Aspectos filosóficos e históricos da teoria de justiça pautada no princípio da dignidade humana
A concepção ideal de justiça não é, nem nunca será uma tarefa fácil para filosofia. Eis que a justiça enfeixa em seu conteúdo inúmeros paradoxos presentes na existência humana. A prática da virtude perfeita aristotélica, o imperativo categórico de Kant, as exigências de equidade[1] de Rawls, o princípio da responsabilidade de Hans Jonas, constituem apenas algumas das variadas perspectivas da justiça construídas ao longo da história da humanidade.
É
difícil considerar e analisar a justiça tendo em vista ser um valor essencial e
considerando a relevância histórica galgada pelo princípio da dignidade humana
que chegou a erigir-se em teoria de justiça, percebe-se a exaltação de valores
como a igualdade, a liberdade e a equidade.
Afinal,
o vínculo substancial para a vida humana reside na liberdade e na dignidade
humana e que se desenvolveu nas ciências jurídicas e nos fatos sociais, sob influência
da dinâmica contemporânea que trouxe também a proteção dos direitos
personalíssimos e a garantia de justiça e acesso à justiça.
Os
principais valores para pessoa humana além da vida, é a dignidade, a justiça, a
liberdade e a cidadania que são elementos necessários para proporcionar as
condições mínimas para uma sobrevivência digna sem olvidar dos valores morais,
éticos, sociais e culturais.
A
Justiça representa um valor essencialmente humano e necessário para o salutar
convívio social, pois nesta ínsita está a igualdade. Segundo Platão[2] a justiça é uma virtude
suprema, já para Aristóteles é a igualdade a proporcionalidade e para maioria
dos juristas romanos a justiça se traduz como dar à cada um, o que é seu.
A
tutela jurídica de todos os valores indispensáveis para se ter o respeito à
dignidade humana é vasta e credenciada até pelos textos constitucionais da
maioria dos países ocidentais.
É
constatável que o princípio de preservação da dignidade humana erigiu uma nova
teoria da justiça, torneando o conceito de justiça que passa também ser
garantir de satisfação e felicidade pessoal e, para tanto, inspirou-se nas
lições e pensamentos de Immanuel Kant, John Wals, Serge-Christophe Kolm,
Jean-Louis Bergel, Hans Kelsen, Norberto Bobbio, Ronald Dworkin, Jean-Jacques
Rousseau e Voltaire.
Considera-se
que a igualdade e a liberdade constroem o eixo central da justiça e que através
de seus princípios disciplinam as estruturas basilares de toda sociedade.
Enxergar na proteção da dignidade humana como teoria da justiça é entender que
tal princípio tutela a vida, a igualdade e liberdade. E, dessa forma, também
transforma os valores morais em normas e ressalta a grande importância
estrutural e filosófica das ciências jurídicas.
Percebe-se
que os valores internos ou interiores são os que correspondem à essência da
pessoa humana e, onde se situa a consciência e o senso de justiça que
potencializa sua existência dentro da escala de valores da sociedade onde se
vive. Afinal, no rol desses valores internos está a liberdade, a privacidade, a
intimidade e a alma humana. E, o direito
também tutela tais valores e, a justiça se revela em ser um valor jurídico.
Segundo
John Rawls a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a
verdade o é dos sistemas de pessoas. Já Kelsen considera a justiça uma possível
característica, porém não necessária de uma ordem social.
Questiona-se
o que vem a ser uma ordem justiça? Significa uma ordem guiada pelo
comportamento humano de modo a contentar a todos, e todos encontrarem sob esta
a felicidade.
Eis
que em comum, tanto o anseio por justiça como por felicidade são eternos. E,
não os encontrando, a pessoa resta isolado mesmo que esteja dentro da
sociedade. Afinal, a Justiça é felicidade social, é garantida por uma ordem
social. (In: Kelsen, Hans. O que
é a Justiça?, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução de Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 41-42).
Sublinhe-se
que a felicidade não apenas individual é suficiente, devendo existir também a
felicidade coletiva. De certo que o conceito de justiça passou por evolução e
transformação radical, seja em razão do sentido original do vocábulo, seja pelo
modo que felicidade de um ser poderá significar a infelicidade de outrem) ou
até para uma certa categoria social. Enfim, consubstanciando a felicidade da
justiça.
A
justiça como princípio garantidor da felicidade pessoal e garantido pela
sociedade onde protege certos interesses, isto é, aqueles que são entendidos
como dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados à essa ordem.
Ao
longo da história e das ideologias que traçaram as tendências
políticas-econômicas, o Direito se tornou frágil e muito suscetível aos
desatinos do poder político e econômica, o que fragilizou a Justiça. A
sociedade é bem ordenada não apenas por planejar promover o bem-comum, mas
quando guiada por concepção pública de justiça.
E,
onde as desigualdades sociais e o desrespeito aos valores pessoais e aos
direitos personalíssimos configuram a violação à dignidade humana e fazendo que
a injustiça se instaure como uma dor crônica.
Tendo
em vista ser a justiça a principal virtude e que se posta como fonte de todas
as demais, configura uma das noções mais prestigiada no mundo espiritual e
dista em muito de ser um +valor revolucionário, mesmo quando relacionada à
felicidade pessoal. Não haverá ordem justa, sem que possa proporcionar a
felicidade para todos.
