando determinado medicamento, fora da lista de  dispensação do SUS, cujo custo é de 100 (cem) mil reais mensal. O magistrado  concede a liminar em desfavor do Município, fixando multa diária de mil reais por  descumprimento, limitada ao teto de 100 (cem) mil reais. O Município, por  dificuldades operacionais, acaba tardando no cumprimento da liminar, resultando  no custo de 150 (cento e cinquenta) mil reais: cem (mil) decorrente do custo para  custear o medicamento + 50 (cinquenta) mil de multa diária por descumprimento.

Indaga-se: O Estado-Juiz retirou, ou não, no caso hipotético, das mãos do gestor  – eleito pelo voto popular – a escolha das prioridades? É possível afirmar-se que,  com a liminar, haverá deslocamento de 150 (cem) mil reais mensais do orçamento  já escasso de um município pequeno para acobertar uma única pessoa e, por via  oblíqua, descoberta da população carente que poderia, com a mesma quantia, ser  beneficiada por diversos outros serviços sociais?

O busilis é que podemos não ter apenas liminar isolada, mas, realmente, centenas e milhares, a depender do ente político. E, o custo da implementação do medicamento ou da intervenção social por meio da liminar é muito maior do que aquele que poderia ser obtido pelo Poder Público pelas vias próprias da Administração Pública.

A utilização mais eficiente das ações coletivas com móvel direcionado à inclusão de medicamentos na lista de dispensação do SUS, como alternativa aperfeiçoada à judicialização individual excessiva.

A saúde é um direito que se encontra positivado, em  sua grande maioria, em normas de natureza programática. O que indica que a  plena eficácia dessas normas sempre estará, em maior ou menor medida,  condicionada à formatação e desenvolvimento de políticas públicas e normas lhe  atribua efeitos concretos.

E o contexto da judicialização da saúde merece uma leitura constitucionalmente  adequada do §1º do artigo 5º da nossa lei maior, o qual sinaliza que as normas  definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. A esse  respeito, vale rememorar a doutrina de Ingo Sarlet:

A melhor exegese da norma contida no art. 5º, parágrafo 1°, de  nossa Constituição é a que parte da premissa de que se trata de  norma de cunho inequivocamente principiológico, considerando, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou  maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de  reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais  [...] [sendo certo, por isto, que] seu alcance (isto é, o quantum em  aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese em  concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta.

No caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado  ao art. 5º, parágrafo 1º, de nossa Lei Fundamental, pode-se afirmar  que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair  das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior  eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados  relativamente às demais normas constitucionais, já que não há  como desconsiderar a circunstância de que a presunção da  aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor dos  direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua  fundamentalidade formal no âmbito da Constituição, o que induz  à afirmação de que, em certo sentido, os direitos e princípios  fundamentais regem e governam a própria ordem constitucional.

O que ora se defende, é a necessidade de o Estado ao tutelar a saúde de forma responsável, cumprindo fielmente os fins constitucionais, mas de maneira adequada aos limites orçamentários de um país periférico coo o nosso e, acima de tudo, com visão consequencialista.

Segundo Canotilho, o direito à saúde possui quatro formulações a saber: (i) normas de  organização; (ii) garantias institucionais; (iii) direitos subjetivos públicos; e (iv) normas  programáticas (In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da  Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003).  

Luís Roberto Barroso apresenta conceituação interessante sobre o fenômeno: Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão  política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder  Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso

Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o  Presidente da República, seus ministérios e administração pública  em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma  transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações  significativas na linguagem, na argumentação e no modo de  participação da sociedade.

O fenômeno tem causas múltiplas.  Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão  diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. A  seguir, uma tentativa de sistematização da matéria.

