Considerações do Princípio do Contraditório
A visão moderna do contraditório não mais o encara como garantia meramente formal. Aliás, tal visão acabou por sumarizar os processos, sem privilegiar a resolução efetiva do mérito. Em verdade, a bilateralidade de audiência era usada apenas como respeito formal àquilo que parecia um encalço à rápida solução do processo. O contraditório substancial busca fazer do processo um efetivo instrumento de concretização da democracia participativa, dando ênfase à legitimidade da decisão judicial, bem como da razoável duração do processo. O contraditório contemporâneo trouxe impactante repercussão no papel do julgador que doravante fica obrigado, na máxima medida que possível, a respeitá-lo, sob pena de prolatar a decisão-surpresa.
Busca
analisar a compatibilização entre o aspecto substancial do princípio do
contraditório e a possibilidade de conhecimento de matérias de mérito ou de
rito no processo civil brasileiro. E, no
âmbito do Estado Constitucional e do Estado Democrático de Direito, o processo deve
ser pautado em igualdade, cooperação[1] e diálogo entre os
jurisdicionados e o julgador.
Nesse
cenário, não é concebível o princípio do contraditória como mera ciência dos
atos processuais, em seu aspecto formal; é imperioso reconhecer também a faceta
substancial, entendida como o direito de influência da parte na construção da
decisão judicial, cuja consequência é a vedação da decisão surpresa.
No
texto constitucional brasileiro vigente é previsto no artigo 5º, inciso XXXV
inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, o princípio da inafastabilidade
da jurisdição, tradicionalmente chamado de cláusula do acesso à justiça, ou do
direito de ação.
Trata-se
da possibilidade de provocar a prestação jurisdicional para garantir a tutela
de direitos e, segundo Canotilho, consiste em direito fundamental formal cuja
densificação se dá através de outros direitos fundamentais materiais.
No Estado Constitucional, o processo deve ser
efetivo e equânime, deve permitir o constante diálogo entre as partes e o juiz,
a fim de que, mediante a participação de todos, construa-se a decisão judicial
mais justa ao caso concreto.
É
preciso entender que a noção do processo nos remete a um instrumento para
concretização dos direitos materiais é revista, a demanda-se por um processo
efetivo, equilibrado e cooperativo entre as partes e o órgão julgador.
Nessa nova roupagem, ganha destaque o princípio do contraditório, entendido como expressão da democracia no processo civil, a fim de garantir a igualdade processual e a participação das partes na construção do provimento jurisdicional.
O
princípio do contraditório não é mais visto exclusivamente sob o aspecto
formal, conhecimento dos atos processuais, mas demanda também a observância da
faceta substancial, consistente na efetiva possibilidade de influenciar na
formação das decisões judiciais.
Por
outro lado, é sabido que, na condução do processo, o juiz pode conhecer
matérias de fato ou de direito de ofício, atividade comumente relacionada aos
brocardos da mihi factum, dabo tibi jus (dá-me o fato e te darei o
Direito) e o iura novit curia (o juiz conhece o direito).
Questiona-se
qual deverá ser a postura a ser adotado pelo julgador nos casos de
reconhecimento de matérias de ofício? A intimação prévia das partes torna-se
obrigatória? E, em caso positivo, não haveria adiantamento do julgamento?
E, em
caso negativo, as partes não seriam surpreendidas por um argumento sobre o qual
não tiveram oportunidade de debater? Haveria ofensa ao contraditório?
Assim,
busca-se realizar análise sobre o princípio do contraditório à luz do direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva, nova roupagem do acesso à justiça.
Busca-se não apenas a concepção da doutrina tradicional da contraditória como
mera ciência dos atos processuais, mas principalmente, trazer à tona o seu
aspecto substancial, identificado como poder de influência das partes. Aliado a
tanto, busca-se contrapor a face substancial do princípio do contraditório à
possibilidade de conhecimento de matérias de ofício pelo órgão julgador no
processo civil contemporâneo.
Diferentemente
do início do século XX época em que se pensava ser o processo um fenômeno
neutro, o processo atualmente é concebido como fenômeno cultural, reflexo da
sociedade em que está inserido. O processo, como os demais ramos do Direito,
absorve as tendências do momento histórico e da ideologia dominante, o que
trouxe grandes repercussões na formatação e compreensão dos institutos
processuais.
No
passado, no Estado Liberal Clássico, o processo refletia a neutralidade do
Estado, e era permeado pela faceta formal da igualdade, considerando-se as
partes iguais perante a lei. O juiz adotava uma postura de passividade, com
predomínio das partes no processo. O processo, na visão liberal tinha por
características, a saber; 1. visão formal da igualdade; 2. neutralidade axiológica;
3. postura passiva e distante do juiz; 4. distribuição estática do ônus da
prova; 5. primazia da tutela pecuniária (não se cogitava em tutela específica).
Com a
industrialização e o surgimento de relações sociais mais complexas, passou-se a
entender que o Estado não poderia se limitar a declarar os direitos
formalmente, surgem dos direitos fundamentais de segunda geração, direitos
sociais que exigem ações positivas do Estado, tais como a prestação de serviços
públicos de previdência e assistência sociais, educação, cultura e saúde.
Nesta
segunda dimensão, o direito à igualdade material ganhou destaque, não sendo
suficiente a posição absenteísta do Estado[2], que tem o dever de
garantir a justiça social.
A
noção de igualdade substancial igualmente permeou o direito processual, cujo
objeto deixou de ser apenas o poder-dever do exercício da jurisdição e seus
institutos correlatos. E, nesse contexto, o direito fundamental de acesso à
justiça passou a ser entendido como meio de efetivação dos direitos fundamentais:
O
acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental, o
mais básico dos direitos humanos, de um sistema jurídico moderno e igualitário
que pretenda garantir, e não apenas proclamar direitos de todos. (...).