Eis
que se impõe a definição do conceito de felicidade. Lembrando-se de haver a
felicidade individual e a coletiva, nem sempre existentes em círculos
concêntricos.
Afinal,
a justiça em sua essência é justificação, corresponde a racionalidade normal,
uma razão validade e que propugna igualdades ideais de liberdades ou dos meios
ajustados no interior como se fosse uma poliarquia moral constituída e
hierarquizada.
Mesmo assim, Direito e Justiça são, realmente,
conceitos distintos e por vezes até fluem em certa sintonia e, outras vezes, não.
O direito de buscar a justiça tem a finalidade de operar na vida social. E,
assim, o direito se revela em ser o meio ou veículo capaz de realização da
justiça, enfim, sendo o próprio objetivo-mor do Direito.
A
autêntica Justiça tem na dignidade humana o seu mister, seu espelho e sua
finalidade. Portanto, toda vez que a dignidade humana for violada ou ignorada,
tem-se diretamente a injustiça, sem contar a negação da sociedade civilizada.
Sem
dúvida, o direito e a justiça gozam de relação íntima com os valores morais,
que advém de mores ou costumes, onde cada grupo social estabelece normas para
proteger seus valores. E, o grupo por sua diversidade pode cometer injustiças
e, acabam por enfraquecer o próprio direito e, inviabilizar a felicidade
individual e coletiva.
François-Marie
Arouet, mais conhecido como Voltaire, afirmou que: as leis podem deixar de
ressentir-se da fraqueza dos homens que as fizeram. Elas são variáveis como
eles. Algumas das grandes nações foram ditadas pelos poderosos como o fim de esmagar
os fracos. (In: VOLTAIRE. O preço da justiça. Tradução Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.8).
A
injustiça mostra deficiência moral e não significa apenas atos gananciosos, mas
revela maldades, perversidades e vícios. Kelsen considerava a justiça como uma
possível característica, porém não necessária de ordem social e, ainda indagava
o que se entendia por ser uma ordem justa?
Enfim,
significava uma ordem regular capaz de guiar o comportamento humano e de forma
a contentar a todos, e todos encontrarem a felicidade.
Enfim,
o maior desejo pela justiça é justificado pelo anseio do homem por felicidade. Concluiu, Kelsen[3] que a Justiça é felicidade
social que é garantida por uma ordem social.
John
Rawls em sua obra sobre a teoria da justiça constata-se o quão importante é o
seu valor jurídico para o século XX tanto que ao elaborar a teoria justiça que
fosse alternativa para as doutrinas que por muito tempo dominaram a tradição
filosófica, seja a utilitarista e a institucionalista. E, por isso,
justifica-se a doutrina distributiva encarada como princípio da justiça social.
Os
princípios da justiça social são os que fornecem o modo de atribuir direitos e
deveres nas instituições básicas da sociedade e definem também a distribuição
apropriada de benefícios e encargos da cooperação social.
Outra
teoria da justiça de autoria de Serg Christophe Kolm aponta que é a
racionalidade aplicada à questão da justiça e, sendo esta o resultado
necessário dessa aplicação e se referem às liberdades e igualdades, bem como a
estrutura geral da justiça.
Um
atordoante questionamento é trazido por Voltaire: quem nos deu o sentimento justo
e do injusto? Foi Deus, que nos deu um cérebro e um coração. Mas, em que
momento nossa razão nos ensina onde há o vício e onde há a virtude? Quando nos
ensina que dois e dois são quatro. Não há conhecimento inato, pela mesma razão
que não há árvore que contenha folhas e frutos ao sair da terra.
O
direito positiva e organiza o sistema de valores reconhecido por certo grupo
social, esse sistema pode diferir e, de fato, difere de lugar para lugar e de
tempos em tempos. O direito deverá estar em consonância com esses valores, e
deve visar sempre a justiça. (In: DENNIS LLOYD. A ideia de lei. Tradução
de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 137-138).
O direito precisa estar relacionado ao sistema
de valores e tais valores sociais é que dão sentido, significado e estima, para
certo grupo. De fato, cada pessoa tem em seu interior valores e princípios que
guiam a contínua construção de seu espírito, conduzindo-a a novos
comportamentos. Trata-se da verdadeira construção diária do ser humano. E, tais
valores individuais com o tempo se transformam em valores coletivos, momento em
que o direito precisa vir em proteção a tais valores e, os valores coletivos ou
valores sociais visam a justiça.
Convém recordar o pensamento de Heráclito de
Éfeso que afirmava que tudo existe em constante mudança e, que o conflito é o
pai e o rei de todas as coisas. E, para o filósofo a vida ou morto, sono ou
vigília, juventude ou velhice são realidades que se transformam umas nas
outras.
E,
disparou: "um homem não se banha duas vezes no mesmo rio. Por quê? Porque
na segunda vez não será o mesmo homem e nem se estará banhando no mesmo rio,
ambos terão mudado". Já para
Parmênides, a essência profunda do ser era imutável e, que o movimento ou a
mudança era um fenômeno de superfície, ou seja, da metafísica. Porém, é na
construção diária que os valores se enriquecem e passam a serem valores
coletivos, e como tais, o direito precisará protegê-los.
