A natureza humana segundo William Shakespeare

Entre as muitas lições deixadas por Hamlet há a concretude das desilusões que acompanha a vida. Enfim, o pessimismo, indecisão, o fatalismo e relativista confirmam que viver sem amor, se revela sem vida, seja porque se fez descrente, seja porque se isentou de sentir com autenticidade a natureza humana. Hamlet é tragédia centrada na vingança, mas assume um ritmo labiríntico, não havia paz e sua reclusão e pseudoloucura nos traduz ser a vida uma enorme prisão, repleta de células solitárias numa masmorra. A natureza humana é enfocada de forma melancólica e, para o príncipe todos nós merecemos a disciplina do chicote

Fonte: Gisele Leite

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“Acima de tudo sê fiel a ti mesmo”

As tragédias do famoso bardo abordam enfaticamente a natureza humana e pode-se notar que a representação do humano compõe toda a sua essência. Nos contextos há traição, ódio, vingança, volúpia, assassinatos e o amor visceral capaz de ultrapassar todos os limites.

Hamlet é considerada uma obra principal do autor, a mais importante tragédia e onde se pode constatar toda a imensa genialidade do bardo.

Hamlet[1] representa um divisor de águas na forma com que o dramaturgo como via a si mesmo e suas habilidades. Voa mais alto e atinge os mais amplos horizontes a nos mostrar múltiplas acepções da arte, passando pela imaginação e sabedoria.  E nem todos os mistérios foram plenamente desvendados dando asas a nossa interpretação e imaginação.

Hamlet insistia que precisava ser cruel para ser justo. Todo príncipe deseja ser considerado piedoso, e não cruel. Mas, não poderia utilizar mal esta piedade. O príncipe não deveria importar-se com a fama de cruel para manter os súditos unidos e confiantes. A confiança exagerada pode tornar o príncipe incauto, e a desconfiança excessiva pode torná-lo intolerante. Um fio tênue separava o incauto do intolerante.

Hamlet questiona as trajetórias de vida, e cada vez mais descobrimos novas acepções. O que há por de trás da vingança? Hamlet é a peça mais extensa de Shakespeare e preenche o espaço existente entre a necessidade da vingança e o ato da vingança. Há possibilidades em pensar em filosofia, direito[2], sociologia e até teologia.

A propósito, o direito protege a natureza humana através dos direitos humanos que rege o modo como os seres humanos individualmente vivem em sociedade e, entre si, bem como sua relação com o Estado e as obrigações que o Estado assume em relação a estes.

Os direitos naturais da pessoa humana consistem em direitos naturais garantido a todos e que devem ser universais, extensíveis a todos os povos e nações, inerente a sua classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou mesmo posicionamento político e ideológico.

A ambiciosa tragédia começa com o assassinato[3] como principal catalisador da vingança, e criou um vingador filosófico e passa três atos atormentados por dúvidas morais e temores mortais e humanos.

Todos os aspectos relevantes na construção dos personagens das tragédias, as falas dos personagens e a ausência do narrador. Bakhtin afirmou que quando analisamos as tragédias de Shakespeare, também observamos a transformação sucessiva de toda realidade, que age sobre suas personagens, e, em contexto semântico dos atos, pensamentos e vivências dessas personagens; ou verificamos diretamente as palavras (palavras das feiticeiras, do fantasma do pai e, etc.) ou acontecimentos e circunstâncias, traduzidos para a linguagem do discurso potencial que interpreta.

A canonização do bardo é justificável por sua atemporalidade[4], polissemia e tamanha verossimilhança. E, que se refere à natureza humana tão presentes em toda sua obra. Ele pertence a todos os tempos. A tragédia refere-se às catástrofes, suscitando a compaixão e o terror, obtendo a purgação das emoções e catarse do espírito humano.

A tragédia mergulha nas profundas questões do bem e do mal e, a peripécia que existe tanto da compaixão como no terror que são capazes de ser o objeto da tragédia investigando o infortúnio e a felicidade.