O
acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido;
ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.
Sendo
ultrapassados o Estado Liberal e o Estado Social que são representantes,
respectivamente, do constitucionalismo moderno e social, atualmente se vivencia
o Estado Constitucional, sob o paradigma filosófico do neoconstitucionalismo.
Apesar
dos traços distintivos entre os países, o estágio atual do constitucionalismo,
o chamado neoconstitucionalismo, tem por característica básica a combinação
entre a supremacia normativa da Constituição Federal vigente, na qual está
previsto um rol de direitos fundamentais (não mais apenas na vertente
individual), e um sistema de controle de constitucionalidade, normalmente,
jurisdicional, para garantir esta supremacia.
Entende-se
por Estado Constitucional não simplesmente um Estado que possui Constituição
federal (fenômeno quase universal), mas um Estado com qualidades identificadas
pelo constitucionalismo contemporâneo, trata-se de um Estado de Direito e um
Estado democrático, sendo necessárias essas duas qualidades.
E, de
acordo com J.J. Canotilho, o Estado Constitucional[3] busca estabelecer uma
conexão entre o Estado de Direito e a democracia, a fonte de legitimação do
poder político.
Este é
o paradigma vivenciado pelo sistema jurídico atual. Tais tendências
neoconstitucionalismo, neoprocessualismo e Estado Constitucional estão
interligadas e influenciam diretamente na concepção do acesso à justiça e na
maneira de condução do processo civil.
Há uma
releitura de institutos processuais, com a adoção de um modelo constitucional
do direito processual civil, cujo resultado prático é a aplicação da teoria dos
direitos fundamentais ao processo.
Por
esta razão, entende-se ser mais adequada a expressão devido processo
constitucional e, não apenas devido processo legal.
A
necessidade da releitura do processo civil à luz dos direitos fundamentais,
Daniel Mitidiero ressalto que o marco metodológico do Estado Constitucional transferiu
o centro da teoria do processo da jurisdição (foco centrado no juiz, visão um
tanto unilateral) para o próprio processo, ressaltando a sua dimensão
essencialmente participativa.
Reconhece-se
ser o processo ato de três pessoas (o autor, o juiz e o réu), potencializando o
valor da participação e considerado uma manifestação da democracia.
Sob a
ótica do Estado Constitucional, para ser legítimo, o processo deve ser fundado
no diálogo, razão pela qual o princípio do contraditório, entendido como
participação e influência, é considerado essencial. O processo não é mais visto
como um duelo entre as partes e assistido pelo juiz, mas, pelo contrário, os
sujeitos processuais são coautores da decisão final a ser tomada, constituindo
uma comunidade de trabalho, em que todos possuem deveres, ônus e direitos.
Numa
análise histórica, a origem se dá a partir da Idade Média europeia, quando a
lógica do processo era assimétrica. A partir dos séculos XVII e XVIII, o velho
mundo[4] iniciou uma desconstrução,
no que se refere ao contraditório e ao processo em si, da dialética e da tópica
argumentativa que afeiçoavam o ordo iudicarius medieval. Ao que alguns
doutrinadores chamaram da era da geometrização do jurídico, onde o modelo de
conhecimento era matemático.
Sobre
esse fenômeno, Theodoro Jr. e Nunes, baseados no ensinamento de Picardi, destacam que: “[...] a transição do originário processo
comum (extraído da tradição italiana –
Sécs. XIII a XV) ao Prozess-Ordnung da Prússia
(1781) representa a passagem de uma ordem isonômica (ordine isonômico) para uma ordem assimétrica
(ordine assimétrico) com a decorrente redução do (atualmente chamado) princípio do contraditório de fundamento ético
e jus natural do processo para uma ótima
mecânica de contraposição de teses (dizer
e contradizer).”
Em verdade, havia uma baixa valorização do contraditório, tendo em vista a lógica burocrática, com a transformação da figura do juiz para um mero diretor do processo, em que sua atividade se torna “[...] previsível, fungível e controlável, distanciando-se da dialética medieval, no qual o juiz deixa de ser responsável pelas suas decisões perante os cidadãos”
O contraditório, então, passa por um rebaixamento normativo, pois o julgador começa a se utilizar de um método lógico-científico para poder absorver um significado objetivo da realidade, em detrimento das razões apresentadas pelas partes. A prova testemunhal, por consequência, se torna hierarquicamente inferior à documental.
A
segunda trajetória evolutiva, se dá a partir do início do século XIX, com a
plena vigência do positivismo jurídico, momento em que o princípio do
contraditório ainda se mantém desvalorizado. Nesse momento, foi reduzido a uma
sistemática de contraposição de argumentos, isto é na bilateralidade de
audiência, no mero dizer e contradizer.
Porém,
o formalismo exacerbado acabava por aniquilar a substância do contraditório,
pois essa bilateralidade se apresentava insuficiente para o efetivo cumprimento
deste direito. E, nessa faz que perpassou o contraditório felizmente, começo a
degringolar a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo, após a Segunda
Guerra Mundial com o advento do neoconstitucionalismo.
Aliás,
para Paolo Comanducci trata-se de ideologia ou metodologia segundo uma
classificação já formulada por Norberto Bobbio[5] em referência o
positivismo jurídico que trouxe como mote uma revolução no campo
constitucional.