A judicialização da vida pode ser exemplificada: (i) nas intervenções do Supremo Tribunal Federal  reconhecimento da possibilidade de aplicação da união estável entre pessoas do mesmo sexo, no  ano de 2011, em sede de ação direta de inconstitucionalidade 4277 e ação de descumprimento de  preceito fundamental 132; (ii) no julgamento do mandado de injunção 7733/DF, em que, para além  de reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional, aplicou-se, com efeitos  prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de  estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça,  cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade  de gênero.

É usual afirmar  sobre “judicialização da  vida”, da política e da saúde. O objetivo desta pesquisa não é explorar de forma profunda as causas da judicialização no Brasil, mas apenas contextualizá-la com  o pano de fundo da saúde, mais especificamente – para os fins propostos – do  consequencialismo.

A judicialização da saúde – é importante assentar – repercute não só nos  orçamentos públicos, mas, de igual modo, no equilíbrio contratual nas relações  privadas entre operadoras de planos de saúde e os beneficiários. Há em trâmite,  portanto, uma avalanche de ações que repercutem nas políticas públicas de saúde  e na saúde complementar.

Algumas dessas causas podem ser resumidas da seguinte maneira: (i) com a redemocratização do  país experimentada com a Constituição de 1988, o Judiciário deixou de ser um departamento  técnico-especializado e se transformou em poder político capaz de fazer valer a constituição e as  leis; (ii) constitucionalização abrangente trouxe para a Constituição muitas matérias que  anteriormente ficavam a cargo do processo político majoritário; (iii) sistema brasileiro de  constitucionalidade mais abrangente do mundo combinando aspectos de dos sistemas americano  e europeu (In: BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.  (Syn) thesis, v. 5, n. 1, p. 24-25, 2012).

É interessante notar que o direito brasileiro experimenta um novo paradigma,  modificado profundamente nos últimos anos. Caracterizado pela ênfase aos  direitos sociais, com destaque para o direito à saúde, esse paradigma diferenciado  provocou significativo deslocamento de poder do âmbito do Executivo e do  Legislativo para o Poder Judiciário.

As ações judiciais baseadas em disposições constitucionais que tratam do direito à  saúde e laudos médicos indicativos, à luz do médico que acompanha o paciente, da indispensabilidade de determinado fármaco, por exemplo, acabam funcionando  como componente do fator de explosão da judicialização da saúde no Brasil.

O poder judiciário, inevitavelmente, acaba moldando políticas públicas e  interferindo nas relações privadas. Juízes têm decidido pela incorporação de novos  medicamentos e procedimentos em milhares de ações individuais amparados no  supra princípio da dignidade da pessoa humana e no direito social à saúde. Em  muitos casos, são concedidas liminares abarcando medicamentos fora da lista de  dispensação do SUS e cujos custos são altos.

É famoso o caso da fosfoetanolamina, conhecida como a pílula do câncer, gerou em oito meses, cerca de treze mil liminares para que a Universidade de São Paulo fornecesse o medicamento apesar de ainda não aprovada pela ANVISA e, cuja eficácia, ainda não tinha sido comprovado por maiores estudos técnicos.

Há o entendimento paternalista da jurisprudência pátria de que o direito à saúde se trata de um direito absoluto e, as decisões, em geral se pautavam no supraprincípio constitucional que é o da preservação da dignidade humana.

E, tal busilis já desponta na abertura conceitual do texto constitucional o que permite a construção e preenchimento do conteúdo pelo intérprete conforme suas crenças, paixões, visões de mundo e propósitos, ex vi o artigo 1º, III da vigente CFRB/1988.

É assertiva a metáfora usado pelo doutrinador e atual Ministro do STF Luís Roberto barroso, ao alinhar que a dignidade como conceito jurídico, estaria a funcionar habitualmente como mero espelho, no qual cada um projeta seus próprios valores.

Grande parte das decisões judiciais brasileiras, seja atuantes no campo da saúde pública, ou na saúde suplementar, assinalam que o direito à saúde está previsto constitucionalmente e, por essa razão, caberia ao Estado prestar toda e qualquer política com fito de concretizá-lo, condenando o ente público a prestar tratamentos, terapias e fornecer produtos, medicamentos e, mesmo, novas tecnologias.