O ser humano é mote principal para Shakespeare pois é a partir dele que elaborou as grandes obras para o teatro e para literatura. Seu poder de linguagem era assombroso e ao preocupar-se com a ficção, retratava bem a realidade, uma realidade atemporal eivada de tesouros reveladores desde a comunicação não verbal até a cultura popular.

Lembremos que o teatro do bardo inovou toda a cultura dramática, pois o homem é o centro das atenções e, explorou os conflitos humanos e não dos deuses. Aliás, no teatro elisabetano o público se deixava seduzir pelas personagens e histórias que poderia estar bem na vida cotidiana. O teatro nesse período é a representação crua da vida e cruel da realidade.

Enfim, as tragédias do bardo representam vários aspectos da vida, através do exame do medo, do espírito humano e, ainda, da compreensão da lógica do poder. E, o seu relator é o retrato do fato e a perseguição de suas vis consequências.

O teatro do bardo é uma instituição pedagógica, abrindo espaço para desvendar os mistérios insondáveis e entendido como conceito universal concreto. 

O espaço transcende a geografia e viajar em envolver-se com heróis e vilões e, ainda retrata o herói que comete crimes e altera a ordem natural da vida. Polônio[5] é quase a voz da consciência e morre no lugar de Cláudio, frustrando a concretude do ato da vingança.

O que Shakespeare fez foi mudar o conteúdo próprio de tal universal concreto. Ou seja: ele o despe de seu caráter religioso, tanto enquanto temática particular, como também fornece o embasamento último do sentido do teatro, e deu-lhe um novo conteúdo. Enfim, o universal concreto se esgota agora em duas categorias, o tempo e o espaço, em síntese, na história e na geografia[6].

Pois nosso bardo viaja, ele é o primeiro grande viajante da história do teatro.  E, dentro da história da natureza humana. Ou melhor, ele fez o seu teatro viajar. Basta alguma escassa lembrança para entender o que afirmo: ele vai à Dinamarca, e lá desenterra Hamlet, o quase-herói; é com esse personagem que tem início a lenta e inexorável crise da figura do herói no teatro moderno. (BORNHEIM, 1998). Shakespeare jamais saiu de sua terra natal[7].

A tragédia de Hamlet traz a concentração no herói que por conta de seu filosofar sobre a vida e morte, sobre vingança nos fornece um manancial de dúvidas.

Inicialmente, para começar de fora, tal tragédia traz diante de nós um número considerável de pessoas (muito mais do que as pessoas das tragédias gregas), a menos que os membros do Coro sejam computados entre eles; porém é eminentemente um enredo de uma pessoa, o herói […] (BRADLEY,1905).

Para BRADLEY (1905) se Hamlet em qualquer parte da tragédia estivesse realmente louco, ele não seria mais um personagem trágico. Ainda cogitou que uma tragédia é uma estória de excepcional calamidade, e que conduz um homem de alta linhagem a morte. É uma estória de ações humanas que produz excepcional calamidade e termina na morte de tal homem.

Em relação a peça “Hamlet”[8] outro autor disse que “Shakespeare parece escrever a partir de sua própria experiência com relações familiares, e a idealização que o herói faz de uma normalidade passada gera uma enorme intensidade emocional” (HONAN, 2001, p. 347).

Para entendermos Shakespeare e sua obra devemos considerar que ele, apesar de sua genialidade, era uma pessoa como todos nós. Ele vivia nesse mundo, apesar de senti-lo de uma maneira mais profunda daquela que nós sentimos.

Longe de criar temas ou motes a partir do nada, Shakespeare elaborava tensões; respondia a lembranças marcantes, a pressões intensas, contantes ou penosas até à mais pura amargura e dor, o que equivale dizer que era como o resto de nós, dadas as esperanças, os arrependimentos e os desesperos que invadem todas as psiques. (HONAN, 2001, p. 349).

