Considerações do Princípio do Contraditório

A visão moderna do contraditório não mais o encara como garantia meramente formal. Aliás, tal visão acabou por sumarizar os processos, sem privilegiar a resolução efetiva do mérito. Em verdade, a bilateralidade de audiência era usada apenas como respeito formal àquilo que parecia um encalço à rápida solução do processo. O contraditório substancial busca fazer do processo um efetivo instrumento de concretização da democracia participativa, dando ênfase à legitimidade da decisão judicial, bem como da razoável duração do processo. O contraditório contemporâneo trouxe impactante repercussão no papel do julgador que doravante fica obrigado, na máxima medida que possível, a respeitá-lo, sob pena de prolatar a decisão-surpresa.

Fonte: Gisele Leite

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Busca analisar a compatibilização entre o aspecto substancial do princípio do contraditório e a possibilidade de conhecimento de matérias de mérito ou de rito no processo civil brasileiro.  E, no âmbito do Estado Constitucional e do Estado Democrático de Direito, o processo deve ser pautado em igualdade, cooperação[1] e diálogo entre os jurisdicionados e o julgador.

Nesse cenário, não é concebível o princípio do contraditória como mera ciência dos atos processuais, em seu aspecto formal; é imperioso reconhecer também a faceta substancial, entendida como o direito de influência da parte na construção da decisão judicial, cuja consequência é a vedação da decisão surpresa.

No texto constitucional brasileiro vigente é previsto no artigo 5º, inciso XXXV inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, tradicionalmente chamado de cláusula do acesso à justiça, ou do direito de ação.

Trata-se da possibilidade de provocar a prestação jurisdicional para garantir a tutela de direitos e, segundo Canotilho, consiste em direito fundamental formal cuja densificação se dá através de outros direitos fundamentais materiais.

 No Estado Constitucional, o processo deve ser efetivo e equânime, deve permitir o constante diálogo entre as partes e o juiz, a fim de que, mediante a participação de todos, construa-se a decisão judicial mais justa ao caso concreto.

É preciso entender que a noção do processo nos remete a um instrumento para concretização dos direitos materiais é revista, a demanda-se por um processo efetivo, equilibrado e cooperativo entre as partes e o órgão julgador.

Nessa nova roupagem, ganha destaque o princípio do contraditório, entendido como expressão da democracia no processo civil, a fim de garantir a igualdade processual e a participação das partes na construção do provimento jurisdicional.

O princípio do contraditório não é mais visto exclusivamente sob o aspecto formal, conhecimento dos atos processuais, mas demanda também a observância da faceta substancial, consistente na efetiva possibilidade de influenciar na formação das decisões judiciais.

Por outro lado, é sabido que, na condução do processo, o juiz pode conhecer matérias de fato ou de direito de ofício, atividade comumente relacionada aos brocardos da mihi factum, dabo tibi jus (dá-me o fato e te darei o Direito) e o iura novit curia (o juiz conhece o direito).

Questiona-se qual deverá ser a postura a ser adotado pelo julgador nos casos de reconhecimento de matérias de ofício? A intimação prévia das partes torna-se obrigatória? E, em caso positivo, não haveria adiantamento do julgamento?

E, em caso negativo, as partes não seriam surpreendidas por um argumento sobre o qual não tiveram oportunidade de debater? Haveria ofensa ao contraditório?

Assim, busca-se realizar análise sobre o princípio do contraditório à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, nova roupagem do acesso à justiça. Busca-se não apenas a concepção da doutrina tradicional da contraditória como mera ciência dos atos processuais, mas principalmente, trazer à tona o seu aspecto substancial, identificado como poder de influência das partes. Aliado a tanto, busca-se contrapor a face substancial do princípio do contraditório à possibilidade de conhecimento de matérias de ofício pelo órgão julgador no processo civil contemporâneo.

Diferentemente do início do século XX época em que se pensava ser o processo um fenômeno neutro, o processo atualmente é concebido como fenômeno cultural, reflexo da sociedade em que está inserido. O processo, como os demais ramos do Direito, absorve as tendências do momento histórico e da ideologia dominante, o que trouxe grandes repercussões na formatação e compreensão dos institutos processuais.

No passado, no Estado Liberal Clássico, o processo refletia a neutralidade do Estado, e era permeado pela faceta formal da igualdade, considerando-se as partes iguais perante a lei. O juiz adotava uma postura de passividade, com predomínio das partes no processo. O processo, na visão liberal tinha por características, a saber; 1. visão formal da igualdade; 2. neutralidade axiológica; 3. postura passiva e distante do juiz; 4. distribuição estática do ônus da prova; 5. primazia da tutela pecuniária (não se cogitava em tutela específica).

Com a industrialização e o surgimento de relações sociais mais complexas, passou-se a entender que o Estado não poderia se limitar a declarar os direitos formalmente, surgem dos direitos fundamentais de segunda geração, direitos sociais que exigem ações positivas do Estado, tais como a prestação de serviços públicos de previdência e assistência sociais, educação, cultura e saúde.

Nesta segunda dimensão, o direito à igualdade material ganhou destaque, não sendo suficiente a posição absenteísta do Estado[2], que tem o dever de garantir a justiça social.

