A influência do estoicismo no Direito

A notável influência da filosofia estoica no direito romano reflete no direito brasileiro. O Corpus Iuris Civilis, por sua vez, traduziu a definição de justiça do estoicismo e seus princípios basilares que veio a favorecer a ampliação da liberdade dos escravos e dos filhos diante do paterfamilias e a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres no Império Romano. Trouxe a equidade uma virtude, bem ao lado da justiça. Justiça, para os estoicos, é a busca do máximo de afirmação possível. Permitir o máximo de afirmação possível de tudo/todos.

Fonte: Gisele Leite

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O estoicismo[1] que considera todos os seres humanos naturalmente iguais e livres e foi incorporado ao Direito Romano por meio de dois de seus principais fenômenos, a saber: o ius honorarium e o Corpus Iuris Civilis. O primeiro veio a tornar o ius civile mais plástico e humano, impediu, desde a República, que os romanos transformassem o seu sistema jurídico em um ordenamento que apenas servisse para manter os privilégios de casta.

O Corpus Iuris Civilis, por sua vez, é um documento jurídico que apresenta a definição de justiça do estoicismo e princípios baseados nesta corrente filosófica, de forma a favorecer a ampliação da liberdade dos escravos e dos filhos perante o poder paterno e a igualdade, em termos de direitos e deveres, entre homens e mulheres no Império Romano.

Foi significativa a influência do estoicismo sobre o Direito Romano tanto que ius honorarium e o Corpus Iuris Civilis foram permeados pela igualdade e pela liberdade, que são os princípios fundamentais do estoicismo. A filosofia estoica foi contextualizada e suas principais características foram ampliadas nos conceitos do Direito Romano que facilitam a compreensão do ius civile e do ius honorarium e as compilações justinianeias, as quais foram concretizadas por meio do Corpus Iuris Civilis.

O helenismo designa a influência da cultura grega em toda a região do Mediterrâneo Oriental e do Oriente Próximo desde as conquistas de Alexandre (323 a.C.) até a conquista romana do Egito em 30 a.C., a qual passa a marcar a influência de Roma nessa região.

O império de Alexandre significou não apenas hegemonia militar sobre tal território, mas igualmente uma hegemonia cultural e linguística. O grego se tornara uma língua comum e a moeda grega passou a ser aceita em todo o império. Afinal, como Alexandre não deixara descendentes, todo o território conquistado fora dividido entre seus principais generais.

E, mesmo assim, a influência grega permaneceu ainda durante vários séculos da Mesopotâmia ao Egito. No aspecto filosófico, o helenismo se expandiu pelo Império Alexandrino até o início da filosofia medieval, com Santo Agostinho e Boécio, uma vez que a influência das escolas filosóficas fundadas no início do helenismo permaneceu durante o Império Romano.

A filosofia[2] do helenismo é fundamentalmente marcada por uma preocupação principal com a ética, entendida em sentido prático, como o estabelecimento de regras do bem viver. E, pode ser claramente percebida em uma das principais correntes do helenismo, o estoicismo, um exemplo ilustrativo é o Manual de Epicteto.

Com a extinção da polis grega, após a conquista da Grécia por Alexandre, o homem grego perdeu sua principal referência ético- política, pois a vida na comunidade a que pertencia enquanto cidadão, reduzida fortemente pela centralização do poder político.

O homem necessitava, portanto, de uma ética dotada de forte conteúdo prático, que lhe conferisse referências quanto as regras de conduta e apontasse o caminha para busca da felicidade pessoal nesse novo contexto pluralista.

A escola estoica foi fundada em Atenas em 300 a.C., por Zenão de Cìtio (334-262). A origem do termo "estoicismo" deriva da stoa poikilé, pórtico pintado que era local em Atenas onde os membros da escola se reuniam. Depois foi a doutrina desenvolvida por Zenão, Cleantes (331-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.).

A doutrina estoica abriga estreita relação entre physis e o ethos. E, o homem é parte do universo, e para ter uma conduta ética que assegure a sua felicidade, suas ações devem estar em consonância com os princípios naturais e com harmonia do cosmo, o qual dá equilíbrio a todo o universo, inclusive ao homem.

Há espécie de energia, um logos, que determina como as coisas são, as quais são exatamente como devem ser. O destino reflete a racionalidade do real e para que cada ser seja completo e integrado ao universo, precisa viver segundo a sua específica natureza que, no caso do homem, significa viver racionalmente.

A liberdade, para os estoicos, difere daquela estabelecida pelos filósofos gregos até então. Liberdade não seria a liberdade política, de participar das decisões da polis, mas a liberdade de pensamento. Existe no ser humano algo que é imune a qualquer poder: a liberdade interior. O governante pode estabelecer uma determinada ordem constituída, mas não pode obrigar o homem a pensar de acordo com ela.

Para os doutrinadores estoicos existe um Direito natural segundo o qual todos os seres humanos são naturalmente iguais e livres. O natural é que o homem pense livremente. Porém, este também deve poder agir livremente, de forma que, para tais filósofos, liberdade do Direito Natural, seria o princípio orientador para homens e deuses, deve ser garantido por meio do Direito Positivo, estabelecido pelo homem para regular a vida em sociedade.

A escravidão, assim, não seria natural, conforme afirmavam Platão e Aristóteles, mas determinadas pelo próprio homem. O bem é a virtude[3], a qual possui quatro facetas principais, a saber: a justiça (hábito de dar a cada um o que lhe é devido); sabedoria e coragem e temperança.

A felicidade (eudaimonia) consiste na tranquilidade (ataraxia) ou ausência de perturbação, na qual se alcança o bem. Tal estado somente pode ser atingido por meio de autocontrole, da contenção e da austeridade, aceitando-se o curso dos acontecimentos estabelecidos pelo logos. Esse seria um ideal ético difícil de ser alcançado, mas o homem deve almejá-lo e buscá-lo para alcançar a felicidade.