Outro fator revelador é que as personagens de Shakespeare falam de seu interior. Os solilóquios mostram seu íntimo, e os personagens parecem ter vida própria e autônoma, independente da escrita do bardo ou mesmo pode-se confundir o próprio autor com a personagem.

Eles escutam a própria voz e também falam consigo mesmos ou até com terceiros. O que traz nobre caminho da individuação e trouxe o milagre de criar vozes, que são distintas e tão internamente coerentes, e somam muitos personagens extremamente individualistas e realistas.

Hamlet, não ficou preso a seu tempo, mas ousou romper, transcender a sua época: “O que impressiona em Shakespeare está precisamente em uma certa radicalidade em saber dizer coisas novas, em expressar a aurora dos tempos modernos.” (BORNHEIM, 1998).

O conhecimento da natureza humana de Shakespeare impressiona. Ele aborda os conflitos do ser humano que sempre existiram, como ódio, amor, usurpação do poder, traição, vingança, o belo, o feio, a tirania, a angústia, a melancolia, a ambição, a frustração e, etc. Todas essas características compõem a nossa natureza. Resumindo Shakespeare explora o bem e o mal que existem em todo os seres humanos. Sem fazer do humano algo inverossímil.

Shakespeare apresentou o homem como ele realmente era, como um ser que também pertencia ao mundo: “...o homem passa a considerar-se um ser simplesmente mundano, esforçando-se por estabelecer-se de vez nesta Terra.” Triturado pelas engrenagens mundanas na busca de afeto e reconhecimento.

A simplicidade do cotidiano, da vida rotineira, das coisas consideradas triviais, simples, não passavam despercebidas por Shakespeare, pois ele as considerava material de maior valor para a elaboração de suas obras.

Ele era mestre em representar a vida através de sua obra. Ele escrevia suas peças para serem representadas e não para serem apenas lidas como textos literários. Não devemos desconsiderar que seu objetivo era ganhar dinheiro e ficar famoso.

Mesmo escrevendo para o público do século XVII, suas peças tornaram-se universais e atemporais. A razão que faz com que Hamlet seja lida, estudada e analisada até os dias atuais, é o fato de que esta obra apresenta características da natureza humana, como amor, ódio, traição, ciúme, inveja, usurpação do poder, guerras, assassinatos. O luxo da vingança e a disputa do poder permeiam toda a peça e traçam escabrosos perfis.

A natureza humana não muda, pois desde os primórdios, os seres humanos carregam dentro de si o bem e o mal.  Em alguns, em verdade, aflora o bem, em outros o mal, e nos chamados seres humanos “normais”, existe o equilíbrio, mas nunca a perfeição. Ninguém é totalmente bom, ou totalmente mal.

Filosoficamente, Sartre (1987) não acreditava na existência de uma natureza humana, já que para ele a existência precedia a essência do homem. Por outro lado, Kant acreditava que havia uma natureza humana, com a essência precedendo a existência.

“Vejamos as falas mais marcantes de Hamlet

Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

“Duvida da luz dos astros,

De que o sol tenha calor,

Duvida até da verdade,

Mas confia em meu amor”.

“Seja fiel a ti mesmo e que a minha benção te amadureça em teu espírito”.

HAMLET: “Pode-se pescar com um verme que haja comido de um rei, e comer o peixe que se alimentou desse verme.

O REI: Que queres dizer com isso?

HAMLET: Nada; apenas mostrar-vos como um rei pode fazer um passeio pelos intestinos de um mendigo”.

“O hábito, esse demônio que devora todos os sentimentos”.

“Necessito de sangue em vez de lágrimas”.

“Há mais coisas no céu e terra, Horácio, do que foram sonhadas na sua filosofia”.

“Foi curto.

Tal como o amor das mulheres”.

“Acima de tudo sê fiel a ti mesmo,

Disso se segue, como a noite ao dia,

Que não podes ser falso com ninguém”.