A
primeira onda trouxe uma Constituição invasora, caracterizada por positivar
vasto catálogo de direitos fundamentais, por possui simultaneamente regras e
princípios; e pelas peculiaridades de interpretação e aplicação das normas
constitucionais, no que tange às normas infraconstitucionais. A segunda onda
colocou a limitação do poder estatal em segundo plano, para sobrepor a garantia
de direitos fundamentais, fazendo surgir, assim um neoconstitucionalismo de
contrapoderes e um neoconstitucionalismo das regras.
A
terceira onda em forma de metodologia, dirigiu a reaproximação do Direito à
Moral, colocando os princípios constitucionais e os direitos fundamentais como
ponte indispensável entre essas duas esferas. Naturalmente, esses movimentos
trouxeram a necessidade a constitucionalização de garantias processuais.
Na
Constituição brasileira de 1891 e 1934, por exemplo, não é possível visualizar
ainda a previsão do contraditório, embora expressamente previsto o direito de
ampla defesa na esfera criminal.
A
premissa mais evidente que se tem do princípio, que só passou a ser conhecido a
partir da Constituição de 1937, também conhecida como "A Polaca"[6].
Posteriormente,
o princípio do contraditório na vigência da Constituição brasileira de 1967, a
alteração trazida pela EC 01/1969 dispôs no capítulo IV, a partir do artigo
153, sobre os direitos e garantias individuais. Entre outros princípios e
direitos, era previsto o direito à igualdade, à segurança jurídica, e ao
princípio da legalidade.
E,
nesse elenco estava previsto o processo em contraditório na instrução criminal.
In litteris: Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
§ 16.
A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior, no relativo
ao crime e à pena, salvo quando agravar a
situação do réu. (BRASIL, 1969)
Ainda
na época da temida ditadura militar brasileira, ainda sob a vigência da
Constituição Federal de 1967, fora promulgado o Código de Processo Civil (Lei
5.869/1973) até hoje vigente no país. Assim um diploma legal permeado pela
visão liberal do processo, o que fora parcialmente modificado pelas reformas
sucessivas e ocorridas ao longo dos anos, sem, contudo, ter havido uma mudança
na essência do codex.
Por
outro lado, a promulgação da Constituição Federal de 1988 representou, além da
vitória da democracia, a adoção pelo Brasil da concepção do Estado
Constitucional, mediante a conjugação das qualidades de Estado de Direito e Estado
de Democrático (artigo 1, caput, CFRB/1988). E, aliado isto, no
paradigma neoconstitucialista, reconhece-se a plena força normativa dos
preceitos constitucionais, com profundas influências no direito processual.
O artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal
de 1988 ampliou consideravelmente o direito ao contraditório, ao estender o
âmbito de incidência a todos os processos judiciais e administrativos (antes restrito
à instrução criminal): aos litigantes, em processo judicial ou administrativo,
e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, como
os meios e recursos a esta inerentes.
Desta
forma, o contraditório passa a ser identificado como manifestação do princípio
do Estado Democrático de Direito, intimamente ligado ao direito de ação,
participação e à igualdade entre as partes.
Para
Nelson Nery Jr., o contraditório tem dois elementos, a saber: 1) a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e
dos atos processuais; e 2) a possibilidade de reação pelas partes (conceito entendido em
sentido amplo, de qualquer pessoa que
ostente uma pretensão no processo) em face dos atos que lhes sejam desfavoráveis. Nas palavras do autor:
Por
contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da
existência da ação e de todos os atos do processo às partes e, de outro, a
possibilidade de as partes reagirem aos
atos que lhe sejam desfavoráveis
O
princípio do contraditório ou da audiência bilateral corresponde-se à garantia
fundamental de justiça e está intimamente ligado ao exercício do poder. O
princípio da audiência bilateral seria uma decorrência do dever de imparcialidade
e equidistância do juiz em relação às partes: em um processo dialético, o
magistrado escuta a tese, a antítese e, depois elabora a síntese (decisão ou
sentença). Apesar de as partes defenderem seus interesses, não possuem papéis
antagônicos, mas de colaboradores necessários para a eliminação do conflito ou
controvérsia que os envolve. O contraditório, para tais doutrinadores, possui
dois elementos: informação e reação.
Para a
doutrina tradicional, o contraditório é concebido como o direito à
ciência/informação/comunicação ou bilateralidade de audiência das partes. A
tempestiva citação do réu e a intimação do autor processuais são consideradas, para
a doutrina clássica, mecanismos suficientes para a fiel observância do
contraditório.
Nesse
paradigma, nota-se que o primeiro elemento do contraditório é a informação e, o
segundo, a possibilidade de reação contra os atos desfavoráveis.
Limitar
o conteúdo do princípio do contraditório a esses dois elementos pressupõe,
entretanto, uma visão individualista do processo, uma vez que esta garantia
processual teria por finalidade apenas possibilitar às partes reagir ou evitar
posições desfavoráveis aos seus interesses.
Em
outras palavras, sob essa perspectiva, o contraditório destina-se exclusivamente
àqueles que podem ter a esfera jurídica afetada pelo processo; justifica-se a
necessidade de citação, intimação ou comparecimento da parte para que ela, de
alguma forma, possa se defender contra situações desvantajosas, seja prévia ou
repressivamente.
Nessa
concepção, o exercício do contraditório relaciona-se a um dano potencial a ser suportado
pela parte com a decisão judicial. O contraditório estaria vinculado à
possibilidade da ocorrência de um dano patrimonial; para quem não corre o risco
de suportar qualquer dano (quem não será afetado pelo Processo), não há que se
cogitar em contraditório.
Resta
evidenciada, portanto, a conotação individualista do contraditório clássico,
visto que estaria relacionado à proteção da esfera de direitos das partes
envolvidas, e não à participação na construção das decisões ou à legitimação
dos provimentos jurisdicionais.
