Abuso e negligência infantil: o papel das instituições de ensino na notificação compulsória
A importância das escolas e dos educadores no sentido de notar e notificar os indícios de violência física e moral é enorme e poderá significar não apenas dar prestígio à dignidade humana, mas, efetivamente salvar vidas de seres humanos em desenvolvimento.
As crianças, são seres humanos em
desenvolvimento e quando sofrem negligência[1]
física podem ficar desnutridas, cansadas, sujas, doentes e, podem não se
desenvolver normalmente. Faltam as aulas com frequência, o que compromete o seu
aprendizado.
Crianças sem supervisão podem ficar doentes, se
envolverem em graves acidentes e, ainda, sofrer lesões. O que poderá impactar
no atraso no desenvolvimento físico e emocional. Há registros que algumas
crianças negligenciadas morrem de fome ou por exposição ao frio.
A negligência deixa vestígios evidentes como
hematomas, queimaduras, equimoses, marcas de mordidas ou arranhões. As crianças
que foram amordaçadas podem ter pele mais espessas ou cicatrizes nos cantos da
boca. Pode haver partes da cabeça sem cabelo ou o couro cabeludo pode estar
inchado naquelas que sofreram puxões de cabelo. Poderá haver ainda lesões
graves não visíveis na boca, nos olhos, no cérebro e até em outros órgãos
internos.
O ordenamento jurídico brasileiro diz que
Art. 136 - Expor a perigo a vida
ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de
educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou
cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado,
quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Pena - detenção, de dois meses a
um ano, ou multa.
§ 1º - Se do fato resulta lesão
corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a quatro
anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze
anos.
§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos (incluído pela Lei nº 8.069, de 1990)
Estatuto da Criança e do Adolescente
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.[3]
Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.[4]
Por vezes, os sinais de abuso físico são sutis.
Podem aparecer como pequena contusão ou pontos vermelho-arroxeados no rosto,
pescoço ou ambos. Em geral, as crianças que sofrem abuso emocional e
negligência tendem a ser inseguras e ansiosas sobre sua relação com as outras
pessoas porque suas necessidades jamais foram satisfeitas ou simplesmente
notadas.
A escola ao observar todos os indícios de que se
trata mesmo de abuso físico ou emocional deverá notificar o Conselho Tutelar.
E, lembre-se que a criança é a prioridade em toda essa história por ser mais
vulnerável.
Segundo a Delegacia de Proteção à Criança e ao
Adolescente, os educadores são os maiores responsáveis por denúncias de
violências contra crianças e adolescentes.[5]
Registros apontam que 68% das crianças com até
14 (quatorze) anos já sofreram violência dentro da própria casa[6].
A medida é prevista pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente[7]. De
acordo com o documento, os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos têm
que ser comunicados ao Conselho Tutelar.
-Assim, caso um educador note os sinais, mas a
direção da escola se omita da denúncia, é importante ressaltar que a
notificação é obrigatória e a responsabilidade do profissional de educação é intransferível
e pode ser legalmente cobrada.
No Brasil, 32 (trinta e duas) crianças e
adolescentes são mortos por dia, segundo o Ministério da Saúde. (In: Homicídios de crianças e adolescentes.
https://www.unicef.org/brazil/homicidios-de-criancas-e-adolescentes e
Ministério da Saúde in: Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/impacto_violencia_saude_criancas_adolescentes.pdf. Acesso
em 23.9.2023).
Além de diferentes violências praticadas pelas
famílias, a comunidade, a própria escola e a polícia, cada vez mais crianças e
adolescentes têm sofrido com depressão e cometido suicídio.
Entre 2000 e 2015, o número de crianças de 10
(dez) a 14 (quatorze) anos que tiraram a própria vida cresceu mais de 65%,
segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A Lei 13.431/2017, que estabelece um sistema de
garantia de direitos àqueles que são vítimas ou testemunhas de violência, abuso
e exploração sexual.
Em quase todos os casos a vítima tenta se
manifestar da sua própria maneira. Faça com que eles se sintam ouvidos e
acolhidos, sem questionamentos. Qualquer pessoa que suspeitar de algo pode
denunciar pelo Disque 100[8].
O Disque Direitos Humanos - Disque 100 é um
serviço de utilidade pública do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania,
conforme previsto no Decreto nº 10.174, de 13 de dezembro de 2019, destinado a
receber demandas relativas a violações de Direitos Humanos, especialmente as
que atingem populações em situação de vulnerabilidade social.
1. Mudanças de comportamento
O primeiro sinal é uma possível mudança no
padrão de comportamento da criança, como alterações de humor entre retraimento
e extroversão, agressividade repentina, vergonha excessiva, medo ou pânico.