O pensamento assim nos acovarda, e assim

É que se cobre a tez normal da decisão

Com o tom pálido e enfermo da melancolia;

E desde que nos prendam tais cogitações,

Empresas de alto escopo e que bem alto planam

Desviam-se de rumo e cessam até mesmo

De se chamar ação.” Ato III, Cena I: Príncipe Hamlet

“Tens sido...

Um homem que as desgraças e recompensas da Sorte

Aceitas com igual gratidão... Dá-me o homem”

“Que não é escravo da paixão, que eu o trarei. No fundo do meu coração, sim, no coração do meu coração. Como faço contigo...”

"...Coração, não te esqueça o de quem és. Que neste peito firme jamais entre a alma de Nero; ríspido, mas nunca desnaturado; espadas, só na língua, sem que delas me valha: que se irmanem na hipocrisia a língua e o coração. Se a palavra sair demais pesada, minha alma, não lhe dês forma adequada. HAMLET, ATO III

⁠” Para o teu próprio eu, seja verdadeiro; E deve seguir-se, como a noite ao dia. Tu não podes então ser falso com nenhum.

“Mas insistir na ostentação de mágoa/ É teimosia sacrílega; lamento pouco viril, / Mostra uma vontade desrespeitosa ao céu.”

“Não dá voz ao que pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo.”

“Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos. / Acolhe a opinião de todos – mas você decide.”

“O hábito revela o homem.”

“E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo. Jamais serás falso com ninguém.”

“A loucura dos grandes deve ser vigiada.”

“A quem não precisa nunca falta um amigo. / Mas quem, precisado, prova um falso amigo/ Descobre, oculto nele, um inimigo antigo.”

“O discurso patife dorme no ouvido idiota.”

“Um homem pode pescar com o verme que comeu o rei e comer o peixe que comeu o verme.”

“O que é um homem cujo principal uso e o melhor aproveitamento do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.”

Basicamente, todos os indivíduos são semelhantes em sua essência, há certas características na natureza humana que se pode viver em crianças e adultos. Há considerações abrangentes sobre o desenvolvimento da personalidade humana e que são aplicáveis a todos os seres humanos, inerentemente, seu gênero, raça, cor de pelo credo ou até posição social.

E revela-se que as tragédias do bardo era um profundo observador e conhecedor da natureza humana. E, como Sócrates, falou: conhecer bem um homem, seria conhecer-se a si mesmo.

Mesmo assim, ele questiona esse “homem” da natureza que ele, como todos nós fazemos parte. Na fala seguinte ele começa destacando aspectos positivos do homem, contudo sua desilusão em relação ao ser humano fica evidente no final da mesma com o questionamento. Esse questionamento tem um eco bíblico, pois Hamlet fala da parte mais pura do pó, o homem:

“Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar.” (GÊNESIS, 3:19). Desilusão que provavelmente acometeu Shakespeare na época da escrita de Hamlet: Hamlet – Que obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão!

Como é infinito pela faculdade! Em forma de movimentos, como é expressivo e maravilhoso! Nas ações, como se parece com um anjo! Na inteligência, como se parece com um deus! A maravilha do mundo! Protótipo dos animais! E, mesmo assim, que significa para mim essa quintessência do pó? (SHAKESPEARE, 1981).

 Podemos afirmar que Shakespeare se preocupava com o conhecimento sobre o ser humano. O conhecimento e os questionamentos sobre a natureza humana são importantes para um bom dramaturgo quando no ato da elaboração de uma tragédia.

Afinal, para que a tragédia obtenha sucesso é necessário que os espectadores/leitores vejam a si mesmos nas falas das personagens.

Verificamos da leitura da uma tragédia como Hamlet.

É possível afirmar que William Shakespeare foi um grande filósofo, pois os questionamentos sobre a vida e a morte, o matar ou não matar por vingança em Hamlet, nos prova o poder filosófico da peça.

“Shakespeare é para a literatura mundial o que é Hamlet para o domínio imaginário da personagem literária: um espírito que tudo impregna, que não pode ser confinado” (BLOOM, 2001).