A noção de igualdade substancial igualmente permeou o direito processual, cujo objeto deixou de ser apenas o poder-dever do exercício da jurisdição e seus institutos correlatos. E, nesse contexto, o direito fundamental de acesso à justiça passou a ser entendido como meio de efetivação dos direitos fundamentais:

O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental, o mais básico dos direitos humanos, de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar direitos de todos. (...).

O acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.

Sendo ultrapassados o Estado Liberal e o Estado Social que são representantes, respectivamente, do constitucionalismo moderno e social, atualmente se vivencia o Estado Constitucional, sob o paradigma filosófico do neoconstitucionalismo.

Apesar dos traços distintivos entre os países, o estágio atual do constitucionalismo, o chamado neoconstitucionalismo, tem por característica básica a combinação entre a supremacia normativa da Constituição Federal vigente, na qual está previsto um rol de direitos fundamentais (não mais apenas na vertente individual), e um sistema de controle de constitucionalidade, normalmente, jurisdicional, para garantir esta supremacia.

Entende-se por Estado Constitucional não simplesmente um Estado que possui Constituição federal (fenômeno quase universal), mas um Estado com qualidades identificadas pelo constitucionalismo contemporâneo, trata-se de um Estado de Direito e um Estado democrático, sendo necessárias essas duas qualidades.

E, de acordo com J.J. Canotilho, o Estado Constitucional[3] busca estabelecer uma conexão entre o Estado de Direito e a democracia, a fonte de legitimação do poder político.

Este é o paradigma vivenciado pelo sistema jurídico atual. Tais tendências neoconstitucionalismo, neoprocessualismo e Estado Constitucional estão interligadas e influenciam diretamente na concepção do acesso à justiça e na maneira de condução do processo civil.

Há uma releitura de institutos processuais, com a adoção de um modelo constitucional do direito processual civil, cujo resultado prático é a aplicação da teoria dos direitos fundamentais ao processo.

Por esta razão, entende-se ser mais adequada a expressão devido processo constitucional e, não apenas devido processo legal.

A necessidade da releitura do processo civil à luz dos direitos fundamentais, Daniel Mitidiero ressalto que o marco metodológico do Estado Constitucional transferiu o centro da teoria do processo da jurisdição (foco centrado no juiz, visão um tanto unilateral) para o próprio processo, ressaltando a sua dimensão essencialmente participativa.

Reconhece-se ser o processo ato de três pessoas (o autor, o juiz e o réu), potencializando o valor da participação e considerado uma manifestação da democracia.

Sob a ótica do Estado Constitucional, para ser legítimo, o processo deve ser fundado no diálogo, razão pela qual o princípio do contraditório, entendido como participação e influência, é considerado essencial. O processo não é mais visto como um duelo entre as partes e assistido pelo juiz, mas, pelo contrário, os sujeitos processuais são coautores da decisão final a ser tomada, constituindo uma comunidade de trabalho, em que todos possuem deveres, ônus e direitos.

Numa análise histórica, a origem se dá a partir da Idade Média europeia, quando a lógica do processo era assimétrica. A partir dos séculos XVII e XVIII, o velho mundo[4] iniciou uma desconstrução, no que se refere ao contraditório e ao processo em si, da dialética e da tópica argumentativa que afeiçoavam o ordo iudicarius medieval. Ao que alguns doutrinadores chamaram da era da geometrização do jurídico, onde o modelo de conhecimento era matemático.

Sobre esse fenômeno, Theodoro Jr. e Nunes, baseados no  ensinamento de Picardi, destacam que:  “[...] a transição do originário processo comum (extraído da  tradição italiana – Sécs. XIII a XV) ao Prozess-Ordnung da Prússia (1781) representa a passagem de uma ordem isonômica  (ordine isonômico) para uma ordem assimétrica (ordine assimétrico) com a decorrente redução do (atualmente chamado)  princípio do contraditório de fundamento ético e jus natural do  processo para uma ótima mecânica de contraposição de teses  (dizer e contradizer).”

Em verdade, havia uma baixa valorização do contraditório, tendo em vista a lógica burocrática, com a transformação da figura do juiz para um mero diretor do processo,  em que sua atividade se torna “[...] previsível, fungível e controlável, distanciando-se da dialética medieval, no qual o juiz deixa de ser responsável pelas suas decisões perante os cidadãos”

O contraditório, então, passa por um rebaixamento normativo, pois o julgador começa a se utilizar de um método lógico-científico para poder absorver um significado objetivo da  realidade, em detrimento das razões apresentadas pelas partes.  A prova testemunhal, por consequência, se torna hierarquicamente inferior à documental.

A segunda trajetória evolutiva, se dá a partir do início do século XIX, com a plena vigência do positivismo jurídico, momento em que o princípio do contraditório ainda se mantém desvalorizado. Nesse momento, foi reduzido a uma sistemática de contraposição de argumentos, isto é na bilateralidade de audiência, no mero dizer e contradizer.

Porém, o formalismo exacerbado acabava por aniquilar a substância do contraditório, pois essa bilateralidade se apresentava insuficiente para o efetivo cumprimento deste direito. E, nessa faz que perpassou o contraditório felizmente, começo a degringolar a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial com o advento do neoconstitucionalismo.

Aliás, para Paolo Comanducci trata-se de ideologia ou metodologia segundo uma classificação já formulada por Norberto Bobbio[5] em referência o positivismo jurídico que trouxe como mote uma revolução no campo constitucional.