Porém, não se enxerga o enfrentamento da questão do acesso à saúde com a atenção adequada que pressupunha o exame do contexto do impacto orçamentário e da cientificidade inerente à incorporação de um dado fármaco na lista do SUS.

A premissa argumentativa de ser o direito à saúde absoluto é equivocada. Há  relativo consenso no sentido de que os direitos, ou ao pior parte deles, “não  são absolutos, não se admitindo o exercício ilimitado das prerrogativas que cada  direito pode facultar, pincipalmente quando se cuide de direitos veiculados sob a  forma de normas-princípios”.

Essa conclusão é extraída da própria intepretação sistemática do texto  constitucional, que restringe até mesmo o direito à vida em situações específicas  (art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”). Se a vida pode ser limitada, a saúde também. Não  há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de  caráter absoluto.

A judicialização da saúde apresenta efeitos positivos. Clenio Jair Schulze cita  os seguintes: (i) a correção da administração, considerando que grande parte da judicialização da saúde no Brasil (35%) decorre do não fornecimento de tecnologias  já incorporadas, ou seja, de medicamentos e produtos que já constam da relação de  medicamentos e que, portanto, devem ser fornecidos diretamente no SUS; (ii|) a  incorporação de novas tecnologias em decorrência das inúmeras decisões judiciais  que levam o SUS e a ANS a incorporá-las, após comprovação de eficácia, acurácia,  da segurança, da eficiência e do custo-efetividade; (iii) concretização da teoria dos  direitos fundamentais; (iii) o aumento da regulação e; (iv) a criação da Comissão  Nacional de Incorporação de Tecnologias – CONITEC; (v) o fomento ao uso da  medicina baseada em evidências como critério da decisão judicial.

Nos anos 1990, no combate à HIV/AIDS não teria sido tão bem sucedido. Embora se  possa questionar decisões individuais e o custo-benefício de certos medicamentos, não se pode  negar o impacto positivo da judicialização da saúde no programa de tratamento de HIV/AIDS.

O Poder Judiciário garantiu o acesso amplo e acelerou a incorporação de novos medicamentos, sendo  reconhecido como instrumento indispensável de exercício da cidadania e proteção dos direitos  dos pacientes.

Urge, sopesar a partir de uma visão de justiça que os recursos são finitos. A Constituição brasileira vigente consagra no artigo 6º a saúde como Direito social.

Porém, é no artigo 169 que fixou as balizas, ao mencionar que “a saúde  é um Direito de todos e dever do Estado, garantido mediante  políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de  doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às  ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Um  pensamento inicial conduz à noção de que se trata de um Direito  absoluto. Isso se dá em razão da noção geral segundo a qual sem  saúde não há dignidade.

As decisões judiciais, em geral, deixam de  enfrentar tal questão, fundamentando que o Direito à saúde está previsto na Constituição e que por isso cabe ao Estado prestar toda e qualquer política a fim de concretizá-lo, condenando o ente  público a prestar tratamentos e fornecer produtos, medicamentos e  novas tecnologias.

Não se pode alcunhar a saúde como sendo direito absoluto. Assim, o Judiciário tem que atuar olhando para o orçamento, obtemperando a melhor solução a fim de otimizar a gestão dos custos.

Dados de gestão processual, obtidos junto aos tribunais estaduais e  federais por meio da Lei de Acesso à Informação, é possível observar o número de  processos judiciais distribuídos anualmente em temas afetos à saúde. Houve um  aumento de 130%, entre 2008 e 2017. Algo muito acima do número total de  processos judiciais em geral, que, a propósito, cresceu 50% no mesmo período.

Com a pandemia, a judicialização da saúde experimentou novos contornos  decisórios, para além dos usuais casos de medicamentos, órteses, próteses, tecnologias não incorporadas, tratamentos variados etc. Cogita-se, atualmente, na  chamada judicialização da pandemia[2].