A impossibilidade de se confinar Hamlet deve-se justamente ao seu poder filosófico. Talvez a loucura seja a eloquência da filosofia.

A loucura também faz parte da natureza humana. Até onde somos totalmente normais de acordo com os padrões sociais? Eis uma pergunta complexa, pois grandes nomes da história em várias áreas foram considerados loucos em suas épocas porque não foram compreendidos.

Tende-se a revalorizar o peso do “fator doença mental”, situação que deve ser “enfrentada” pela psiquiatria. Certamente, os doentes mentais não estão entre os grupos mais “perigosos” de uma sociedade, e isto deve ser clarificado.

Porém, há evidências crescentes da importância de ser fornecido o cuidado adequado e específico, no âmbito psiquiátrico, àqueles que dele necessitam. Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito a pacientes avaliados como potencialmente violentos, que devem receber um manejo mais amplo e intensivo sob pena de, não raro, vir a sofrer as consequências indesejáveis, sob a forma de uma maior carga de violência para a sociedade.

Lembremos que Pitágoras foi mal compreendido, como Sócrates e Jesus e Lutero e Galileu e Newton e todo espírito puro e sábio que jamais tomou forma humana. “Ser grande é ser mal compreendido[9].

Em várias grandes tragédias de William Shakespeare, a saber, Hamlet, Macbeth, Othello, Mercador de Veneza e Rei Lear, há poesia. A poesia explora toda a emoção que aflora do íntimo do poeta e, também compõe a natureza do ser humano.

De acordo com BRADLEY (1905) a poesia das quatro tragédias, como a beleza de estilo, o cantar/expressão das palavras e a versificação podem passar despercebido. Abordaremos aqui a tragédia Hamlet.

Talvez nenhum outro escritor foi tão bom conhecedor do homem como o grande bardo inglês.  Ao nos depararmos com um Hamlet que busca incessantemente explicações para questões da vida trazendo questionamentos íntimos que ainda são contemporâneos.

O filosofar de Hamlet é um refletir inteligente e, muito bem arquitetado assim, as características que formam a natureza humana emergem a todo o momento durante a tragédia.

Essas características são: vingança, dor, ódio, traição, volúpia e amor. Ao perder seu pai Hamlet sofre profundamente, pois ele faz parte da raça humana, que quando ama verdadeiramente, sofre também verdadeiramente. O luto é esboçado na dor pungente.

O sofrimento de Hamlet com a morte de seu pai nos afeta, nós sentimos toda a sua dor e toda a sua angústia. A sua angústia nos angustia, a vontade de vingar-se é também a nossa vontade, a revolta com

Cláudio, e até com Gertrudes, nos deixa revoltados. Hamlet está vivo falando conosco e não somente com ele mesmo, ou com os outros personagens. Nós nos vemos em Hamlet e parece que ele também nos vê.

William Shakespeare explorou muito bem em obras como Hamlet. Observando a personagem de Hamlet, é pensar no homem que existe a partir de uma natureza humana imperfeita, e por isso comete erros.

Miguel Chaia aponta que Shakespeare foi clarificado por Maquiavel[10]. E, expôs a relação entre a arte e política. toda obra de Shakespeare constitui-se numa forma de conhecimento expressa na mais alta poesia e dramaturgia produzidas pela civilização.

O texto e a literatura compõem o suporte para as ideias deste autor, cuja produção é voltada para a montagem teatral. Maquiavel, por sua vez, também se expressou pela literatura, através de obras como “Cartas florentinas” e “A mandrágora”.

Recomendo a leitura da obra de Leandro Karnal conforme descrita nas referências abaixo. Todo o mundo é um teatro, escreveu William Shakespeare, e homens e mulheres não passam de meros atores.

No livro de Leandro Karnal, atores-leitores são convidados por a um passeio pela própria consciência: a jornada de aprender com quem mais tem a ensinar no teatro do mundo – o criador de Hamlet.