Além
disso, a concepção tradicional, ao restringir o princípio do contraditório ao binômio
informação-reação, considera ser a aplicação do direito tarefa exclusiva do magistrado,
e não fruto de uma construção legitimada pelo diálogo cujos coautores são todos
os sujeitos processuais.
De
fato, da célebre afirmação de que o autor traz aos autos a tese, o réu a
antítese, formalizada na contestação, e o juiz chega à síntese, pode-se extrair
o retrato assimétrico do processo civil, em que as partes fornecem os subsídios
para resolução do conflito, a qual é alcançada ou descoberta de maneira solitária
pelo juiz.
Esta é
a visão do contraditório estático, que somente pode atender a uma estrutura
procedimental ontologicamente dirigida perla perspectiva unilateral de formação
de provimento judicial pelo juiz.
Por
outro lado, no Estado Constitucional, o processo revela a feição participativa
da democracia, razão pela qual o direito à tutela jurídica efetiva também consiste
em uma garantia fundamental de participação. Busca-se um processo efetivo e
equânime, interpretado à luz da Constituição e dos direitos fundamentais.
Contraditório e isonomia são direitos informativos do processo civil
intimamente relacionados, uma vez que o caráter dialético do processo deve atuar com igualdade de oportunidades, com intervenção
constante e equilibrada das partes.
Assim,
o contraditório não é mais concebido apenas como bilateralidade de audiência e
possibilidade de reação. A ciência ou comunicação dos atos processuais é
considerada a faceta formal do contraditório, ao lado da faceta substancial,
consistente na participação com possibilidade de influência na decisão judicial.
O aspecto substancial consiste, portanto, no poder de influência para construção
da decisão, com nítido caráter preventivo na formação do convencimento.
É bom recordar que o contraditório é considerado a manifestação substancial do Estado Democrático e Constitucional materializado no processo. Assim, o trâmite processual deverá necessariamente contar com a possibilidade de efetiva participação dos envolvidos, não apenas restrita à comunicação ou ciência dos atos processuais, mas entendida também como a possibilidade de influência no convencimento do juiz.
Para
Luiz Guilherme Marinoni, o contraditório consiste em uma expressão
técnico-jurídica do princípio da participação, uma vez que o poder para ser
legitimamente exercido deve estar aberto à participação, forma de legitimação
das democracias.
Na
mesma direção é o posicionamento Hermes Zanetti Junior considera o
contraditório elemento essencial para o conceito de processo, por se apresentar
valor-fonte do processo democrático, estando intrínseca à noção de
contraditório a possibilidade de interveniência do destinatário na formação da
decisão.
De
fato, partindo da premissa de que a participação integra o conteúdo do
contraditório, e que este princípio é a expressão da democracia do processo,
chega-se à conclusão de que a faceta puramente formal do contraditório (comunicação/ciência)
não é suficiente para definir este princípio.
Tal
afirmação ganha maior força se inserida no contexto do neoprocessualismo, cujo
enfoque reside na proteção dos direitos fundamentais processuais. Assim, o
princípio do contraditório deve ser entendido sob os dois aspectos; formal ou
básico e substancial ou material.
O
aspecto formal do contraditório relaciona-se com a comunicação no processo -
audiência, informação, ciência dos atos processuais – e a possibilidade de
reação. Consoante visto, a doutrina clássica comumente entende que a efetivação
do contraditório se dá unicamente pela observância do binômio informação-reação.
A
faceta substantiva da garantia consiste, por sua vez, na possibilidade de influência
no convencimento do órgão julgador. O contraditório não se implementa apenas
com a ouvida ou ciência da parte, sendo necessário também lhe assegurar a
possibilidade de influenciar na decisão a ser tomada pelo juiz, a fim de evitar
“decisões surpresa”. A democracia pressupõe participação para legitimar o Estado e o exercício do poder. Transmudada
esta noção para o processo civil, as partes têm o direito de participação e de
influência na construção da decisão judicial, sendo coautoras deste produto
juntamente com o órgão julgador.
No
Estado Constitucional – Estado de Direito e Estado Democrático –, a decisão não
é vista como fruto do saber solitário do juiz. Pelo contrário, para se cogitar
em decisão legítima, é preciso haver participação das partes, destinatárias da
decisão e coautoras dela
A
necessária participação das partes em simétrica paridade para uma jurisdição
efetivamente justa [...] passa pela questão da qualidade das decisões
judiciais, e, consequentemente, pela legitimidade de tais decisões.
E tal
legitimidade só é efetivada por via de um procedimento realizado em
contraditório, para que seja superada a visão de que a justiça seja produto da
‘clarividência do julgador, sua ideologia ou magnanimidade’.
Assim,
além da preocupação com a prestação jurisdicional tempestiva e eficiente, o
processo deve ter um caráter eminentemente dialético, com ampla participação
das partes. Essas e o juiz devem cooperar na busca da solução para o litígio,
formando uma “comunidade de trabalho”, em que o magistrado e as partes adotem uma postura ativa, equilibrada e
cooperativa. O monólogo judicial é, então, substituído pelo diálogo
participativo.
Nesse
contexto, o juiz não ocupa mais o lugar central da prestação jurisdicional; ao
contrário, é um dos componentes necessários, mas não o único ou principal.
Por
esta razão, defende-se que a decisão judicial, para ser legítima, deixou de ser
verticalizada e heterônoma, passando a ser horizontal e autônoma, construída em
simétrica paridade de participação entre as partes, advogados, Defensores
Públicos e Ministério Público
Para
Antônio do Passo Cabral, a ruptura com o conceito tradicional do contraditório
(binômio informação-reação) está relacionada ao exercício da democracia através
do discurso, a adoção da democracia deliberativa.
