Biografia do Bruxo. Magia ou feitiço?[1]
Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Entre as mais importantes biografias de Machado de Assis já publicadas estão os trabalhos de Alfredo Pujol (Machado de Assis, 1917); Lúcia Miguel Pereira (Machado de Assis – estudo crítico e biográfico, 1936); Manuel José Gondim da Fonseca (Machado de Assis e o hipopótamo, 1960); Luís Viana Filho (A vida de Machado de Assis, 1965); Jean-Michel Massa (A juventude de Machado de Assis 1839-1870, 1971); Raimundo Magalhães Júnior (Machado de Assis – vida e obra, 1981); e Daniel Piza (Machado de Assis – um gênio brasileiro, 2005). Machado de Assis faleceu no Rio de Janeiro, no dia 29 de setembro de 1908. Em seu velório, compareceram as maiores personalidades do país. Rui Barbosa[2], um dos juristas mais aplaudidos da época, fez um discurso de despedida com elogios ao homem e escritor.
A vida de Machado de Assis[3] situou-se em 1838, quando
o Rio de Janeiro era a capital do país contendo apenas trezentos mil
habitantes, em grande parte escrava, sendo iluminada por lampiões a óleo de baleia,
com transporte precário movido por tração animal e tendo farto ambiente
insalubre pelas ruas estreitas. Todas as belezas naturais estavam sufocadas por
falta de higiene. Havia apenas quatro canais que levavam os esgotos para o mar
e os mangues.
Não existiam fossas
sanitárias. Dejetos domiciliares, incluindo fezes que eram levados para as praias em carroças ou em
tonéis carregados na cabeça por escravos (os chamados tigres, de quem todos
fogem apavorados por causa do cheiro nauseante e do receio de um tropeço ou
esbarrão que pode respingar fezes nos pedestres e nas ruas).
As doenças epidêmicas mataram
muitas pessoas e, os morros cariocas abrigavam estabelecimentos militares,
religiosos e os ricos, com suas chácaras e casarões, os pobres serão expulsos
para lá somente a partir da virada do século XIX para o XX.
O Morro do Livramento abrigava
uma grande família rica de origem portuguesa, com muitos agregados e escravos.
Um dia, chega ali o pintor de paredes e dourador Francisco José de Assis, um
“pardo forro”, de 32 anos, para prestar serviço.
Logo conheceu e se apaixonou
pela imigrante açoriana Maria Leopoldina Machado da Câmara, de 26 (vinte e
seis) anos, que veio menina com a família para o Brasil. Ela costurava, bordava
e fazia outros trabalhos como agregada no casarão.
Eles se casaram em 19 de agosto e 10 (dez) meses
depois, em 21 de junho de 1839, nasceu Joaquim Maria Machado de Assis, que
recebeu o nome em homenagem aos padrinhos. O garoto terá infância pobre e
difícil, porque a mãe morrerá de tuberculose quando ainda tiver 9 (nove) anos,
e também sofrerá crises de epilepsia.
Ainda no Rio de Janeiro, 1908.
Em meio ao alargamento das avenidas e às medidas de saneamento para combater
epidemias, o consagrado escritor Machado de Assis, fundador e presidente da
Academia Brasileira de Letras o que revolucionou a literatura brasileira com
realismo e forte crítica social em obras fundamentais como “Dom Casmurro”, “Memórias
póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Faleceu, aos 69 (sessenta e nove)
anos, em 29 de setembro[4].
Junto ao caixão, Rui Barbosa,
o orador supremo da época, escalado como porta-voz da ABL, deu sua definição de
Machado de Assis: "Eu quase não sei
dizer mais. [...] Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o
árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é
o joalheiro do verso. É o exemplar, sem rival, entre os contemporâneos da
elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer; é o
que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom".
A sua obra apesar de
escancarar a escravidão e o racismo e das feições afrodescendentes delineadas
por sua máscara mortuária, em seu atestado de óbito constou que ele era branco.
Assim, começou a construção de uma farsa. Um branco, elitista, um “europeu heleno”. E
mais ainda, na visão de seus críticos,
indiferente à escravidão em sua vida e em sua obra.
Durante um século, esse será o
perfil de Machado de Assis imposto por uma elite branca à cultura brasileira.
Afinal, como o maior escritor brasileiro poderia ser afrodescendente num país
com racismo estrutural?, indaga o professor Eduardo de Assis Duarte, do
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da UFMG.
Para afastar de vez essa
falácia biográfica e resgatar o Machado verdadeiro, Eduardo de Assis Duarte
acabou de lançar a terceira edição, revista e ampliada, do livro Machado de
Assis afrodescendente[5].
Escreveu uma antologia
completa sobre a afrodescendência machadiana, reunindo crônicas, contos, críticas
de teatro publicadas em jornais, poemas[6] e trechos de romances
sobre o tema. Compõem a obra também detalhadas análises críticas dos textos de
Machado relativos à questão étnica.
O resultado é uma obra
brilhante, perene e singular, digna de consulta para o meio acadêmico e
essencial também para o leitor comum sobre a extensa e profunda crítica de
Machado à elite branca, à escravidão e a outras injustiças do seu tempo.
Com análises concisas e
exemplos contundentes, o professor Assis Duarte desconstruiu o perfil branco e
europeu de Machado e, mais ainda, o propalado absenteísmo em relação à
escravidão, ao racismo e ao sistema produtivo reinante.
“Indagar a respeito da porção
afrodescendente de Machado de Assis até recentemente soava estranho para muitos
de seus leitores. Não só as literaturas lusófonas do século XIX foram, desde
sempre, consideradas espaço esteticamente branco, onde pontificam heróis
construídos a partir de uma perspectiva europeia, portadora quase sempre de uma
axiologia cristã, mas, também a própria tradição literária que vige no Brasil
nos remete à Europa e não à África”, diz o professor na obra.
“Tais lugares-comuns, somados
à ausência de um herói negro em seus romances, fundamentam em grande medida a
tese do propalado absenteísmo machadiano quanto à escravidão e às relações
interétnicas existentes no Brasil do século XIX”, avalia o autor.
Epiléptico e gago, Machado de
Assis foi vendedor de balas e sacristão da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa,
uma irmandade negra, na Avenida Passos, no Centro. Ele nunca frequentou escola
ou faculdade, mas foi considerado um dos mais brilhantes autodidatas do seu
tempo.