A primeira onda trouxe uma Constituição invasora, caracterizada por positivar vasto catálogo de direitos fundamentais, por possui simultaneamente regras e princípios; e pelas peculiaridades de interpretação e aplicação das normas constitucionais, no que tange às normas infraconstitucionais. A segunda onda colocou a limitação do poder estatal em segundo plano, para sobrepor a garantia de direitos fundamentais, fazendo surgir, assim um neoconstitucionalismo de contrapoderes e um neoconstitucionalismo das regras.

A terceira onda em forma de metodologia, dirigiu a reaproximação do Direito à Moral, colocando os princípios constitucionais e os direitos fundamentais como ponte indispensável entre essas duas esferas. Naturalmente, esses movimentos trouxeram a necessidade a constitucionalização de garantias processuais.

Na Constituição brasileira de 1891 e 1934, por exemplo, não é possível visualizar ainda a previsão do contraditório, embora expressamente previsto o direito de ampla defesa na esfera criminal.

A premissa mais evidente que se tem do princípio, que só passou a ser conhecido a partir da Constituição de 1937, também conhecida como "A Polaca"[6].

Posteriormente, o princípio do contraditório na vigência da Constituição brasileira de 1967, a alteração trazida pela EC 01/1969 dispôs no capítulo IV, a partir do artigo 153, sobre os direitos e garantias individuais. Entre outros princípios e direitos, era previsto o direito à igualdade, à segurança jurídica, e ao princípio da legalidade.

E, nesse elenco estava previsto o processo em contraditório na instrução criminal. In litteris: Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a dos direitos  concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 16. A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior, no relativo ao crime e à pena, salvo quando agravar  a situação do réu. (BRASIL, 1969)

Ainda na época da temida ditadura militar brasileira, ainda sob a vigência da Constituição Federal de 1967, fora promulgado o Código de Processo Civil (Lei 5.869/1973) até hoje vigente no país. Assim um diploma legal permeado pela visão liberal do processo, o que fora parcialmente modificado pelas reformas sucessivas e ocorridas ao longo dos anos, sem, contudo, ter havido uma mudança na essência do codex.

Por outro lado, a promulgação da Constituição Federal de 1988 representou, além da vitória da democracia, a adoção pelo Brasil da concepção do Estado Constitucional, mediante a conjugação das qualidades de Estado de Direito e Estado de Democrático (artigo 1, caput, CFRB/1988). E, aliado isto, no paradigma neoconstitucialista, reconhece-se a plena força normativa dos preceitos constitucionais, com profundas influências no direito processual.

O artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal de 1988 ampliou consideravelmente o direito ao contraditório, ao estender o âmbito de incidência a todos os processos judiciais e administrativos (antes restrito à instrução criminal): aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, como os meios e recursos a esta inerentes.

Desta forma, o contraditório passa a ser identificado como manifestação do princípio do Estado Democrático de Direito, intimamente ligado ao direito de ação, participação e à igualdade entre as partes.

Para Nelson Nery Jr., o contraditório tem dois elementos, a saber:  1) a necessidade  de dar conhecimento da existência da ação e dos atos processuais; e 2) a possibilidade de  reação pelas partes (conceito entendido em sentido amplo, de qualquer  pessoa que ostente uma pretensão no processo) em face dos atos que lhes sejam  desfavoráveis. Nas palavras do autor:

Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes e, de outro, a possibilidade de as  partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis

O princípio do contraditório ou da audiência bilateral corresponde-se à garantia fundamental de justiça e está intimamente ligado ao exercício do poder. O princípio da audiência bilateral seria uma decorrência do dever de imparcialidade e equidistância do juiz em relação às partes: em um processo dialético, o magistrado escuta a tese, a antítese e, depois elabora a síntese (decisão ou sentença). Apesar de as partes defenderem seus interesses, não possuem papéis antagônicos, mas de colaboradores necessários para a eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve. O contraditório, para tais doutrinadores, possui dois elementos: informação e reação.

Para a doutrina tradicional, o contraditório é concebido como o direito à ciência/informação/comunicação ou bilateralidade de audiência das partes. A tempestiva citação do réu e a intimação do autor processuais são consideradas, para a doutrina clássica, mecanismos suficientes para a fiel observância do contraditório.

Nesse paradigma, nota-se que o primeiro elemento do contraditório é a informação e, o segundo, a possibilidade de reação contra os atos desfavoráveis.

Limitar o conteúdo do princípio do contraditório a esses dois elementos pressupõe, entretanto, uma visão individualista do processo, uma vez que esta garantia processual teria por finalidade apenas possibilitar às partes reagir ou evitar posições desfavoráveis aos seus interesses.

Em outras palavras, sob essa perspectiva, o contraditório destina-se exclusivamente àqueles que podem ter a esfera jurídica afetada pelo processo; justifica-se a necessidade de citação, intimação ou comparecimento da parte para que ela, de alguma forma, possa se defender contra situações desvantajosas, seja prévia ou repressivamente.

Nessa concepção, o exercício do contraditório relaciona-se a um dano potencial a ser suportado pela parte com a decisão judicial. O contraditório estaria vinculado à possibilidade da ocorrência de um dano patrimonial; para quem não corre o risco de suportar qualquer dano (quem não será afetado pelo Processo), não há que se cogitar em contraditório.