Uma vasta pluralidade de demandas fáticas e jurídicas aportam nos Tribunais Superiores brasileiros e, perpassaram, ab initio, pelo primeiro grau de jurisdição e, diariamente, tem-se deparado com o notável drama humano agravado substancialmente pela pandemia de coronavírus, ou Covid-19.

E, os parâmetro colocados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça para casos em que se visam medicamentos, próteses e incorporação de novas tecnologias e tratamento de saúde passam a atuar como filtros para a judicialização predatória da saúde.

E, nesse cenário, há novos casos de judicialização, como o objetivo de serem incluídos pacientes em vagas de leitos de UTI.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso indeferiu o pedido de  suspensão de inúmeras liminares deferidas pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda  Pública da Comarca de Várzea Grande que determinaram a internação em leito de  UTI-COVID dos pacientes relacionados. O Superior Tribunal de Justiça, com visão consequencialista mais bem explicitada no item a seguir, suspendeu as decisões provisórias.

O Judiciário contemporâneo é, sem dúvida, não é o mesmo de outrora e, tal mudança se verifica a partir do exame da forma como o direito é aplicada, pelos julgadores. Filosoficamente, a partir do pós-guerra passamos do positivismo para o pós-positivismo ou neopositivismo[3] o que acarretou sensíveis mudanças na forma de interpretar e aplicar o Direito, bem como redimensionar o papel do Poder Judiciário.

O positivismo jurídico, enquanto pensamento filosófico lastreado no império da  lei, não raro, foi utilizado pelo regime nazista como instrumento de salvaguarda de  atrocidades praticadas contra a humanidade. A pretexto de cumprir a lei formal, os  soldados do Terceiro Reich (Alemanha nazista) violavam, de forma incontável,  diversos direitos inerentes à condição humana, na confiança de que estavam a agir  no estrito cumprimento de um dever legal e, portanto, não cometeriam desvio  algum.

Tal circunstância colocou o positivo jurídico em xeque, sobretudo a partir do  final da Segunda Guerra Mundial, dando azo a uma tentativa de reaproximação entre  direito e moral, com a alocação da dignidade da pessoa humana como o ponto de  partida e de chegada da atuação das nações democráticas.

A era do pós-positivismo traduz, portanto, a identificação de um conjunto de ideias difusas que se dissociam do legalismo estrito do positivismo normativista  sem restaurar a ordem subjetivista do jusnaturalismo. A necessidade de  formulação de uma teoria da justiça e da norma, com especial destaque ao papel  das constituições, fixou-se como uma constante dos países democráticos.

Além da abertura natural do direito para a moral, os valores deverão também ampliar a mente dos aplicadores do direito para concepção filosófica, um pouco estudada, que é o consequencialismo.

O consequencialismo exsurge como uma corrente filosófica ligada ao conceito de utilitarismo.  O utilitarismo é uma concepção doutrinaria filosófica, defendida especialmente por Jeremy  Bentham e John Stuart Mill, que afirma serem as ações boas quando tendem a promover a  felicidade e más quando tendem a promover o oposto da felicidade. Parte da premissa de que o  bem maior – em favor da coletividade – autoriza a supressão ou eliminação de direito ou posições  individuais.

Não raro, sob o ponto de vista filosófico, a ética utilitarista é resumida pela frase: “Agir  sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar” (Princípio do bem-estar máximo).

Stuart  Mill averbou  que o utilitarismo é, na realidade, uma teoria de perspectiva mais geral, ao passo que o consequencialismo seria uma subdivisão do utilitarismo[4].

Trata-se de um “programa teórico que condiciona a adequação jurídica de uma  decisão à valoração das consequências relacionadas à mesma e às suas  alternativas”. Cogita-se em consequencialismo forte e um consequencialismo fraco.

O consequencialismo procura se afastar do casuísmo e arbitrariedade, trazendo  elementos sociológicos para o debate jurídico, de modo a permitir que a decisão  tenha aptidão – em tese – para se tornar universal.