Ao longo do século XX, foram
cometidos muitos equívocos sobre a descendência e a obra de Machado[7], lembra o professor,
principalmente devido ao estilo dissimulado em tratar temas como a escravidão
em sua obra. “De fato, nada mais adverso à escrita de autor-caramujo,
especialista em disfarces de toda ordem, do que o projeto de uma literatura
missionária e panfletária”, ressalta.
Afrodescendente em pleno
período escravista, escrevendo em jornais lidos pela elite, trabalhando em
empregos públicos e vivendo de aluguel, era natural que Machado não tivesse uma
atuação militante e panfletária, ressaltou Eduardo de Assis Duarte.
O livro de Eduardo de Assis
Duarte destaca, então, trechos representativos do tema em Ressurreição (1872),
Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Casa
Velha (1886), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó[8] (1901) e Memorial de Aires
(1908) e ainda de crônicas, contos e poemas de todas as fases da vida de
Machado.
Em seu livro “Anjo Rafael”,
Machado de Assis previu a existência da doença mental folie à deux[9]
(delírio a dois, em português) antes de ela ser descrita. A obra conta a
história de uma filha que é “contagiada” pela loucura do pai, enlouquecendo
também. Anos depois da publicação, o mal foi descoberto por pesquisadores. Como
se não bastasse, o brasileiro também descobriu a cura para a doença: afastar a
pessoa saudável de quem tem o problema mental.
Essa edição ampliada inclui,
inclusive, o conto A mulher pálida, a curiosa história de um rapaz que procura
a mulher mais pálida do mundo para se casar, uma sátira à eterna obsessão
brasileira pela branquitude europeia.
A respeito da afrodescendência
de Machado de Assis é ainda polêmica, pois não apenas as literaturas lusófonas do
século XIX foram, habitualmente, consideradas um locus esteticamente
branco, onde despontavam heróis construídos, a partir de perspectiva europeia e
dentro da axiologia cristã, mas igualmente, seguiu assim a tradição literária
brasileira.
Quanto a barba e o bigode que
eram quase obrigatórios entre os homens do seu tempo, teria como fito o
disfarce de traços negroides . Além de cogitar em polêmicos retoques para
branquear[10]
a pele na fotografia da época.
Segundo Magalhães Jr.[11], a imagem serviu de
modelo a um desenho de bico de pena e gouache, em que o escritor aparece
com as feições branqueadas. Da mesma forma, o Machado dos retratos mais
conhecidos, como os de Insley Pacheco (Joaquim José Insley Pacheco), passa por
mulato[12], ou até branco.
— É uma indicação de que as
fotos de Machado costumavam ser retocadas no Brasil — opinou Duarte. — Não é
uma coincidência que a foto em que ele aparece mais negro tenha sido publicada
na Argentina.
Machado de Assis era
afrodescendente em pleno período escravista, escrevia em jornais mais lidos por
toda elite, trabalhou em empregos públicos, vivendo de aluguel, era natural que
Machado não tivesse atuação militante e panfletária, ressaltou Eduardo de Assis
Duarte. Do contrário, seria perseguido. A opção, portanto, veio com fina ironia
e dissimulação no perfil de “autor-caramujo”[13] em suas obras a denunciar
a escravidão e outras questões sociais.
Hélio Seixas Guimarães destaca
a ironia presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas como fator determinante na
obra que se tornou um clássico da narrativa nacional. “A ironia presente ali
não é simplesmente inverter o sentido, mas de abrir várias possibilidades. São
intervalos de sentido. Foi possível ler Machado de Assis pensando que aquilo é
sério ou para ser lido literalmente. Mas é possível interpretar o texto de
várias maneiras”, comenta.
Ao longo do tempo, Machado de
Assis teve sua obra questionada por, aparentemente, não questionar de maneira
mais direta problemas latentes do século XIX no Brasil, como a escravidão.
A estratégia de caramujo,
aliás, adotada e declarada, aos leitores atentos, em uma crônica de 1893 (cinco
anos após a abolição da escravatura) mostrou um autor negro que aprendeu andar
pelas frestas, pelas ambiguidades das relações sociais da burguesia brasileira,
e não mudou muito o modo como racismo brasileiro é velado, porém, não menos
existente e contundente.
Foi o mais encolhidos dos
caramujos conforme retrataram Eduardo de Assis Duarte e Lillia Moritz
Schwarcz. Afinal, escrever sobre a podridão
dentro da própria podridão é genial e assentou as representações como Brás
Cubas, Bentinho, Capitu[14] e, José Dias, Rubião,
Quincas Borba, Cândido Neves que exibe toda a ideologia burguesa, eurocêntrica
e branca.
A “estratégia de caramujo” de
Machado é, portanto, uma singularidade de um gênio produzida por nossas maiores
chagas: a escravidão e o racismo, velado ou não.
Contudo, Joaquim Maria não se
dobraria ao ambiente, mas sim criaria uma casca, um casulo protetor, como o de
um caramujo, de onde poderia mover-se lentamente, por letras, por palavras,
poderia fazer suas críticas, deixando um rastro no chão, quase imperceptível
para quem tinha olhos distraídos; mas bastaria olhar mais de fora, por uma
espécie de exotopia, para enxergar a estratégia de um “bruxo caramujo” e seu rastro,
como podemos agora ver, ler e nos deliciar.
Portanto, a “estratégia de
caramujo” declarada pelo autor foi seu modo de denunciar o racismo em suas
entranhas mais perversas, inconscientes e veladas. Racismo tão agudo e
estrutural que logrou embranquecê-lo em fotografias em campanhas publicitárias
e em livros, ao longo das décadas. A “estratégia de caramujo” é, portanto, mais
uma forma de denúncia machadiana à podridão burguesa e, principalmente, ao
racismo.
Há diversos trechos
representativos como nas obras: Ressurreição (1872), Helena (1876), Iaiá Garcia
(1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Casa velha (1886), Quincas
Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1901) e Memorial de Aires
(1908) e ainda de crônicas, contos e poemas de todas as fases da vida de
Machado de Assis.
“O tom do discurso machadiano
é corrosivo”. Engendrou contra-narrativa ao pensamento hegemônico da época –
cuja ideia mestra entronizava o ‘escravismo benigno’ praticado nos trópicos
pelo colonizador à miscigenação, afirmou Eduardo de Assis Duarte.