A partir do século I, o estoicismo deslocou-se para Roma, onde seus principais representantes foram Sêneca[4], Epitecto[5] e Marco Aurélio[6], imperador romano após 161. O estoicismo latino caracteriza-se pela ênfase na filosofia prática e em uma concepção humanística, que valoriza a indiferença (apathei) e o autocontrole. A filosofia estoica influenciou de modo significativo dois fenômenos do Direito Romano: o ius honorarium e o Corpus Iuris Civilis.

A história do Direito Romano possui infinidade de divisões baseadas em diferentes critérios. E, uma dessas divisões estabeleceu quatro épocas para a história que foram correspondentes às formas do governo do povo romano: a época real (até 510 a.C.), a época republicana (509 a.C. até 27 a.C.), época do Principado (26 a.C. -284) e época do Dominato (285-565).

Internamente, a história era dividida em três períodos. O do Direito Antigo que vai até a Lei Ebúcia ou Lex Aebutia e teve suas origens entre 149 a.C. e 126 a.C., o Direito é simples, mecânico, casuístico, rigoroso e formal, de forma que sua atuação se dá de forma uniforme.

O direito cuja principal expressão é o ius civile, realiza uma igualdade puramente mecânica, sem se flexionar para atender à equidade.

Já no período clássico que termina no reinado de Diocleciano[7] (244-311) no ano 305, o formalismo entra em decadência e os juristas renunciam às formas absolutas e passam a aplicar a summa ratio, a razão superior, fundada na equidade e que atenua os rigores do direito para adequá-lo ao caso concreto or meio do ius honorarium.

Na época do direito clássico, a jurisprudência é definida como o conhecimento de coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto. No século IV a.C., inicia-se a secularização da jurisprudência romana e, no século III a.C., tem início o ensino público do direito. 

Desde então, os jurisconsultos passam a desfrutar de imenso prestígio e a exercer grande influência sobre o Direito Romano por meio de três aspectos de atividade: cauere, agere e respondere.  A primeira expressão indica a atuação do jurista na formulação e redação dos negócios jurídicos, para evitar prejuízo à parte interessada, por inobservância de formalidades.

Já a segunda expressão corresponde à atividade, no que concerne ao processo, semelhante à desenvolvida no cauerre, e a expressão respondere se refere aos pareceres dos jurisconsultos sobre as questões de direito controvertidas.

No período do direito pós-clássico que vai até a morte de Justiniano (483-565) há uma decadência no âmbito do Direito Romano a partir de Constantino, pois as obras jurídicas passam a ser simples compilações e a legislação passa a ser caracterizada pela impropriedade técnica. No entanto, no governo de Justiniano, a jurisprudência voltou a ter papel protagonista e o imperador, reconhecendo a importância do Direito Romano, empreende um importante trabalho legislativo e de compilação jurídica denominado Corpus Juris Civilis.

O ius civile ou Direito Civil é uma expressão do Direito Romano oriunda de fontes legislativas e da doutrina dos jurisconsultos e indica o direito efetivamente aplicado à sociedade romana. Apesar de estar fortemente ligado à praticidade e à utilidade, tem caráter excessivamente formalista, antigo, frio e estrito e causa muitas problematizações, devido ao fato de a stricto ratio, razão estrita utilizada, permitir incongruências jurisprudenciais, como a invalidação de um contrato ligado a uma árvore devido ao fato de, no plano formal, ter sido declarada a palavra "videira", especificadora, e não a palavra "árvore".

O Direito Civil já pretendia atingir um ideal de segurança jurídica, exclusivamente por meio da forma. O ius civile é plenamente efetivado durante toda a fase do Direito Antigo. Entretanto, a partir do início do período clássico, o formalismo entra em processo de decadência.

Surgiu, então, o ius honorarium ou Direito Honorário, mais novo, maleável, liberal e humano e menos formalista. Ao contrário do ius civile, o ius honorarium não se limita às fontes formais é oriundo do édito dos magistrados.

Anteriormente ao surgimento do ius honorarium, o édito dos magistrados já existia e sua função era corrigir a aplicação do ius civile, quando este lhe parecesse iníquo. Contudo, tal faculdade se estendeu expressivamente após o advento da Lei Ebúcia (Lex Aebutia) que, na metade do   século II a.C., introduziu o processo formulário, o qual, ao substituir as leges actiones, levou os magistrados a redigirem documentos acerca de suas decisões. Esses documentos, paulatinamente, arrogaram direitos de denegar ações tuteladoras de direitos provenientes do ius civile e, ainda, de criar ações não previstas no ius civile que fossem consideradas como dignas de tutela.

Ao invés do uso cego do objeto externo formalista, o magistrado busca o chamado “verdadeiro” na razão, na compreensão do que seria mais adequado ao caso interpretado, e não na aplicação pura do ius civile.

Devido à eficácia atribuída a esse novo poder da magistratura, percebeu-se o ius honorarium como fonte de direito. Assim, a partir da referida percepção, os juristas passaram a renunciar à stricto ratio e a contrapô-la à summa ratio, razão superior, com base na equidade. A equidade é o instrumento usado pelo magistrado para tornar o ius honorarium mais maleável e humano. É o critério mediante o qual para casos iguais se aplicam decisões iguais.

Impede, portanto, que o direito se torne imóvel, pois, ela adaptação do ius civile, frio e genérico, evita a estagnação em forma rígida e objetiva, permitindo, assim, que o juiz leve em consideração as peculiaridades específicas do caso concreto quando aplica o texto genérico da lei. No entanto, cabe ressaltar que a aplicação do princípio da equidade[8], embora não precise ser cega e materialmente rigorosa, deve ser feita de maneira precisa a fim de não dar margem a quaisquer incertezas.

E, apesar de sua função corretiva e complementadora do ius civile, não era sempre o ius honorarium entrava em choque com o direito formalista; em muitos casos, o magistrado apenas confirmava ou completava o ius civile com seus éditos. Devido a tal característica, é possível perceber por que o ius civile e ius honorarium, visivelmente distintos durante o período clássico, deixam de ser diferenciados no governo do Imperador Justiniano.