Enfim, o consequencialismo é aquele estilo de julgamento do juiz que reflete sobre as consequências metajurídicas, indo além do processo e adentrando no impacto social e econômico e de suas decisões. Não é que o juiz possa julgar fora da lei, mas dentro de uma margem de abertura que a própria lei confere.

Ao juiz torna-se permitido graduar as determinações, considerando as peculiaridades do caso concreto e os efeitos sociais e econômicos da sentença.

Trata-se de premente necessidade de não só realçar a importância dos valores por ocasião da aplicação da lei, mas, de igual forma, interpretá-la sempre examinando as consequências sejam boas ou más que as decisões vinculadas à exegese podem gerar no âmbito social.

Conforme explicitou José Renato Nalini, a consideração das consequências é imperativo moral de que o julgador não está liberado. E, inúmeras sentenças inexequíveis e muitas injustiças flagrantes, seriam evitadas se houvesse empenho em disseminar essa prática.

A vertente do consequencialismo aplicada ao campo da judicialização da saúde  está a exigir do magistrado, na fundamentação de suas decisões, que examine a  fundo questões clínicas, a exemplo das evidências do tratamento pleiteado; o custo-efetividade; a eficácia e eficiência do medicamento; o impacto orçamentário da  medida judicial implementada etc.

Em um país com muitas necessidades sociais e recursos finitos como o nosso, o  poder público tem de realizar, com frequência, escolhas das prioridades. A  necessidade de escolhas no plano fático acaba consistindo na opção de  concretização de determinados direitos, para algumas pessoas, em detrimento dos  direitos de outras.

Afirmar que direitos que demandam prestações estatais entram,  frequentemente, em colidência por ser inevitável uma opção trágica na direção de  que algum direito não será atendido ao menos em alguma medida.

Ora, toda e qualquer ação estatal envolve gasto de dinheiro público e os recursos  públicos são limitados. Essas são evidências fáticas e não teses jurídicas. A rigor, a  simples existência dos órgãos estatais – do Executivo, do Legislativo e do Judiciário – envolve dispêndio permanente, ao menos com a manutenção das instalações  físicas e a remuneração dos titulares dos poderes e dos servidores públicos, afora  outros custos.

As políticas públicas, igualmente, envolvem gastos. Como não há recursos  ilimitados, será preciso priorizar e escolher em que o dinheiro público disponível  será investido. Essas escolhas, portanto, recebem a influência direta das opções  constitucionais acerca dos fins que devem ser perseguidos em caráter prioritário.

Ou seja: as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema  integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe  importante incidência de normas jurídicas constitucionais.

Esse pano de fundo dos custos da implementação do direito à saúde está a  indicar a importância de a tomada da decisão judicial incluir em seu bojo elementos  externos e consequenciais de aplicação do direito.

Há duas diretrizes importantes que rodeiam o consequencialismo e devem nortear a atuação do Estado-Juiz a primeira consta no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, a segunda tem previsão no Código de Ética da Magistratura, em seu artigo 25:

“Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa,  atento às consequências que pode provocar”.

Ambas são sinalizações claras de que, no campo da judicialização da saúde, o  Estado-Juiz, ao examinar liminares de medicamentos, órteses, próteses, inclusão de  novas tecnologias, deve sopesar as consequências que essas decisões podem gerar  na sociedade e especialmente sobre:

(i) aspectos orçamentários ligados a escolhas  trágicas veiculadas em políticas públicas; (ii) à perspectiva técnica das razões pelas  quais não houve inclusão de determinados medicamentos na lista do SUS; (iii) ao  impacto no princípio da separação dos poderes com substituição da decisão do  gestor eleito pelo povo pela do magistrado; (iv) ao princípio da isonomia em  decorrência da liminar atender a interesse apenas de determinado sujeito postulante da pretensão material, ficando relegada a posição de milhares de  pessoas que também, eventualmente, se encaixam na mesma posição e se sentem  merecedoras de um mesmo medicamento ou tratamento não previsto na lista de  dispensação do Poder Público etc.