Tal ideologia se aprimorou ao
longo do século XX e primou por construir uma leitura do nosso passado
histórico em que o tempo do cativeiro surge emoldurado pelo mito da democracia
racial[15] para substituir a
brutalidade pela tolerância e o rebaixamento do outro pela mestiçagem”, apontou
Assis Duarte.
Novamente, em oposição ao
sistema vigente é o racismo brutal presente no conto "Pai contra
mãe", que mostrou como um capitão do mato e caçador de escravos foragidos,
foi obrigado a entregar o filho recém-nascido para a adoção por não ter como
sustentá-lo.
Já quando em captura de
escrava fugitiva e fica indiferente quando ela aborta bem na sua frente. E, sua
reação foi: "Nem todas as crianças se vingam". Assim, nas suas narrativas denunciou as
atrocidades escravagistas de seu tempo.
O curioso é que o negros e
mestiços representam 54% da população brasileira, a cada vinte e três minutos
um negro é assassinado no país, em uma proporção quase quatro vezes maior do
que o mesmo risco corrido pelos brancos. Cerca de 80% dos policiais mortos no
Rio de Janeiro, em 2019, eram negros. Esses dados revelam uma patologia social
vinculada à desigualdade e ao racismo estrutural[16].
Não podemos acusar Machado de
Assis de não ter feito um jornalismo onde as questões negras e abolicionistas
eram abordadas.
Fez denúncia antirracista e
profundamente antissistêmica. Mostrou-nos como um caramujo-escritor, deixando o
rastro na terra, deixando o rastro em palavras e crítica, fez seu sinal de
alertar sobre a sociedade que se apoia em pseudociências (como o racismo).
Genial, Machado ironizou seu tempo e os modos de vida que o circundavam.
A grande musa inspiradora de
machado foi Carolina Augusta Xavier de Novaes, a portuguesa e o grande amor do
escritor e influente nas suas obras. Entre os anos de 1869 até 1904, o casal
permaneceu unido, até quando Carolina veio a falecer aos setenta anos de idade.
O escritor não teve filhos[17]. Em carta de Machado para o amigo Joaquim
Nabuco, historiador, in litteris:
"Foi-se a melhor parte da minha
vida, e aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes me
é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados
que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação
que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e
eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor, escreveu."
Quando Carolina faleceu, o
escritor publicou seu último soneto, "A Carolina", uma obra comovente.
E, em 1908 publicou a obra com tons autobiográficos, Memorial de Aires. Machado
de Assis foi enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, ao
lado do túmulo da companheira, e ainda pediu que tão logo morresse fosse
queimado o móvel onde guardava relíquias de amor, bem como as cartas tocadas
com Carolina quando ainda eram namorados, havia até pedaços do véu da noiva, a
grinalda, os sapatos de cetim usados no dia do casamento.
Consta em sua biografia que o
namoro entre Machado de Carolina não fora aprovado pela família da moça, que já
integrava uma elite intelectual. Por sua escolha, Carolina uniu-se a alguém de
nível abaixo, o que foi determinante para que ele tivesse estabilidade emocional
e também transitasse entre os intelectuais. Como esposa o incentivou a ler em
inglês e a conhecer os clássicos da literatura britânica.
Machado de Assis não permitia
que Carolina participasse de conversas com os escritores e homens cultos que os
visitavam. “Habituada em sua terra ao convívio de grandes intelectuais, amigos
de seus irmãos, ela abdicou de si mesma para se dedicar exclusivamente ao homem
que tanto amava e tanto lutou para desposar.
Machado de Assis era um
notável enxadrista tanto que participou do primeiro campeonato brasileiro do
esporte. Cometeu uma gafe histórica. Na
segunda edição da obra Poesias Completas, no prefácio, publicada em 1902, a
palavra "cegara" foi substituída, na expressão "lhe cegara o
juízo", saiu um inusitado cagara. Diz a lenda que o próprio
Machado teria participado de um
mutirão para corrigir os exemplares antes que chegassem ao público. O que se
sabe é que alguns escapara e saíram com
tal erro.
Em 1888 foi condecorado pelo
então imperador Dom Pedro II com a ordem rosa e, meses depois indicado para
fazer parte da Secretaria de Agricultura. E, mais tarde, chegou a ser
diretor-geral da viação da Secretaria da Indústria, Viação e Obras Públicas.
Desde os primeiros estudos
críticos sobre a obra de Machado de Assis, a brasilidade do escritor jamais
deixou de ser problematizada, ainda que sob diferentes perspectivas
interpretativas. Críticos como José Veríssimo[18], Sílvio Romero e Araripe
Júnior debateram, principalmente, a existência ou não do nacional nos escritos
de Machado de Assis. Alguns pensavam que seria de outra natureza, de caráter
mais íntimo e interno e, também, por isso mesmo melhor, ainda que tal qualidade
não fosse facilmente percebida.
Sílvio Romero, a seu turno,
era duro em seu discurso e, por vezes até ofensivo e desrespeitoso, acusou
Machado de ser um macaqueador das formas de outras autores estrangeiros.
A partir de meados de 1930, no
contexto do Estado Novo e da Era Vargas, momento que o nacionalismo despontou
com pedra de toque, novos críticos pareceu ganhar ênfase, novamente explorando
o viés nacional. Lúcia Miguel-Pereira, Astrojildo Pereira[19], Roger Bastide e Mário de
Andrade debateram e fizeram dessa questão o foco principal de suas leituras
sobre a obra machadiana.
Astrojildo Pereira
influenciado por estudos marxista, interpretou com equívocos os romances e
contos do Bruxo, tal como de "Pai contra mãe"[20], contaminando-se por suas
paixões políticas e ideológicas sua leitura e crítica. Também se deve ao fato
de haver péssimas traduções dos textos de Karl Marx e Engels a que teve acesso.
Enxergou o autor como sendo um homem de seu tempo e de seu país. Na concepção
de Astrojildo Pereira, um romancista do Segundo Reinado.
Já Lúcia Miguel-Pereira trouxe
à baila a origem humilde de Machado de Assis bem como sua afrodescendência. A
negritude de Machado nem era mais contestada, mas utilizada para legitimar seu
temperamento.