O primeiro marco para essa mudança reside na Constituição Antonina, de 212, a qual estabelecia que todos os nascidos livres do Império Romano teriam direito à cidadania romana. Apesar de essa política visar à obtenção de aliados para o esforço militar expansionista de Roma, ela acabou, indiretamente, propiciando maior igualdade entre os povos que vivam no território imperial.

Em Justiniano, a jurisprudência recebe um novo impulso, pois os juristas passam a estudar as obras dos clássicos sem se limitar a explicar estes, mas tentando lhes extrair os princípios jurídicos dominantes e, dessa maneira, deduzir-lhes as consequências.

Tal situação é proporcionada pelo período de decadência na criação da jurisprudência ao longo do Dominato, no século V, visto que, mediante as baixas perspectivas de criação relacionada ao Direito, o movimento de estudo dos juristas clássicos reiniciou-se e, assim, forneceu ao imperador o material necessário à elaboração do Corpus Iuris Civilis.

O Corpus Iuris Civilis agrupou todo o Direito Romano, inclusive as obras dos jurisconsultos, em um só corpo, o qual foi publicado entre os anos 529 e 534. Os glosadores da Escola de Bolonha, no século XII, utilizaram esta expressão para diferenciar todo o Direito Romano do Corpus Iuris Canonici[9], ou seja, do Direito Canônico.

Entretanto, o significado pertencente à união das compilações de Justiniano remete-se à união de textos que se referem à lei em sentido amplo, como fonte de obrigação que dá nascimento as relações obrigacionais, tomando-se, como pressuposto, o sentido o fato jurídico para tal fonte.

Quanto ao conteúdo do Corpus Iuris Civilis, diz-se que é composto basicamente, pelo Digesto (533), pelas Institutas (533), pelo Código Novo (534) e pelas Novelas. Alguns autores consideram o Código Antigo, de 529, como parte de tal corpo, mas o fato de não se ter resquícios históricos quatro citados.

O Digesto[10], obra mais relevante de Justiniano, é uma compilação de uma espécie de enciclopédias que agrupavam matérias tanto do direito civil quanto do direito honorário. Sendo formado por cinquenta livros distribuídos em sete partes e, tinha como fito inicial, a consolidação da iura unívoca, sem mais separações entre a parte formal e a proveniente da razão do magistrado.

Devido ao fato de ter sido formulado em apenas três anos, o resultado da compilação mostrou-se imperfeito, pois a recomendação de se evitar antinomias e repetições, feita por Justiniano, não foi observada.

Entretanto, o Digesto foi de grande utilidade para o Império Romano do Oriente, e até hoje é visto como um rico e precioso repositório porque possui a literatura jurídica de grande parte dos ilustres jurisconsultos romanos.

As Institutas ou Instituitiones são um manual elementar de Direito Privado Romano para uso de estudantes de direito em Constantinopla e, foram divididas em quatro livros com o fito de expor didaticamente o direito civil, honorário, sem distinção, e, por isso, não são constituídas por fragmentos ou leis propriamente ditas, como ocorreu no Digesto. Além das iniciais pretensões, acabaram tendo, por ordem de Justiniano, força de lei.

O Código novo foi publicado um ano depois da formulação do Digesto e das Institutas e sua função era de sanar as contradições entre o Digesto eo Código Velho (Novus Instinianus Codex). Em síntese, o Código Velho, mas atualizado e relacionado às novas determinações legais provenientes do aparecimento do Digesto e das Institutas. O Código Novo, componente do Corpus Iuris Civilis, divide-se de doze livros e, é o que chegou inteiramente até nós.

Quanto às novelas, proveniente de novellae, significa novas leis. Assim como seu significado etimológico que pressupõe, as novelas do Corpus Iuris Civilis são a reunião das constituições promulgadas por Justiniano posteriormente às três compilações supracitadas e introduziam modificações na legislação até então em vigor, a fim de atender aos novos casos que surgiam. Era intenção de Justiniano reunir as 177 promulgações em corpo distinto, tal como fora feito com os outros elementos do Corpus Iuris Civilis, mas o imperador morreu antes de concluir seu projeto.

Apesar de não serem consideradas como elemento-base do Corpus Iuris Civilis, convém mencionar as Cinquenta Decisões feitas para solucionar as controvérsias em jurisconsultos antigos, porque antecedem a formulação de compilações justinianeias, e é a partir delas que surge a ideia de se compilar as iura, objetos de determinação do Digesto. Além das Quinquagenta Decisiones[11], há, como posterior suprimento das compilações, as interpolações, que possibilitavam, por meio de substituições, supressões e acréscimos aos fragmentos, a aplicação prática dos iura e das leges do Corpus Iuris Civilis.,55.

Entre os vários sistemas filosóficos gregos que os romanos conheceram o estoicismo que foi o predileto da alta cultura. Os princípios estoicos eram sistematicamente ensinados nas casas nobres de Roma, assim os jovens aprendiam o que era virtude[12] com base nas vidas exemplares de Zenão[13], Cleantes, Epicteto. Isso fez com que o estoicismo se tornasse a fonte filosófica sem a qual Direito Romano não teria atingido o alto grau de desenvolvimento que o caracterizou na época imperial[14].

O enraizamento do estoicismo na mentalidade jurídica latina pode ser demonstrado por meio da semelhança do conceito de jurisprudência[15] de autoria de Ulpiano e a definição atribuída a Crisipo, presente em um fragmento do Digesto.

Em ambas as definições, o direito apresenta, simultaneamente, natureza sagrada e humana, e o estoicismo foi a única corrente filosófica da Antiguidade que concebeu homens e deuses vivendo sob a mesma legislação. Para Crisipo, “a lei é a rainha de todas as coisas humanas e divinas, tributária do logos racional que permeia o universo”, ou seja, ele concebia o conhecimento da ciência do direito como conhecimento das coisas humanas e divinas.

Além disso, assim como a lei de Crisipo se dirige aos homens para lhes mostrar o que é certo e errado, a jurisprudência de Ulpiano não se limita a ensinar o justo, mas também o injusto, pois, para ambos, se deveria ter um conhecimento integral da justiça.