Sob
este paradigma, os indivíduos não são considerados objetos das decisões
estatais, uma vez que estas são produto de uma: discussão argumentativa
pluralista, retirando do indivíduo a condição de súdito (que se submete) para o
status de ativo coautor da elaboração da norma, verdadeiramente cidadão
e partícipe desse processo.
O
princípio do contraditório deve, então, ser visto sob este enfoque: consiste na
manifestação da democracia no processo; impõe ao juiz o dever de dialogar com
os demais sujeitos processuais (o juiz também é sujeito do contraditório) e
garante o exercício do direito de influência, além do binômio tradicional ciência-reação.
Ao
enfatizar a importância do contraditório e a necessidade de se garantir a
paridade de armas ou a “paridade de condições”, Igor Raatz dos Santos defende
ser o processo cooperativo uma alternativa para redução das desigualdades na
relação processual.
Para
ele, sem a utilização constante de mecanismos com vistas a diminuir as
desigualdades entre as partes, não apenas o contraditório será ineficaz, mas
todos os direitos fundamentais de um processo justo correm o risco de serem artificiais e insuficientes
para assegurar a efetiva participação no processo.
Acrescente-se
como consequência lógica da faceta substancial do contraditório o direito de a
parte ver seus argumentos considerados e apreciados pelo órgão julgador ao
proferir a decisão, com íntima conexão com o dever de fundamentação das
decisões judiciais (artigo 93, IX da Constituição Federal).
Considerando
ser o juiz também sujeito do contraditório, a título exemplificativo, o
princípio do contraditório tem abrangência dupla, mas significa também que o
próprio juiz deve participar da preparação e do julgamento a ser feito,
exercendo ele próprio o contraditório. A garantia resolve-se, portanto, num
direito das partes e em deveres do juiz. (In: BUENO, Cassio Scarpinella.
Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito
processual civil. vol.1. São Paulo: Saraiva, 2007).
Pode-se
afirmar que o contraditório consiste na manifestação processual do direito de
participação e de influência (características da democracia) na busca do
processo em um sistema dialético e de cooperação, evitando-se surpresas
processuais às partes.
O juiz
pode conhecer de ofício matérias de fato e de direito e, apreciar livremente a
prova produzida nos autos pelas partes, desde que indique de modo fundamentado
as razões do seu convencimento.
Trata-se
da adoção do princípio do livre convencimento motivado do órgão julgador. Sobre
o tema, vide os artigos 131 e 462 do CPC.
Os
dispositivos retromencionados não deixam dúvidas de que o juiz poderá
considerar matérias de fato e de direito ex officio. Entretanto,
questiona-se, ao conhecer de ofício matéria ainda não discutida nos autos, o
magistrado precisa ouvir previamente as partes ou não. Por muito tempo, e até
mesmo hoje em dia, defendeu-se ser desnecessária a prévia intimação das partes
nesses casos, postura que não mais se sustenta no âmbito da proteção dos
direitos fundamentais processuais e do processo cooperativo.
Em
relação ao reconhecimento de ofício de questões jurídicas pelo magistrado,
usualmente são lembrados os brocados romanos da mihi factum, dabo tibi jus
(dá-me o fato e te darei o Direito) e iura novit curia (o juiz conhece o
direito).
Tais
postulados seriam suficientes para justificar a possibilidade de o julgador
conhecer de ofício questões jurídicas não ventiladas pelas partes. O juiz, diante
do dever de decidir (proibição do non liquet), tem o poder-dever de aplicar ao
caso a norma jurídica que entender mais pertinente, mesmo que ela não tenha sido suscitada pelas partes.
A
possibilidade de o juiz conhecer matérias fáticas ou de direito não trazidas
pelas partes não se confunde, entretanto, com a necessidade de observância do contraditório também nesses casos. O juiz
não pode decidir com base em questão sobre a qual as partes não tiveram a
oportunidade de se manifestar, pois quanto a isto não houve participação, nem
possibilidade de influência na construção da decisão.
Em
observância ao aspecto substancial do contraditório, os litigantes não podem ser surpreendidos com uma decisão que
leve em conta matéria não discutida nos autos, razão pela qual o juiz deve
possibilitar a manifestação das partes e o exercício do direito de influenciar a
formação do convencimento, para, apenas depois,
proferir a sentença/decisão.
A
proteção contra decisões surpresa, ou proteção contra a surpresa é vista como o
direito da parte à previsibilidade do processo em relação ao conteúdo da
decisão jurisdicional. Trata-se de limite imposto ao órgão julgador: somente
pode servir de fundamento da decisão aquele elemento que tiver sido previamente
discutido pelas partes no processo. Este limite incide também nos casos de conhecimento
de matérias de ofício
A doutrina
brasileira apesar de ainda pouco expressiva, começa a defender a existência no
processo cooperativo do dever de consulta do juiz, segundo o qual se impõe ao
órgão julgador a prévia consulta às partes antes conhecer matéria de fato ou de
direito sobre a qual elas não tenham tido a oportunidade de se pronunciar.
O
objetivo é, justamente, evitar decisões surpresa, e, com isso, resguardar a
faceta substancial do contraditório e o direito de participação das partes.
Permanece
presente o dever de consulta do juiz e está intimamente ligado ao princípio do
contraditório, cujo núcleo essencial é a participação não apenas fictícia, mas
também compreende o direito de a parte se pronunciar e influir na formação do
provimento jurisdicional.