Outra contribuição foi de
Roger Bastide[21],
que trouxe um dos textos mais curiosos desse período, para a discussão do
nacional no autor Memórias Póstumas, traduzindo-o como paisagista íntimo, pois
centrava-se em analisar internamente seus personagens. O estudioso francês
defendeu o escritor que se preocupava com o ambiente, que o insere de forma tão
natural em suas narrativas, tornando difícil de ser plenamente observável.
A contribuição de Mário de
Andrade, em uma série de ensaios, escritos, em grande parte, em comemoração ao
centenário de nascimento do escritor, também abordou a questão da
nacionalidade. Mas, trouxe visão ambígua que o crítico tinha sobre Machado de
Assis, apesar de jamais duvidar das qualidades literárias do romancista, mesmo
que veja que em alguns momentos, renegou sua origem negra.
Lá pelos idos de 1970, começou
a se concretizar novo padrão de leituras e, foi Raymundo Faoro[22] que trouxe brilhante
compêndio de referências para a obra de Machado de Assis, e trouxe a leitura à
luz do estamento social, jogando pá de cal nas reticentes dúvidas a respeito da
brasilidade do escritor. O que permitiu abrir caminho para sucessão de críticos
mais interessados em analisar as relações entre literatura, história do Brasil,
Direito e, outras ciências sociais.
Foi Roberto Schwarz[23] talvez o melhor exemplo
de tradição crítica, tendo sido discípulo de Antonio Cândido e leitor assíduo
de Theodor Adorno[24], ao analisar na forma
literária as estruturas sociais. Nas
Memórias póstumas, a narração de Brás Cubas é lida a contrapelo, e suas características – a
volubilidade e a desfaçatez, por exemplo – entendidas como representativas da classe do
narrador.
O nacional, claro, não é mais alvo de desconfiança, mas de
problematização radical: tratar-se-ia de um nacional negativo, não interessado em expor
nossas belezas e qualidades, mas de marcar
nossas contradições mais graves. Esse nacional não nasceria, a princípio, apenas de um gênio superior de Machado, porém,
mais que tudo, da posição que o escritor
ocupa na história da literatura brasileira.
Seguindo a trilha cavada por
Schwarz veio John Gledson[25] e retirou do esquecimento
uma pequena novela intitulada "Casa Velha"[26], conferindo um olhar
desconfiado ao padre-narrador. Uma espécie de proto-Bentinho, ao narrar a
história de casal proibida, em razão da diferença de classe social, e, ao final
chega-se a legitimar a separação. O crítico britânico também ofereceu outras
leituras e buscou nas tramas, datas e nomes de personagens da obra machadiana
as alusões à história do Brasil.
Contemporaneamente, os
críticos tiveram inspiração e, novamente, o nacionalismo é realçado nos
trabalhos de Sidney Chalhoub e o magnífico Eduardo de Assis Duarte. Eduardo de
Assis Duarte, por sua vez, tem um olhar mais centrado no problema da escravidão e na negritude de Machado.
Seu livro “Machado de Assis afrodescendente” foi publicado quase cem anos
após a discussão entre Nabuco e Veríssimo
sobre o uso da palavra mulato para definir o escritor, morto pouco antes. Duarte procura demonstrar, no volume
organizado por ele, através de um artigo e de contos, crônicas e trechos de romances
selecionados, o olhar do escritor, que não
renega sua origem, como durante tanto tempo se aventara.
O ponto mais aperfeiçoado
dessa crítica estaria nas leituras a contrapelo dos narradores dos romances, que propiciaram
interpretações originais, que revigoraram os estudos sobre Machado de Assis. As
discussões se deslocaram consideravelmente
dos assuntos de ordem filosófica, metafísica e psicológica, para passarem a se centrar na classe, etnia e
gênero dos narradores-personagens.
Entre as interpretações
originais, destaca-se a de “Dom Casmurro”, em que não apenas um crítico, mas diversos, contribuíram na
reconfiguração dos significados da obra na contemporaneidade.
O estudo pioneiro de Helen
Caldwell, O “Otelo brasileiro de Machado
de Assis”[27],
embora não traga discussões sobre a questão nacional, abriu caminho para outras leituras em que a figura
do narrador é problematizada em sua marca
de classe, de gênero e de etnia. Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz tiveram papel importante nessa virada
crítica sobre o romance.
Tal virada, para Schwarz,
aconteceu em um âmbito maior, e passou a trazer assuntos para a pauta crítica sobre a obra do
escritor, que antes mal e mal eram esboçados:
desfaçatez de classe, relações entre periferia e centro, modernização conservadora, intelectualidade, escrita e
representação social, tornaram-se temas presentes
nessas leituras.
Contemporaneamente, outros
grupos se autodenominam como porta-vozes da modernidade brasileira e propõem
reformas que podem fragilizar ainda mais a condição dos trabalhadores
brasileiros e que correspondem a maior parte da população brasileira. E, aí vem
nesse lastro a reforma trabalhista, a reforma previdenciária e, dando maior
poder e validade aos acordos entre empregadores e empregados.
Somos forçados a manter a desconfiança diária e necessária dos narradores como Brás, Bento e Aires que pertencem a elite e vivem na periferia do capitalismo. Mas, nos resta questionar que contará ou quais versões prevalecerão para narra as histórias de Prudêncio, Capitu[28] ou ainda dos escravos de Santa-Pia?