A lei somente poderia ser compreendida de modo integral pelos sábios, os quais a cumprem não por medo da sanção negativa, mas pela convicção acerca de sua necessidade e utilidade para a vida humana. Segundo Matos, a jurisprudência romana se apresenta como ciência total, pois caso se limitasse unicamente ao justo, não iria conhecer de maneira completa o fenômeno sobre o qual se debruça.

Para compreendermos o que é lícito, devemos saber também acerca do ilícito. A exigência de totalidade presente na formulação de Ulpiano remonta à doutrina estoica, que se define como conhecimento integral do mundo, entrelaçando os conteúdos da Física[16], da Lógica[17] e da Ética.

No Digesto também é possível encontrar um trecho que recomenda aos juízes não se irritarem contra os maus nem chorarem devido às lamentações dos infelizes, pois convém ao julgador manter um comportamento constante e reto de modo a salvaguardar a sua dignidade.

Em outra passagem, aconselha-se que o julgador seja acessível às partes, mas evite a familiaridade, pois da intimidade comum pode nascer o desprezo pela dignidade. Tais recomendações fundamentam-se na figura do sábio estoico, inabalável diante das alegrias e das tristezas da vida, as quais não são verdadeiros bens e males. O único bem é a virtude e o único mal consiste em perdê-la.  A justiça, para o estoicismo, depende da habitualidade de se praticar o bem, a partir de uma decisão voluntária do ser racional.

 A definição de justiça de Ulpiano, presente no Digesto, foi, portanto, influenciada pela doutrina estoica: “vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito”. Além disso, os famosos princípios axideontológicos do Direito Romano – honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuire, elencados por Ulpiano no Corpus Iuris Civilis, também foram nitidamente extraídos da filosofia estoica.

O princípio honeste vivere indica que o Direito deve zelar para que as relações entre os homens se baseiem na honestidade e boa-fé de cada um, de acordo com a reta razão e com os bons costumes.

O princípio do nemine laedere significa que não lesar é o fundamento da responsabilidade de toda a ordem jurídica e que o exercício dos direitos encontra limites nos direitos das demais pessoas inseridas na vida social. Já o princípio suum cuique tribuire indica que o Direito deve conferir a cada um o que lhe é devido, de modo que todos realizem suas potencialidades enquanto seres humanos

Viver honestamente, conforme a moral característica do homem médio, é viver em conformidade com a natureza racional do logos para alcançar a perfeição e a felicidade, ou seja, segundo a lei moral individual do estoicismo. Não causar dano significa respeitar os direitos dos homens, dentre os quais se sobressai a liberdade e sua expressão concreta, a propriedade.

Tal princípio fundamenta-se no pressuposto estoico de que todos os seres humanos são igualmente livres, de modo que cabe a todos os indivíduos respeitar tal liberdade.  Por fim, o princípio de conferir a cada um o que lhe é devido, ou seja, seus direitos, fundamenta-se na definição de justiça da filosofia estoica já abordada[18].

Todavia, a principal contribuição do estoicismo para o desenvolvimento do Direito Romano, segundo Arnold, foi a noção de que ele  deveria se tornar uma “lei comum” que garantisse a liberdade e a igualdade  do Direito Natural estoico e fosse, portanto, capaz de impedir os romanos  de transformarem o seu sistema jurídico em um ordenamento mecânico e  rotineiro que apenas servisse para manter os privilégios de casta. É notória a influência dessa noção nos preceitos do ius honorarium.

Conscientes da missão universalizante do Direito, os magistrados da República concebiam-no como um sistema de princípios aptos a harmonizar as contradições do próprio ordenamento jurídico, sobressaindo a ideia de equidade. A tarefa da jurística romana nos parece ser a adaptação dos postulados da razão natural estoica às condições da vida em sociedade, sendo que tal processo teria se concretizado nas adequações que o ius honorarium efetivou em relação ao ius civile.

Ao flexibilizarem as normas estanques do antigo direito civil diante dos inúmeros casos verificados na realidade concreta, os juristas supriam-no e corrigiam-no tendo em vista a utilidade pública. Tal esforço teve sua origem com Scevola e seu questor Rutilius Rufus (158 a.C-78 a.C), que se opuseram à extorsão dos publicanos nas províncias asiáticas, declarando inválidos todos os contratos desonrosos, ainda que tivessem sido celebrados conforme as formalidades do ius civile.

A aplicação do princípio da equidade regrediu nos governos tirânicos dos imperadores Júlio-Claudianos, mas voltou a florescer sob a direção dos antoninos.  A ideologia estoica, consequentemente, incrustou-se nas sentenças e nas normas jurídicas do Direito Romano por meio do ius honorarium, sendo que elas nos chegaram mediante o Corpus Iuris Civilis. A construção

desse corpo jurídico sistemático, coerente e unitário se deu em função da ação dos jurisconsultos romanos, sendo que muitos deles estavam comprometidos com a filosofia estoica e empenhados em modificar qualitativamente o direito positivo em Roma de modo a aproximá-lo, cada vez mais, do Direito Natural estoico[19].

No que tange à escravidão, a doutrina dos jurisconsultos foi revolucionária, uma vez que eles se opuseram frontalmente ao direito positivo da época ao aceitarem a lição estoica da igualdade natural entre os homens, posição ideológica claramente divergente de Platão e Aristóteles.

Apesar de terem que se subordinar às instituições estabelecidas pelo direito civil de Roma, tal fato não os impediu de criar normas protetivas destinadas aos escravos.

Segundo Harvey, as condições de vida dos escravos melhoraram de maneira gradativa ao longo do Império Romano, quando lhes foi permitido casar e obter reparação em caso de tratamento brutal. Para os jurisconsultos, portanto, o escravo deveria se aproximar à categoria de pessoa (persona) ao invés do campo da coisa (res). O preceito alterum non laedere também foi sendo aplicado aos escravos com o passar do tempo devido ao constante labor da jurisprudência romana.