Nesse
sentido, o juiz deve colocar para as partes as questões de fato reveladas de
ofício antes de decidir sobre elas, bem como submeter os litigantes a norma por
eles não suscitada, dando ensejo à discussão a possibilidade de aplicá-la ao
caso concreto.
Pode-se
ainda citar, como exemplos, a declaração incidental de inconstitucionalidade de
uma norma e o reconhecimento de ofício da prescrição.
O juiz
pode, como fundamento da decisão, declarar a inconstitucionalidade de uma
norma, visto que o Brasil adotou o sistema misto de controle de
constitucionalidade concentrado e difuso. O magistrado pode fazer isto mesmo que
as partes não tenham alegado a inconstitucionalidade em qualquer momento no
curso
do processo, mas, para tanto, deve intimá-las para que se manifestem sobre a constitucionalidade
da norma, sob pena de afronta ao princípio do contraditório. Esta intimação não
significa prejulgar o caso, mas efetivar o contraditório substancial,
possibilitando que as partes influenciem na formação da decisão.
Da
mesma forma, nos termos do artigo 219 § 5º do Código de Processo Civil, o juiz
pronunciará de ofício a prescrição. Entretanto, se as partes em momento algum
do processo mencionaram esta matéria e o juiz verificar o transcurso so do
lapso prescricional ao sentenciar, em respeito ao princípio do contraditório,
ele não pode extinguir o processo com base na prescrição sem antes ouvir as partes.
A
observância da faceta substancial do contraditório impõe a prévia oitiva das partes para que elas possam influenciar no
convencimento ou trazerem, por exemplo,
uma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição.
Assim,
antes de proferir a decisão – de mérito ou processual - com base em matéria
jurídica ou fática não trazida aos autos, deve ser oportunizada a manifestação
das partes, para que exerçam o direito à participação e influência no processo.
Interessante
a observação trazida por Didier Junior de que, nesses casos, a simples
possibilidade de a parte apresentar recurso contra a sentença que se utilizou de fundamento jurídico não discutido
nos autos não sana a violação ao contraditório.
Isto
porque o recurso é uma forma de discutir novamente a matéria, e não de
discuti-la pela primeira vez. Não se está falando que o duplo grau de
jurisdição é um princípio obrigatório, mas, quando houver previsão de dois (ou
mais) graus de jurisdição para análise da causa, esse direito não deve ser negado
à parte.
Na
legislação estrangeira, o Código de Processo Civil de Portugal[7] (PORTUGAL, 1961) traz
sobre o assunto interessante dispositivo (artigo 3º, número 3). Eis o teor de todo o artigo 3º do CPC
português: Necessidade do pedido e da contradição
1 - O
tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem
que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente
chamada para deduzir oposição.
O juiz
deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do
contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade,
decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso,
sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Percebe-se
que o diploma português diferencia adequadamente duas questões: 1) possibilidade
de conhecimento de ofício de questões de fato e de direito, e 2) necessidade de
efetivar o contraditório (ciência e oportunidade de influência) antes da
decisão.
Além
disso, explicita que o conteúdo mínimo do princípio do contraditório não se limita à ciência
bilateral dos atos e à possibilidade de contraditá-los,
mas também inclui necessariamente a (possibilidade de) influência efetiva das
partes na formação do provimento judicial. Para tanto, deve-se oportunizar a
prévia apresentação de provas, alegações e manifestações sobre matérias de fato
e de direito, relativas ao mérito ou ao rito processual.
A
legislação alemã também positivou o contraditório substancial e a necessidade
de o juiz intimar as partes acerca de questões de fato e de direito a serem
conhecidas de ofício: § 139 do ZPO[8]: (2) O órgão judicial só
poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente,
se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe
dado oportunidade de discuti-lo, salvo
se se tratar de questão secundária.
Isso
vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de
direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve
chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito de questões a serem
consideradas de ofício.
Só nos
casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra
determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O
juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do
contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade,
decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso,
sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às
excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária
responder na audiência preliminar ou,
não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Trata-se
de dispositivo bastante claro quanto à consagração das facetas formal e
substancial do contraditório, bem como da imperiosa necessidade de as partes se
manifestarem acerca de questões a serem reconhecidas de ofício pelo juiz.
Da
mesma forma, o Código de Processo Civil francês dispõe: Artigo 16: O juiz deve, em todas as
circunstâncias, fazer observar e observar ele mesmo o princípio do
contraditório.
Ele só
pode considerar em sua decisão os recursos, as explica- ções e os documentos
invocados ou produzidos pelas partes que foram capazes de serem debatidas
contraditoriamente.
Ele
não pode fundamentar sua decisão sobre os re- cursos de direito que ele obteve
sem previamente ter convidado as partes a apresentar suas observações.
Interessante
perceber que a legislação francesa, além de determinar ser vedado ao juiz
fundamentar a decisão em elemento sobre o qual as partes não tiveram a oportunidade de se manifestar,
explicita que o magistrado, ele próprio, deve observar o princípio do contraditório.
Significa
estar o juiz inserido no diálogo processual, devendo debater os pontos
controvertidos com as partes, e não apenas assistir ao duelo entre elas e
depois proferir a decisão construída solitariamente.
Pelo
contrário, o juiz deve dialogar em condição de paridade com as partes,
assumindo postura assimétrica apenas no momento da decisão.
Por
esta razão, entende-se acertada a distinção feita por Daniel Mitidiero sobre a
dupla posição do juiz em relação às partes no processo cooperativo. Na condução
feito, deve-se ter um juiz isonômico e paritário no diálogo; na decisão das
questões processuais e materiais, ele assume uma postura assimétrica, em decorrência de ser a decisão judicial um ato
de poder do Estado.