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Notas:
[1]
Um feiticeiro é alguém que nasce com magia, podendo utilizá-la de forma
intuitiva. No feiticeiro a magia é um poder natural. Um bruxo é alguém que não
possui magia naturalmente, obtendo ela através de um contrato ou pacto com
alguma entidade (um demônio ou outra entidade, por exemplo). As palavras magia,
mago e mágico vêm do latim magus, através do grego μάγος, que vem do
antigo persa maguš. (mago). Em persa antigo magu- é derivado do
protoindo-europeu *magh (poder). A palavra feitiço veio do Latim facticius, “não
pertencente ao mundo natural, artificial, de imitação”, do verbo facere,
“fazer”. Aliás, a palavra feitiço foi levada para a África pelos portugueses e
de lá voltou para a Europa com os franceses, como fétiche, nosso atual
“fetiche”. Os termos bruxaria ou feitiçaria ou ainda, menos comumente,
embruxação, bruxação, embruxamento, bruxamento, bruxedo etc., têm sido de uso
corrente da língua portuguesa, designando o uso de poderes de cunho
sobrenatural, sendo também utilizada como sinônimo de magia, feitiçaria,
sortilégio ou encantação. Já feitiço, deriva do latim facticius .a um
("fictício, artificial, não-natural"), é um vocábulo muito antigo na
língua portuguesa, sendo registrado já no século XV. Inicialmente significava
"postiço, artificial": chave feitiça era uma chave falsa, e briga
feitiça era apenas de faz-de-conta. Logo, no entanto, assumiu o seu significado
atual de "encantamento". Com o avanço português pela costa da África,
os nativos adotaram o termo, modificando-lhe a pronúncia para /fe.′ti.xu/; os
franceses, que então conheceram o vocábulo, importaram-no com a forma de
fétiche, que foi reimportada por nós no século XIX, com o sentido de
"objeto ao qual se atribui um valor sobrenatural" ou "objeto ou
parte do corpo em que certos indivíduos vão buscar excitação erótica". A
palavra "bruxaria" tem etimologia que é incerta, mas acredita-se
venha do italiano brucia(queima), que vem do verbo bruciare(queimar)
ou de brixtia, que vem do nome da deusa gaulesa Bricta. Outros indícios indicam
que a palavra bruxa nasce na Era Antiga na Península Ibéria, que sua origem
seria anterior a invasão romana e por consequência anterior ao próprio latim,
portanto.
[2]
Discurso de Rui Barbosa pronunciado na Academia Brasileira, junto do ataúde de
Machado de Assis, aos 29 de setembro de 1908, minutos antes de partir o féretro
para o cemitério de S. João Batista. In: Obras Completas de Rui Barbosa,
Discursos Parlamentares. Volume XXXV (1908), Tomo 1.
[3]
Machado de Assis, mulato que nasceu livre, se educou pelos próprios esforços,
numa sociedade abalada repetidamente por crises sociais – da metade do século
XIX em diante. Era uma época em que um dos maiores movimentos sociais –
envolvendo mulatos livres e intelectuais liberais – era a libertação dos
escravos.
[4]
O velório teve lugar primeiro em sua casa, no Cosme Velho. Euclides da Cunha,
jornalista e romancista, eleito para a ABL em 1903, conta em seu artigo A
última visita como foram os momentos finais em volta do mestre. Mas aquela
placidez augusta [de Machado no leito de morte] despertava na sala principal,
onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo,
Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários divergentes. Resumia-os um
amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que
tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas,
para pô-las transfigurar e ampliar, amorfoseadas em sínteses radiosas –, que
uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo
limitadíssimo de corações amigos. [...] Nesse momento, precisamente ao
enunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta
principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido, um adolescente de
dezesseis ou dezoito anos no máximo. [...] Não disse uma palavra. Ajoelhou-se.
Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o
depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. [...]
Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade.
[5]A Lei 10.639/2003 instituiu o ensino de
história da África e de história e cultura afrobrasileiras na educação básica.
Tal lei foi conquistada porque as políticas afirmativas e o movimento negro
venceram para implementar noções que pudessem alterar o lugar dado socialmente
ao povo afro-brasileiro durante séculos, modificando seu status de objeto para
o de sujeito e, construindo contranarrativa para instaurar novos paradigmas
através de estética e autoria própria.
[6]
“A derradeira injúria”, poema de Machado de Assis publicado em uma coletânea luso-brasileira comemorativa
dos cem anos da morte de Pombal (1885).
Relaciona-se o texto (narrativa imaginativa de um episódio póstumo) aos
festejos do 1º centenário fúnebre do
marquês no Rio de Janeiro (1882), atentando-se a como se mobiliza o passado pombalino no poema e em outros
impressos que abordam tanto as celebrações
quanto o discurso histórico difundido sobre Pombal.
[7]
As obras de Machado podem ser divididas em duas fases: Romântica (de 1872 a
1878) e Realista (de 1881 a 1908). Entre as principais características, estão:
Crítica à burguesia e à sociedade de maneira geral; Ironia; Metalinguagem;
Diálogo direto com o leitor. Publicou um total de 10 romances, 10 peças
teatrais, 200 contos, 5 coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas.
[8]
Esaú e Jacó foram filhos de Isaque, netos de Abraão. A história deles está
relata em Gênesis, primeiro livro da bíblia. Antes mesmo de nascerem o Senhor
havia dito que o mais velho serviria o mais novo, e que duas nações estavam
sendo geradas no ventre de Rebeca, esposa de Isaque e mãe dos meninos. Os dois
irmãos cresceram e Esaú se transformou em um homem muito habilidoso com a caça.
Isaque amava mais a Esaú porque gostava da caça, mas Raquel amava a Jacó. Certo
dia, Jacó cozinhou uma carne. Esaú chegou cansado do campo e pediu a Jacó que
lhe desse um pouco de carne.
[9] Folie
à deux é uma síndrome rara definida como o compartilhamento de sintomas
psicóticos entre dois ou mais indivíduos. Este relato descreve o caso de um
paciente do sexo masculino, com 15 anos de idade, diagnosticado com transtorno
delirante induzido (folie à deux, subtipo folie imposée). Folie à deux,
ou transtorno delirante induzido, é uma síndrome rara caracterizada por
transferência de delírios de um sujeito considerado primariamente psicótico
para um ou mais sujeitos considerados secundários em relação à origem do
delírio. Apesar de ser um diagnóstico considerado raro, e até por isso
esquecido nos tratados psiquiátricos atuais, nosso artigo descreve um caso de
folie à deux entre mãe (sujeito delirante primário) e filha (paciente
previamente saudável e secundariamente psicótica) que teve sucesso terapêutico
e evolução muito favorável.
[10]
O escritor e ensaísta goiano Martiniano José Silva, na obra ” Racismo à
Brasileira: Raízes Históricas”, ( Editora Popular, Goiânia, 1985), dedica um
dos capítulos do livro a estudar a literatura de Machado de Assis em
contraposição a sua situação racial. Martiniano, mais contundente que Simone,
faz uma análise impiedosa do escritor, mostrando diversas facetas de sua
negação a sua cor. Selecionamos alguns trechos da obra de Silva para quer
possam ser comparados e refletidos num tópico tal como ” Literatura e relações
raciais no Brasil”.