Para
obtermos uma análise axiológica de certa sociedade ou grupo humano é preciso
analisar o valor moral e, o próprio conceito de justiça. Se todos os propósitos
morais da vida são classificados como bem, portanto, a ideia de justiça é um
bem que a moralidade coloca diante da humanidade.
Se colocássemos a justiça no pináculo,
lembrando que um bem supremo é questão de escolha e não de demonstração, e
alguns pensadores colocaram a justiça no ápice do mundo moral, tal qual Platão[4]. A teoria da justiça de
Rawls pressupõe que um grupo de homens e mulheres que reúnem para constituir um
contrato social, dotado de cultura, talentos e ambições e convicções comuns,
são racionais e agem em seu próprio interesse e, assim, irão escolher seus
princípios de justiça.
E,
tais princípios seriam a mais ampla liberdade[5] política, igualdade e liberdade
para todos e, que as desigualdades em termos de poder, riqueza, renda entre
outros recursos não devem existir, a menos que favoreçam o benefício dos
membros em pior situação na sociedade. Rawls combatia em sua teoria de justiça
a desigualdade social e, as misérias que derivam desta.
Recuando
no tempo, recordamos da justiça política comentada por Aristóteles que
apresentou uma diferenciação nítida entre a justiça natural e a justiça legal e
que unidas formam a justiça política.
Assim,
a justiça natural que é integrante da justiça política é consensual, ou seja,
pois tem validade em todos os lugares independentemente do juízo de valor
humano e, a justiça legal constitui inicialmente o que pode ser cumprida de um
jeito ou de outro, mas se impõe ao ser estabelecida por lei.
Comparativamente,
a justiça platônica aborda o microcosmo do homem justo como reflexo do padrão
de sociedade justa. E, esboçar o que seja um padrão de sociedade justa. Será justa por se harmonizar com a sua ideia
de justiça. Platão acreditou que a justiça tanto se aplica aos objetos como as
pessoas, significando harmonizar-se e ajustar-se essa esfera.
A
justiça como equidade[6] é uma teoria de justiça
que generaliza e leva a um nível mais alto de abstração. E, a justiça é a
primeira virtude de instituições sociais. E, cada pessoa possui uma
inviolabilidade fulcrada na justiça. Assim, numa sociedade justa as liberdades
da cidadania são consideradas invioláveis. Eis a primazia mágica da justiça.
O
direito de cada homem de ser tratado com igualdade a despeito de sua pessoa, e
seu caráter ou seus gostos é reforçado pelo fato de que ninguém mais pode
garantir-se numa posição melhor em virtude de ser diferente. Assim, conclui-se
que os indivíduos têm direito à igual consideração e ao igual respeito.
Assim,
a concepção de Justiça varia de época para época. E, se para os gregos estava
baseada na ideia de desigualdade uma vez que própria ausência de igualdade
natural entre os seres humanos exigia tratamento diferente, em tempos modernos[7] a opinião mudou para
entender que a igualdade passou a ser considerada como a própria essência da
justiça.
Atentem-se
que a justiça formal requer a igualdade de tratamento conforme as
classificações estabelecidas pelas leis. E, nenhum princípio puramente formal
de tratamento de iguais como iguais bastará. As pessoas não nascem iguais
fisicamente, mentalmente, ou em outros aspectos, de modo que a classificação de
igualdade entre os seres humanos é uma simples formalidade.
Segundo
Chaim Perelman[8]
o conceito de justiça formal está vinculada à igualdade como substrato comum à concepção
de justiça. A igualdade está fundamentada em valores, e cita como exemplo a
riqueza e a beleza.
E,
estabelece como regra de justiça, a igualdade formal, por entender que ser
justo é tratar da mesma forma os seres que são iguais em certo ponto de vista,
que possuem uma mesma característica, a única que se deve levar em conta na
administração da justiça. Qualifiquemos essa característica de essencial.
A
justiça formal ou abstrata é princípio de ação que recomenda que todos devem
ser tratados da mesma forma. E, é formal porque não determina as categorias
essenciais para aplicação da justiça. E, permite que surjam as divergências no
momento que passar de uma fórmula comum e concrete para fórmulas diferentes e
diversas de justiça. O desacordo nasce quando se trata em determinar as características
essenciais para a aplicação de justiça.
A
esperança de Rawls é a de que a justiça como equidade pareça razoável e útil, mesmo
que não seja totalmente convincente, para uma grande gama de orientações
políticas ponderadas, e portanto, expresse uma parte essencial do núcleo comum
da tradição democrática[9].
Em sua
essência, todo homem traz em si, a justiça como esperança. A ideia de virtude
suprema, de equidade, de felicidade, de igualdade e de liberdade, verdadeira
justiça social.
E, a
justiça social é a estrutura básica da sociedade, e a distribuição de direitos
e deveres fundamentais, e determinam a divisão de vantagens.
A
justiça social está relacionada à igualdade entre todas as pessoas e, cada
pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades
básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para
outras.
E,
propõe que as desigualdades sociais e econômicas[10] devem ser ordenadas de
tal forma que sejam ao mesmo tempo: consideradas como vantajosas para todos
dentro dos limites do razoável e, vinculadas a posições e cargos acessíveis a
todos. E, tais princípios estruturam a sociedade como valores sociais.
A
teoria da justiça como igualdade advém de Aristóteles, para garantir a
igualdade, seja nas relações entre as pessoas, chamada de justiça comutativa.
