A invisível vira-lata
Infelizmente, a prática política e o contexto social têm favorecido uma concretização empobrecida e excludente de dispositivos constitucionais. E, em não havendo a concretização tão almejada, a Constituição enquanto mecanismo de orientação da sociedade e do povo, deixa de funcionar como legitimadora do Estado e da existência de uma autêntica nação
O
nascimento da vigente Constituição Federal brasileira se deu por uma disputa
árdua pelas lideranças sociais e pelos partidos políticos durante um biênio.
Resultando em uma Constituição que incluiu em seu texto todos os maiores
conflitos sociais brasileiros, ainda que não tenha dada a estes uma definitiva
solução.
E, a
solução passou a situar-se no centro de todas as disputas políticas nacionais. Em
verdade, tais características de nossa constituição cidadã se tornaram mais
visíveis e perceptíveis há pouco tempo. Aliás, a maior parte dos estudiosos e
doutrinadores mostram-se reticentes com relação ao futuro e ainda com futura
estrutura dos conflitos políticos brasileiros.
Nossa
Constituição significa um fracasso analítico pois as análises estavam mais
preocupadas com o uso oficial do direito, isto é, como a atuação das
autoridades do Estado, em especial o Judiciário, na efetivação do texto
constitucional, do que com o uso social do direito, isto é, a apropriação
social da Constituição pelos agentes sociais.
A
pauta do direito constitucional brasileiro procura descrever nossa peculiar
experiência constitucional completa, considerando duas dimensões do direito. A
afirmação e a reprodução de nossa ordem constitucional não é apenas obras das
elites jurídicas e políticas brasileiras, sendo resultado apenas das ações que
tramitam no STF.
Nossa
Constituição Federal vigente é uma constituição dirigente, pois define através das
normas constitucionais programáticas os fins e programas de ação futura visando
a melhoria de condições sociais e econômicas do povo.
Seguiu
a mesma linha de nossas Constituições anteriores como a de 1934 e a de 1946.
Constitui o Estado Democrático de Direito como um Estado Social ao englobar
entre suas disposições as que garantem a função social da propriedade, os
direitos trabalhistas e previdenciários, além da ordem econômica fundada na
valoração do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por objetivo
assegurar a todos a existência com respeito a dignidade humana e aos ditames da
justiça social.
A
Constituição é obra de uma série de agentes sociais, profissionais do direito e
pessoas que mobilizaram o direito em suas demandas. E, as pessoas cujas ações,
em sua maioria, permanecem invisíveis para a doutrina constitucional e para a
teoria do direito.
A
evitar a captura do constitucionalismo brasileiro pelas elites jurídicas e
políticas, mais particularmente, pelos Ministros do STF, um movimento que pode
ameaçar a legitimidade de nossa Constituição.
Pois
se a legitimidade de nossa Carta Magna se explica, em grande parte, pelas
características participativas de nossa Constituinte e pelas lutas pela efetivação
do texto constitucional que se seguiram, a invisibilidade da interação entre sociedade
e instituições formais, entre o uso social e o uso oficial da Constituição, pode
pôr em risco tal legitimidade.
Uma
descrição incompleta de nossa experiencia constitucional pode induzir quem
estuda o problema a imaginar que a legitimidade constitucional depende apenas
da cúpula do Estado.
A
legitimação da Constituição brasileira de 1988 que instrumentaliza o uso social
e o uso oficial do direito. E, há depoimentos de lideranças a respeito do
direito e uma pesquisa sobre os acampamentos do Movimentos dos Trabalhadores
rurais sem terra.
A
partir da Constituição de 1988, o Estado passou não apenas a conceder, mas a
fornecer os meios de garantir e efetivar os direitos sociais (entre outros,
mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e inconstitucionalidade por
omissão).
Destaca-se
a posição do jurista conservador alemão Ernst Forsthoff, que diz serem
incompatíveis o Estado de Direito e o Estado Social no plano de uma mesma Constituição
e destaca que o Estado Social deve limitar-se ao âmbito administrativo, não
podendo alçar-se à categoria constitucional, pois a Constituição não é lei
social, devendo, além de tudo, ser breve.
No
Estado de Direito, as regras jurídicas estabelecem padrões de conduta ou
comportamento e garantem também uma distanciação e diferenciação do indivíduo,
por meio do Direito, perante os órgãos públicos, assegurando-lhe um estatuto
subjetivo essencialmente caracterizado pelos direitos e garantias individuais.