[11]
Os biógrafos o acusam ainda de ter abandonado a madrasta negra Maria Inês, que
se encontrava viúva, depois que se tornou escritor conhecido. Machado tinha
trauma do passado pobre, e por isto, tendia a se afastar de tudo que remetia a
ele. Ou como escreveu o crítico Álvaro Moreyra, em ” A Notícia”, 29-8-1939: ” O
descendente de africanos não quis receber o legado de sua miséria. Disparou da
origem. Substituiu a condição humana pela condição literária. Foi um grande
escritor. Não foi um grande homem. O povo nunca o compreenderá”. A madrasta de
Machado de Assis se chamava Maria Inês da Silva, e foi para ele uma segunda
mãe. Dois anos depois, em 1856, o autor publicou seu primeiro poema, intitulado
“Ela”, no jornal Marmota Fluminense. Ainda em 1856, passou a trabalhar como
aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional.
[12]
São muitas as passagens em que Lúcia Miguel-Pereira, em seu "Machado de
Assis: estudo crítico e
biográfico", recorda a cor de Machado. Em uma delas, a autora
relata a profissão de baleiro que
Machado teria tido, na infância: “Nesse mister é que se ocupou Maria
Inês, e o menino, o mulatinho, enteado
da cozinheira, aceito na casa por caridade, ficou encarregado de vender as
quitandas” (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p.
42); em outra, descreve-o como uma criança triste e negra, mas já curiosa pelos mistérios da vida: “A vida já
devia ser inexplicável para o mulatinho triste que a sentia fortemente, nos contatos da rua.”
(MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 27). No
entanto, na mesma época em que Lúcia
escreveu seu trabalho, a menção à negritude de Machado parece ainda causar
mal-estar em alguns autores. É o que se
percebe no trabalho de Modesto de Abreu, Biógrafos e críticos de Machado de Assis, de 1939: “É uma preocupação
obsedante, a da Sra. Lúcia Miguel-Pereira, de
acentuar e frisar bem por todo o livro, o ‘molequismo’ e o ‘mulatismo’
de Machado de Assis. Nas trezentas e
trinta e tantas páginas de seu texto, encontrei perto de 40 vezes a indelicada
restrição racial, o que equivale à
proporção de 1 para 10, ou uma alusão de dez em dez páginas”.
[13]
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a
lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua,
eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem
aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam
felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio
público que me lembra ter visto." Cinco anos após sancionada a abolição da
escravatura no Brasil, um nobre “caramujo” resolve escrever as bem talhadas
linhas acima. Na descrição da alegria popular pela conquista da liberdade, em
crônica publicada em 14 de maio de 1893, fica evidente o olhar fascinado de um
Machado de Assis ainda pouco conhecido – e discutido – por leitores e crítica
especializada: o escritor comprometido com o debate da questão escravocrata.
[14]
Quanto Capitu finalmente engravida e gera o filho, Ezequiel (nome em homenagem
ao amigo), Bentinho se sente traído, pois não consegue tirar da sua cabeça que
ele é, na verdade, fruto da traição entre ela e seu amigo Escobar. Bentinho,
vale ressaltar, não é o único advogado na obra de Machado. Assim como as
referências jurídicas, os bacharéis abundam em suas páginas — e, como muitos
críticos já notaram, quase todos se revelam maus profissionais. Basta lembrar o
Gonçalves do conto “Pílades e Orestes”, que “não era grande advogado, mas, na
medida de suas habilitações, era distinto”. Segundo Matos, um dos poucos
competentes — ou, pelo menos, não incompetentes — da criação machadiana é o
Osório de “Memorial de Aires”.
[15]
Assim, o mito da democracia racial era uma distorção do padrão das
relações raciais no Brasil, construído
ideologicamente por uma elite considerada
branca, intencional ou involuntariamente, para maquiar a opressiva
realidade de desigualdade entre negros e
brancos. Havia, no Brasil, os elementos para a fabricação ideológica do mito da democracia racial. Desde o período
colonial, passando pela época do
Império, a classe dominante foi treinada a ver os negros como seres
inferiores, mas, simultaneamente,
aprendeu a abrir exceções para alguns indivíduos negros e mulatos. As raízes históricas do
mito da democracia racial remontam ao século XIX, impulsionadas: a) pela
literatura produzida pelos viajantes que visitaram o país; b) pela produção da
elite intelectual e política; c) pela direção do movimento abolicionista
institucionalizado; d) pelo processo de mestiçagem.
[16]
O racismo estrutural é o racismo que está presente na própria estrutura social.
Segundo essa concepção, o racismo não seria uma anormalidade ou
"patologia", mas o resultado do funcionamento "normal" da
sociedade. Deste modo, nas palavras de Silvio Almeida, a sociedade seria uma
"máquina produtora de desigualdade racial". O termo foi desenvolvido em
parte para ajudar as pessoas que trabalham em prol da equidade racial a
enfatizar a ideia de que o racismo na sociedade é um sistema, com uma estrutura
clara e com múltiplos componentes. O conceito de racismo estrutural é também
usado para a defesa de ações afirmativas, como a implantação de cotas raciais
em universidades, pois, se a própria estrutura da sociedade é racista, a
desigualdade racial tenderá a se perpetuar, caso algo não seja feito a
respeito.
[17]
Se pela voz de Brás Cubas o escritor Machado de Assis afirmava que não teve filhos
porque não queria transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, seu
legado comprova-nos que transmitiu a todas as criaturas um sentido
verdadeiramente superior de nossa condição.
[18]
José Veríssimo Dias de Matos (Óbidos, 8 de abril de 1857 — Rio de Janeiro, 2 de
dezembro de 1916) foi um escritor, educador, jornalista e estudioso da
literatura brasileira, membro e principal idealizador da Academia Brasileira de
Letras. Ao lado de Sílvio Romero e Araripe Júnior, seus contemporâneos, foi um
dos primeiros e maiores historiadores da literatura brasileira. De sua obra
História da Literatura Brasileira assoma a crítica e, em especial, uma
constante preocupação em se definir um caráter tipicamente nacional dos
escritores do país. Afiliado ao Naturalismo, foi um dos expoentes na crítica
literária e na historiografia das letras no Brasil. Como educador, teceu
importantes análises sobre os problemas do sistema educacional do país na jovem
República, herdeira de problemas como a recente escravidão, e tantos outros.