Existente entre as relações ente o Estado e os indivíduos quando é chamada de
justiça distributiva. E, então, o Direito é remédio para as disparidades entre
os homens, sejam as desigualdades naturais como as desigualdades sociais.
A
teoria de justiça substancial ou por igualdade, trata iguais como iguais. E, a
lei só pode ser considerada lei se for aplicada a todas as pessoas ou situações
por esta abrangida. Isso chama-se de justiça.
A
justiça como equidade bem definida por Rawls[11], os cidadãos estão
envolvidos em cooperação social e, portanto, são plenamente capazes de fazer
isso durante toda a vida.
As pessoas livres e iguais são as detentoras
de duas faculdades morais, a saber: a capacidade de formar uma concepção do
bem, uma concepção do que considera uma vida digna a ser vivida.
Sem
dúvida, as desigualdades socais ferem de morte a dignidade humana, porque cada
pessoa deve ter um direito igual aos demais e ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas. E, as desigualdades sociais e econômicas devem ser
ordenadas para que sejam consideradas como vantajosas para todos e vinculadas a
posição e cargos aceitáveis a todos.
De
acordo com Rousseau há duas espécies de desigualdades na espécie humana, in litteris:
"Uma, a que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela
natureza, e que consiste na diferença de idades, de saúde, das forças do corpo
e das qualidades do espírito ou da alma; a outra, a que se pode chamar desigualdade moral ou política, por
depender de uma espécie de convenção a ser estabelecida, ou pelo menos
autorizada, pelo consentimento dos
homens. Esta consiste nos diferentes privilégios que alguns usufruem em
prejuízo dos outros, como serem mais ricos, mais reverenciados e mais poderosos
do que lês, ou mesmo em se fazerem
obedecer por eles".
Rousseau[12] tratou as desigualdades
de condições e das fortunas, da diversidade das paixões e dos talentos, das
artes inúteis, das artes perniciosas e, das ciências frívolas sairiam multidões
de preconceitos. E, instalada a desordem e fruto das revoluções, o despotismo
devorou tudo que tivesse percebido de bom e de sadio em todas as partes do
Estado, pisando nas leis e o povo vivendo sob ruínas. (In: ROSSEAU, J.J.
Discursos sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p.160).
As
desigualdades sociais representam as diferenças de possibilidades de vida
digna, de ter voz e ser ouvido, de existência de preconceitos e segregação
social, um grupo sufocado por justiça, um constrangimento que faz rasgar a alma
da pessoa que se sente injustiçada. E, como imaginar o conceito de justiça
diante do despotismo social, da fome, da sede e de todas as necessidades
humanas afogadas nas profundezas de misérias sem fim.
É
prerrogativa de toda pessoa obter justiça e liberdade para desenvolver suas
atividades no mundo das relações, com a proteção do Estado garantidas pelo
ordenamento Jurídico.
E,
Bobbio nos esclareceu que um ordenamento jurídico não poderá ser considerado
justo se não protege os fracos dos fortes, os pobres dos ricos, se não
estabelece com as próprias regras uma medida ou uma série de medidas ou uma
série de medidas com as quais seja impedida a prevaricação e todos os membros
de uma sociedade recebam igual tratamento. (In: BOBBIO, N. Direito e
Estado, no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000, p.117).
Conclui-se
que as desigualdades sociais representam as diferenças de possibilidades: de
vida digna, de ter voz e ser ouvido, de existência de preconceitos e segregação
social, um grito sufocado por justiça, um constrangimento a magoar a alma
humana que se sente injustiçada. E, como imaginar a justiça diante do
despotismo social, da fome, da sede e de todas as necessidades humanas.
O Estado
tem a obrigação de proteger o direito à liberdade, como direito personalíssimo
da pessoa humana, considerada como essencial à personalidade humana. São
essenciais à pessoa: a sua personalidade, o direito de locomoção, de pensamento
e de expressão, de participação em cultos religiosos e de comunicação em geral.
Afinal, a essência de tais direitos personalíssimos é possibilitar à pessoa
humana viver com dignidade e justiça.
O
direito à liberdade tido como direito da personalidade consiste em estabelecer ao
ser humano por meio da tutela do Estado, condições para que direcione suas
energias, de acordo com a sua vontade, para alcançar os seus objetivos, quer no
plano pessoal, quer no plano negocial, quer espiritual.
Etimologicamente
liberdade vem de liber, do qual deriva livre, teve a princípio o sentido
de pessoa na qual o espírito de procriação se acha naturalmente ativo, donde a
possibilidade de se chamar liber ao jovem, quando, ao alcançar a maturidade
sexual, se incorpora como homem capaz de assumir responsabilidades. Recebe,
assim, a toga virilis ou a toga libera. E, nesse sentido, o homem livre é
aquele que não é escravo.
Afinal,
ser livre é estar disponível para fazer algo por si mesmo. E, nesse sentido, a
liberdade se afigura com a possibilidade de decidir e, ao decidir,
autodeterminar-se. A liberdade pressupõe responsabilidades do indivíduo para
consigo mesmo e ante a comunidade. Os romanos assim definiam a liberdade como a
faculdade natural de fazer cada um, o que deseja, se a violência ou o direito
lhe não proíbe.