Isso não significa hoje oposição entre o Direito e o Estado.
A
função do Direito num Estado de Direito moderno não é apenas negativa ou
defensiva, mas positiva: deve assegurar, positivamente, o desenvolvimento da
personalidade, intervindo na vida social, econômica e cultural. O Estado de
Direito atual não se concebe mais como antiestatal.
O arbítrio dos poderes públicos é evitado
mediante a reserva da lei e do princípio democrático, característicos do Estado
de Direito. A busca de melhorias sociais e econômicas dá-se sem o sacrifício
das garantias jurídico-formais do Estado de Direito. Afinal, a liberdade é
inconcebível sem a solidariedade, e a igualdade e progresso socioeconômicos
devem fundar-se no respeito à legalidade democrática.
Governar,
no entanto, passou a não ser mais a gerência de fatos conjunturais, mas também,
e sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimento de políticas a
médio e longo prazo. Com o Estado Social, o government by policies
substitui o government by law do liberalismo.
O
Estado Social de Direito não é, para Forsthoff, um conceito jurídico, no
sentido em que dele não podem ser deduzidos direitos e deveres concretos, nem
instituições jurídicas. Esses argumentos se assemelham em muito aos daqueles
que defendem a desconstitucionalização de inúmeras matérias da nossa
Constituição, pois, além de ser “detalhista em excesso”, é muito extensa, com
muitos artigos. Ao que parece, para
eles, os nossos problemas resumem-se ao fato de a Constituição possuir 200
(duzentos) ou 20 (vinte) artigos...
A
Constituição, alcunhada por alguns, como “vira-lata” foi promulgada em meio ao
férreo ceticismo de juristas e da classe política. Sendo célebre a declaração
do então Presidente da República, de que a Constituição tornaria o país
ingovernável, uma afirmação que
expressava a posição das forças políticas conservadoras em face da previsão de diversos direitos sociais no texto
constitucional, uma decisão considerada temerária
para um país em desenvolvimento, supostamente sem recursos para fazer frente aos gastos previstos (FOLHA DE S.
PAULO, “Sarney diz na TV que Carta deixa país ‘ingovernável’”, Política, A6, 27 de
Julho de 1988).
Havia
político que considerava a constituição risível em face da realidade do mundo
de então, em sua visão, o texto era anacrônico por ser muito socializante,
revelando um certo espírito antiempresarial que criava entraves para razoável
desempenho econômico, inclusive para a democracia, compreendida como liberdade
econômica.
Já
Florestan Fernandes que fora deputado constituinte, denunciava que o texto de
1988 representando como legado da ditadura militar e lamentou que a Assembleia
Nacional Constituinte não tivesse tomado decisões mais radicais, capazes de superar
de uma vez as nossas desigualdades. E, uma obra intitulada “A Constituição Inacabada”
(1989).
Apesar
de celebrar a redemocratização do país e ainda constatar, contra o senso comum da
esquerda da época, que seria possível avançar as pautas de esquerda por meio da
luta parlamentar.
Por
exemplo, em um congresso dedicado ao tema, protagonizado pelos maiores
expoentes da filosofia de São Paulo e, ao menos nesse momento, do país, abundam
textos descolados da realidade política concreta que procuram pensar a
Constituição como tema estritamente teórico, deixando de lado o seu significado
para o tempo presente. A Constituinte em Debate (1986), a Assembleia Nacional
Constituinte funciona mais como mote para reflexões sobre a história da
filosofia do que como tema político urgente. Tal fato se explica,
provavelmente, em razão da prevalência de posições marxistas e republicanas entre
os filósofos políticos de então, posições que apostavam na formação de um ethos
nacional
marcado pela unidade de valores, seja pela via da educação seja pela via da revolução,
tendo o bem público como elemento fundamental. Formulações como essas não eram
compatíveis com a ideia de um estado constitucional que deveria promover o pluralismo
de valores e de formas de vida.
Entre
os doutrinadores, Fábio Konder Comparato revelou seu pessimismo radical, bem
além do razoável ao declarar que a Constituição era letra morta ainda em 1988 e
reiterou o
diagnóstico
dez anos depois em seu artigo intitulado Requiem para uma Constituição,
principalmente em face do excesso de medidas provisórias editadas pelo
Executivo e, ainda das diversas Emendas Constitucionais que já haviam sido
aprovadas. A Constituição foi modificada 140 vezes desde 1988.