O que aprendi com Hamlet, dessa forma, revela os ensinamentos deixados pela principal peça de William Shakespeare numa combinação entre a experiência de um homem do século XVI e outro do século XXI.

Karnal refletiu sobre as lições que seu protagonista, o príncipe melancólico da Dinamarca, deixou e, mesmo nesta era de selfies felizes, continua a deixar. Com a colaboração de Valderez Carneiro da Silva, tradutora e especialista em Shakespeare, o autor cruza as passagens da peça como uma espécie de coaching – uma curadoria de vida.

Hamlet entrando em cena quando começa um monólogo. A frase mais célebre de abertura do monólogo é "Ser ou não ser, eis a questão". Por mais que a pergunta pareça complexa, em verdade, é muito simples. Ser ou não ser é exatamente isso: existir ou não existir e, em última instância, viver ou morrer. Hamlet se revela como o primeiro homem livre e o primeiro ser moderno[11], mas pago elevado preço por isso[12].

O quinto ato que encerra a mais longa peça escrita por William Shakespeare. Enfim, Hamlet sobreviveu aos macabros planos do Rei Cláudio (seu tio) e, finalmente, retornou para Elsinore. Sem saber sobre a morte de Ofélia, o Príncipe da Dinamarca entabula diálogo com dois coveiros que abrem a sepultura.

Referências

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Notas:

[1] A origem do nome Hamlet que é inglesa possui profundo significado e remonta à língua germânica, especialmente ao termo "Hamal" correspondente a homem corajoso. Era comumente usado por povos nórdicos e anglo-saxões. O significado original reflete as características de força e bravura que podem ser associadas às pessoas que o carregam. No contexto contemporâneo, o nome Hamlet pode ser interpretado de diferentes maneiras. Desde sua associação com a peça do bardo, como pela busca por justiça, a luta contra corrupção e importância do autoconhecimento.

[2] A propósito, a obra intitulada “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare, cujo enredo une Literatura, Direito e Filosofia. Elementos históricos sobre a perseguição aos judeus foram investigados em busca de instrumental para demonstração da relação entre lei, justiça e equidade, tomando a temática histórico-universal da comédia como suporte para abordagem do tema da intolerância religiosa. A sentença proferida por Pórcia, no julgamento do litígio travado entre Shylock e Antônio (Ato IV, I) conduziu abordagem sobre o sentido valorativo da lei enquanto manifestação estatal ajustada aos postulados da Justiça.

[3] "A vingança não caracteriza automaticamente a torpeza. Será ou não torpe, dependendo do motivo que levou o indivíduo a vingar-se de alguém. Exemplos: (1) Não é torpe a conduta do pai que mata o estuprador de sua filha. Ao contrário, trata-se de relevante valor moral (privilégio), nos moldes do art. 121, § 1º, do CP; e (2) É torpe o ato de um traficante consistente em matar outro vendedor de drogas que havia, no passado, dominado o controle do tráfico na favela então gerenciada pelo assassino." (In>:MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 318).

"(...) A vingança não pode ser considerada sempre motivo torpe (tudo depende de cada caso concreto). Quem por vingança mata o estuprador da filha não comete o crime por motivo torpe (ao contrário, relevante valor moral)."(GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: parte geral. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 521).

[4]  A contemporaneidade de Hamlet e seu discurso nos faz refletir sobre as escolhas políticas, ideológicas e sociais que fomos fazendo no longo percurso de amadurecimento e crise das democracias.

[5] Polônio é o conselheiro-chefe de Cláudio; seu filho, Laertes, está indo de viagem à França, enquanto sua irmã, Ofélia, é cortejada por Hamlet. ... Toda a corte é convocada para assistir ao espetáculo; Hamlet fornece comentários durante toda a encenação.