Resta evidenciada, portanto, a conotação individualista do contraditório clássico, visto que estaria relacionado à proteção da esfera de direitos das partes envolvidas, e não à participação na construção das decisões ou à legitimação dos provimentos jurisdicionais.

Além disso, a concepção tradicional, ao restringir o princípio do contraditório ao binômio informação-reação, considera ser a aplicação do direito tarefa exclusiva do magistrado, e não fruto de uma construção legitimada pelo diálogo cujos coautores são todos os sujeitos processuais.

De fato, da célebre afirmação de que o autor traz aos autos a tese, o réu a antítese, formalizada na contestação, e o juiz chega à síntese, pode-se extrair o retrato assimétrico do processo civil, em que as partes fornecem os subsídios para resolução do conflito, a qual é alcançada ou descoberta de maneira solitária pelo juiz.

Esta é a visão do contraditório estático, que somente pode atender a uma estrutura procedimental ontologicamente dirigida perla perspectiva unilateral de formação de provimento judicial pelo juiz.

Por outro lado, no Estado Constitucional, o processo revela a feição participativa da democracia, razão pela qual o direito à tutela jurídica efetiva também consiste em uma garantia fundamental de participação. Busca-se um processo efetivo e equânime, interpretado à luz da Constituição e dos direitos fundamentais. Contraditório e isonomia são direitos informativos do processo civil intimamente relacionados, uma vez que o caráter  dialético do processo deve atuar com  igualdade de oportunidades, com intervenção constante e equilibrada das partes.

Assim, o contraditório não é mais concebido apenas como bilateralidade de audiência e possibilidade de reação. A ciência ou comunicação dos atos processuais é considerada a faceta formal do contraditório, ao lado da faceta substancial, consistente na participação com possibilidade de influência na decisão judicial. O aspecto substancial consiste, portanto, no poder de influência para construção da decisão, com nítido caráter preventivo na formação do convencimento.

É bom recordar que o contraditório é considerado a manifestação substancial do Estado Democrático e Constitucional materializado no processo. Assim, o trâmite processual deverá necessariamente contar com a possibilidade de efetiva participação dos envolvidos, não apenas restrita à comunicação ou ciência dos atos processuais, mas entendida também como a possibilidade de influência no convencimento do juiz.

Para Luiz Guilherme Marinoni, o contraditório consiste em uma expressão técnico-jurídica do princípio da participação, uma vez que o poder para ser legitimamente exercido deve estar aberto à participação, forma de legitimação das democracias.

Na mesma direção é o posicionamento Hermes Zanetti Junior considera o contraditório elemento essencial para o conceito de processo, por se apresentar valor-fonte do processo democrático, estando intrínseca à noção de contraditório a possibilidade de interveniência do destinatário na formação da decisão.

De fato, partindo da premissa de que a participação integra o conteúdo do contraditório, e que este princípio é a expressão da democracia do processo, chega-se à conclusão de que a faceta puramente formal do contraditório (comunicação/ciência) não é suficiente para definir este princípio.

Tal afirmação ganha maior força se inserida no contexto do neoprocessualismo, cujo enfoque reside na proteção dos direitos fundamentais processuais. Assim, o princípio do contraditório deve ser entendido sob os dois aspectos; formal ou básico e substancial ou material.

O aspecto formal do contraditório relaciona-se com a comunicação no processo - audiência, informação, ciência dos atos processuais – e a possibilidade de reação. Consoante visto, a doutrina clássica comumente entende que a efetivação do contraditório se dá unicamente pela observância do binômio informação-reação.

A faceta substantiva da garantia consiste, por sua vez, na possibilidade de influência no convencimento do órgão julgador. O contraditório não se implementa apenas com a ouvida ou ciência da parte, sendo necessário também lhe assegurar a possibilidade de influenciar na decisão a ser tomada pelo juiz, a fim de evitar “decisões surpresa”. A democracia pressupõe participação para legitimar  o Estado e o exercício do poder. Transmudada esta noção para o processo civil, as partes têm o direito de participação e de influência na construção da decisão judicial, sendo coautoras deste produto juntamente com o órgão julgador.

No Estado Constitucional – Estado de Direito e Estado Democrático –, a decisão não é vista como fruto do saber solitário do juiz. Pelo contrário, para se cogitar em decisão legítima, é preciso haver participação das partes, destinatárias da decisão e coautoras dela

A necessária participação das partes em simétrica paridade para uma jurisdição efetivamente justa [...] passa pela questão da qualidade das decisões judiciais, e, consequentemente, pela legitimidade de tais decisões.

E tal legitimidade só é efetivada por via de um procedimento realizado em contraditório, para que seja superada a visão de que a justiça seja produto da ‘clarividência do julgador, sua ideologia ou magnanimidade’.

Assim, além da preocupação com a prestação jurisdicional tempestiva e eficiente, o processo deve ter um caráter eminentemente dialético, com ampla participação das partes. Essas e o juiz devem cooperar na busca da solução para o litígio, formando uma “comunidade de trabalho”, em que o magistrado e as  partes adotem uma postura ativa, equilibrada e cooperativa. O monólogo judicial é, então, substituído pelo diálogo participativo.

Nesse contexto, o juiz não ocupa mais o lugar central da prestação jurisdicional; ao contrário, é um dos componentes necessários, mas não o único ou principal.