Além
das 128 emendas regulares, há as seis emendas aprovadas durante a revisão de
1994 e seis tratados internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados
pelo Congresso com quórum de emenda constitucional e, por isso, têm a mesma
força.
Sob
ponto de vista de Marcelo Neves sobre a carta constitucional brasileiro que se
tornou uma referência tanto nacional como internacional, a obra intitulada A
Constitucionalização Simbólica editado em 1994.
Onde o
doutrinador considerou que a legislação simbólica é aquela em que predomina a
função simbólica, imbuída de teor político-ideológico, em detrimento de sua
função jurídico-instrumental e tem como função:
(i)
confirmar valores sociais,
(ii)
demonstrar a capacidade de ação do estado,
criando uma imagem favorável dele ou
(iii)
adiar a solução de conflitos sociais, criando
uma ilusão sem efeito prático que pode, inclusive, impedir transformações
sociais.
Para
Neves, a Constituição de 1988 seria, primordialmente, uma Constituição
simbólica[1], ou seja, uma fachada
construída para ocultar as desigualdades brasileiras, ainda que ela possa
exercer o papel positivo de critério para a crítica da realidade em razão da
distância entre o texto constitucional e a realidade social.
O
caráter pessimista de Neves parece acenar com a impossibilidade de que venha a Constituição
funcionar adequadamente concretizando seus valores fulcrais, ressaltando somente
seu caráter manipulador, seu destino de ineficácia.
Já
Tércio Sampaio Ferraz Jr assinalou a dificuldade em compatibilizar o formalismo
liberal da tradição jurídica brasileira com os compromissos sociais da
Constituição, o que exigiria a incorporação do dissenso social pelo sistema político
em busca de compromissos entre as forças sociais.
In
litteris:
Na verdade, a ideia subjacente ao modelo de
Estado com função de legitimação, em que constituições instauram um a pretensão
de se verem atendidas expectativas de realização e concreção, traz para a nossa
experiência constitucional um a consideração de ordem valorativa que a
experiência alemã perceberá na década de 20. Ou seja, pressupondo-se que uma
constituição apresente no seu poder normativo um sistema de valores, o modelo
de Estado que ela institui se tom a um a realização de valores e exige essa realização.
Na verdade, ela não estabelece um Estado, mas propõe a realização de um Estado
(FERRAZ JR., 1997).
O
maior exemplo invocado na defesa de um texto mais enxuto[2], a Constituição
norte-americana, foi fruto de condições conjunturais e históricas únicas. Além
disso, embora o texto da Constituição tenha permanecido praticamente inalterado
(com exceção das Emendas), ocorreram materialmente inúmeras mudanças constitucionais
mediante a jurisprudência.
Enfim,
para ele, os que defendem a adoção do modelo constitucional americano como
solução à “prolixidade” dos nossos textos constitucionais são, na melhor das
hipóteses, ingênuos.
Realmente,
nas décadas seguintes, o pensamento constitucional e a teoria do direito
dedicaram quase todo o seu tempo e esforço para discutir a diferença entre
regras e princípios com a finalidade de construir modelos para interpretar a
Constituição de 1988, promovendo a importação, principalmente, de debates
alemães e anglo-saxônicos, protagonizados por figuras como Konrad Hesse[3], Theodor Viehweg, Ronald Dworkin e Robert
Alexy, entre outras.
Com
Ferraz Jr., o texto constitucional estava repleto de normas abertas,
principiológicas e deixou diversos assuntos para regulamentação por meio de leis
complementares. Saímos da Assembleia Nacional Constituinte com um texto por fazer,
com um texto que ainda precisava ser escrito pelos agentes sociais, que viram, de
fato, seus conflitos reconhecidos pelo texto constitucional.
In
litteris:
“De todas as constituições que tivemos, a
de 1988 é, certamente, a mais programática[4]. Não há quase texto
prescritivo, mandamento constitucional que não se veja acompanhado de normas programáticas[5], de ordens ao legislador
ordinário para uma efetiva regulação concretizadora. Num certo sentido pode-se
dizer que a Constituição de 1988, até mesmo como texto, ainda está por se fazer.