Essa alteração costuma ocorrer de maneira imediata e inesperada. Em algumas
situações a mudança de comportamento é em relação a uma pessoa ou a uma
atividade em específico.
2. Proximidades excessivas
A violência costuma ser praticada por pessoas da
família ou próximas da família na maioria dos casos. O abusador muitas vezes
manipula emocionalmente a criança, que não percebe estar sendo vítima e, com
isso, costuma ganhar a confiança fazendo com que ela se cale.
3. Comportamentos infantis repentinos
É importante observar as características de
relacionamento social da criança. Se o jovem voltar a ter comportamentos
infantis, os quais já abandonou anteriormente, é um indicativo de que algo
esteja errado. A criança e o adolescente sempre avisam, mas na maioria das
vezes não de forma verbal.
4. Silêncio predominante
Para manter a vítima em silêncio, o abusador
costuma fazer ameaças de violência física e mental, além de chantagens. É
normal também que usem presentes, dinheiro ou outro tipo de material para
construir uma boa relação com a vítima. É essencial explicar à criança que
nenhum adulto ou criança mais velha deve manter segredos com ela que não possam
ser compartilhados com pessoas de confiança, como o pai e a mãe, por exemplo.
5. Mudanças de hábito súbitas
Uma criança vítima de violência, abuso ou
exploração também apresenta alterações de hábito repentinas. O sono, falta de
concentração, aparência descuidada, entre outros, são indicativos de que algo
está errado.
6. Comportamentos sexuais
Crianças que apresentam um interesse por
questões sexuais ou que façam brincadeiras de cunho sexual e usam palavras ou
desenhos que se referem às partes íntimas podem estar indicando uma situação de
abuso.
7. Traumatismos físicos
Os vestígios mais óbvios de violência sexual em
menores de idade são questões físicas como marcas de agressão, doenças sexualmente
transmissíveis e gravidez. Essas são as principais manifestações que podem ser
usadas como provas à Justiça.
8. Enfermidades psicossomáticas
Unidas aos traumatismos físicos, enfermidades
psicossomáticas também podem ser sinais de abuso. São problemas de saúde, sem
aparente causa clínica, como dor de cabeça, erupções na pele, vômitos e
dificuldades digestivas, que na realidade têm fundo psicológico e emocional.
9. Negligência[9]
Muitas vezes, o abuso sexual vem acompanhado de
outros tipos de maus tratos que a vítima sofre em casa, como a negligência. Uma
criança que passa horas sem supervisão ou que não tem o apoio emocional da
família estará em situação de maior vulnerabilidade.
10. Frequência escolar
Observar queda injustificada na frequência escolar
ou baixo rendimento causado por dificuldade de concentração e aprendizagem.
Outro ponto a estar atento é a pouca participação em atividades escolares e a
tendência de isolamento social.
Enfim, a
escola, o docente e a sociedade devem demonstrar empatia e não serem
indiferentes às violências contra as pessoas vulneráveis principalmente
crianças, adolescentes, portadores de necessidades especiais e idosos.
Destaque-se a relevância das instituições de ensino ao notificar a ocorrência de vestígios tanto de violência física como moral de crianças e adolescentes sendo obrigatório[10] e, não facultativo. A comunicação ao Conselho Tutelar para que promova averiguação não se confunde com denúncia, mas pode salvar vidas e restabelecer a dignidade do ser humano em desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Leis.
Constituição Federal. Brasília,1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf Acesso em 23.9.2023.
BRASIL. Código
Penal Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em 23.9.2023.
BRASIL. Lei 13.431/2017 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm Acesso em 23.9.2023.
BRASIL. Lei 13.819/2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13819.htm Acesso em 23.9.2023.
______ .
Estatuto da criança e do adolescente. Lei 8069/1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em 23.9.2023.
FERREIRA, Luiz Antônio Miguel. O Estatuto da criança e do adolescente e o professor: reflexos na sua formação e atuação. São Paulo: Cortez, 2008. Também disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/92222.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/notificacao_violencias_interpessoais_autoprovocadas.pdf (acesso em 23/09/2023).
Notas:
[1]
A definição de negligência física inclui a não prestação de cuidados médicos
básicos a criança ou adolescente, a falta de alimentação adequada e de higiene,
o uso de vestuário impróprio ao clima ou em mau estado e as situações em que é
deixada sem vigilância por períodos longos,
o que aumenta o risco de acidentes domésticos. Já a negligência emocional caracteriza-se
quando as necessidades emocionais da criança são ignoradas, com privação do
afeto e suporte emocional necessários ao seu desenvolvimento pleno e
harmonioso. É a forma de negligência mais difícil de identificar, pois não
deixa marcar físicas. E, a negligência educacional quando não são
proporcionadas à criança condições para a sua formação intelectual e moral,
como a privação da escolaridade básica, as faltas escolares frequentes e sem
justificativa e a permissividade perante hábitos que interferem no
desenvolvimento (como o consumo de álcool e outras drogas).