Por esta razão, defende-se que a decisão judicial, para ser legítima, deixou de ser verticalizada e heterônoma, passando a ser horizontal e autônoma, construída em simétrica paridade de participação entre as partes, advogados, Defensores Públicos e Ministério Público

Para Antônio do Passo Cabral, a ruptura com o conceito tradicional do contraditório (binômio informação-reação) está relacionada ao exercício da democracia através do discurso, a adoção da democracia deliberativa.

Sob este paradigma, os indivíduos não são considerados objetos das decisões estatais, uma vez que estas são produto de uma: discussão argumentativa pluralista, retirando do indivíduo a condição de súdito (que se submete) para o status de ativo coautor da elaboração da norma, verdadeiramente cidadão e partícipe desse processo.

O princípio do contraditório deve, então, ser visto sob este enfoque: consiste na manifestação da democracia no processo; impõe ao juiz o dever de dialogar com os demais sujeitos processuais (o juiz também é sujeito do contraditório) e garante o exercício do direito de influência, além do binômio tradicional ciência-reação.

Ao enfatizar a importância do contraditório e a necessidade de se garantir a paridade de armas ou a “paridade de condições”, Igor Raatz dos Santos defende ser o processo cooperativo uma alternativa para redução das desigualdades na relação processual.

Para ele, sem a utilização constante de mecanismos com vistas a diminuir as desigualdades entre as partes, não apenas o contraditório será ineficaz, mas todos os direitos fundamentais de um processo justo correm o  risco de serem artificiais e insuficientes para assegurar a efetiva participação no  processo.

Acrescente-se como consequência lógica da faceta substancial do contraditório o direito de a parte ver seus argumentos considerados e apreciados pelo órgão julgador ao proferir a decisão, com íntima conexão com o dever de fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, IX da Constituição Federal).

Considerando ser o juiz também sujeito do contraditório, a título exemplificativo, o princípio do contraditório tem abrangência dupla, mas significa também que o próprio juiz deve participar da preparação e do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório. A garantia resolve-se, portanto, num direito das partes e em deveres do juiz. (In: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil. vol.1. São Paulo: Saraiva, 2007).

Pode-se afirmar que o contraditório consiste na manifestação processual do direito de participação e de influência (características da democracia) na busca do processo em um sistema dialético e de cooperação, evitando-se surpresas processuais às partes.

O juiz pode conhecer de ofício matérias de fato e de direito e, apreciar livremente a prova produzida nos autos pelas partes, desde que indique de modo fundamentado as razões do seu convencimento.

Trata-se da adoção do princípio do livre convencimento motivado do órgão julgador. Sobre o tema, vide os artigos 131 e 462 do CPC.

Os dispositivos retromencionados não deixam dúvidas de que o juiz poderá considerar matérias de fato e de direito ex officio. Entretanto, questiona-se, ao conhecer de ofício matéria ainda não discutida nos autos, o magistrado precisa ouvir previamente as partes ou não. Por muito tempo, e até mesmo hoje em dia, defendeu-se ser desnecessária a prévia intimação das partes nesses casos, postura que não mais se sustenta no âmbito da proteção dos direitos fundamentais processuais e do processo cooperativo.

Em relação ao reconhecimento de ofício de questões jurídicas pelo magistrado, usualmente são lembrados os brocados romanos da mihi factum, dabo tibi jus (dá-me o fato e te darei o Direito) e iura novit curia (o juiz conhece o direito).

Tais postulados seriam suficientes para justificar a possibilidade de o julgador conhecer de ofício questões jurídicas não ventiladas pelas partes. O juiz, diante do dever de decidir (proibição do non liquet), tem o poder-dever de aplicar ao caso a norma jurídica que entender mais pertinente, mesmo que ela não tenha  sido suscitada pelas partes.

A possibilidade de o juiz conhecer matérias fáticas ou de direito não trazidas pelas partes não se confunde, entretanto, com a necessidade de observância  do contraditório também nesses casos. O juiz não pode decidir com base em questão sobre a qual as partes não tiveram a oportunidade de se manifestar, pois quanto a isto não houve participação, nem possibilidade de influência na construção da decisão.

Em observância ao aspecto substancial do contraditório, os litigantes não  podem ser surpreendidos com uma decisão que leve em conta matéria não discutida nos autos, razão pela qual o juiz deve possibilitar a manifestação das partes e  o exercício do direito de influenciar a formação do convencimento, para, apenas  depois, proferir a sentença/decisão.

A proteção contra decisões surpresa, ou proteção contra a surpresa é vista como o direito da parte à previsibilidade do processo em relação ao conteúdo da decisão jurisdicional. Trata-se de limite imposto ao órgão julgador: somente pode servir de fundamento da decisão aquele elemento que tiver sido previamente discutido pelas partes no processo. Este limite incide também nos casos de conhecimento de matérias de ofício

A doutrina brasileira apesar de ainda pouco expressiva, começa a defender a existência no processo cooperativo do dever de consulta do juiz, segundo o qual se impõe ao órgão julgador a prévia consulta às partes antes conhecer matéria de fato ou de direito sobre a qual elas não tenham tido a oportunidade de se pronunciar.

O objetivo é, justamente, evitar decisões surpresa, e, com isso, resguardar a faceta substancial do contraditório e o direito de participação das partes.