Por isso mesmo, pensamos que a questão da legitimidade, mais do que nunca, está
centrada na expectativa de uma concreção. Não que ela venha a se legitimar
apenas se for concretizada, mas que este deve ser o sentido de orientação de sua
legitimidade. Isto é, ela legitimar-se-á na medida de uma vigilância e
fiscalização que desbordam os controles retrospectivos da constitucionalidade
se lançam para uma exigência de realização futura, para a denúncia da omissão,
para a iniciativa legislativa direta, para a participação construtora da cidadania”.
Estas
são as suas peças-chave, este, certamente, o seu sentido de orientação. (FERRAZ
JR, 1989b)
No
entanto, não era objetivo da Constituição solucionar todos estes problemas, ao
contrário. Estamos diante do que eu denomino constituição sem vencedores. Um
texto Constitucional que acolheu todos os conflitos sociais brasileiros sem decidir
nenhum deles com a finalidade de oferecer à sociedade instrumentos para mediar
suas disputas mediadas por meio do direito, mas sem conceder a vitória final a
nenhum grupo social.
Nesse
sentido específico, trata-se de um texto radicalmente democrático. Especialmente
depois da tentativa de golpe que o Brasil sofreu logo no início do ano de 2023,
que nossa Constituição goza de um efetivo enraizamento social. A esta altura,
nosso texto sobreviveu a dois impeachments[6],
uma pandemia mundial e uma tentativa de golpe civil-militar.
Mesmo
que movido pelo cinismo, o principal interessado na tentativa de golpe do
começo deste ano afirmou, reiteradamente, que não faria nada “fora das quatro
linhas da Constituição”.
Isso significa,
no mínimo, que uma boa parte das elites jurídicas do país precisa aderir a um eventual
golpe protagonizado pela extrema-direita para conferir a ele uma roupagem jurídica
qualquer, mesmo que altamente questionável.
Hoje não há espaço para ações radicais que se
coloquem, abertamente, contra a Constituição. O parco resultado analítico
diante de nossos desesperançosos olhos pode ser justificado pelo fato de que os
doutrinadores citados pareciam mais preocupados com o uso oficial do texto
constitucional vigente, isto é, com o protagonismo do Estado, do Poder
Judiciário e dos agentes do mundo jurídico e político na concretização da
Constituição do que com o uso social dela, isto é, com a luta por direitos pela
sociedade, com auxílio ou não de advogados e advogadas, muitos dos quais ainda permanecem, em grande parte, anônimas
(RODRIGUEZ, 2019).
Na
fata de análise do uso social do direito, o sucesso da Constituição de 1988 soa
como mistério insondável. Como mostrou o
livro de Pilati, a Constituição de 1988 foi escrita sem um texto base,
previamente elaborado por algum jurista notável: foi escrita a partir do zero, não
pela aristocracia judicial brasileira.
Ademais,
contou com a participação ativa e direta de uma série de movimentos e agentes
sociais nas diversas comissões responsáveis por redigir seus capítulos, além de
ser o resultado de grande pressão social durante os dois anos pelos quais se
estenderam a sua elaboração.
Nenhum
desses fenômenos era previsível no começo do processo, eles se produziram nos
embates entre os constituintes e tiveram como grande protagonista o Deputado
Mario Covas, responsável pelas articulações políticas que abriram a Assembleia
Nacional Constituinte à participação popular.
Mas há
mais: a Constituição de 1988 não ficou ligada a jurista de renome algum e não
tem ou teve um intérprete privilegiado. Diante das características de nossa Constituinte,
fica difícil caracterizar nossa Carta Magna como o resultado da manipulação das
elites com a finalidade de enganar uma população ingênua.
Por isso
mesmo, ao contrário dos Estados Unidos da América, não desenvolvemos o inusitado
mito de que devemos nossa Carta Magna à suposta genialidade dos “pais
fundadores” - todos homens brancos, ricos e proprietários de escravos -, cuja
visão de mundo, até os dias de hoje, resta sem par em nenhum dos cantos da
Terra e, por isso mesmo, deve ser privilegiada eternamente na aplicação do
texto constitucional.