A
igualdade pode ser considerada como valor supremo de uma convivência ordenada,
feliz e civilizada em sociedade. A igualdade frequentemente é acoplada com a
liberdade. Liberdade e igualdade tem na linguagem política um significado
positivo. O homem ao ter a sua liberdade tolhida sem que tenha cometido qualquer
ato contrário à lei, sem que tenha praticado qualquer ato que turbe a ordem pública
e que fira a sociedade e seus valores, pelo fato de não poder ser desprovido de
sua liberdade, sente o peso da injustiça
sobre si.
Kant[13] entende como ação justa
aquela que a liberdade do arbítrio de um pode continuar com a liberdade de
qualquer outro, segundo uma lei universal. Ele se preocupa em estabelecer o
critério para distinguir uma ação justa de uma injusta. A justiça é uma
qualidade ou atributo de uma conduta humana específica, que consiste no tratamento dado a outros
homens. O juízo segundo o qual uma conduta é justa ou injusta representa uma
apreciação, uma valoração da conduta.
A
conduta é confrontada com uma norma de justiça que determina um dever ser, conduta valiosa que tem um valor de justiça
positivo
O
princípio da dignidade como nova teoria da justiça confere à pessoa a
capacidade de desenvolver-se física e psiquicamente, com respeito à vida, à liberdade.
E, em sua origem e travessia aporta na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, em 1789, após a Revolução Francesa, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem (Direitos Humanos0 em 1948, depois da Segunda Grande Guerra
Mundial e chegando até a nossa vigente Constituição Federal de 1988.
Consagrou-se
nos artigos 1º ao 3º do texto constitucional brasileiro vigente, a dignidade
humana como valor primordial, propiciando unidade e coesão ao texto, de molde a
servir de diretriz para a interpretação de todas as normas jurídicas que o
constituem. Foram elencados nos primeiros capítulos da CFRB/1988, inúmeros direitos
e garantias individuais, e lhes foi outorgado o patamar de cláusulas pétreas
conforme prevê o artigo 60, §4º, inciso IV, priorizando assim, os direitos
humanos.
Verifica-se,
portanto, a possibilidade da existência de outros direitos e garantias
fundamentais inseridos ao longo de todo o texto constitucional vigente, como
também o fato de os direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais
receberem o mesmo tratamento dos direitos fundamentais e, passarem a ter aplicação
imediata no direito interno.
A
dignidade pode ser distinguida em humana ou ontológica[14] e ética. Será ontológica
por ser uma qualidade inseparável do ser humano. Esta noção nos remete à
incomunicabilidade, de unicidade, de impossibilidade de reduzir o homem a um
simples número. É valor que se descobre no homem bastando-lhe o fato de
existir.
Assim,
todo homem, ainda que seja o pior dos facínoras, é um ser digno, e, portanto,
não pode ser submetido a tratamentos degradantes, como a tortura ou outros.
A
dignidade ontológica é a natureza do ser humano como ser. O homem ao ser
concebido adquire uma natureza comum que é inerente a todos, e, de forma
especialíssima e particular, a sua própria natureza, logo, é ser digno, tendo
virtude e honra como qualidades morais e como tal, deve ser visto como ser
único e respeitado como toda pessoa humana.
A
dignidade ética[15],
por sua vez, é referente às obras praticadas pelas pessoas, sendo fruto de uma
vida de acordo com a prática do bem e, não é praticado por todos do mesmo modo.
Trata-se de uma dignidade construída por cada pessoa, por meio do exercício da liberdade.
O princípio da preservação da dignidade humana
demarca o campo que foi chamado padrão mínimo na esfera dos direitos sociais, o
que aponta que a falta de condições materiais mínimas ao homem prejudica o
próprio exercício da liberdade, retira da pessoa o seu desenvolvimento físico e
psíquico, gerando a injustiça.
Cabe
ao Estado não apenas coibir as agressões contra a dignidade humana mas também
as que atentam contra a própria humanidade, deve proteger ativamente a vida
humana, sendo esta, a própria razão de ser do Estado, eis portanto, a relevância
da eficácia do Princípio da dignidade humana para a justiça.
Uma relevante forma de caracterizar um direito
como fundamental está em sua contribuição para a dignificação do homem e que se
projeta na liberdade individual, no convívio social e, em todas as esferas
possíveis de alcançar a plenitude do desenvolvimento humano, daí porque os
direitos sociais são fundamentais e atinge também a potencialização da
personalidade humana.
Ingo
Wolfgang Sarlet destacou que a vida, a dignidade e as liberdades são mais
elementares, mas enfrentam o problema da efetividade, é, portanto, algo comum a
todos os direitos de todas as dimensões.
A
positividade do Direito não se confunde com sua vigência nem com sua eficácia.
É mais que vigência e eficácia porque existem três modalidades de direito
positivo: o dotado atualmente de vigência; o que já a perdeu; e o que está em vias
de obtê-la. As normas constitucionais possuem eficácia e irradiam efeitos
jurídicos. A eficácia de certas normas
não se manifesta em sua plenitude, sendo necessária a emissão de uma norma
jurídica ordinária ou complementar executória.