Tal se realizou mediante quatro princípios[20], de clara influência estoica. Laferrière os lista, sendo que esses princípios podem ser encontrados no Corpus Iuris Civilis:

1. Se a liberdade é dada tendo em vista condições alternativas, deve-se realizar a mais fácil.

2. Na dúvida, deve-se privilegiar a interpretação que realiza a liberdade.

3. Muitas coisas são constituídas contra o rigor do direito e em favor da liberdade.

4. A sentença a favor da liberdade é irretratável.

Na esteira de tais princípios, o Imperador Antonino Pio (86-161), por exemplo, vetou aos cidadãos romanos e a todos que se encontrassem no Império o uso de violência excessiva e desmotivada contra os cativos, estatuindo que aquele que matasse o seu escravo receberia a punição como  se tivesse assassinado escravo alheio.

Já o Imperador Marco Aurélio, por meio de uma Constituição Imperial, garantiu àqueles que fossem libertados por testamento o gozo de tal privilégio ainda que o herdeiro principal não quisesse ou não pudesse aceitar a sucessão.

O pátrio poder também foi sendo gradualmente limitado pela jurisprudência com base nos referidos princípios, uma vez que o poder de vida e morte de que o pai gozava sobre os filhos no tempo das XII Tábuas ofendia o princípio básico da dignidade da pessoa humana e a liberdade.

 Para os estoicos, o poder deve estar na autoridade moral do sábio, e não na força e na ameaça. Uma Constituição Imperial de Alexandre Severo (209-235) retirou do pai de família o poder de vida e morte sobre os seus familiares, substituindo-o por um poder de correção. Caso fossem necessárias medidas mais rigorosas, um magistrado deveria pronunciar sua sentença tendo em vista o direito.

Cabe ressaltar que os quatro princípios do Corpus Iuris Civilis, elaborados a partir dos princípios de liberdade e igualdade, representaram uma progressiva equalização entre homens e mulheres.

Desde tempos imemoriais, as mulheres romanas eram tuteladas pelo pai ou pelo marido, não importando a idade ou a condição social. A jurisprudência foi sendo cada vez mais contrária a esse preceito, até que o Imperador Cláudio (10  a.C.-54) estabeleceu que aos 12 anos completos a mulher romana não precisava de tutores.

Além disso, a Lex Iulia de Adulteriis[21] (18 d.C.), que punia o adultério como um crime gravíssimo e que vinha sendo usada somente para proteger os interesses do cônjuge varão, começou a ser empregada para punir não somente a esposa adúltera, mas também o marido que incorresse no delito.

A filosofia estoica, inicialmente ensinada nas casas nobres de Roma, foi, portanto, aumentando gradativamente sua influência sobre o Direito Romano. Tal influência começa a se manifestar de maneira significativa no ius honorarium, quando os magistrados suprem as insuficiências do ius civile tendo como referência o princípio da equidade, e culmina com o Corpus Iuris Civilis, no qual se encontram trechos fundamentados no ideal de liberdade do estoicismo e que foram utilizados na aplicação do direito  para garantir uma liberdade efetiva àqueles que viviam sob a jurisdição do  Império Romano.

O império de Alexandre, mesmo após sua dissolução, influenciou o desenvolvimento do Direito Romano tal como é estudado atualmente.  A filosofia do helenismo é fundamentalmente marcada por uma preocupação central com a ética, sendo esta entendida em um sentido prático ao estabelecer regras do bem viver.

Com o fim da polis grega, após a conquista da Grécia por Alexandre, o homem grego perdeu sua principal referência ético-política: a vida na comunidade a que pertencia enquanto  cidadão, reduzida fortemente pela centralização do poder político.

A necessidade de buscar uma razão prática para retomar uma referência de como viver em comunidade influenciou o surgimento da filosofia estoica, fundamentada no princípio de que todos os homens são naturalmente iguais e naturalmente livres. Essas ideias permearam o Direito Romano principalmente por meio de dois fenômenos jurídicos: o ius honorarium e o Corpus Juris Civilis.

O ius honorarium flexibilizava as normas do ius civile, adequando-o ao caso concreto e harmonizando as contradições presentes no próprio ordenamento jurídico, de modo a trazer para a sociedade romana a liberdade e a igualdade do Direito Natural estoico. Conscientes da missão universalizante do direito, os magistrados da República concebiam-no como um sistema de princípios aptos a harmonizar as contradições do próprio ordenamento jurídico, sobressaindo a ideia de equidade no ius honorarium.

Somente com a manifestação significativa do ius honorarium foi possível o fortalecimento dos magistrados e, assim, a formulação aperfeiçoada do Digesto, das Institutas, do Código Novo e das Novelas, que culminou, por fim, no agrupamento do Corpus Iuris Civilis, utilizado até hoje como referência legislativa.

A liberdade estoica influenciou os famosos princípios axideontológicos do Direito Romano – honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuire, elencados por Ulpiano no Corpus Iuris Civilis. Tais princípios têm como fundamento inicial a necessidade de o ser humano viver segundo sua natureza, que reflete a racionalidade do real, a equidade e a valorização do autocontrole. Não apenas a orientação de se viver com honestidade e boa-fé, mas também a própria sistematização usada no Corpus Iuris Civilis, são inerentes ao Direito Natural estoico de liberdade[22].

Os efeitos da influência do estoicismo no Direito Romano foram amplos, permitindo, inclusive, que a aplicação das normas jurídicas vigentes tornasse a sociedade mais livre e igual.

Ampliou-se a interpretação de determinadas leis, como a Lex Iulia de Adulteriis, que deixou de punir apenas o adultério praticado pelas mulheres e passou a punir também o adultério praticado pelos homens. Além disso, os escravos passaram a se aproximar da categoria de pessoa em detrimento da de coisa, podendo, inclusive, casar e obter reparação em caso de tratamento brutal.