Por
assim dizer, trata-se de uma constituição bastarda, uma constituição vira-lata[7], sem linhagem ilustre, uma
criação coletiva, um híbrido resultante improvável da interação de uma série de
agentes sociais, desde a Assembleia Nacional Constituinte até os dias de hoje.
Sua legitimidade está, justamente, ligada a estas características, que devem
ser levadas em conta na interpretação do texto constitucional diante da casos
concretos.
Para ficar na tradição grega, não precisamos
de um juiz Hércules, mas de um juiz ou juíza Sócrates, um juiz ou juíza que
interpele constantemente os cidadãos e cidadãs na ágora para conhecer e
testaras razões que os levam a dotar esta ou aquela posição diante do problema enfrentado
pelo Tribunal.
Além
de invisível, tal experiência segue anônima. Afinal, para além dos Ministros do STF, hoje
em dia, conhecidos nacionalmente, para além
de alguns doutrinadores de renome, que se confundem, feliz ou infelizmente, com
mais de um dos Ministros do Supremo,
para além de alguns poucos advogados e advogadas,
procuradores e procuradoras, todos os demais intérpretes da Constituição seguem fora de nossas vistas, em particular os
intérpretes populares, em muitos casos, os
verdadeiros responsáveis por construir os argumentos que fundamentam as
decisões do STF e por transformar o
texto constitucional em uma força social viva.
Há uma
história social da Constituição de 1988 a ser contada, que também é a história
de sua interpretação pela sociedade, ou seja, a história da mobilização de seu texto
em demandas dirigidas ao Estado, principalmente ao Poder Judiciário.
Por
óbvio, as normas jurídicas não nascem diretamente de decisões judiciais, mas
sim, da interação constante e imprevisível entre diversos agentes sociais e
suas visões da Constituição. Por assim dizer, a sociedade brasileira também
fala “direito”, ela também se utiliza ativamente da linguagem jurídica,
construindo suas demandas autonomamente, ainda que, muitas vezes, precise da
mediação de profissionais do direito para acessar as instâncias oficiais.
Krenak
cogita da importância das interações ocorridas no âmbito da Assembleia Nacional
Constituinte e de seus efeitos sobre sua subjetividade, ou seja, o fato dele
ter se sentido enriquecido como ser humano ao entrar em contato e compreender
outras realidades.
Também
por ver sua experiencia ser reconhecida na forma de direitos, experiencia à qual
ele se refere como diamantes que eles carregavam nos bolsos, mas cujo valor ignoravam
até participarem do processo.
Práticas
sociais que antes poderiam ser submetidas a desprezo e violência, sem gozar da
proteção estatal, passam a ser consideradas dignas de tutela pela Constituição do
Brasil, passam a ser consideradas patrimônio imaterial dos brasileiros; práticas
valorizadas em meio à diversidade de formas de viver que convivem em país extremamente
complexo.
Krenak, certamente, não foi o autor único
deste artigo da Lei Maior, mas vê a si mesmo como participante de um processo
complexo e coletivo, que teve como resultado uma formulação que ele considerada
extremamente valiosa, um produto extraordinário da mente humana, capaz de
expressar as demandas de sua comunidade.
A
interpretação de que o texto constitucional reconhece o pluralismo jurídico
como conceito jurídico-dogmático, ou seja, abre espaço para a existência de
diversos ordenamentos jurídicos em nosso território, desde que sejam respeitadas
as cláusulas pétreas de Constituição Federal, elencadas no art. 60, § 4º.
Por
isso mesmo, na medida do possível, cabe ao Estado brasileiro proteger e
respeitar tais direitos, funcionando, para este fim, como tribunal de conflitos
normativos, tendo como objetivo adotar interpretações que preservem normas
jurídicas de ordenamentos jurídicos diversos, as quais possam se revelar
incompatíveis em casos concretos, de acordo com critérios que não há espaço
para examinar aqui.
O texto constitucional como um todo deve
funcionar como um híbrido, capaz de afirmar a autoridade do direito brasileiro
e como critério para decidir conflitos entre ordenamentos jurídicos diversos, os
quais podem funcionar com base em regras a eles pertinentes, desde que respeitado,
insistimos, o Art. 60, § 4º da Constituição Federal.
Ademais,
como também já dito, não é arbitrário imaginar que o texto constitucional seja
integrado de alguma forma - que caberia à universidade investigar - aos
direitos plurais que convivem em nosso território.