Veríssimo foi mais que um fundador do Silogeu brasileiro: talvez mesmo seu
próprio idealizador, ao lado de Lúcio de Mendonça. A todas as reuniões
preparatórias fez-se presente e um dos seus mais assíduos membros. Ele defendia
uma academia voltada exclusivamente à literatura - e por seus pares foi eleito
um não-escritor (o político Lauro Müller), afasta-se de forma definitiva em
1912 desta Casa pela qual tanto lutara.
[19]
Astrojildo Pereira Duarte Silva (Rio Bonito, 8 de outubro de 1890 — Rio de Janeiro,
20 de novembro de 1965) foi um ex-anarquista, escritor, jornalista, crítico
literário e político brasileiro, fundador do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), em 1922. Foi preso pela Ditadura militar brasileira em outubro de 1964,
no mesmo ano do golpe de estado após seu nome e de outros membros do PCB, do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISBE) e da mídia comunista terém sido entregue aos
militares. No dossiê sobre Astrojildo, estavam listados o fato de ter sido um
dos fundadores do partido e sua ligação com Luís Carlos Prestes - um dos
maiores líderes da esquerda brasileira. Na prisão, seus problemas cardíacos
aumentaram e foi levado para o Hospital da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Por meio de um Habeas corpus em janeiro de 1965, foi liberado da prisão e a
imprensa disse que se considerava um "marxista convicto".
[20]
O conto “Pai contra mãe” apresenta duas temporalidades distintas. Uma delas é
aquela em que se coloca o próprio narrador, que fala de um momento posterior à
abolição da escravatura no Brasil. A outra é a que diz respeito ao tempo da
ação em si, que é anterior a esse fato. A estrutura do conto demarca essas duas
temporalidades de forma explícita: o texto pode ser dividido em duas partes – a
primeira, contendo uma explanação de caráter histórico informativo; e a
segunda, que traz a narrativa. Assim, esta última assume a condição de
ilustração do ponto de vista desenvolvido na primeira. É o que se pode chamar
de exemplum, gênero literário medieval utilizado para adornar os sermões de
pregadores da época. Na parte
introdutória, o narrador trata de algumas práticas associadas ao período da
escravidão, entre as quais aquela que será exercida pelo protagonista do conto
– caçador de escravos. Na parte narrativa, desenvolve o tema, mostrando as
angústias do protagonista no exercício de sua profissão. Como ponto comum às
duas partes, temos a prática de um recurso muito frequente em toda a obra
machadiana: a ironia. Logo no início, ao tratar da escravidão, ele afirma:
“Eram muitos [escravos], e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”.
Depois, na narrativa, o mesmo procedimento aparece: “[...] não davam que comer,
mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Como se pode notar,
manifesta-se aqui o humor sombrio típico do escritor. Mas a grande ironia fica por conta da
situação em que é colocado o protagonista: para salvar a vida do filho, Cândido
tem que entregar aos donos a mulata Arminda, que acaba por abortar. Na oposição
entre eles, temos as mesmas razões de luta – a família, a prole – mas, para a
satisfação de um dos lados, é preciso que o outro sofra. Na verdade, tanto
Cândido quanto a mulata são vítimas do mesmo sistema: o escravismo. Assim, a
crítica do conto tem seu alvo bem definido. E o acerta em cheio
[21]
Roger Bastide (Nîmes, 1 de abril de 1898 — Maisons-Laffitte, 10 de abril de
1974) foi um sociólogo francês. Formou-se pela faculdade de Letras de Bordeaux
e pela Sorbonne. Antes de fixar-se no Brasil, escreveu Problèmes de la vie
mystique (1931) e Éléments de sociologie (1936). Como membro da
"missão francesa" contratada para núcleo do corpo docente da
Faculdade de Filosofia de São Paulo, lecionou quase vinte anos no Brasil
(1937-1954), onde recebeu o título de "doutor honoris causa" pela
Universidade de São Paulo. Foi membro das sociedades de sociologia e psicologia
de São Paulo, de antropologia no Rio de Janeiro, de folclore no Rio Grande do
Norte, e do Instituto Histórico do Ceará. Em 1973, Bastide reeditou
"Brasil, terra de contrastes". Em seguida, aposentado, trabalhou no
Centro de Psiquiatria Social em Paris, fundado por ele. O seu último livro,
"Sociologia da desordem mental", utilizou resultados de pesquisas
deste Centro. Em 1951, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade
de São Paulo.
[22]
Raimundo Faoro (pronuncia-se "Fauro"; na grafia arcaica, escrevia-se
Raymundo Faoro; Vacaria, 27 de abril de 1925 — Rio de Janeiro, 15 de maio de
2003) foi um jurista, sociólogo, historiador, cientista político e escritor
brasileiro. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de 1977 a
1979,[1] e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). É autor do livro Os
Donos do Poder, em que analisa a formação sociopolítica patrimonialista do
Brasil. Raymundo Faoro é autor de Os Donos do Poder, obra que aponta o período
colonial brasileiro como a origem da corrupção e burocracia no país colonizado
por Portugal, então um Estado absolutista. De acordo com o autor, toda a
estrutura patrimonialista foi trazida para cá. No entanto, enquanto isso foi
superado em outros países, acabou sendo mantido no Brasil, tornando-se a
estrutura de nossa economia política. Nesta sua concepção de Estado
patrimonialista, Faoro coloca a propriedade individual como sendo concedida
pelo Estado, caracterizando uma "sobre propriedade" da coroa sobre
seus súditos e também este Estado sendo regido por um soberano e seus
funcionários. O autor assim nega a existência de um regime propriamente feudal
nas origens do Estado brasileiro. O que caracteriza o regime feudal é a existência
da vassalagem intermediando soberano e súditos e não de funcionários do estado,
como pretende Faoro.