O estoicismo[23], portanto, começou a se manifestar de maneira significativa no ius honorarium, quando os magistrados supriam as insuficiências do ius civile a partir do princípio da equidade, e culminou com o Corpus Iuris Civilis, no qual se encontram trechos fundamentados no ideal de liberdade do estoicismo e que foram utilizados na aplicação do direito para garantir uma liberdade efetiva àqueles que viviam sob a jurisdição do Império Romano.

É incontestável a influência do estoicismo do Direito Romano Clássico, pois, a partir do século I, os senhores de Roma trabalharam na criação de um ideal jurídico que é homocêntrico ao ideal moral do Pórtico. Esse ideal presente está nos

textos de Ulpiano, sobreviveu e ainda continua a inspirar muitos daqueles que operam o Direito. E, ter a plena consciência da influência e da inspiração estoica é benfazejo e, isso se afirma presente.

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Notas:

[1] Assinalamos que o estoicismo, como corpo teórico, se desdobrou por meio de cinco  séculos, desde Zenão, no final do século IV a.C., passando por Panécio e Possidônio, séculos  II e I a.C. até o imperador Marco Aurélio, século II d.C. Esse desdobramento não implicou  em uma descontinuidade, muito pelo contrário, com a influência romana o estoicismo  ganhou contorno mais decisivamente ético-político, pois seus grandes nomes como Sêneca e  Marco Aurélio, dentre outros, ratificaram e ampliaram a dimensão ética da escola. Se com  Zenão o antigo estoicismo é marcadamente lógico, tendo na teoria do conhecimento o cerne  estruturante, tendo por seus grandes seguidores Cleanto seu discípulo direto e este mestre de Crisipo, um dos maiores lógicos da Antiguidade, fica patente que a escola participou do debate ciente das dificuldades teóricas.

[2] Na história da filosofia, é possível classificar os autores ou os períodos em que algumas reflexões prevaleceram. Tradicionalmente, o estoicismo é dividido em três fases ao longo do tempo. Confira quais são: Estoicismo antigo (séc. III a II a.C.): fundação dessa filosofia por Zenão de Cício em Atenas, após passar por uma série de dificuldades. É representada também por Cleanto de Assos, Crisipo de Soles, Dionísio de Heracleonta e Perseu de Cício; Estoicismo médio (séc. II a.C.): é a fase menos comentada, mas foi dominada principalmente por dois filósofos: Panécio de Rodes e Possidônio de Apaméia; Estoicismo romano (séc. I a.C.): é o período talvez mais conhecido que cresceu em Roma e conta com figuras importantes como Lucio Naneu Sêneca, Epicteto de Hierápolis e Marco Aurélio.

[3] Segundo o estoicismo, a vida virtuosa deveria ser pautada pelo mais profundo assentimento de conformidade à retidão racional, visto que as ações são, em si, um  movimento das inclinações naturais, nesse caso “a virtude é uma linha reta, que não pode  deformar-se sem deixar inteiramente de ser aquilo que é”  por ser um bem, identificada  com tudo que é louvável e naturalmente bom. Nesse sentido, a virtude na óptica estoica é o  mais profundo sentimento de dever pelo dever em que a razão só se satisfaz com o  indispensavelmente necessário ao logos. Podemos dizer que a eticidade pretendida pela  stoa está bem próxima de um conteúdo estético. A moralidade propugnada por essa escola  é um conjunto de versos entoados ao som de uma sinfonia pintada pelas cores do mais belo  sentido de um homem preocupado não só consigo, como também com o outro, visto que o  outro deve ser tomado como expressão de simpatia que é a universalização do homem na  humanidade.

[4] Lucio Naneu Sêneca: viveu entre os anos 4 a 65 d.C., sendo um dos intelectuais mais conhecidos em sua época em Roma. Como fez parte da vida pública, seu pensamento é também importante para entender a época em que viveu;

[5] Epicteto de Hierápolis: parte da terceira fase dessa filosofia, nasceu no ano 55 d.C. Ele era escravo em Roma e, assim, escrevia sobre a liberdade da alma – sem a qual nada adiantaria ter a liberdade do corpo;

[6] Marco Aurélio: foi imperador romano, atuando desde cedo em guerras. Aos 11 anos de idade, já teve contato com o estoicismo, seguindo fortemente essa filosofia em sua vida, especialmente na temática da morte.

[7] Diocleciano (nascido Diocles; Salona, 22 de dezembro de 243/245 – Espalato, 3 de dezembro de 311/312) foi o imperador romano de 284 até sua abdicação em 305. Ele nasceu em uma família de baixa posição social, porém conseguiu ascender pelas patentes do exército romano até se tornar um comandante de cavalaria do exército do imperador Caro. Diocleciano foi aclamado imperador pelas tropas da Nicomédia depois das mortes de Caro e seu filho Numeriano durante campanhas contra a Pérsia. O título também foi reivindicado por Carino, o filho sobrevivente de Caro, porém Diocleciano o derrotou em julho de 285 na Batalha do Margo. O reinado de Diocleciano estabilizou o Império Romano e encerrou a Crise do Terceiro Século. Ele nomeou o colega oficial militar Maximiano como seu coimperador em 286 e dividiu o império em dois, governando por si mesmo o Império do Oriente enquanto Maximiano governava o Império do Ocidente. Diocleciano delegou mais funções em 293 ao nomear Galério e Constâncio Cloro como coimperadores júniores, ficando abaixo de si e Maximiano, respectivamente. Isto estabeleceu a Tetrarquia, em que cada monarca governaria um quarto do império. Ele garantiu as fronteiras e expurgou quaisquer ameaças a seu poder. Conseguiu derrotar os sármatas e os carpos no decorrer de várias campanhas entre 285 e 299, os alamanos em 288 e usurpadores no Egito de 297 a 298. Galério, com o apoio de Diocleciano, foi bem-sucedido em uma campanha contra a Pérsia, conseguindo saquear sua capital Ctesifonte em 299. Diocleciano liderou negociações posteriores e conseguiu alcançar uma paz favorável e duradoura.