Permanece presente o dever de consulta do juiz e está intimamente ligado ao princípio do contraditório, cujo núcleo essencial é a participação não apenas fictícia, mas também compreende o direito de a parte se pronunciar e influir na formação do provimento jurisdicional.

Nesse sentido, o juiz deve colocar para as partes as questões de fato reveladas de ofício antes de decidir sobre elas, bem como submeter os litigantes a norma por eles não suscitada, dando ensejo à discussão a possibilidade de aplicá-la ao caso concreto.

Pode-se ainda citar, como exemplos, a declaração incidental de inconstitucionalidade de uma norma e o reconhecimento de ofício da prescrição.

O juiz pode, como fundamento da decisão, declarar a inconstitucionalidade de uma norma, visto que o Brasil adotou o sistema misto de controle de constitucionalidade concentrado e difuso. O magistrado pode fazer isto mesmo que as partes não tenham alegado a inconstitucionalidade em qualquer momento no

curso do processo, mas, para tanto, deve intimá-las para que se manifestem sobre a constitucionalidade da norma, sob pena de afronta ao princípio do contraditório. Esta intimação não significa prejulgar o caso, mas efetivar o contraditório substancial, possibilitando que as partes influenciem na formação da decisão.

Da mesma forma, nos termos do artigo 219 § 5º do Código de Processo Civil, o juiz pronunciará de ofício a prescrição. Entretanto, se as partes em momento algum do processo mencionaram esta matéria e o juiz verificar o transcurso so do lapso prescricional ao sentenciar, em respeito ao princípio do contraditório, ele não pode extinguir o processo com base na prescrição sem antes ouvir as  partes.

A observância da faceta substancial do contraditório impõe a prévia oitiva  das partes para que elas possam influenciar no convencimento ou trazerem, por  exemplo, uma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição.

Assim, antes de proferir a decisão – de mérito ou processual - com base em matéria jurídica ou fática não trazida aos autos, deve ser oportunizada a manifestação das partes, para que exerçam o direito à participação e influência no  processo.

Interessante a observação trazida por Didier Junior de que, nesses casos, a simples possibilidade de a parte apresentar recurso contra a sentença que se  utilizou de fundamento jurídico não discutido nos autos não sana a violação ao  contraditório.

Isto porque o recurso é uma forma de discutir novamente a matéria, e não de discuti-la pela primeira vez. Não se está falando que o duplo grau de jurisdição é um princípio obrigatório, mas, quando houver previsão de dois (ou mais) graus de jurisdição para análise da causa, esse direito não deve ser negado à parte.

Na legislação estrangeira, o Código de Processo Civil de Portugal[7] (PORTUGAL, 1961) traz sobre o assunto interessante dispositivo (artigo 3º, número 3).  Eis o teor de todo o artigo 3º do CPC português: Necessidade do pedido e da contradição

1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Percebe-se que o diploma português diferencia adequadamente duas questões: 1) possibilidade de conhecimento de ofício de questões de fato e de direito, e 2) necessidade de efetivar o contraditório (ciência e oportunidade de influência) antes da decisão.

Além disso, explicita que o conteúdo mínimo do princípio  do contraditório não se limita à ciência bilateral dos atos e à possibilidade de  contraditá-los, mas também inclui necessariamente a (possibilidade de) influência efetiva das partes na formação do provimento judicial. Para tanto, deve-se oportunizar a prévia apresentação de provas, alegações e manifestações sobre matérias de fato e de direito, relativas ao mérito ou ao rito processual.

A legislação alemã também positivou o contraditório substancial e a necessidade de o juiz intimar as partes acerca de questões de fato e de direito a serem conhecidas de ofício: § 139 do ZPO[8]: (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se  tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe dado  oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária.

Isso vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito de questões a serem consideradas de ofício.

Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.

3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

4 - Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na  audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

Trata-se de dispositivo bastante claro quanto à consagração das facetas formal e substancial do contraditório, bem como da imperiosa necessidade de as partes se manifestarem acerca de questões a serem reconhecidas de ofício pelo juiz.

Da mesma forma, o Código de Processo Civil francês dispõe:  Artigo 16: O juiz deve, em todas as circunstâncias, fazer observar e observar ele mesmo o princípio do contraditório.

Ele só pode considerar em sua decisão os recursos, as explica- ções e os documentos invocados ou produzidos pelas partes que foram capazes de serem debatidas contraditoriamente.

Ele não pode fundamentar sua decisão sobre os re- cursos de direito que ele obteve sem previamente ter convidado as partes a apresentar suas observações.

Interessante perceber que a legislação francesa, além de determinar ser vedado ao juiz fundamentar a decisão em elemento sobre o qual as partes não  tiveram a oportunidade de se manifestar, explicita que o magistrado, ele próprio,  deve observar o princípio do contraditório.

Significa estar o juiz inserido no diálogo processual, devendo debater os pontos controvertidos com as partes, e não apenas assistir ao duelo entre elas e depois proferir a decisão construída solitariamente.

Pelo contrário, o juiz deve dialogar em condição de paridade com as partes, assumindo postura assimétrica apenas no momento da decisão.

Por esta razão, entende-se acertada a distinção feita por Daniel Mitidiero sobre a dupla posição do juiz em relação às partes no processo cooperativo. Na condução feito, deve-se ter um juiz isonômico e paritário no diálogo; na decisão das questões processuais e materiais, ele assume uma postura assimétrica, em  decorrência de ser a decisão judicial um ato de poder do Estado.