Esta
análise sugere pautas de pesquisa que podem contribuir para uma melhor
compreensão de nossa ordem constitucional, em especial seu processo de legitimação,
que se dá na relação entre o uso social e o uso oficial do texto constitucional.
Trata-se
de investigar (i) o uso social da Constituição por agentes sociais, organizações
da sociedade civil e por organismos de Estado legitimados para propor ações em
favor dos cidadãos – como o Ministério Público e a Defensoria Pública – em
interação com agentes sociais e organizações da sociedade civil; (ii) o sentido
da Constituição Federal para a cosmologia e/ou para o direito dos variados
grupos sociais que formam nosso país.
Uma
Constituição como a nossa, para todos os efeitos, orgulhosamente vira-lata, que
vem se legitimando por processos que permanecem, em grande parte, invisíveis e envolvem
a interação entre os agentes sociais e os organismos formais, poderá ver sua
legitimidade prejudicada caso seja capturada pelas elites jurídicas e pelas elites
políticas, ou seja, caso seja interrompido o processo de apropriação social da Constituição,
que se iniciou ainda durante a Assembleia Nacional Constituinte.
Além
dos textos legais de cada campo e sua história doutrinária, não social, são
relatados alguns grandes casos e suas decisões, deixando-se completamente de
lado os agentes sociais que formularam suas demandas utilizando a gramática dos
direitos e as levaram até os organismos formais.
Ficam
fora do alcance do analista, invisível, portanto, o que estamos chamando de uso
social do direito, fenômeno imprescindível para que o direito de uma comunidade
política siga se reproduzindo.
A
transformação na maneira de estudar a Constituição que propomos neste texto deve
aproximar o direito constitucional do estudo histórico e sociológico do Brasil,
um estudo que identifique os momentos cruciais em que a sociedade resolveu se apropriar
do texto constitucional para expressar seus desejos e interesses. Em uma visão como
essa, nenhum curso de direito constitucional poderia deixar de examinar nossa Constituinte
e seus desdobramentos na sociedade civil, a par do que ocorreu no aparelho do
Estado.
Seria
necessário também relatar os principais movimentos do STF a par do Ministério
Público e das Defensorias, sem deixar de historiar a litigância estratégica que
passou a se organizar na sociedade civil a partir dos anos 90 por meio de
entidades como a Rede Nacional de Advogados Populares, a Ação Educativa, a
Terra de Direitos, a Conectas, entre outras. Também faz parte dessa história
diversas atividades de extensão, hoje chamadas de clínicas, criadas em diversas
universidades ao redor do país.
Há
histórias como essas a serem contadas em todos os Estados da federação.
Sintetizá-las todas nos ofereceria uma narrativa muito mais rica e muito mais
fiel de nossa experiencia constitucional, inclusive com a identificação de
agentes sociais, profissionais de direito ou não, que pensaram a Constituição
criativamente na base da sociedade.
Enfim, para Hesse, a força normativa não se
limita somente à sua adaptação à realidade concreta. A Constituição, portanto,
impõe tarefas que devem ser efetivamente realizadas.
No
entanto, isso se dará somente se existir a, por ele denominada, “vontade de
constituição” (Wille zur Verfassung) que possui três vertentes: a
compreensão da necessidade de uma ordem normativa contra o arbítrio, a
constatação de que essa ordem não é eficaz sem o concurso da vontade humana e
de que a ordem normativa adquire e mantém sua vigência sempre mediante atos de
vontade.
No
fundo que Hesse afirmou é que a força normativa da Constituição não depende
apenas de seu conteúdo, mas também de sua prática. Se não forem respeitados os
princípios constitucionais, desperdiça-se um capital que nunca mais será
recuperado. As frequentes revisões expressam a ideia de que as exigências
conjunturais têm maior valor que a ordem constitucional vigente.
Hesse
conclui afirmando que a intensidade da força normativa deriva diretamente da
“vontade de constituição”. Entre nós, infelizmente, essa “vontade de
constituição” praticamente inexiste nos altos escalões da República, quer sejam
do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.
Infelizmente, a prática política e o contexto social têm favorecido uma concretização empobrecida e excludente de dispositivos constitucionais. E, em não havendo a concretização tão almejada, a Constituição enquanto mecanismo de orientação da sociedade e do povo, deixa de funcionar como legitimadora do Estado e da existência de uma autêntica nação.