O
princípio da dignidade humana protege a vida, a liberdade, todos os direitos
personalíssimos, e protegerá direitos futuros, como alicerce do Direito. Está vigente, e pode ser reconhecido como uma
teoria de justiça diante da sua importância para tutelar novos direitos, sendo
portanto uma bandeira de justiça.[16]
Dignidade
na definição de Kant, tudo tem ou bem um preço, ou bem uma dignidade. Podemos
substituir o que tem um preço por seu equivalente. Em contrapartida, o que não
tem preço, e, pois, não tem equivalente, é o que tem dignidade.
Há
ideias controversas sobre a estrutura normativa da dignidade o que nos remete a
análise de Robert Alexy, in litteris:
“De acordo com o conceito absoluto, a
garantia da dignidade humana é considerada como uma norma que tem precedência
sobre todas as outras normas, em todos os casos. Isso implica a impossibilidade,
por preclusão, de realizar o balanceamento. Isso, a seu turno significa que a
cada intervenção sobre a dignidade humana resta con substanciada uma violação à
dignidade. Mesmo justificada, torna-se impossível haver uma intervenção sobre a
dignidade humana”.[17]
A
dignidade humana e proporcionalidade se diferenciam quanto a intervenções do
Estado. Em cada intervenção sobre a dignidade humana corresponde a uma violação
à mesma, enquanto na proporcionalidade, esta está ligada à distinção entre
intervenções justificadas e injustificadas, entendendo que a intervenção
proporcional é justificável e constitucional. É a concepção de absoluto e
relativo.
Observarmos
que o princípio da dignidade humana diante da crise dos valores morais, sociais
e éticos tem sido a garantia de justiça. Assim, o colapso social, a
desigualdade e a perda de identidade social, a violência que nasce na perda dos
sonhos e da esperança, ainda têm no princípio da dignidade o passaporte para a
Justiça.
A
ideia de justiça ser um princípio garantidor da felicidade pessoal e, este
princípio ser garantido também por meio da ordem social, representa um novo
conceito de justiça que protege determinados interesses, ou seja, aqueles que
são reconhecidos como dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados a essa
ordem.
A justiça é uma das noções mais prestigiadas do universo espiritual, e, está longe de ser um valor exclusivamente revolucionário, ela está relacionada à felicidade pessoal. Direito e Justiça são conceitos diferentes que às vezes andam em sintonia, outras não. Nem sempre caminham juntos. O direito busca a justiça, tem nela a sua finalidade de existir e operar na vida social. O direito deve ser o meio, o veículo para a realização da justiça. E, a justiça deve procurar a preservação da dignidade humana.
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Notas:
[1] A justiça como equidade (fairness) busca estabelecer um critério normativo para determinar aquilo que é o justo, isto é, para aquilo que seria o correto de um ponto de vista público, uma vez que sua aplicação recai sobre a estrutura básica da sociedade, o que inclui as principais instituições políticas e econômicas. Sua estratégia geral é partir das convicções morais públicas compartilhadas em uma sociedade democrática, tais como as convicções de tolerância religiosa, recusa à perseguição e rejeição à escravidão para estabelecer princípios de justiça que descrevam essa concepção política de justiça que contará com os valores de liberdade, igualdade e bem comum a partir de uma escolha simétrica das partes na posição original e, então, testá-los por sua coerência com os juízos morais ponderados dos cidadãos e, também, por sua eficácia em garantir a estabilidade social e legitimidade política. Para Rawls, em Political Liberalism (1996, p. 9): “Justiça como equidade (justice as fairness) tenta fazer isso usando uma ideia organizadora fundamental em que todos os ideais e princípios possam estar sistematicamente conectados e relacionados. Essa ideia organizadora é a da sociedade como um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais vistas como membros inteiramente cooperativos da sociedade considerando uma vida completa.”
[2]
Para entender a filosofia de Platão, porém, faz-se necessário a atentar a
alguns aspectos culturais da Grécia no tempo em que ele produziu seus escritos.
Cumpre ressaltar que a civilização grega apresentava um importante diferencial
em relação às outras grandes civilizações da época (egípcia, hebraica, romana
e, etc.) enquanto nessas não havia ainda uma distinção consciente e nítida
entre a lei positiva e a lei natural ou a justiça, na cultura helênica essa
distinção já era perfeitamente conhecida - dentre outros motivos, graças a
dramaturgos como Sófocles que, em sua peça Antígona, ilustrou o conflito entre
Direito e Justiça com maestria raras vezes alcançada pela posterioridade. Uma
segunda circunstância cultural de enorme relevância para a compreensão da obra
de Platão e de Aristóteles era o enorme prestígio de que desfrutavam os
chamados sofistas, intelectuais célebres por usar seu considerável talento
retórico na defesa de variadas opiniões políticas e morais e, aos quais Platão
e Aristóteles, inspirados por Sócrates, se opuseram em veemência, satirizando-o
e desconstruindo-lhes as opiniões mais arraigadas em seus escritos.
[3]
Kelsen demonstrou, no seu cioso exame das diversas concepções de justiça
apresentadas pelo pensamento clássico e pelo pensamento jusnaturalista, que
quase sempre os jusfilósofos definem a justiça de uma forma não racional ou
metafísica, apelando para uma ideia de bem inteligível pela razão e de uma
natureza dotada de poder normativo, como espécie de legislador. Assim, Kelsen
considerava a justiça como felicidade social, garantida por uma ordem justa e
que regula o comportamento dos homens de modo a contentar a todos. A aspiração
da justiça é a eterna aspiração da felicidade, que o homem não pode encontrar
sozinho e, para tanto, procura-a na sociedade.