Essas diretrizes são bússolas que têm permeado as últimas decisões impactantes dos Tribunais Superiores brasileiros versando sobre a judicialização da saúde.

Sendo um ponto seguramente aquele que versa  sobre o dever do Estado de fornecer medicamentos – de alto custo ou não  incorporados ao SUS – a portador de doença grave que não possui condições  financeiras para sua aquisição.

No TEMA 6 de Repercussão Geral, de relatoria do Min. Marco Aurélio (RE  566.471-RN), ainda pendente de julgamento de mérito, consta a seguinte tese:

TEMA 6: O reconhecimento do direito individual ao fornecimento,  pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em  Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de  Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, depende  da comprovação da imprescindibilidade – adequação e  necessidade –, da impossibilidade de substituição do fármaco e da  incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família  solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos  1.694 a 1.710 do Código Civil.

O julgamento, ainda pendente de encerramento, traz contornos interessantes  envolvendo perspectivas ligeiramente distintas apresentadas pelos Ministros do  Supremo Tribunal Federal o Ministro Alexandre de Moraes fixou tese  no seguinte sentido:

“Na hipótese de pleito judicial de medicamentos não previstos em  listas oficiais e/ou Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas  (PCDT’s), independentemente de seu alto custo, a tutela judicial  será excepcional e exigirá previamente - inclusive da análise da  tutela de urgência -, o cumprimento dos seguintes requisitos, para determinar o fornecimento ou ressarcimento pela União: (a)  comprovação de hipossuficiência financeira do requerente para o  custeio;

(b) existência de laudo médico comprovando a necessidade  do medicamento, elaborado pelo perito de confiança do  magistrado e fundamentado na medicina baseada em evidências;  

(c) certificação, pela Comissão Nacional de Incorporação de  Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), tanto da  inexistência de indeferimento da incorporação do medicamento  pleiteado, quanto da inexistência de substituto terapêutico  incorporado pelo SUS;

(d) atestado emitido pelo CONITEC, que  afirme a eficácia segurança e efetividade do medicamento para as  diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde do  requerente, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias. Atendidas essas  exigências, não será necessária a análise do binômio custo e efetividade, por não se tratar de incorporação genérica do  medicamento.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, de outro lado, ganha destaque o  TEMA 106 de Recursos Repetitivos, do qual se extraem requisitos cumulativos  para o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos  normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes  requisitos:

i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e  circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da  imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como  da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos  fornecidos pelo SUS;

ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento  prescrito;

iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados  os usos autorizados pela agência. Tese definida no acórdão dos  embargos de declaração publicado no DJe de 21/9/2018.

Inicialmente, o Superior  Tribunal de Justiça perfilhou o caminho sinalizado no TEMA 799 STJ.  Posteriormente, houve cancelamento da citada tese em razão do reconhecimento  da natureza constitucional da matéria.

Tal quadro levou o Supremo Tribunal Federal a enfrentar, recentemente, a  matéria, sobrevindo repercussão geral no TEMA 793 STF. O quadro evolutivo nos  Tribunais Superiores pode ser assim apresentado:

TEMA 799 STJ: Discussão: solidariedade passiva de União, Estados  e Municípios, para figurar no polo passivo de demanda  concernente ao fornecimento de medicamentos. (REsp  1.144.382-AL) –Observação: Afetação cancelada em razão da  natureza constitucional da matéria.

TEMA 793 STF: Responsabilidade solidária dos entes federados  pelo dever de prestar assistência à saúde. Relator: MIN. LUIZ FUX

– Leading Case: (RE 855.178-SE) – Recurso extraordinário em que se  discute, à luz dos arts. 2º e 198 da Constituição Federal, a existência,  ou não, de responsabilidade solidária entre os entes federados pela  promoção dos atos necessários à concretização do direito à saúde,  tais como o fornecimento de medicamentos e o custeio de  tratamento médico adequado aos necessitados59.