[6] Não apenas a biografia de Shakespeare se torna ponto de disputa, mas também e principalmente sua obra — desde as peças até os sonetos. E tanto obra quanto vida são mobilizados em conjunto com o objetivo de iluminar certos pontos obscuros da trajetória do escritor, especialmente no que diz respeito ao seu relacionamento com a família, o Estado e a religião. Com relação ao tópico da família, por exemplo, Greenblatt especula sobre a relação entre a morte do único filho homem de Shakespeare, Hamnet, e a escrita de sua peça mais famosa, Hamlet. No mesmo tópico, Greenblatt percorre as peças de Shakespeare mostrando a inexistência de casamentos felizes — talvez reflexo da relação conturbada do dramaturgo com sua esposa, Anne Hathaway. Como desdobramento dessa questão, há inclusive uma série de considerações acerca da possível homossexualidade de Shakespeare.

[7] Fundo histórico aponta-nos também para uma das principais razões que levaram Shakespeare a escolher terras longínquas ou afastadas no tempo como espaço preferencial para a encenação de suas peças. Num período de tantas perseguições políticas, teria sido essa a forma genial encontrada pelo bardo para garantir sua própria liberdade de expressão.

[8] Três primeiras versões da peça sobreviveram aos nossos dias: essas são conhecidas como o Primeiro Quarto, o Segundo Quarto e o First Folio. Cada uma dessas possui linhas ou mesmo cenas que estão ausentes nas outras. Dada a estrutura dramática e a profundidade de caracterização, Hamlet pode ser analisada, interpretada e debatida por diversas perspectivas. Por exemplo, os estudiosos têm-se intrigado ao longo dos séculos sobre a hesitação de Hamlet em matar seu tio. Alguns encaram o ato como uma técnica de prolongar a ação do enredo, mas outros o veem como o resultado da pressão exercida pelas complexas questões éticas e filosóficas que cercam o assassinato a sangue frio, resultado de uma vingança calculada e de um desejo frustrado.

[9] A respeito do momento da tomada de decisões, Hamlet deixou uma lição paradoxal: sou o que penso ou o que eu faço? Todas as grandes questões e dilemas da existência humana se mostra muito útil e procedente. Hamlet acaba fazendo o que não deve no momento equivocado, evidenciando de forma clara e exemplar que o que nos constitui não são nossos pensamentos e palavras, mas sim nossas ações. “Ser ou não ser: eis a questão”. Contrapondo-se a Descartes, que postula que existimos porque pensamos, Shakespeare nos ensina que somos aquilo que decidimos e fazemos.

[10] Se o núcleo da política é o poder, e o núcleo do direito é a justiça, a tragédia enquanto formato literário e enquanto modo de viver e sentir o mundo se propõe como uma forma política e jurídica. Assim, podemos encontrar nas grandes tragédias shakespearianas seja Hamlet, Otelo, ou Macbeth, e também em O Príncipe, de Maquiavel, uma preocupação comum, equacionar como o poder se liga à justiça. Estudar esses autores em conjunto, entrecruzando suas obras, é uma alternativa original de investigar uma questão fundamental para a política e para o direito: os limites do poder.

[11] Hamlet é o personagem fundador da modernidade, dono de seu destino. É o primeiro personagem que vive “O Príncipe”, de Maquiavel, com a crença no poder do eu e na glória. É dele, e de mais ninguém, o poder de se proclamar e a decisão de não se matar. Acredita-se que Shakespeare escreveu Hamlet baseado na lenda de Amleto, preservada no século XIII pelo cronista Saxo Grammaticus em seu Gesta Danorum e, mais tarde, retomada por François de Belleforest no século XVI, e numa suposta peça do teatro isabelino conhecida hoje como Ur-Hamlet.

[12]  "The rest is silence" é uma famosa frase da peça Hamlet, de Shakespeare, dita pelo próprio Hamlet, à beira da morte. É traduzida para o português como “O resto é silêncio”, havendo uma ambiguidade no inglês quanto à palavra “rest”, que pode significar “resto” e “descanso”.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Shakespeare Tragédia Natureza Humana Filosofia Vingança

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