A assimetria  na tomada de decisões não deve ser compreendida como construção isolada da  decisão, mas como consequência do caráter imperativo das decisões judiciais,  apesar de terem as partes tido oportunidade de discutir os fatos e elementos normativos relevantes para formação do convencimento.

Percebe-se que o dever de diálogo do juiz já é reconhecido pela doutrina, em virtude da adoção do modelo constitucional do processo, bem como do seu  caráter democrático e participativo.

De fato, a ausência de previsão legal expressa quanto ao dever de consulta não significa estarem permitidas no processo civil brasileiro as decisões surpresa, visto que a necessidade de prévia intimação  das partes acerca de matéria ainda não discutida nos autos decorre diretamente  do aspecto substantivo do princípio do contraditório, que consagra o direito de  influência.

Noutras palavras, o fato de o CPC vigente não conter previsão expressa sobre a necessidade de intimação das partes antes de o juiz proferir decisão com base em matéria reconhecida ex officio e não discutida nos autos não dispensa tal providência. isto porque a previsão constitucional do contraditório contém força normativa incidente sobre o processo civil.

E, conforme visto, a faceta substancial do contraditório consiste na possibilidade de a parte influenciar na formação do provimento judicial, ostentando a condição de coautora, e não apenas destinatária da decisão.

Restam vedadas, em resumo, as decisões surpresa diante do direito conferido às partes de participarem em simétricas condições na resolução do conflito.

Noutro sentido, é o Código Fux que apresenta expressamente a faceta substancial no artigo 10, apesar de não utilizar esta nomenclatura. De acordo com o referido projeto de lei e no caminho já trilhado por legislações estrangeiras, é vedado a qualquer órgão jurisdicional decidir com base em fundamento sobre o qual as partes não tenham tido oportunidade de se manifestar mesmo que se trate de matéria de reconhecimento de ofício.

Trata-se de avanço significativo no texto da legislação brasileira, o qual demandará mudança de pensamento de vários operadores do direito, que comumente confundem a possibilidade de conhecimento de matérias ex officio com a  necessidade de respeitar o direito de influência das partes no processo, a chamada faceta substancial do contraditório.

O princípio do contraditório, tradicionalmente identificado como direito à ciência dos atos processuais ou bilateralidade de audiência, não é mais visto sob o enfoque meramente formal. Pelo contrário, sendo um dos componentes do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, demanda também a observância cia do seu aspecto substantivo, consistente no poder de influência das partes na formação do convencimento do juiz.

Partindo-se do pressuposto de que o princípio do contraditório é constituído pelo binômio participação-influência, buscou-se, através do presente trabalho, discutir o conhecimento de matérias de ofício pelo juiz à luz deste princípio constitucional.

Nos termos do artigo 131 e 462 do Código de Processo Civil de 1973 (artigo 371 CPC/2015 e artigo 493 CPC/2015[9]), não há dúvidas de que, no exercício do livre convencimento motivado, o juiz pode conhecer de ofício matéria de fato e de direito para julgar a causa que lhe é posta.

Nesse contexto, buscou-se diferenciar a possibilidade de conhecimento de questões ex officio e o respeito à faceta substancial do contraditório. Viu-se que  as legislações de Portugal, da Alemanha e da França fazem esta distinção de maneira expressa, ao consagrarem a necessidade de o magistrado, antes de levar em consideração matéria não discutida anteriormente nos autos, conferir às partes oportunidade de se manifestarem. Trata-se de garantia contra decisões surpresa e de imposição do dever de consulta ao órgão julgador.

O primeiro documento internacional que elencou como fundamental os direitos humanos processuais foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que é o documento legal mais traduzido do mundo (em mais de quinhentos idiomas). Onde há expressos artigos com conteúdo inteiramente processual como são os artigos 8º e 10º.

Diversos outros tratados, declarações, convenções sobre direitos humanos que tiveram o cuidado de prever diversas garantias processuais como reais direitos humanos, são eles: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Político; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; a Convenção Europeia dos Direitos do Homem; a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Como corolário do devido processo legal, portanto, o contraditório é também um direito humano processual.  É como pensa Fredie Didier Jr., quando afirma que: “Praticamente todas as Constituições ocidentais posteriores à Segunda Grande Guerra Mundial consagram expressamente direitos  fundamentais processuais. Os tratados internacionais de direitos humanos também o fazem (Convenção Europeia de Direitos do Homem e o Pacto de São José da Costa Rica são dois  exemplos paradigmáticos). Os principais exemplos são o direito fundamental ao processo devido e todos os seus corolários (contraditório, juiz natural, proibição de prova ilícita etc.).

No Brasil, apesar de ainda não existir previsão expressa no Código de Processo Civil nesse sentido, a vedação a decisões surpresa pode ser extraída diretamente do princípio constitucional do contraditório em seu aspecto substancial.

Por esta razão, o juiz não pode proferir qualquer decisão – de mérito ou de rito - com base em matéria reconhecida de ofício, sem antes determinar a  intimação das partes para que possam se manifestar e, com isso, influenciar na formação do provimento.

Existe uma série de fatores que foram decisivos para que o contraditório voltasse a ser o elemento primordial do processo como a revitalização dos estudos da lógica entre os sujeitos processuais.