A
assimetria na tomada de decisões não
deve ser compreendida como construção isolada da decisão, mas como consequência do caráter
imperativo das decisões judiciais, apesar
de terem as partes tido oportunidade de discutir os fatos e elementos
normativos relevantes para formação do convencimento.
Percebe-se
que o dever de diálogo do juiz já é reconhecido pela doutrina, em virtude da
adoção do modelo constitucional do processo, bem como do seu caráter democrático e participativo.
De
fato, a ausência de previsão legal expressa quanto ao dever de consulta não
significa estarem permitidas no processo civil brasileiro as decisões surpresa,
visto que a necessidade de prévia intimação das partes acerca de matéria ainda não
discutida nos autos decorre diretamente do
aspecto substantivo do princípio do contraditório, que consagra o direito de influência.
Noutras
palavras, o fato de o CPC vigente não conter previsão expressa sobre a
necessidade de intimação das partes antes de o juiz proferir decisão com base
em matéria reconhecida ex officio e não discutida nos autos não dispensa tal
providência. isto porque a previsão constitucional do contraditório contém
força normativa incidente sobre o processo civil.
E,
conforme visto, a faceta substancial do contraditório consiste na possibilidade
de a parte influenciar na formação do provimento judicial, ostentando a
condição de coautora, e não apenas destinatária da decisão.
Restam
vedadas, em resumo, as decisões surpresa diante do direito conferido às partes
de participarem em simétricas condições na resolução do conflito.
Noutro
sentido, é o Código Fux que apresenta expressamente a faceta substancial no
artigo 10, apesar de não utilizar esta nomenclatura. De acordo com o referido
projeto de lei e no caminho já trilhado por legislações estrangeiras, é vedado
a qualquer órgão jurisdicional decidir com base em fundamento sobre o qual as
partes não tenham tido oportunidade de se manifestar mesmo que se trate de
matéria de reconhecimento de ofício.
Trata-se
de avanço significativo no texto da legislação brasileira, o qual demandará
mudança de pensamento de vários operadores do direito, que comumente confundem
a possibilidade de conhecimento de matérias ex officio com a necessidade de respeitar o direito de influência
das partes no processo, a chamada faceta substancial do contraditório.
O
princípio do contraditório, tradicionalmente identificado como direito à
ciência dos atos processuais ou bilateralidade de audiência, não é mais visto sob
o enfoque meramente formal. Pelo contrário, sendo um dos componentes do direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva, demanda também a observância cia do
seu aspecto substantivo, consistente no poder de influência das partes na formação
do convencimento do juiz.
Partindo-se
do pressuposto de que o princípio do contraditório é constituído pelo binômio
participação-influência, buscou-se, através do presente trabalho, discutir o
conhecimento de matérias de ofício pelo juiz à luz deste princípio constitucional.
Nos
termos do artigo 131 e 462 do Código de Processo Civil de 1973 (artigo 371
CPC/2015 e artigo 493 CPC/2015[9]), não há dúvidas de que,
no exercício do livre convencimento motivado, o juiz pode conhecer de ofício
matéria de fato e de direito para julgar a causa que lhe é posta.
Nesse
contexto, buscou-se diferenciar a possibilidade de conhecimento de questões ex
officio e o respeito à faceta substancial do contraditório. Viu-se que as legislações de Portugal, da Alemanha e da
França fazem esta distinção de maneira expressa, ao consagrarem a necessidade
de o magistrado, antes de levar em consideração matéria não discutida
anteriormente nos autos, conferir às partes oportunidade de se manifestarem.
Trata-se de garantia contra decisões surpresa e de imposição do dever de
consulta ao órgão julgador.
O
primeiro documento internacional que elencou como fundamental os direitos
humanos processuais foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
que é o documento legal mais traduzido do mundo (em mais de quinhentos
idiomas). Onde há expressos artigos com conteúdo inteiramente processual como
são os artigos 8º e 10º.
Diversos
outros tratados, declarações, convenções sobre direitos humanos que tiveram o cuidado
de prever diversas garantias processuais como reais direitos humanos, são eles:
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Político; a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos; a Convenção Europeia dos Direitos do Homem; a Carta
Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Como
corolário do devido processo legal, portanto, o contraditório é também um
direito humano processual. É como pensa
Fredie Didier Jr., quando afirma que: “Praticamente todas as Constituições
ocidentais posteriores à Segunda Grande
Guerra Mundial consagram expressamente direitos fundamentais processuais. Os tratados
internacionais de direitos humanos também o fazem (Convenção Europeia de
Direitos do Homem e o Pacto de São José da Costa Rica são dois exemplos paradigmáticos). Os principais
exemplos são o direito fundamental ao processo devido e todos os seus
corolários (contraditório, juiz natural, proibição de prova ilícita etc.).
No
Brasil, apesar de ainda não existir previsão expressa no Código de Processo
Civil nesse sentido, a vedação a decisões surpresa pode ser extraída
diretamente do princípio constitucional do contraditório em seu aspecto
substancial.
Por
esta razão, o juiz não pode proferir qualquer decisão – de mérito ou de rito -
com base em matéria reconhecida de ofício, sem antes determinar a intimação das partes para que possam se
manifestar e, com isso, influenciar na formação
do provimento.
Existe
uma série de fatores que foram decisivos para que o contraditório voltasse a
ser o elemento primordial do processo como a revitalização dos estudos da
lógica entre os sujeitos processuais.
A
percepção de que a decisão do juiz não é mera declaração da vontade do
legislador[10]
e de que intérprete também participa da construção da norma naturalmente gera uma
visão de que as partes que serão afetadas por essa decisão precisam ter seus
argumentos considerados.