[23]
Roberto Schwarz (Viena, 20 de agosto de 1938) é um crítico literário e
professor aposentado de Teoria Literária brasileiro. Um dos principais
continuadores do trabalho crítico de Antonio Candido, redigiu estudos sobre
Machado de Assis elencados entre os mais representativos na fortuna crítica
sobre o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Entre os estudos literários
de Roberto Schwarz destacam-se os ensaios sobre Machado de Assis. Ao Vencedor
as Batatas (1977) trata da primeira fase machadiana e sua relação com o romance
Senhora, de José de Alencar. Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990)
aborda o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Dentre seus ensaios menores
sobre Machado de Assis, destacam-se “Complexo, moderno, nacional e negativo”
(também sobre Brás Cubas, em Que Horas São?), “Duas notas sobre Machado de
Assis” (linhas biográficas e estudo sobre Quincas Borba, em Que Horas São?), “A
poesia envenenada de D. Casmurro” (incluído em Duas Meninas), “A viravolta
machadiana” (2004) e “Leituras em competição” (2006).
[24]
Theodor Adorno foi um filósofo, sociólogo, musicólogo e crítico musical alemão.
Também foi um dos maiores críticos da degradação gerada pelo capitalismo em
nome das forças que mercantilizam a cultura e as relações sociais. Para Adorno,
a psicologia precede a política. Seu foco não recai tanto sobre os aspectos
econômicos do capitalismo, pois está interessado nas configurações culturais que
esse possibilita. Dessa maneira, Adorno foi um dos fundadores da famosa
"Escola de Frankfurt", junto a nomes como Herbert Marcuse, Jürgen
Habermas, Max Horkheimer e Wilhelm Reich. Recebeu muitas influências de
pensadores como Hegel, Marx e Freud, bem como de Lukács e Walter Benjamin, com
quem conviveu. Adorno considerava a sociedade enquanto objeto e abandona a
ideia de produção cultural autônoma em relação à ordem social vigente. Por sua
vez, sua perspectiva está embasada na Dialética de Hegel, apesar de divergirem
em alguns pontos. Com isso, critica o Positivismo Lógico e a Razão
Instrumental, pois estes não aceitam a dualidade existente entre o sujeito e
objeto. Por outro lado, Adorno admite a presença do irracional no pensamento,
do qual as obras de arte são um grande exemplo. Elas são um reflexo mediado do
mundo real, expresso por uma linguagem (artística).
[25]
John Gledson (Beadnell, 1945) é um tradutor, ensaísta, crítico literário inglês
e professor aposentado da Universidade de Liverpool especializado em língua
portuguesa, literatura brasileira, e especialmente nas obras de Machado de
Assis, que tem escrito livros importantes sobre a correlação entre os romances
e as crônicas de Machado com sua época. Viaja para o Brasil desde a década de
1970 e é mestre e doutor em Literatura Comparada pela Universidade de
Princeton, nos EUA. Também selecionou contos para o livro "50 Contos de
Machado de Assis, da Editora Companhia das Letras.
[26] A história se passa no Rio de Janeiro em um período próximo a 1839. Narrada em primeira pessoa, a novela de Machado de Assis parte da perspectiva de um padre que se propõe a escrever sobre o Primeiro Reinado, de Dom Pedro I. O narrador-personagem inicia sua preparação fazendo pesquisas, recolhendo os materiais necessários e, assim, descobre uma casa onde poderia consultar periódicos e manuscritos que seriam valiosos para seu trabalho. A questão é que tal casa, pertencia a ex-ministro e, agora era habitada pela viúva Dona Antônia e seu filho Félix e ainda por agregados como a jovem Lalau. Com seu jeito manipulador e carismático além de envolvente, o padre se aproxima dos moradores do local, conquista a confiança da viúva e, se envolve nas tensões familiares da casa, evidenciando certas contradições e paradoxos da formação da sociedade brasileira da época.
[27]
Como o próprio título sugere, Helen Caldwell compara a obra de Machado de Assis
a de outro grande escritor, um bem conhecido em sua língua materna:
Shakespeare. Mas as comparações não se limitam a Otelo e Dom Casmurro, embora esse
seja o maior foco da análise. A autora busca elementos de diversos textos
shakespearianos para explicar referências contidas no romance de Machado de
Assis. Outros autores e referências da história mundial também são dissecados
pela autora, no decorrer das páginas, mostrando o quanto a obra machadiana é
rica e complexa, como aqueles seriados cheios de teorias que adoramos assistir.
A análise de Helen Caldwell, dessa forma, acaba por se transformar em um guia
para toda a obra machadiana, em especial Dom Casmurro, Ressurreição e Memorial
de Aires, sendo esses últimos praticamente complementares ao primeiro, nas
palavras da autora. Helen enche os olhos do leitor e da leitora ao esmiuçar
toda a simbologia contida em Dom Casmurro, desde nomes e sobrenomes de
personagens, até o uso de cores e elementos da natureza, além de evidenciar
pistas e capítulos-chave deixados por Machado de Assis para que consigamos ter
uma visão melhor do mistério que ronda toda a trama.
[28]
Essa culpabilização da personagem é questionada oficialmente pela primeira vez
por Helen Caldwell (2008), quando põe em dúvida a infidelidade impingida a
Capitu. Realizando um estudo comparativo com a tragédia shakespeariana Otelo, a
autora centra-se nos aspectos intertextuais da obra de Machado para revelar os
sofismas e ardis das acusações de Bento e absolver Capitu do crime que lhe fora
falsamente imputado. Um a um, os argumentos de Bento são descontruídos e
demonstrada a malícia, astúcia e dissimulação, não de Capitu, mas do narrador,
personagem ambíguo e nada confiável, cujo testemunho precisa ser lido com
cuidado e atenção. Assim como Desdêmona é incriminada por Iago através de meias
palavras e sutis subterfúgios que plantam em Otelo a semente do monstro de
olhos verdes, o leitor também é envolvido lentamente na teia tecida por Bento e
se convence do adultério. Mas, Caldwell nos lembra, apesar de encontrar a morte
pelas mãos de seu amado, Desdêmona era inocente. O lenço achado por Otelo entre
as coisas de Cássio é a prova cabal da infidelidade da esposa; em Dom Casmurro
o lenço é a semelhança física entre Ezequiel e Escobar, filho e pai. Mas a exemplo do lenço plantado por Iago, as
feições de ambos são similares apenas para Bento. Invertendo a peça jurídica montada
pelo narrador, a autora acusa que a traição efetivamente existiu, mas da parte
de Bento, que não amou sua esposa como ela o amara, e permitiu que seu ciúme a
matasse e conspurcasse sua memória.