[4]
No diálogo platônico, Sócrates refuta igualmente essa segunda tentativa de
Trasímaco para definir a justiça, através do aprofundamento no próprio exemplo
por este fornecido: a arte da medicina, embora seja lucrativa, não consiste na
obtenção de lucro, mas sim, na cura de enfermidades, um médico não será menos
médico por exercê-la gratuitamente. Em resumo: o bem produzido pela ciência
médica e, sem a qual nem mesmo os lucros dela decorrentes existiriam, repousa
não no interesse dos médicos, mas sim, dos pacientes. A justiça, explica
Sócrates, reside muito mais na satisfação dos mais fracos ou dos menos peritos
do que na dos mais fortes e sábios.
[5]
Os desafios para efetiva concretização de sociedades democráticas vêm se mostrando
enormes, porém, há que se tomar certa distância dos ditos de Rousseau quando
desacreditam das possibilidades de realização de democracias totalmente
igualitárias, no sentido de democracia integral e ideal. De fato, a democracia
é a forma que mais convém aos humanos e a mais lapidada pela sua
interdependência e pelas suas necessidades, ao longo da história, sempre
adquirindo novos sentidos de liberdade e igualdade.
[6]
A partir da teoria de justiça como equidade, de John Rawls ampliou-se a visão
sobre a saúde e, relacionando-a ao princípio da oportunidade, desenvolveu uma
teoria na qual destacou a importância moral da saúde, em virtude de seu impacto
nas oportunidades de vida das pessoas. Em sua obra, Rawls argumentou que uma
maneira de se pensar a justiça é se perguntar quais princípios básicos seriam
por todos aceitos em uma situação de igualdade. É uma árdua tarefa tendo em
vista que as escolhas tais são sempre influenciadas por nossas crenças
políticas e religiosas e por nossa
posição social e econômica e, também por nossos interesses.
[7]
A teoria discursiva de Habermas que elaborou a tese do agir comunicativo
contina em sua obra intitulada "Direito e democracia: entre facticidade e
validade" para analisar as instituições jurídicas e propor um modelo em
que se interpenetram justiça, razão comunicativa e modernidade. Ao se referir à
facticidade e à validade o filósofo intentou compreender a dualidade do Direito
moderno. Essa relação assume forma de tensão entre o fato e o Direito que reúne
em si elementos sancionadores e elementos provenientes de uma autolegislação. A
tensão entre a facticidade e validade retorna pela circunstância de que com a
sanção se restringe o nível de dissenso, mas esse dissenso é superado no
momento em que se introduzi em seu bojo a ideia de que as normas jurídicas são
emanações do povo.
[8]
Em sua obra "Ética e Direito", Perelman não pretendeu formular uma
teoria da justiça que seja a mais apropriada e consentânea com a ideia de
racionalidade, comparativamente às teorias de outros autores. Pretendeu, em
verdade, a partir de um ponto de vista lógico, examinar os diferentes sentidos
da noção de justiça, para deles extrair um substrato comum a igualdade que o
conduzirá ao conceito de justiça formal ou abstrata. Segundo Perelman, há seis
concepções correntes de justiça concreta na civilização ocidental, a saber: a)
a cada qual a mesma coisa; b) a cada qual segundo seus méritos; c) a cada qual
segundo suas obras; d) a cada qual segundo suas necessidades; e) a cada qual
segundo sua posição; f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.
[9]
Os arranjos institucionais nas democracias constitucionais devem estar voltados
para a redução das desigualdades concretas, em benefício dos menos favorecidos.
E isso significa que, para a Teoria da Justiça, a garantia da igualdade de
oportunidades não é suficiente para a
construção de uma sociedade efetivamente justa. Rawls enfatiza que em qualquer
comunidade os talentos individuais são arbitrários e resultam de uma
"loteria natural" da vida, que faz com que alguns sejam mais
afortunados e capazes que outros, atribuindo-lhes vantagens desiguais se os
arranjos institucionais ensejam uma competição social baseada apenas no mérito
de cada um.
[10] Para Amartya Sen apresenta sua ideia de justiça de forma mais objetiva e factual em comparação a Rawls e Dworkin. Também se verifica em seus estudos a análise crítica ao pensamento de Rawls e de Dworkin, muitas vezes demonstrada através de dados empíricos. E, para o economista indiana o principal problema das teorias de justiça apresentadas é a criação de hipóteses perfeitas para serem utilizadas em situações bem definidas em detrimento da comprovação prática. Dada a importância do problema da não existência de um arranjo social identificável como perfeitamente justo, um argumento extremamente importante a favor da abordagem comparativa da razão prática na justiça não é apenas a inviabilidade da teoria transcendental, mas sua redundância. Se uma teoria da justiça deve orientar a escolha arrazoada de políticas, estratégias ou instituições, então a identificação dos arranjos sociais inteiramente justos não é necessária nem suficiente
[11]
A teoria da justiça de Rawls contida em sua obra é uma das mais importantes
desenvolvidas no século XX e pretendeu elaborar uma tese de justiça que seja
uma alternativa para essas doutrinas que há muito tempo dominaram a nossa
tradição filosófica, a utilitarista e a institucionalista. RAWLS (2000) observa
ainda que os dois princípios são um caso especial de uma concepção mais geral
da justiça assim expressa: “Todos os valores sociais – liberdade e
oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima – devem ser
distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou
de todos esses valores traga vantagens para todos”.