[8] A equidade segundo a filosofia do direito clássico, se encontraria nas antípodas do direito moderno, pois a busca da equidade poderia introduzir ao raciocínio jurídico elementos de incerteza, dificilmente aceitáveis para espíritos mais afeitos ao raciocínio científico, especialmente pelos lógicos. De acordo com Hobbes é uma das virtudes morais oriunda do direito natural, não consiste propriamente em uma lei, mas em uma qualidade que predispõe o homem à obediência e à paz. A equidade ou justiça distributiva é gerada pela observância da Lei que determina que se distribua equitativamente a cada homem, o que lhe cabe, segundo a Razão. Conceito de equidade em Aristóteles + Filosofias do Helenismo (Epicurismo e Estoicismo) + Agostinho + Tomás de Aquino + Neotomismo.

[9] Corpus Juris Canonici (lit. "Corpo de Leis Canónicas") é uma compilação de fontes relevantes de direito canónico da Igreja Católica que se aplicava às Igrejas do rito latino ou rito oriental e que entrou em vigor em 1582. Foi usado em tribunais eclesiásticos da Igreja e em tribunais de apelo na Cúria Romana. Incluía seis diferentes fontes, a saber: o Decreto de Graciano, as Decretais de Gregório IC, o Liber Sextus de Bonifácio VIII, as Compilações em honra do Papa Clemente V (Clementinae) e as Extravagantes de João XXII e Extravagantes Comuns.

[10] A obra está dividida em quatro partes: Digesto (também chamado de Pandectas, seu nome grego), Institutas, Novelas e Código. É uma revolução no âmbito jurídico, pois organizou de forma sistemática a legislação e a jurisprudência romana da época, sendo uma das estruturas para o Direito Civil moderno.

[11] O termo Quinquaginta decisiones indica o complexo de medidas emitidas pelo imperador Justiniano I após a emissão do Novus Codex Iustinianus, que ocorreu em 529, e antes da publicação do Digest, que ocorreu em 533. Essas decisões, mencionadas na constituição pela qual Justiniano promulgou o segundo códice (const. Cordi, §§ 1-2), não deve ser confundido com os constitutiones ad commodum propositi operis pertinentes, que são, ao contrário, as constituições emitidas durante a compilação do Digest, a fim de resolver disputas sobre pontos específicos relativos ao vetus ius, isto é, às antigas obras dos juristas romanos clássicos. Embora oficialmente emitido pelo imperador, o autor dessas decisões foi Triboniano, questor sacri palatii de Justiniano, a quem também será confiada a tarefa de presidir a comissão para a compilação do Digest e das instituições imperiais. Esta informação pode ser obtida a partir da leitura de uma passagem das Instituições de Justiniano (I. 1.5.3): ... et dediticios quidem per constitutionem expulimus, quam promulgavimus inter nostras decisiones, per quas susuggestente nobis Triboniano viro excelso quaestore antiqui iuris altercationes placavimus... Não se pode considerar certo que as decisões de Quinquaginta, emitidas entre 1 de Agosto de 530 e 30 de Abril de 531, foram publicadas como uma colecção independente antes de serem incluídas no Codex Iustinianus repetitae praelectionis, promulgado em 17 de Novembro de 534.

[12] O estoicismo não vacila na relação vício e virtude: aquele deve ser combatido pelo modo racionalmente correto, vale dizer, cumprir as determinações da natureza, viver indiferente ao que não estiver de acordo com o logos. Logos não é propriamente razão  como é conhecido pela tradução do conceito grego para o latim ratio, calcular; seu  significado implica numa estrutura muito mais complexa além de uma simples  racionalidade. Constitui uma relação de verdade e ação verdadeira: se for o certo, então, devo viver como certo, e o logos é viver moralmente dentro do dever assumido como bom,  justo, de acordo com o prescrito pela natureza na alma, que é centelha da divindade.

[13] Zenão de Cício: fundador dessa escola filosófica no séc. III a.C. Após passar por algumas dificuldades, chegou a Atenas e ali começou a ensinar filosofia, dando início a essa tradição de pensamento;

[14] Para um estóico, existe uma conduta adequada que o leva a felicidade, isto é, quando suas ações estejam em conformidade com a natureza e seus princípios em harmonia com o cosmo. Os estoicos defendiam quatro virtudes cardeais: Coragem; Justiça; Autocontrole;. Sabedoria.

[15] Iurisprudentia. Entre os que praticam a justiça, entre os justos, há os que dela se ocupam de modo eminente e a cultivam por ofício, a promovem entre os demais e até mesmo a encaram como um valor, por assim dizer de religião. Junto à virtude de justiça, coexiste neles a virtude da prudência; os conhecimentos gerais, tanto de caráter prático e teórico como de ordem espiritual; os conhecimentos especializados de jurista, isto é, a tecnologia do direito, e o saber rigoroso do justo e do injusto. A jurisprudência é, portanto, uma virtude desenvolvida em conjunto de conhecimentos teóricos e práticos com o fim de descobrir cientificamente o justo e realizá-lo num meio social dado.

[16] Essa Física estoica é o espaço em que os indivíduos transitam a partir de uma ordenação dada, esse sentido de espaço é pensado como parte integrante da vida de todos os  seres que se sentem uns aos outros, que se percebem como necessariamente vinculados, mesmo que se reconheçam como unidades próprias. Nesse particular, os estoicos alimentam o carácter do indivíduo sem, com isso, torná-lo indiferente, pois a Física estoica  não distancia estaticamente os seres envolvidos; pelo contrário, os aproxima na medida em  que toma a natureza como movimento racional. É nesse movimento racional que a unidade  entre os indivíduos é posta, sustentando, por assim dizer, o corolário de simpatia universal  como pressuposto do cosmopolitismo defendido por Zenão. Segundo Henri Bérgson, o  princípio fundamental da Física estoica repousa sobre o corpóreo: “tudo que é, é corporal [sendo] a forma inseparável da matéria.”