TESE FIRMADA: Os entes da federação, em decorrência da  competência comum, são solidariamente responsáveis nas  demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios  constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à  autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras  de repartição de competências e determinar o ressarcimento a  quem suportou o ônus financeiro.

Ao Poder Judiciário incumbe uma difícil missão de buscar soluções para as “crescentes demandas sanitárias, ponderando os valores da democracia, da  dignidade da pessoa humana, da fundamentalidade do direito à saúde, da  limitação orçamentária, da discricionariedade administrativa e da cautela”.

A nota de essencialidade do instituto (jurisdição) gravita em torno do  reconhecimento de que o Estado-Juiz se ocupa da função primordial de servir de  instrumento de aplicação/tutela dos direitos fundamentais, direitos humanos e  direitos da personalidade dos cidadãos.

Sob a perspectiva consequencialista, no contexto do pós-positivismo, vimos que,  além da importância de se reaproximar o direito e a moral na aplicação da lei,  impõe-se ao Poder Judiciário prudência no ato de julgar, de maneira a examinar as  consequências práticas que suas decisões judiciais podem gerar no seio social.

Transpassando essa visão para o campo da judicialização da saúde, exsurge a  importância de o Juiz, com prudência e cautela, aplicar a Constituição, implementar  os fins constitucionais, sem, entretanto, olvidar o contexto em que se insere a sua  decisão.

Os juízes, diuturnamente, em razão do dever fundamental de proteção extraído da  dimensão objetiva dos direitos fundamentais, têm de tutelar a saúde, de forma macro e  micro, fazendo valer a vontade constitucional.

O reconhecimento de um dever fundamental de proteção do Estado, a partir da  dimensão objetiva dos direitos fundamentais, constitui mecanismo de reforço do  sistema de justiça, na medida em que se aloca, sem dúvida, como parâmetro  interpretativo para toda a atuação do Estado-juiz em matéria de direitos sociais.

Essa vontade constitucional, entretanto, não pode estar relacionada à fundamentação sentimentalista e à aplicação abstrata de direitos fundamentais. Ao  contrário, o juiz deve aplicar a Constituição na exata medida dos limites impostos  pela própria lei maior, dentre eles, respeitando a legitimidade do executivo e  legislativo para fixação, a priori, de políticas públicas e a reserva orçamentária.

Em face disso, sobressaem dois importantes instrumentos para guiar os  magistrados no exame de ações judiciais sobre judicialização da saúde. Ao  examinar as ferramentas trabalhadas pela doutrina, deve o magistrado se guiar  pela Medicina Baseada em Evidências e, ainda, buscar apoio junto aos E-NATJUS  (Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário) e NAT-JUS Nacional.

A partir de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da  Saúde, houve a concretização do sistema E-NATJUS (Núcleos de Apoio Técnico do  Poder Judiciário) – cujo objetivo é proporcionar aos Tribunais subsídios técnicos  para a tomada de decisão com base em evidências científicas na área da  saúde – e do sistema NAT-JUS Nacional – ferramenta por meio da qual os  magistrados de todo o Brasil podem contar com o apoio técnico de diversos  profissionais da área de saúde, 7dias por semana, 24 horas por dia.

Conforme expõe o  Min. Luís Roberto Barroso. Como os recursos são limitados e precisam ser  distribuídos entre fins alternativos, a ponderação terminaria sendo entre vida e  saúde de uns versus vida e saúde de outros. A vida e a saúde de quem tem  condições de ir a juízo não têm valor maior do que a dos muitos que são invisíveis  para o sistema de justiça.

O conflito, não raro, é entre a dignidade de alguns – atendidos por liminares  concessivas de um número ilimitado de pretensões materiais (medicamentos,  órteses, próteses, inclusão de novas tecnologias etc.), e de outros, excluídos por  não terem a viabilidade de acionamento do Poder Judiciário.