[2]
O artigo 136 do Código Penal descreve o crime de maus-tratos e considera como
ilícito a exposição da vida de pessoa (criança/adolescente/paciente/preso) sob
a responsabilidade (autoridade/guarda/vigilância) do agressor, seja para
ensino/educação ou tratamento/custódia, por privação de refeições ou cuidados
essenciais, submissão a trabalhos excessivos ou inadequados ou por abuso dos
meios de correção ou disciplina. A pena
prevista é de 2 meses a 1 ano de detenção e multa. Caso a agressão tenha
resultado mais grave, a pena é aumentada: 1 a 4 anos de reclusão, se configurar
lesão corporal; e 4 a 12 anos de reclusão para resultado morte. Quando o crime
é praticado contra menos de 14 anos, a pena deve ser aumentada em 2/3.
[3]
Vide art. 2º, par. único, da Lei nº 13.431/2017. Trata-se do desdobramento do
contido no art. 227, caput, da CF e arts. 34 e 36, da Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança, de 1989. Vide também arts. 18; 70 e 70-A, do ECA, que
impõem a todos o dever de velar pelos direitos assegurados a crianças e
adolescentes, auxiliando no combate a todas as formas de violência, negligência
ou opressão. As disposições relativas à prevenção e ao combate à violência
contra crianças e adolescentes contidas no ECA são complementadas por outras
normas, como a Lei nº 13.431/2017, que instituiu o “Sistema de Garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência”,
demandando a elaboração e implementação de uma política pública específica com
tal finalidade.
[4]
No mesmo sentido, dispõe o art. 22, da Lei nº 11.340/2006 (também chamada “Lei
Maria da Penha”), que vem sendo aplicado para coibir a violência doméstica e
familiar não apenas contra a mulher, mas também contra outros integrantes do
núcleo familiar.
[5]
(In: DELEGACIA DA CRIANÇA E ADOLESCENTE VITIMADOS - DPECAV. -PARECER.
Disponível em:
http://xa.yimg.com/kq/groups/26746596/1454265952/name/DELEGACIA+DA+CRIAN%C3
%87A+E+ADOLESCENTE+VITIMADO.pdf Acesso em 23.9.2023)
[6]
(In: DELEGACIA DA CRIANÇA E ADOLESCENTE VITIMADOS - DPECAV. -PARECER.
Disponível em:
http://xa.yimg.com/kq/groups/26746596/1454265952/name/DELEGACIA+DA+CRIAN%C3
%87A+E+ADOLESCENTE+VITIMADO.pdf Acesso em 23.9.2023).
[7] Atribuições do Conselho Tutelar: artigo
136 do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece: atender crianças e
adolescentes garantindo medidas protetivas; atender e aconselhar pais ou
responsáveis e conscientizá-los de seu papel e das medidas impostas em caso de
negligência ou abandono intelectual; promover a requisição de serviços públicos
nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e
segurança; encaminhar ao Ministério Público casos de infração administrativa
contra os direitos da criança e do adolescente; encaminhar à autoridade
judiciária casos de sua competência; providenciar a medida estabelecida pela
autoridade judiciária nos casos de ato infracional cometido por adolescente;
expedir notificações.
[8] O Disque 100 recebe, analisa e encaminha
denúncias de violações de direitos humanos relacionadas aos seguintes grupos
e/ou temas: Crianças e adolescentes. Pessoas idosas. Pessoas com deficiência.
Pessoas em restrição de liberdade. População LGBTQIA+ População em situação de
rua. Discriminação ética ou racial.
[9] Os tipos de negligência infantil são: Física: caracterizada pela falta de alimentação, higiene ou cuidados básicos de saúde; Emocional: ocorre quando a criança ou adolescente não tem o suporte nem o afeto necessário para seu pleno desenvolvimento; Educacional: é aquela na qual os cuidadores não proporcionam o necessário para a formação intelectual.
[10] Conforme o artigo 56º, do ECA “os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: I – maus-tratos envolvendo seus alunos; II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; III – elevados níveis de repetência.
Autoras: Gisele Leite. Pedagoga. Professora universitária aposentada. Mestre em Direito UFRJ. Mestre em Filosofia UFF, Doutora em Direito USP. Presidente da Seccional Rio de Janeiro – ABRADE. Pesquisadora-Chefe INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.