[12]
Rousseau resgatou a visão positiva de homem e fundamentou em sua obra que o ser
humano é essencialmente bom, (bon sauvage), porém a sociedade o
corrompe. A propriedade privada é também assunto primordial de seu pensamento,
afirmando ser dela que provêm todos os males da sociedade. Defende que desde o momento em que o homem
teve a necessidade do auxílio do outro, percebendo a utilidade do estoque de
provisões, desaparece a igualdade e a propriedade torna-se real e necessária.
De acordo com Rousseau, a ausência da propriedade privada resultaria em uma
sociedade sem conflitos, de modo que os
homens viveriam em liberdade no seu estado natural. Propôs o que chamou
de Contrato Social onde, em prol da manutenção da sociedade, todos alienariam
parte de suas liberdades individuais e somente poderia ser verdadeiramente
livres ao potencializar e legitimar a definição do Estado, até porque a vontade
geral não pode errar.
[13] Kant propõe princípios metafísicos ao direito, buscando assim realizar uma fundamentação moral do jurídico. Ele distingue as leis éticas das leis jurídicas e estabelece um fundamento comum para ambas: as leis morais. Assim, o direito possui uma fundamentação moral. Na obra, erudita análise da Crítica da Razão Pura, texto de Kant publicado em 1781, em que a identificação da liberdade como primeiro bem a ser reconhecido a cada ser humano termina por relacioná-la indissoluvelmente à ideia de Justiça. Para Kant, todo ser dotado de razão tem capacidade moral e não necessita de nenhum código ditado pela filosofia ou qualquer outro sistema de regras para conhecê-la e decidir-se pelo bem ou pelo mal. Nesse ponto aproxima-se da ética socrática, segundo a qual a virtude está dentro de cada ser humano, bastando ensiná-la ("revelá-la") para que seja praticada. Conforme explica o autor, Kant atribuía à Ética dois significados: em sentido amplo, tratava-a como "ciência das leis da liberdade", dividindo-a em leis morais e jurídicas; em sentido estrito, como teoria das virtudes. Segundo essa concepção, a diferença entre o direito e a moral (ética estrita), estaria no momento de aplicação - mas ambos teriam em sua base princípios existentes a priori e seriam dedutíveis pela razão. Em ambos, ainda, o princípio supremo seria a liberdade.
[14]
O conceito de pessoa, aparece, assim, como realidade ontológica única, fechada,
incomunicável, sendo a natureza humana racional singularizada na existência
concreta de cada ser pessoal que, pertencendo-se a si mesmo, é autônomo e
independente. A perspectiva atual de pessoa coloca-a como âncora da noção de
dignidade humana, pois apenas a pessoa fornece a razão da dignidade, isto é,
apenas a pessoanos dá a razão da
dignidade, assim como só ela nos permite apreender as consequências da dignidade. O desafio que se coloca aos
civilistas, pois, é a capacidade dever a pessoa em toda a sua dimensão
ontológica: a restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis “[...] é a condição
primeira de adequação do direito à realidade
e aos fundamentos constitucionais”.
[15]
Aristóteles vê a ética e a política como partes de uma mesma investigação, que
difere da ciência e da filosofia precisamente porque tem um objetivo prático –
a promoção e a conservação da felicidade humana. O matemático e o físico
procuram aprender sobre fatos que eles não podem modificar; o político intenta
não apenas entender o homem, mas mudá-lo e educá-lo, e aprender como fazer leis
que lhe vão proporcionar bem-estar e evitar que ele se prejudique.
Aristóteles, ao contrário do que membros
posteriores de sua escola, não fala de um ramo prático da filosofia, e acharia
esta expressão autocontraditória. Na Ética e na Política, ele assume
veementemente que não está teorizando sobre o conhecimento prático, mas sim o
demonstrando na prática, como se ele e seus alunos estivessem envolvidos em
algum empreendimento político. O conhecimento prático (phronesis) e o
conhecimento político (politiké) – não importa o termo que usemos,
presumindo que signifiquem a mesma coisa – devem ser enxergados não no
professor universitário, mas sim no homem sábio ou agente moral”.
[16] O destaque da obra de Rawls é que ela impactou profundamente todo o debate da filosofia jurídica de sua época, de modo que muitos desses grandes juristas passaram a reconhecer na Teoria da Justiça uma base de fundamentação de suas próprias teses. Esse é o caso de Ronald Dworkin, cuja conhecida concepção deontológica dos direitos (uma das bases da teoria dos direitos fundamentais no direito constitucional) busca fundamento nos pressupostos liberais e antiutilitaristas da teoria de Rawls, como o próprio Dworkin revelou em diversas passagens de sua obra. Também a teoria discursiva dos direitos e da democracia de Habermas dialoga diretamente com as teses de Rawls, especialmente aquelas expostas na obra sobre o liberalismo político , cuja primeira publicação no início da década de 1990, com uma série de revisões dos argumentos antes presentes na Teoria da Justiça, desencadeou o memorável debate Habermas-Rawls, com imediato impacto na produção teórica do direito a partir daquele momento.