Ressalte-se
a relevância da doutrina de Fazzalari[11] que encarou o
contraditório como direito de participação em igualdade na preparação do
provimento simétrico, com paridade de armas. Cumpre destacar a crítica pertinente
de Peter Häberle sobre o monopólio da interpretação pelo Estado, in verbis:
“[...] todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com
este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente um intérprete dessa norma.
O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. (In: HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 2002).
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Notas:
[1]
A cooperação, inclusive, foi encartada no Código de Processo Civil de 2015, em
seu artigo 6º, como um dever de todos os sujeitos do processo para o fim de
obtenção de decisão de mérito justa e efetiva.
Evidentemente que, nessa nova visão4, há um enfoque maior no
contraditório, em especial no direito das partes de influenciar a decisão
judicial tomada e de não serem pegas de surpresa com decisões sobre questões
ainda não discutidas previamente.
[2] Estado Mínimo nada mais é do que o entendimento que o papel do estado na sociedade deve ser o mínimo possível para que o Estado consiga entregar serviços públicos de qualidade para a sociedade, com maior eficiência, deixando apenas nas mãos de iniciativas privadas funções consideradas não essenciais. Para o filósofo e ex professor da Universidade de Harvard Robert Nozick, Estado Mínimo era: “Minhas conclusões principais sobre o Estado são que o Estado Mínimo, limitado às estreitas funções de proteção contra a violência, o roubo e a fraude, ao cumprimento de contratos etc., se justifica; que qualquer estado mais abrangente violaria o direito das pessoas de não serem obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica; que o Estado Mínimo é inspirador, assim como correto” (Nozick,1990).
[3]
Para Canotilho (2003), o constitucionalismo “é a teoria (ou ideologia) que
ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em
dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”.
Classicamente, há três formas de estado: a unitária, a federação e a
confederação. Quando só há um centro de poder, ou seja, apenas um órgão
legislativo, executivo e judiciário, temos o estado unitário.
[4]
Itália, Corte de Cassação, n.15.705, 07/2005, na qual a Corte fazia uma
interpretação dogmática no plano da infraconstitucionalidade. Não pode, de
fato, ser pronunciada a nulidade por inobservância dos atos do processo -
leia-se na motivação da reclamada pronúncia 0 se a nulidade não é cominada pela
lei: uma disposição em tal sentido falta no artigo 183 CPC como sanção da
omissa indicação às partes das questões conhecíveis de ofício.
[5] O saudoso Norberto Bobbio afirmava que os
“direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do
homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a
solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade
dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns
direitos fundamentais. ” Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(...)
os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos
de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
[6] Na Constituição Polaca que o princípio do contraditório teve uma previsão expressa no texto no artigo 122, também reduzido à seara do processo penal. E, a mesma restrição se repercutiu nas Constituições de 1946 (artigo 141, §25).
[7]
PORTUGAL, Supremo Tribunal de Justiça. Recurso 10.361/01. Rel. Conselheiro
Ferreira Ramos. j. 15.10.2002. Data do acórdão: 15.10.2022, Lisboa. Disponível
em: http://www.stj.pt. Em sentido idêntico: 1.
Como decorrência do princípio do contraditório, consagrado entre outros, no
artigo 3º, n.3, do CPC, é proibida a decisão-surpresa, isto é, a decisão
baseada em fundamento que não tenha sido
previamente considerado pelas partes. A violação do princípio do contraditório
inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artigo 201,
n.1. do CPC, não constituindo nulidade de que o Tribunal conhece oficiosamente,
pelo que se tem por sabada se não for invocada pelo interessado no prazo de dez
dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo (arts.
203, n.1, 205, I do mesmo diploma). Portugal, STJ, Recurso de Revista 8802/02,
Rel. Conselheiro Araújo Barros, 2005.
[8]
Na Alemanha, após a segunda grande guerra, o conteúdo da cláusula estabelecida
no artigo 103, §1º da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, como pretensão
de audição jurídica e foi interpretada de modo a garantir um alcance maior que
a simples literalidade. O Tribunal Constitucional Federal alemão passou a
afirmar que o dispositivo não só operava seus efeitos no confronto entre as
partes, mas, sim, convertia-se, também num dever para o magistrado, de modo que
se atribuía às partes a possibilidade de posicionar-se sobre qualquer questão
de fato ou de direito, de procedimento ou de mérito, de tal modo a poder
influir sobre o resultado dos provimentos. Ao magistrado é imposto o dever de
provocar o debate preventivo, com as partes, sobre todas as questões a serem
levadas em consideração nos provimentos judiciais.
[9]
O CPC/2015, em seu texto, trouxe regra específica sobre a temática. É o que se
pode extrair do enunciado do art. 9º, caput: “Não se proferirá decisão
contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.”. Ocorre que o próprio artigo, em seu parágrafo
único, já previu exceções à referida regra, em que se permite proferir decisão
sem a oitiva da parte contrária ou, em latim, inaldita altera parte: a) nos casos de tutela provisória de
urgência (inc. I); b) nas hipóteses de
tutela de evidência (inc. II); e c) na decisão que determina a expedição de mandado monitório,
na ação monitória (inc. III).
[10] Como salientou Donizetti mais uma vez o legislador pátrio deixou a consagração do direito ao contraditório na sua dimensão material, impondo, nesse caso, verdadeiro limite à atuação jurisdicional. (DONIZETTI, E. Novo Código de Processo Civil Comentado (Lei 13.105, de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC/1973. São Paulo: Atlas, 2016.