A percepção de que a decisão do juiz não é mera declaração da vontade do legislador[10] e de que intérprete também participa da construção da norma naturalmente gera uma visão de que as partes que serão afetadas por essa decisão precisam ter seus argumentos considerados.

Ressalte-se a relevância da doutrina de Fazzalari[11] que encarou o contraditório como direito de participação em igualdade na preparação do provimento simétrico, com paridade de armas. Cumpre destacar a crítica pertinente de Peter Häberle sobre o monopólio da interpretação pelo Estado, in verbis: “[...] todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente um intérprete dessa norma.

O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. (In: HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 2002).

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Notas:

[1] A cooperação, inclusive, foi encartada no Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 6º, como um dever de todos os sujeitos do processo para o fim de obtenção de decisão de mérito justa e efetiva.  Evidentemente que, nessa nova visão4, há um enfoque maior no contraditório, em especial no direito das partes de influenciar a decisão judicial tomada e de não serem pegas de surpresa com decisões sobre questões ainda não discutidas previamente.

[2] Estado Mínimo nada mais é do que o entendimento que o papel do estado na sociedade deve ser o mínimo possível para que o Estado consiga entregar  serviços públicos de qualidade para a sociedade, com maior eficiência, deixando apenas nas mãos de iniciativas privadas funções consideradas não essenciais. Para o filósofo e ex professor da Universidade de Harvard Robert Nozick, Estado Mínimo era: “Minhas conclusões principais sobre o Estado são que o Estado Mínimo, limitado às estreitas funções de proteção contra a violência, o roubo e a fraude, ao cumprimento de contratos etc., se justifica; que qualquer estado mais abrangente violaria o direito das pessoas de não serem obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica; que o Estado Mínimo é inspirador, assim como correto” (Nozick,1990).

[3] Para Canotilho (2003), o constitucionalismo “é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”. Classicamente, há três formas de estado: a unitária, a federação e a confederação. Quando só há um centro de poder, ou seja, apenas um órgão legislativo, executivo e judiciário, temos o estado unitário.

[4] Itália, Corte de Cassação, n.15.705, 07/2005, na qual a Corte fazia uma interpretação dogmática no plano da infraconstitucionalidade. Não pode, de fato, ser pronunciada a nulidade por inobservância dos atos do processo - leia-se na motivação da reclamada pronúncia 0 se a nulidade não é cominada pela lei: uma disposição em tal sentido falta no artigo 183 CPC como sanção da omissa indicação às partes das questões conhecíveis de ofício.

[5]  O saudoso Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários  do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia,  não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. ” Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,  são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas  liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”

[6] Na Constituição Polaca que o princípio do contraditório teve uma previsão expressa no texto no artigo 122, também reduzido à seara do processo penal. E, a mesma restrição se repercutiu nas Constituições de 1946 (artigo 141, §25).

[7] PORTUGAL, Supremo Tribunal de Justiça. Recurso 10.361/01. Rel. Conselheiro Ferreira Ramos. j. 15.10.2002. Data do acórdão: 15.10.2022, Lisboa. Disponível em: http://www.stj.pt. Em sentido idêntico: 1. Como decorrência do princípio do contraditório, consagrado entre outros, no artigo 3º, n.3, do CPC, é proibida a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada  em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. A violação do princípio do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artigo 201, n.1. do CPC, não constituindo nulidade de que o Tribunal conhece oficiosamente, pelo que se tem por sabada se não for invocada pelo interessado no prazo de dez dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo (arts. 203, n.1, 205, I do mesmo diploma). Portugal, STJ, Recurso de Revista 8802/02, Rel. Conselheiro Araújo Barros, 2005.

[8] Na Alemanha, após a segunda grande guerra, o conteúdo da cláusula estabelecida no artigo 103, §1º da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, como pretensão de audição jurídica e foi interpretada de modo a garantir um alcance maior que a simples literalidade. O Tribunal Constitucional Federal alemão passou a afirmar que o dispositivo não só operava seus efeitos no confronto entre as partes, mas, sim, convertia-se, também num dever para o magistrado, de modo que se atribuía às partes a possibilidade de posicionar-se sobre qualquer questão de fato ou de direito, de procedimento ou de mérito, de tal modo a poder influir sobre o resultado dos provimentos. Ao magistrado é imposto o dever de provocar o debate preventivo, com as partes, sobre todas as questões a serem levadas em consideração nos provimentos judiciais.

[9] O CPC/2015, em seu texto, trouxe regra específica sobre a temática. É o que se pode extrair do enunciado do art. 9º, caput: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.”.  Ocorre que o próprio artigo, em seu parágrafo único, já previu exceções à referida regra, em que se permite proferir decisão sem a oitiva da parte contrária ou, em latim, inaldita altera  parte: a) nos casos de tutela provisória de urgência (inc. I); b)  nas hipóteses de tutela de evidência (inc. II); e c) na decisão que  determina a expedição de mandado monitório, na ação monitória  (inc. III).

[10] Como salientou Donizetti mais uma vez o legislador pátrio deixou a consagração do direito ao contraditório na sua dimensão material, impondo, nesse caso, verdadeiro limite à atuação jurisdicional. (DONIZETTI, E. Novo Código de Processo Civil Comentado (Lei 13.105, de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC/1973. São Paulo: Atlas, 2016.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito Processual Contraditório CF/88 Comparticipação Dialética Processual Estado Democrático

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