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Ricardo Ribeiro. Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
TERRA,
Ricardo. Passagens - Estudo Sobre A Filosofia De Kant. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
Notas:
[1]
O termo “Constitucionalização Simbólica” trata-se da discrepância entre a
função hipertroficamente simbólica (excesso de disposições carentes de
aplicabilidade) e a insuficiente concretização jurídica de diplomas
constitucionais. O conceito se deve ao
Professor Marcelo Neves em estudo feito em 1992 para obtenção do cargo de
professor titular da Universidade Federal de Pernambuco. O referido autor
sofreu forte influência de constitucionalistas e teóricos alemães consagrados,
como Horald Kindermann, Niklas Luhmann dentre outros autores, o que contribuiu
para o desenvolvimento de sua tese sobre o tema. Marcelo Neves diz que a
constituição simbólica é caracterizada pela falta de eficácia das
normas/valores constitucionais. Isso é perceptível, segundo o autor, através da
legislação e constitucionalização simbólicas.
[2]
As teorias redutoras da Constituição a mero instrumento de governo são
insuficientes, pois hoje se constata que organizar e racionalizar os poderes
pressupõe alguma medida material para o exercício desses poderes. Passa-se a se
exigir a fundamentação substantiva para os atos dos poderes públicos.
Tradicionalmente, essa fundamentação material é dada essencialmente pelos
direitos fundamentais. A fundamentação pode limitar-se a princípios, denominados
por Canotilho princípios materiais estruturantes (Estado de Direito,
Democracia, República), ou estender-se à imposição de tarefas e programas que
os poderes públicos devem concretizar.
[3]
Em verdade, o caráter programático
suscita problemas específicos que põem em jogo a força normativa da
Constituição, pois implica que se confie a concretização a instâncias
políticas, dependendo da vontade dos detentores do poder político25. A
amplitude e a indeterminação do texto constitucional não supõem, segundo Konrad
Hesse, a incapacidade da Constituição para regular a vida do Estado e da
sociedade. Segundo ele, a Constituição não se limita a deixar matérias abertas,
mas a estabelecer, com caráter vinculante, o que não pode ficar aberto e
indeterminado, além de estabelecer os procedimentos por meio dos quais podem
ser decididas as questões abertas.
[4]
Os problemas da Constituição não são apenas os derivados da ordenação dos
limites e competências, mas também os de fundamentação da ordem jurídica.
Independentemente da função de dar forma e procedimento à atuação estatal (a
Constituição jurídica também é uma Constituição política), a fixação adquire
sentido material quando relacionada a determinados fins. É óbvio que uma
constituição apenas definidora de competências e garantidora de liberdades
formais atinge mais facilmente o ideal de efetividade imediata. Uma
constituição programática, por sua vez, torna mais transparente a vinculação
dos órgãos de direção política ao fornecer linhas de atuação e direção.
[5]
Normas constitucionais programáticas são, nas palavras de José Afonso da Silva,
“normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular,
direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os
princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos,
jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades,
visando à realização dos fins sociais do Estado” in SILVA, José Afonso da,
Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998.
[6] O primeiro impeachment foi contra Getúlio Vargas, foi rejeitado pelo Plenário da, então, Câmara Federal. Já o seguinte, contra Fernando Collor, resultou em sua inelegibilidade e privação dos direitos políticos por oito anos. E o último, contra Dilma Rousseff, resultou em sua cassação sem perda de direitos políticos. Em 2021, o jurista Miguel Reale Júnior, um dos propositores da denúncia que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, protocolou pedido de impeachment do presidente Bolsonaro, com base nas conclusões da CPI da COVID-19.
[7] Define-se o complexo de vira-latas como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O conceito pode ser facilmente percebido em falas cotidianas, decisões judiciais e principalmente, em discussões políticas. Quanto ao Complexo de vira-lata é uma expressão e conceito criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, a qual originalmente se referia ao trauma sofrido pelos brasileiros em 1950, quando a Seleção Brasileira foi derrotada pela Seleção Uruguaia de Futebol na final da Copa do Mundo em pleno Maracanã. O Brasil só teria se recuperado do choque (ao menos no campo futebolístico) em 1958, quando ganhou a Copa do Mundo pela primeira vez.