Para o fim de qualificar a atuação judicial no campo da judicialização da saúde,  portanto, é preciso voltar os olhos ao consequencialismo[5] e, sempre que possível,  utilizar-se do auxílio técnico dos E-NatJus.

Realmente é uma equação difícil, mas em via inicial de construção para se ter uma jurisdição responsável, nada paternalista e que tenha a ciência e consciência para não enveredar pelos tortuosos caminhos e descaminhos da panprincipiologia.

Referências

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Notas:

[1] A Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE) conseguiu em 07.20.2010 suspender na Justiça a decisão que obrigava o estado a fornecer, de forma imediata e gratuita, o medicamento Viagra a um paciente. Na ação judicial, o paciente alega não ter condições de comprar o medicamento utilizado para o tratamento de disfunção erétil. Segundo a PGE, o fornecimento do remédio não pode ser obrigatório, já que os recursos públicos devem ser direcionados ao atendimento prioritário dos problemas de saúde que afetam a população e que estão previstos em programas do Sistema Único de Saúde (SUS). A PGE argumentou ainda que a concessão do remédio oneraria o Estado, que deixaria de atender aos casos “em que há real e iminente perigo à vida e à saúde da população”. Compreensível que a atividade sexual do indivíduo normal interfere em seu íntimo e até no relacionamento com sua parceira, mas não a ponto de causar abalo psíquico intenso a ensejar interferência do Judiciário na esfera administrativa" Marco Aurélio Fróes, desembargador.

[2] No Brasil, essa pressão atinge um sistema de saúde que já padecia de deficiências graves – acentuadas pelas políticas de austeridade fiscal desde 2016 – de limitada capacidade de resposta às demandas, principalmente das populações em maior vulnerabilidade. A pandemia torna mais agudas as carências de profissionais de saúde, de equipamentos de proteção individual, de leitos de UTI, de respiradores mecânicos e de outros insumos. O Judiciário começa a ser provocado por ações relacionadas à pandemia.

A pandemia da COVID-19 vem descortinando, de forma contundente, as mazelas sociais e do sistema de saúde. O colapso desse último pelo número crescente de doentes e pela agressividade do SARS-CoV-2 já é vivenciado em alguns Estados brasileiros e muito próximo em outros. A demanda de cuidados complexos e o uso de tecnologias diversas, a escassez de Equipamento de Proteção Individual (EPI), a falta de leitos para internação e de profissionais de saúde em quantidade e qualidade explicam a situação calamitosa dos serviços.

[3] O pós-positivismo é aquele que é definido pelo Professor Barroso como: “designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana”. Basicamente o pós-positivismo leva em consideração princípios e valores para determinar a interpretação legal. O pós-positivismo não nega o positivismo, mas transcende sua visão de Direito apartado das outras ciências sócias, o que quer dizer que este nega a separação entre Direito e moral. Vale lembrar ainda que os princípios ganham força neste momento histórico, sendo não mais apenas utilizados quando de vácuo legal, como até fazendo parte da legislação.

[4] Para compreendermos o utilitarismo e as ideias de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, precisamos lembrar do pensamento de um grego chamado Epicuro, já estudado por aqui. Do epicurismo, o utilitarismo tomou a ideia de maximização da felicidade (o que foi chamado pelos utilitaristas de maximização da utilidade) e a “coletivizou”, projetou para toda a sociedade. O primeiro utilitarista foi Jeremy Bentham (1748 – 1832). Ele rejeitava expressamente a ideia de direitos naturais. Para ele, a justiça seria alcançada a partir de um cálculo utilitarista que considerava o aumento da felicidade do maior número de pessoas mediante o sacrifício da felicidade do menor número de pessoas. Tudo era uma questão de encontrar o ponto de equilíbrio. Nesse sentido, Bentham trabalhava com uma “escala única de prazer” (ou seja, não haveria prazeres mais importantes do que outros). Noutras palavras, o utilitarismo de Bentham era quantitativo.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Saúde Judicialização Orçamento Público Administração Pública CF/88

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