[17] Segundo Jean Brun, “a lógica não é, pois, para os estoicos, o que é para Aristóteles, um ‘organon’, um instrumento, uma técnica, uma arte de pensar, ela é, pelo contrário, a expressão de uma  adesão”, um bastar-se a si mesmo, isso porque o conhecimento não tem outro fim senão se  conhecer para ser conforme ao logos como princípio do assentimento.  Dessa forma  também se compreende que o conhecimento, segundo os estoicos é, desde o começo,  penetrado de razão e pronto a abrandar-se ante o trabalho sistemático da razão, por isso as  noções têm sua origem na espontaneidade dos raciocínios vindos da percepção, nesse  sentido a noção de bem “promana de uma comparação, pela razão, de coisas percebidas  imediatamente como boas”.  Assim, o conhecimento pode ser entendido como percepção  pelo fato de representação total, isso em razão de ser sistemático e racional, constituindo ato  de captar o objeto sensível. Dessa forma, influenciou o empirismo cujo objeto exterior provoca sensações no sujeito que o percebe. Conforme Brun: Para os estoicos, natureza, Deus e fogo são termos sinônimos; divinizar a natureza, ou antes, naturalizar Deus, é dar ao homem a possibilidade de  entrar em contato com ele e de encontrar, na realidade que o envolve, a  consistência susceptível de dar a sua vida uma significação ordenada.

[18] O projeto estoico é uma clara contestação ao ideal do mundo antigo que separava os homens em virtude de sua etnia, e sua fundamentação teórica não poderia ser outra senão a  divina, ao que antecede à própria organização política, em que o homem está preso e  mentalmente subordinado.

[19] O Direito Natural que no mundo antigo-medieval, mutatis mutandis, era entendido  como uma ordem necessária ao mundo dos homens, passa a ser compreendido, a partir do  século XVII, como um conjunto de direitos intersubjetivos em virtude da própria condição  racional humana, se tornando princípios-pressupostos inspirador de dada ordem legal cujo  fim seria proteger os direitos concernentes à pessoa, nesse sentido, o jusnaturalismo busca  na razão esse elemento universal e necessariamente válido. O pensamento jusnaturalista é variado e múltiplo. Nele existem diversas matizes desde o catolicismo de Francisco Suárez  passando pelo protestantismo de Hugo Grotius e o atomismo de Samuel Pufendorf até o  materialismo de Thomas Hobbes.

[20] Anote-se, enfim, o conteúdo ético da definição do jurista Celso: o bom e o equitativo, bem como a denominação "arte" dada ao Direito. Celso não distingue, portanto, o Direito da Moral, o que é a característica do Direito Romano, além de realçar o aspecto do Direito como técnica, como ofício, como prática enfim dirigida à vida. Com efeito a definição de Celso indica que o Direito se vincula à busca pela justiça, aos princípios que permitem ordenar a sociedade de forma correta. Indica também que o Direito não oferece respostas claras e definitivas. O Direito é uma arte que permite dar diferentes soluções, dependendo do momento, das pessoas envolvidas, da situação social e política e das opiniões dos juízes. Considerar o Direito como arte significa introduzir em sua definição a ideia da política, da ponderação de interesses e da contínua mudança. Podemos dizer que em sua visão a finalidade do Direito é a realização da justiça, mas para  tanto existem muitos caminhos. O Direito é uma arte em constante movimento. (In: DIMOULIS, 2003).

[21] Segunda essa lei, o adultério era definido como uma relação sexual entre uma mulher casada e um homem que não era seu marido. A sentença, para ambos, era o exílio em ilhas diferentes e o confisco de parte dos bens, em geral, a metade do dote da mulher, mais um terço de seu patrimônio, e metade do patrimônio do homem que cometeu a ofensa. Porém, em alguns casos, a sentença era de morte.

[22] O Direito Natural pode ter suas raízes platônico-aristotélicas se pensado sob a ótica  da influência católica desde Santo Agostinho até São Thomaz de Aquino passando por  Suárez, mas como bem assinala Ernest Cassirer, “o racionalismo político do século XVII foi  um renascimento das ideias estoicas” pelo fato de se buscar a razão como elemento  essencial, uma vez que o pensamento estoico estava descolado tanto da Reforma  protestante como da Contra-Reforma católica, buscando ligação direta com as  investigações de Galileu Galilei e René Descartes, que privilegiavam em suas pesquisas a  linguagem matemática como decifração dos princípios gerais que regem o universo. Na  visão de Quentin Skinner, a influência do estoicismo nos primórdios do pensamento ainda  não foi devidamente estudada, sobretudo o papel do estoicos romanos.

[23] Exemplos de máximas estoicas:

Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida. – Sêneca.

“A riqueza não consiste em ter grandes posses, mas em ter poucas necessidades.” – Epicteto.

“Você tem poder sobre sua mente – não sobre eventos externos. Perceba isso e você encontrará a sua força.” – Marco Aurélio.

“Sorte é o que acontece quando a preparação encontra a oportunidade “. – Sêneca.

“Todos nós podemos errar, mas a perseverança no erro é a verdadeira loucura “. – Zenão.

“A felicidade de sua vida depende da qualidade de seus pensamentos.” – Marco Aurélio.

“Quem não se contenta com pouco, não se contenta com nada.” – Epicuro.

“O amigo é um segundo eu “. – Zenão.

“As dificuldades fortalecem a mente, assim como o trabalho o faz com o corpo “. – Sêneca;

“Pense na beleza da vida. Observe as estrelas e veja-se correndo com elas.” – Marco Aurélio.

[24] Sêneca foi preceptor de Nero Cláudio César. Conhecido por sua peculiar crueldade como degolar todos os exilados e todos os gauleses que se encontrassem em Roma, como cúmplices dos seus compatriotas. Envenenou o senado inteiro no decorrer de um festim. E, incendiou a cidade de Roma e soltou as feras contra o povo. Tinha como projeto também substituir Roma por Nerópolis. E, estava com 32 anos de idade quando faleceu, exatamente no mesmo dia em que havia mandado assassinar Otávia.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: História do Direito Direito Romano Estoicismo Filosofia do Direito Equidade

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